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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dic. 2007

 

JORNADA DA TEORIA DOS CAMPOS E SBPSP - RELAÇÃO ENTRE TEORIA E CLÍNICA: A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO

 

Níveis de interpretação: uma narrativa clínica

 

Levels of interpretation

 

Niveles de interpretación

 

 

Izelinda Garcia de Barros*

Membro efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de recortes da análise de uma paciente, apresento algumas idéias sobre níveis de interpretação correlatos a diferentes estratos da mente que se caracterizam por formas de comunicação e tipos de angústia específicos. Essas hipóteses, encadeadas pela primeira vez neste texto, formaram-se progressivamente no exercício de pensar sobre o trabalho analítico diário com crianças, adolescentes e adultos dentro de amplo espectro de distorções, estancamentos e inibições de desenvolvimento emocional.

Palavras-chave: Interpretação, Investigação clínica, Desenvolvimento de conceitos.


ABSTRACT

Through fragments of clinical material of a patient, the author presents some ideas about levels of interpretation correlated with to different configurations of the mind which are characterized by specific anxieties and ways of communication. These hypotheses elaborated for the first time in this paper were gradually put together through the author’s exercise of thinking over her daily clinical practice with children, adolescents and adults within a large spectrum of distortions, stifling states and inhibitions in emotional development.

Keywords: Interpretation, Clinical investigation, Concepts development.


RESUMEN

A partir de recortes del análisis de una paciente, presento algunas ideas sobre niveles de interpretación relacionados a distintos estratos de la mente que se caracterizan por formas de comunicación y tipos de ansiedades específicas. Estas hipótesis están concatenadas por la primera vez en este texto; fueron formándose progresivamente en el ejercicio de pensar el trabajo analítico cotidiano con niños, adolescentes y adultos, dentro de un espectro amplio de distorsiones, estagnaciones e inhibiciones del desarrollo emocional.

Palabras clave: Interpretación, Investigación clínica, Desarrollo de conceptos.


 

 

Neste texto procuro apresentar algumas idéias sobre níveis de interpretação relacionados com diferentes estratos da mente que se caracterizam por formas de comunicação e tipos de angústia específicos.

São de fato hipóteses que, encadeadas pela primeira vez neste texto, vieram progressivamente tomar corpo ao cogitar sobre meu trabalho clínico diário com crianças, adolescentes e adultos, dentro do amplo espectro de distorções, estancamentos e inibições de desenvolvimento emocional que pontuam uma análise.

O trabalho ora apresentado constitui modesta homenagem ao talento, criatividade, cultura e integridade científica do colega Fabio Herrmann, que tão cedo nos deixou.

Os trechos que o baseiam foram extraídos dos registros clínicos de uma análise que iniciei há cinco anos.

Há longo tempo, o meu hábito de transcrever sessões tem-se mostrado bastante útil sob vários aspectos. Assim, creio que esse exercício — nomear de modo razoável as vivências da dupla analítica e organizar as palavras conforme as exigências do pensamento lógico — tenha um efeito saneador para a mente do analista após as atividades da sessão: desintoxica-o tanto das projeções do paciente como dos resíduos do seu próprio metabolismo mental decorrentes da atividade na terapia.

Refletir com freqüência sobre os eventos de cada dia propicia, ainda, o emergir de articulações sutis entre os movimentos da sessão e enseja acompanhar minúcias da história daquele processo analítico em particular.

A narrativa clínica e seus comentários foram distribuídos em cinco módulos:

1) Apresentando Anita

2) O início da análise

3) Outro momento

4) O sonho

5) Últimas considerações

6) Anita se despede

 

1) Apresentando Anita

Mulher de cerca de quarenta e cinco anos, aparência agradável, educada, gentil e, em geral, muito bem-humorada, minha analisanda é profissional de sucesso que ama seu trabalho. Esportista, leitora incansável, apreciadora das artes e da boa comida, ela compartilha esses prazeres com amigos e familiares.

Não tem filhos e mora só com seus animais de estimação, embora sua casa seja bem movimentada pelo entra-e-sai dos jovens sobrinhos que estudam e trabalham por perto. Em virtude de sua afeição por eles, Anita de boa vontade adaptou a rotina doméstica a essa presença.

Sucinta em sua apresentação, Anita conta que procurou ajuda por estar na iminência de ruptura de relacionamento amoroso muito importante. Face à instabilidade da relação, a gravidez incipiente era um fator complicador e ela não sabia se devia mantê-la. Nas entrevistas seguintes, porém, ficou claro que Anita desejava o filho e buscava forças para assumir essa gravidez, mesmo sem o apoio do companheiro. No entanto, poucas semanas depois teve um aborto espontâneo.

Naturalmente, ainda se sentia muito deprimida, aflita e insone.

Conversamos algumas vezes antes do contrato da análise e, face à intensidade dos sintomas, concluímos ser necessário avaliar a indicação de retaguarda psiquiátrica.

Apoiada nos dados biográficos apresentados, concluí que ela se achava em quadro de depressão reativa aos acontecimentos em curso.

Iniciamos sua análise com quatro sessões por semana, de segunda a quinta-feira.

 

2) O início da análise

Quando me via, Anita sempre abria um sorriso de alegre surpresa, que me lembrava o “sorriso de reconhecimento” descrito pelos etologistas.

Em contraste com a recepção solar, o clima da sessão era cinzento. Vivências dolorosas, que despertavam compaixão e simpatia, eram relatadas de modo neutro, sem entonação, desvitalizado, como que a advertir sobre uma esperada cisão defensiva entre afeto e pensamento.

Certo dia, para minha grande surpresa, o discurso monocórdio evoluiu subitamente para o acesso paroxístico de desespero. A moça chorava, debatia-se no divã, dava violentos socos na própria cabeça e bradava queixas contra si mesma e contra mim.

Ato contínuo, Anita levanta-se do divã e anuncia que ia embora, já que eu nada fazia por ela.

Sobressaltada, diante do inesperado da explosão emocional, fiquei paralisada, em silêncio, mas lutando para me recuperar e encontrar alguma idéia que pudesse nos acudir. Percebi com clareza que eu procurava me libertar do susto e desconforto mas não tencionava me livrar de Anita; não queria que ela se fosse…

Diante da urgência da situação e da falta de alternativas, simplesmente pedi-lhe que, por favor, não se fosse ainda. E, um pouco mais calma, ela voltou ao divã.

Episódios semelhantes aconteceram outras vezes, sempre causando susto e desarranjo. Da repetição deles, porém, emergiram alguns padrões que orientavam minhas respostas e abriam algum espaço para o diálogo.

Assim, em ocasião semelhante, quando comentei afirmativamente: “Você está exausta”, ela replicou, concordando: “Sem fôlego”. E seguiu-se um silêncio permeado por agradável sentimento de tranqüilidade. Mas, nas vezes em que tentei continuar a investigação sobre o que tínhamos acabado de viver, a resposta foi enfática: “Chega deste assunto”. E me calava.

Apresentei acima alguns dados biográficos de Anita como parte do meu interesse em destacar, incrustadas em estruturas neuróticas que permitem o ajuste funcional do paciente às demandas da sobrevivência, a existência de áreas vitais, pouco desenvolvidas, que a meu ver só encontram oportunidade de expressão e transformação no setting analítico.

No seu ritmo, entretanto, Anita contribuía para que pudéssemos nos aproximar do entendimento de suas crises, através de relatos que fazia em outras sessões. Tanto o aspecto sonambúlico quanto os rompantes de desespero que eu presenciava impregnavam o seu cotidiano. Atividade profissional e relações amorosas pareciam-lhe acontecimentos nos quais sua participação era escassa. “Vão acontecendo”, ela dizia.

Vez ou outra, em certos fins de semana, descrevia experiências de grande desespero. Vejamos um fragmento de sessão desse período.

Anita está de pé na sala de espera, muito abatida, com a aparência descuidada, que não é a sua habitual. Quase não levanta os olhos quando apareço e, como a se arrastar, entra lentamente no consultório.

Como sempre, ao abrir a porta da sala de espera, eu estou muito atenta para a primeira impressão do encontro. É um hábito antigo, derivado do trabalho com crianças e que aplico a todos os meus analisandos. Valorizo bastante a resposta não-verbal dos pacientes ao impacto da presença do analista em carne e osso. Com freqüência esta observação se acompanha de flash onírico que fica como pano de fundo, aguardando sentido. No caso, o que vagueia pela minha mente é a imagem de uma lesma, que, segundo dizem, desfaz-se no sal.

Anita deita- se no divã e diz: “Acho que vou desistir”.

Complemento então: “Acho que vou desistir, não agüento mais, estou exausta”.

Ela concorda: “Estou exausta”.

E continua contando que ficou em casa no fim de semana e foram crescendo na sua cabeça pensamentos sombrios sobre o futuro. Coisas que a sufocavam de medo e dor. Pensou em ligar o telefone para alguém. Mas quem? Falar o quê? Buscou refúgio na cama, onde, enrolada nas cobertas, invectivava contra si mesma em alta voz, a chorar e pedir a morte.

À medida que prossegue o relato, o desespero evocado materializa-se sob a forma de gritos, socos e ataques verbais contra si mesma. Exatamente como acontecera em sessões anteriores.

À imagem da lesma de jardim (um molusco desprovido de concha protetora) evocada no encontro com a paciente, articulou-se então o discurso pungente da paciente, e encadeou-se, em minha mente, à descrição da angústia de aniquilamento, corolário de vivências ligadas a falhas básicas de introjeção de uma pele psíquica, continente para as partes do self.

Considerando esta hipótese, o comportamento auto-agressivo se esclarece como recurso defensivo de buscar, através de estimulações sensoriais, um limite, uma segunda pele, por assim dizer, capaz de trazer algum alívio a experiências terroríficas de esvaziamento.

Falo, então, que era um terror encontrar-se sozinha em uma emergência sem ter acesso a nenhum socorro (entendo que, nestas circunstâncias, pôr em palavras a simples descrição deste estado corresponde ao nível de interpretação adequado para esta vivência primitiva).

Anita acalma-se um pouco. Há um silêncio e parece-me que ela estava “processando” meu comentário.

Em tom de voz um pouco mais baixo, reclama que as sessões a desestabilizam. Mas, depois de outra pausa, emenda “não são de agora os pensamentos, só que não penso” (nesse ponto fica implícito que, com a análise, esse mecanismo de cisão está menos eficiente).

Aqui, uma ponderação se faz necessária ao leitor.

As condições específicas nas quais se dá o encontro analítico favorecem ao paciente mais fluidez quanto ao curso livre de idéias e vivências correspondentes a vários estratos da mente.

Dentre os atributos inerentes ao trabalho analítico, a disciplina para manter ativo o binômio atenção flutuante/abstinência cria, no analista, um estado de mente particular, capaz de ampliar a capacidade para receber e atribuir significado às comunicações do paciente. Nessa função, ele alivia e modifica a ansiedade prevalente e oferece um modelo diferente para tratar as emoções: em lugar de expulsá-las, sonhá-las e transformá-las através do pensamento.

As duas pessoas que ocupam os lugares potenciais de paciente e de analista, quando acertam o contrato analítico, progressivamente constituirão uma dupla exclusiva, igual a nenhuma outra, e na qual cada participante é determinado pelo outro.

O analista interfere de várias maneiras no curso dos acontecimentos da sessão. Acredito que a interpretação veicula continência e sentido, atributos dotados de especificidade própria mas inseparáveis como faces da mesma moeda.

A experiência clínica mostra que diferentes níveis das vivências ativadas no encontro analítico demandam tipos particulares de interpretação.

No caso de Anita, as dificuldades inerentes à nossa escassa familiaridade somaram-se à irrupção de angústias de aniquilamento — as quais não seriam esperadas em seu quadro clínico — que, impossíveis de serem processadas psiquicamente, vieram encontrar alívio na atuação motora.

Diferentemente das angústias persecutórias e depressivas, que se referem a objetos parciais ou totais já existentes, a angústia de aniquilamento, como já mencionei acima, indica deficiências primárias no processo da introjeção do objeto continente e demanda um tipo particular de interpretação baseada, prevalentemente, em elementos não-verbais que emanam da rêverie do analista.

Acredito que as interferências verbais e não-verbais descritas até aqui pertencem a este nível particular de interpretação, distinto daquele que corresponde ao modelo clássico de revelar ao paciente o material inconsciente, atualizado na sua relação com o analista.

Entendo também que, no caso de situações agônicas intensas, quando o próprio analista é sugado pelo turbilhão emocional do paciente, são testadas, no seu limite, as condições de sinceridade do analista consigo mesmo e com o seu trabalho naquele momento.

 

3) Outro momento

Neste item apresento, quase na íntegra, o registro de uma sessão que mostra vários níveis comunicativos da paciente e o trabalho de construir interpretações que preenchessem suas funções de continência e simbolização adequadas a cada um destes níveis.

A análise de Anita caminha e alguns personagens começam a se configurar. Aquele que mais vezes aparece em suas crises de desespero é um personagem de grande valência afetiva no seu mundo interno, é a mãe-que-não-a-ama-e-só-critica. Outro personagem, mais apagado, o pai-hipocondríaco-que-só-caçoa, completa a dupla parental.

Personagens queridos também vêm colorindo a trama das sessões: os sobrinhos, seus animais, a veterinária que cuida deles. São personagens próximos e replicam-se nos vários círculos de seu relacionamento.

As vivências terrificantes passam a conviver com ansiedades persecutórias referidas a objetos específicos e vez ou outra Anita chega até a descrever curtas vivências de bem-estar. No entanto, demandas naturais da vida podem levá-la de volta a estados de terror que davam a tônica no início do trabalho.

Certo dia ela chega atrasada, indignada e um tanto arquejante. Ao vê-la, ocorre-me a expressão “pondo a alma pela boca”. Deita-se e fica quieta, no que me parecia um silêncio ressentido. Para iniciar a conversa comento: “Você chegou aqui quase sem fôlego”... Interrompe-me, porém, impaciente: “Você pensa que você é um cilindro de oxigênio? — sempre com esta história de fôlego!”. Faz pausa, recompõe-se e diz: “Desculpe a má-criação”. E silencia.

Depois conta exaltada: “Um homem na rua estava surrando o cachorrinho. Ai, que ódio! É de tirar qualquer um do fôlego”. Logo percebe seu ato falho e corrige: “É de... é de tirar qualquer um do sério...”.

Ri, a tensão diminui, e ela me relata o episódio do cachorrinho. Critica-se por não ter interferido. Teve ímpetos de fazê-lo, mas acovardou-se, com medo de a violência voltar-se contra ela. E, com emoção crescente, agride-se com imprecações, socos na cabeça, e chora desesperada.

A imagem do homem batendo no pequeno cão se repete sem cessar no meu espírito. Enquanto Anita faz seu relato, eu começo a sentir dor de cabeça acompanhada por desconforto gástrico próximo de náusea e, ao mesmo tempo, em sobressalto, sinto receio da violência da moça, temor de não ser capaz de lhe dar alívio, medo de ser violentamente rejeitada.

Anita me interpela um tanto irônica: “E você, não vai dizer qual é o meu problema?”.

Entendo que é a deixa para que me aproxime.

Depois de algum silêncio, em que procuro me organizar, digo-lhe que tudo aquilo soa como um pesadelo em que a única cena se repete infinitamente.

Anita ainda irônica, porém mais branda, replica: “Só isso?”.

Silencia por um momento e volta a seu tom habitual de voz: “Aliás..., nas minhas crises tem umas coisas que se repetem sem parar na minha cabeça”. No contexto do diálogo o uso do advérbio aliás sugere certa concordância comigo, o que me anima a continuar na investigação.

Pergunto-lhe se essas coisas se parecem com o caso do homem e do cachorrinho. Ela fica um pouco surpresa, pensa um pouco e concorda que há semelhanças. Suas associações evocam personagens já nossos conhecidos, em particular a mãe-que-não-a-ama-e-só-critica e o pai-hipocondríaco-que-só-caçoa, os quais se atormentam recíproca e continuamente, exceto quando se juntam para atacar Anita.

A configuração edípica primitiva, em que elementos sádicos destrutivos podem predominar sobre os aspectos genitais, criativos, orientou-me o raciocínio que passei a lhe apresentar como se segue.

“Penso que este casal monstruoso foi despertado pelas emoções vividas quando você viu a cena do cachorrinho sendo espancado. Parece-me que você não tem dificuldade em se perceber identificada com o cachorrinho agredido, mas há evidência de que você incorpora o casal monstruoso quando se critica de modo tão virulento.” Anita fica indignada com tal hipótese.

Defende-se trocando minha proposição e comenta, ainda aborrecida, que jamais bateria assim em um cachorrinho.

Depois de tanto tempo a caminhar junto, confio na expectativa de esta resposta ser outra insolência, entendida como um recurso para não dar o braço a torcer. Mas, pelo clima bem distenso da cena, entendo que Anita vai explorar as várias possibilidades de articulação que esta oportunidade lhe oferece.

Dando continuidade à interpretação proponho que o objeto odioso também estaria projetado em mim... Lembro-me de seu atraso e sua afobação no começo da sessão. Seria resultante de projetar em mim o objeto combinado, que reagia à sua debilidade de modo tão cruel?

Dados os movimentos de aproximação que identifico no decorrer desse encontro, decido pela formulação que foi, então, apresentada aproximadamente como se segue: “Já sabemos, de outras ocasiões, como você fica assustada e se retrai quando experimenta alguma desatenção de minha parte. Sua ansiedade no início da sessão bem poderia estar ligada à suposição de que encontraria agora meu lado vingativo, o qual, associado a seu próprio lado maldoso iria levar-me a moê-la de pancada”.

Espero um pouco, Anita continua a me ouvir atenta. Interessada.

Completo então: “Mas o clima mais leve aqui, entre nós, me faz pensar que é possível acreditar que exista outro tipo de casal, que unindo suas competências cuida bem dos filhos...”.

 

4) O sonho

Lembro aos leitores que a alternância entre estados de apatia e de súbito aparecimento de intensas manifestações corporais é uma das características do processo analítico de Anita. Progredimos bastante na compreensão dos estados de violenta ruptura, entendidos genericamente como a falência de sua capacidade de conter e metabolizar emoções que lhe acompanhavam as transações com objetos internos e externos.

Já os estados de apatia foram menos pesquisados. Muitas vezes sua descrição desses estados evocava em mim horror, ligado à fantasia de ter consciência de estar enterrada viva, sem outro recurso senão desejar o alívio da morte, mas confesso que nunca cheguei a uma formulação desta vivência que tivesse potencial transformador, e assim guardei para mim tal referência.

Um sonho recente de Anita mostra as transformações que sofreram essas vivências mortíferas de total imobilidade. Ele expressa, também, receio e confiança no trabalho analítico. Das anotações clínicas pode ser resumido:

“Eram três os iguanas desaparecidos. Meu sobrinho de quinze anos me disse, apontando para um canto escuro: ‘Olha, tia, eles estão lá’”.

“Era horrível! Estavam cobertos por uma segunda pele, uma carapaça que os tolhia. Ela começava nos membros e ia imobilizando tudo.”

“Alguém — um farmacêutico — ensinava a receita para dissolver a carapaça.”

“Era um processo que tinha de aplicar um líquido. Um ácido. Esse produto podia queimar a pele boa que estava por baixo da carapaça, por isso o trabalho precisava ser feito com muito cuidado. Mas deu tudo certo.”

Ela comenta que os iguanas, seres muito antigos, já existiam na pré-história. O sobrinho, no sonho, é sagaz e eficiente nas suas tarefas e o farmacêutico, ela diz com certo humor, podia ser um analista.

Entendo que a carapaça que avança em direção ao centro do animal se superpõe à minha própria imagem de ser enterrada viva. O sonho traz o desenvolvimento desta idéia.

Seu conjunto pode ser interpretado assim: os traços vigorosos em desenvolvimento na personalidade de Anita, que são representados pelo sobrinho, tiraram da sombra e da apatia aspectos que há muitíssimo tempo vivem precariamente. A situação dos animais — imóveis, escondidos no escuro, recobertos por uma carapaça que irá matá-los — sintetiza em imagem o conhecimento inconsciente dos danos em decorrência dessa forma de defesa.

O sonho informa também que, por suas características, o remédio deve ser aplicado sob a prescrição de um agente habilitado.

Penso que este último item condensa três informações: o reconhecimento da eficiência da análise, a advertência de que é preciso usá-la com cuidado e que ela pode danificar tecidos vivos. Para completar, este último item exemplifica as necessárias competências do objeto (a analista) que ministra o remédio com perícia: firme e confiante no conhecimento e delicado no cuidado com sua aplicação.

Na seqüência do trabalho, partes deste sonho operam como ponto de partida para novos entendimentos; nestas ocasiões se estabelece nítida parceria, que interpreto como um casal unido nos cuidados com a prole.

Mas, nos momentos em que a qualidade ou ritmo das interpretações não é adequado, rompe-se a parceria e aparecem as respostas de desespero e retração. Essas, ainda que mitigadas em sua expressão, persistem por muitas sessões, até que seja reconstruído o bom farmacêutico-analista, o suficiente para dar continuidade ao tratamento da carapaça e à proteção dos aspectos vivos que anseiam pelo desenvolvimento.

 

5) Últimas considerações

Para concluir, creio que o conceito atual de interpretação que orienta meu pensamento pode ser formulado do seguinte modo: a interpretação é o resultado de um esforço conjunto, assimétrico, que envolve aspectos conscientes e inconscientes do analista e predominantemente inconscientes do analisado para formular, em linguagem verbal, diferentes níveis de experiências emocionais que se atualizam no encontro analítico.

A atividade interpretativa do analista se dá por dupla ação: continência na interpretação e simbolização. A continência na interpretação consiste em recolher os dados heterogêneos de comunicação verbal e não-verbal do paciente em busca de equivalentes fantasmáticos que propiciam as transformações simbólicas.

Esta segunda parte, a simbolização, será apresentada como ações interpretativas ou interpretações verbais, dependendo do nível de funcionamento mental ativado no paciente.

 

6) Anita se despede

Não posso encerrar, porém, este artigo sem mencionar em que ponto se encontra o trabalho com Anita. Ela lamenta profundamente não ter se casado, não ter tido filhos, não ter, como diz, “uma família própria”. Vive essa condição como uma falha grave de personalidade que a envergonha e que devia ser ocultada a qualquer custo, em qualquer circunstância. Isso impediu, até recentemente, que tal assunto fosse objeto de exame na própria análise.

Esta nódoa — via final comum para onde convergem todos seus medos e inseguranças — é apresentada assim: quem não foi capaz de casar-se e ter filhos certamente não será capaz de nenhum outro empreendimento de sucesso.

No momento em que encerro este texto, os significativos progressos obtidos na recuperação e desenvolvimento da sua capacidade simbólica têm-nos permitido desembaraçar os vários fios, de diferentes tonalidades afetivas, que compõem este novelo ou nó emocional, certamente um obstáculo para que ela possa usufruir melhor suas qualidades e conquistas.

Dado o estilo narrativo do texto, escrito inicialmente para ser lido em público, optei por não fazer referência exaustiva a obras e autores que sustentam as hipóteses aqui desenvolvidas. Como se pode facilmente depreender, o pensamento kleiniano, desde Melanie Klein aos contemporâneos, é a linha mestra do meu trabalho. Acrescento ainda a influência latino-americana do casal Baranger, e uma recente “descoberta” da obra de Matte-Blanco. Anne Alvarez, Antonino Ferro e colaboradores, Ogden e os colegas brasileiros especialmente da SBPSP, estão no meu portfolio de referências, sempre aberto para novas inclusões.

Assim como me considero kleiniana paulista, modelada pelo ambiente em que me desenvolvi, acredito que a Teoria dos Campos tem sua origem na imersão de um pensador/escritor do porte de Fabio Herrmann nesse cadinho de múltiplas tendências que é a SBPSP.

 

 

Endereço para correspondência
Izelinda Garcia de Barros
R. Monte Alegre, 1623 — Perdizes
05014-002 São Paulo, SP
E-mail: izebarros@uol.com.br

Recebido em: 16/11/2007
Aceito em: 27/11/2007

 

 

* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP. Analista de crianças.

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