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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dez. 2007

 

JORNADA DA TEORIA DOS CAMPOS E SBPSP - RELAÇÃO ENTRE TEORIA E CLÍNICA: A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO

 

A interpretação: limites e rupturas de um conceito e de uma prática1

 

The interpretation: limits and ruptures of concept and practice

 

La interpretación: limites y rupturas de un concepto y de una práctica

 

 

Julio Frochtengarten*

Membro efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apesar de a interpretação ser considerada o instrumento por excelência dos psicanalistas, as modificações teóricas e clínicas ocorridas ao longo do desenvolvimento da psicanálise acabaram por trazer mudanças no conceito de interpretação que nem sempre têm sido consideradas. O autor se propõe a examinar alguns aspectos do conceito que lhe parecem relevantes dentro da evolução da própria teoria freudiana, na teoria kleiniana e, principalmente, como podemos compreender este conceito a partir das contribuições de Bion. Fiel à sua tradição clínica, finalmente apresenta uma sessão sua como ilustração das idéias discutidas.

Palavras-chave: Interpretação, Construção, Contratransferência, Experiência emocional, Pensamento, Transformações.


ABSTRACT

Despite the fact that interpretation is considered to be the preeminent tool by psychoanalysts, theoretical and clinic shifts that have occurred since the development of psychoanalysis, which have not yet been given due weight, have shed new light on the concept of interpretation. The author proposes to examine some of these shifts in the concept from the perspective of Freudian theory, Kleinian theory and essentially how we can comprehend the concept of interpretation from Bion’s contributions. Accomplished to his clinic, the author will finally present a session from his own clinic as an illustration of the ideas discussed in the article.

Keywords: Interpretation, Construction, Countertransference, Emotional experience, Thought, Transformations.


RESUMEN

Aunque la interpretación es considerada el instrumento por excelencia de los psicoanalistas, las modificaciones teóricas y clínicas ocurridas a lo largo del desarrollo del psicoanálisis resultaron en cambios del concepto de interpretación que no siempre fueron considerados. El autor se propone a examinar algunos aspectos relevantes del concepto en la evolución de la propia teoría freudiana, en la teoría kleiniana y, principalmente, la comprensión de este concepto a partir de las contribuciones de Bion. Fiel a su tradición clínica, presenta una sesión de modo a ilustrar las ideas discutidas.

Palabras clave: Interpretación, Construcción, Contratransferencia, Experiencia emocional, Pensamiento, Transformaciones.


 

 

A interpretação, instrumento por excelência da psicanálise, está sendo, aqui neste simpósio, objeto de uma ampla discussão. O que estará nos levando a isto? Este instrumento perdeu sua força e eficácia? Mudaram os pacientes e novas patologias requerem uma adaptação do instrumento ou, quem sabe, até um novo instrumento? Ou foi a psicanálise que mudou e seu instrumento por excelência tem que ser repensado?

Penso que se algo mudou fomos nós, os psicanalistas, e nosso modo de compreender, tanto a psicanálise como seu método e, conseqüentemente, nossos pacientes. Sendo assim, qualquer discussão sobre interpretação terá que incluir o que pensamos nós, hoje, sobre psicanálise, seus objetivos e os instrumentos para alcançá-los, bem como uma reflexão sobre seu modo de atuar, o método.

A interpretação surgiu em psicanálise ligada ao primeiro conceito de transferência. Neste, Freud afirmava que os pacientes substituíam figuras e modelos importantes da sexualidade infantil pela figura do médico. Estas substituições tinham o caráter de obstáculos, e à interpretação caberia estabelecer, através da palavra, as relações entre as figuras parentais e do médico, e os tempos passado e presente.

Vale ressaltar que a qualidade de obstáculo da transferência se devia à finalidade mesma da análise, qual seja, a recordação dos eventos traumáticos. A transferência era, então, algo inevitável e indesejável, mas que recebe de Freud, ao mesmo tempo, o caráter de algo útil para, a seguir, se alcançar o objetivo da recordação.

Mas como as resistências são atuadas, elas se tornavam forças muito poderosas contra a própria análise, principalmente as chamadas transferências negativas e as positivas inconscientes. Neste momento evolutivo, compreendia-se haver uma oposição entre a relação real com o médico — para fora da qual o paciente seria arremessado — e a relação transferencial.

Mas Freud percebe que, para o paciente, a relação transferencial atuada também é real. E nesta circunstância ele deixa de colaborar, esquece as intenções de cura, torna-se indiferente aos argumentos e à lógica, não recorda as relações infantis, mas as reproduz de acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de alucinação. A transferência, estando a serviço da compulsão à repetição, coloca o analista frente a grandes problemas para obter as recordações.

É dentro destas adversidades que o analista deveria empreender seu trabalho de interpretação. Talvez aqui a interpretação, como instrumento por excelência do analista, esbarre, pela primeira vez, num limite e perde parte de sua força, pois esta se dá num registro diverso das forças que levam o paciente a repetir. O analista, para seu sofrimento, está sempre no interior desta luta intelectual versus instintual, compreensão versus ação.

Talvez em função das dificuldades enfrentadas com a almejada elaboração, no artigo “Recordar, repetir, elaborar” (1914/1969a) Freud começa a falar numa arte da interpretação.

Em 1920, em Além do princípio do prazer a compulsão à repetição, até então um fenômeno clínico, passa a ser conceituada como característica inerente aos instintos; surgem daí dificuldades com o conceito de interpretação. Por estar ligado aos instintos de morte, o que é repetido compulsivamente não integra as cadeias associativas e, portanto, há toda uma área que não pode ser atingida pela interpretação. Conceitualmente, o trabalho do analista encontraria um novo limite. Mas, na clínica, as coisas se passam diferentemente, as análises progridem e os pacientes se beneficiam delas, o que é um alívio para os analistas; pois é provável que instintos de vida e de morte se apresentem fundidos.

Parte destes problemas se resolve com as diferenças introduzidas pela segunda tópica: uma parte originária do id é inconsciente, mas não recalcada; o próprio ego tem uma parte inconsciente; pode haver um masoquismo original (e não apenas secundário ao sadismo). Toda a psicanálise vai adentrar pela área das psicoses. E o instrumento do analista terá que sofrer, na prática e na teoria, as modificações correspondentes para ser efetivo nestas áreas de destrutividade, não-inscrição, compulsão à repetição e reação terapêutica negativa.

Estas áreas poderão ser abordadas através da transferência positiva, o que vai depender de dois fatores mencionados por Freud em Além do princípio do prazer: a força relativa entre a psicanálise e as alterações que até o momento o ego já sofreu; e a força relativa entre os instintos de vida e os instintos de morte.

Como se pode ver, a interpretação não é mais um simples instrumento para restabelecer cadeias associativas ou preencher lacunas de memória. Como se dá a partir deste momento o trabalho do analista?

Em “Construções em análise” Freud sugere, além da interpretação, que o analista utilize um outro instrumento: a construção, algo que o analista coloca frente ao paciente quando a este faltam as recordações. A construção seria uma conjectura que aguarda exame, e “só o curso ulterior capacita decidir se a construção é correta ou inútil” (Freud, 1937/1969b, p. 300). Mesmo que a construção não dê lugar à recordação, seu resultado é semelhante, afirma ele. Isto quer dizer que as mudanças que ocorrem com o paciente não se dão por uma promoção de conhecimento. E mais: que o analista participa do processo, mas não mais como aquele que desvela e revela. Continua-se usando o termo interpretação, mas como se vê seu significado mudou muito.

Quando Klein (1952/1991) enuncia que desde o início da vida existem relações de objeto, ela indica também a existência de um ego primitivo, de funcionamento precário. A contraparte resultante disto é que os objetos são mistos de realidade e fantasia, amados e odiados, externos e internos, persecutórios e idealizados — pois eles são frutos de cisões, projeções e negações e, também, da flutuação entre os padrões oral, anal e fálico. Estes objetos, bem como as diversas modalidades de relação com eles, se presentificam na transferência, com o analista desempenhando aspectos do pai e da mãe distorcidos pelas projeções e introjeções. A dimensão primitiva da mente, com os elementos primitivos do complexo de Édipo e do superego, bem como o papel central da destruição e do sadismo, colocam agora o analista, na conceituação kleiniana, numa situação em que a transferência é total. Analogamente, o trabalho da interpretação se torna diverso daquele que era no modelo freudiano, em que a transferência era preestabelecida, do passado para o presente. A interpretação, então, terá que ser mais abrangente, considerando todos os elementos da situação total, inclusive o medo da morte (que para Klein existe como algo representado), o sadismo, a destrutividade — visando à integração e simbolização. Neste modelo, divergindo do modelo freudiano, o analista tem esta possibilidade, pois como ela escreve, “quando as ansiedades persecutória e depressiva e a culpa diminuem, há menos premência a repetir... antigos padrões” (Klein, 1952/1991, p. 79). Surgem grandes dificuldades para os analistas, pois estavam lidando com dimensões primitivas da mente — o que sempre causa muita angústia — e talvez fazendo algo mais próximo das construções do que de interpretações. E os analistas se propunham ainda discriminar, na experiência emocional, também total, que estavam vivendo, o que seriam representações do que seriam equações simbólicas. E, mais, deveriam encontrar a linguagem que pudesse atingir estas áreas precoces do desenvolvimento.

Das dificuldades de não estarem em posição de observadores neutros os analistas estavam cônscios. E assim, seguidores da tradição kleiniana propõem aproveitar os sentimentos do analista na sessão para identificar sentimentos do analisando que são projetados “dentro” do analista (como ação, e não como comunicação). Formulam, assim, o uso da contratransferência como ferramenta de trabalho do analista. Vale ressaltar que esta proposta — de o analista discriminar entre seus sentimentos quais lhe são próprios e quais são despertados pelo analisando — é sugestiva de que o analista analisado teria amplo acesso a seu inconsciente. Nisto se inclui o acesso às forças destrutivas derivadas do instinto de morte dentro de si, pois sua análise o terá levado à inscrição dessas nas cadeias mnêmicas, o que, como dissemos, está amplamente de acordo com a teoria kleiniana. Apesar de se referirem a um analista ideal, e este procedimento ser “mais fácil de dizer do que de fazer” (Segal, 1977/1982, p. 123), o fato é que estas idéias levaram as emoções do analista na sessão a encontrar um lugar na teoria, o que diminuiu enormemente o sofrimento do analista.

E, se prescindirmos da postulação do analista ideal, como continuar trabalhando em psicanálise? Sempre estivemos acostumados a considerar que o vínculo com os pacientes fosse essencialmente verbal. Quando começamos a nos dar conta de que estamos emocionalmente envolvidos percebemos que não estamos apenas observando, examinando e interpretando; mas que nosso próprio estado mental é afetado enquanto ouvimos o paciente. Com isto, a qualidade da observação que é possível em psicanálise tem que ser repensada2. Penso que é por este caminho que vão os modelos e teorias de Bion, principalmente a partir de sua teoria das transformações, na qual, apesar de conservar muito dos conceitos kleinianos, inclui fortemente a pessoa do analista. Se de um lado isso desorganiza todo o edifício conceitual anterior, e em conseqüência aumenta significativamente a nossa perturbação, por outro cria um continente para o analista real, que é irremediavelmente afetado pelo seu paciente na sessão. Por fim, penso que a teoria de Bion acabou contribuindo para uma construção objetiva da subjetividade.

Ao trazer para a psicanálise o conceito de transformações, este autor destaca que o analista está sempre observando a experiência emocional que vive com seu paciente de um viés que lhe é próprio, particular; e, seguindo Kant, assinala que a apreensão que pode ter é resultado de uma transformação que se opera em sua própria mente, e nunca a coisa-em-si. Ao comunicar suas transformações para o paciente, o analista rompe o campo criado por este e novo ciclo de transformações passa a ocorrer, determinando tudo que virá a seguir3. Se aceitarmos e encarnarmos esta proposta estaremos ambos, paciente e analista, cada um de acordo com suas emoções, fazendo aproximações, maiores ou menores, dos eventos que se dão na sala. É possível que aí esteja o essencial do trabalho da análise. E que com cada uma de nossas intervenções verbais — quer ao buscar as palavras para nos expressarmos, quer ao transmiti-las ao paciente — se rompa a característica central presente naquele momento.

Estamos em permanente tensão entre certezas e dúvidas quanto ao conhecimento da experiência emocional que vivemos com nossos pacientes: se, de um lado, alguma interpretação — nossa subjetividade portanto incluída — está sempre sendo feita, por outro nunca sabemos ao certo quanto deste conhecimento foi sendo moldado por pensamentos e sentimentos pessoais, uma vez que a subjetividade não pode ser quantificada e desvinculada do objeto. Submeter nossas formulações para que sejam verificadas, comprovadas ou validadas pelas experiências seguintes também não aumenta nossa segurança. Trabalhar nesta constante tensão implica a humildade e reconhecimento dos limites do nosso conhecimento sobre o outro, o que é uma condição difícil de ser mantida, em função da onipotência e onisciência. A dor desta limitação muitas vezes leva a nos considerarmos analistas dotados de neutralidade, agindo como se nosso inconsciente estivesse preservado e mantido fora da relação com o outro. Nestes momentos em que não podemos conter a experiência vivida e aprender com ela, substituímos a psicanálise por interpretações derivadas das teorias psicanalíticas. Porém, esta não é uma escolha consciente: depende de nossa própria análise, nossa formação pessoal, nossa escolha teórica e também nossa disposição e capacidade internas, variáveis e influenciáveis a cada momento.

Em nossa relação com o paciente estamos inteiros, com consciente e inconsciente, em convívio e sofrendo mútua interferência. Quando conseguimos nos manter nesta condição continuamos a usar as teorias — transformadas pelo meu treinamento e aprendizagem — mas no estágio de pré-concepções. Neste, as teorias são pano de fundo que permitem a justaposição entre a intuição e o que está acontecendo na análise; norteiam a observação e permitem expansões e enriquecimentos, resultando em formulações não-saturadas4. Somente quando estou de fato nesse estado, tenho condições de me examinar, e talvez examinar o outro, conhecer e reconhecer os modos característicos de meu funcionamento mental.

No cerne da relação com os pacientes há sempre uma emoção, que é de amor, ódio ou conhecimento. E é neste meio emocional que se vai dando o pensamento possível, que tem por foco as emoções e vai criando significados, de forma que aquela experiência passa a ser significante. Assim, entendo que a análise caminha da emoção ao pensamento, não o pensamento com função adaptativa ou desenvolvimentista, mas o pensamento-sonho. Conceitualmente, este processo se dá através de uma função alfa, que forma a barreira de contato que separa e une, seletivamente, elementos conscientes e inconscientes, e dá origem a estes pensamentos oníricos. Dizendo de outra forma: o analista é portador de idéias novas; ou, ao menos, propicia uma continência para que o paciente possa produzir, justapostos à experiência emocional que vive, pensamentos novos, abstrações e generalizações, e estabelecer relações. Com isso há um espessamento da experiência, pois o contato com elementos presentes ainda não pensados favorece a formação simbólica e a integração de pensamentos dispersos.

Como analista estou no campo, incluído; o que é fonte de grandes dificuldades, pois, ao mesmo tempo, tenho que observar o que vivo, e se possível me manifestar sobre algo relacionado às emoções que experimento com o paciente. Ao invés de interpretar os estados de mente do paciente, faço pontuações e formulo algumas conjecturas e metáforas cuja potência para catalisar expansão mental dependerá também das possibilidades do outro. Evidencia-se, nesta forma de trabalhar, a dimensão investigativa do método analítico; não a investigação em si mesma, mas uma investigação que é modelo e pretende favorecer o aprender com a experiência emocional vivida, e assim abrir novas possibilidades para o futuro do indivíduo. Em conseqüência, aflora também a dimensão alternativa desta: o não aprender com a experiência, o ataque ativo ao conhecimento, a área da não-representação e dos vínculos negativos de amor, de ódio e de conhecimento5 (que têm sido considerados por tantos autores). O aprendizado é uma função dos objetos internos, de sua possibilidade sonhante. E um analista real, num vínculo emocional de conhecimento6, contribui para esta tarefa. Considerar este analista real vai incluir os nossos limites, seja porque o paciente afeta o nosso estado de mente, seja porque nossa própria análise também não foi — e não poderia ter sido — completa. Isto vai criando uma espécie de abrigo para as nossas dificuldades. E, em conseqüência, podemos nos beneficiar de saber dos limites da interpretação.

Passamos então, nestes cem anos da história da psicanálise, de um analista que tem um modelo de desenvolvimento mental — implícito ou explícito — para si e para seu paciente, para um analista que contribui para o crescimento possível; que, à medida que investiga, expande o campo que investiga (como escreveu Bion). Depararmo-nos com todo o desconhecido e tudo que não sabemos e, ao mesmo tempo, depararmo-nos com esta profusão de teorias na psicanálise, são ambos motivos de grande sofrimento para todos nós. Mas, se nos damos conta deste sofrimento, podemos nos valer da ignorância para orientar o trabalho de investigação, acompanhar as expansões e crescimentos possíveis, ao contrário do que ocorre quando há um apego muito forte a modelos ou teorias sobre o desenvolvimento. Estou consciente de que todas essas afirmações provêm também de uma teoria, mas que me tem sido útil na clínica, pois sustenta minha observação em psicanálise.

Fiel à minha tradição clínica, penso que neste momento seria útil a apresentação de uma sessão como ilustração do que vem sendo dito.

A sessão a que vou me referir é a primeira após interrupção de vinte dias por férias do analista. Nas duas semanas anteriores a esta interrupção a paciente, que estava desempregada, iniciou um novo trabalho e, por esta razão e questões de agenda, novos horários ainda não estavam definidos.

A paciente chega e está cinco minutos atrasada; parece estar um pouco afobada. Ao deitar me avisa que fez uma combinação no trabalho de forma a poder vir num dos horários que lhe foram propostos por mim, o que me parece uma tentativa de facilitar a combinação com horários que lhe disponibilizei. Fica então em silêncio, que, após alguns minutos, interrompo para dizer que ela parece estar mais à vontade lá no trabalho do que aqui comigo. A intervenção que faço tem a finalidade de, rompendo o clima que me parece de intensa angústia, abrir alguma possibilidade de conversa.

De fato, isto facilita que a paciente comece a se comunicar verbalmente, e o que se segue é uma comunicação feita com muita dificuldade: a voz me parece embargada, algumas palavras são cortadas, a voz é baixa, percebo que perco algumas delas, mas posso acompanhar o sentido geral. (A propósito, esta qualidade de expressão estará presente quase até o final da sessão.) Em meio a grande angústia, relata que sempre escutou, sobre si, que era uma pessoa fácil; e que ninguém lhe havia dito — como nestes dias o fizeram — que era pessoa de trato difícil; que o ambiente no trabalho também está difícil; afirma, convicta, que se fosse hoje não teria sido selecionada, até lhe falaram que não está liderando as pessoas nem tomando as iniciativas que deveria. Acrescenta ainda que, ao chegar em casa, só quer ficar fechada em seu quarto. E que há um mês não tem relações sexuais com o namorado, e dá razão ao que está convencida que virá, da parte dele, o cancelamento do casamento que está próximo... Enfim, o clima emocional é de queixa de si mesma, de seu desempenho, de sua capacidade de se relacionar com os outros; e, ao mesmo tempo que parece estar de acordo que ela é “assim mesmo”, há um esforço em me falar sobre o que sente. Estou presente, acompanho o relato e as emoções que o acompanham, mas não encontro condições de trazer algo novo, apenas faço algumas pontuações e assinalamentos e chamo sua atenção para a possibilidade que está tendo de conversar sobre estes sentimentos.

Noto que isto favorece que ela continue a falar, ainda angustiada, mas o tom de queixa e lamúria diminuiu ou desapareceu. Parece haver agora algum desdobramento e elaboração da experiência presente, pois a paciente me fala que sempre usou bebida alcoólica para ter mais facilidade de se relacionar socialmente, e nem isto está fazendo no momento. Em compensação não abre a boca quando está com amigos, acha-os bêbados e chatos. O que fortalece a impressão de elaboração da experiência vivida é ela dizer que sempre fez análise por hábito, “é um costume lá em casa, meu pai, minha mãe, irmãos sempre fizeram e mandaram fazer análise”; mas desta vez está sendo diferente, sente necessidade de vir. O que ela expressa é um sentimento novo, pois ao longo do trabalho vejo sua enorme dificuldade em expressar e manifestar necessidade de ajuda, minha ou de qualquer outra pessoa. Vivo uma esperança quanto às possibilidades de lhe ser útil, pois, tendo-se rompido o clima emocional anterior, se realiza ali, naquele momento, algo importante e raro com ela. É uma via de acesso para me comunicar com a paciente, pois o que era queixa de si mesma se transformou, na experiência emocional da sessão, em possibilidade de interlocução com o analista e elaboração. E é disso que procuro falar. Penso também no possível contato com a interrupção ocorrida na análise, pois, apesar das dificuldades presentes, tudo isto vem como um jorro; mas sobre estes meus últimos pensamentos nada digo.

Após alguns minutos de silêncio, mais tranqüila, ela se lembra, como uma associação, de uma conversa recente em que o pai lhe contou de um jantar com alguém importante, “um presidente não sei lá do quê”. Nesta ocasião, ele dizia que ele e a filha eram parecidos, enfrentavam as coisas. Ao que ela me pergunta: “Como posso dizer agora para todos que eu pareço isso, mas nem sempre sou assim?”. Associa também com o estado doentio e grave da mãe, que pode morrer; e que às vezes teme que estejam escondendo delas uma condição ainda mais grave. A paciente diz que nestes últimos dias chegou a querer se matar, ou se deixar morrer: num determinado dia, dirigindo na marginal estava com muito sono, pensou em estacionar o carro um pouco, mas prosseguiu, pensando que talvez morresse num acidente. Logo depois estacionou o carro e aguardou melhores condições para dirigir. Experimento uma preocupação com suicídio que se desanuvia e se transforma em compaixão: estamos tendo uma conversa fortemente carregada de emoção, mas é uma conversa sobre sentimentos, pensamentos e imaginações, de amplo contato com o que vive. Pensando assim, vejo-me mais livre da preocupação e aponto que, neste momento, ela também está à procura de melhores condições para lidar com a pessoa que é e a vida que tem.

Já é o final da sessão, mas ela ainda acrescenta que sempre foi vista como um trator, uma pessoa que conseguia o que queria porque ia atrás e não se detinha enquanto não alcançasse seu objetivo. Mas só agora percebe que isto pode não ser um elogio, uma qualidade, mas sim uma mentira.

Considerando a sessão como um todo, parece-me que não ocorreram interpretações, ao menos no sentido clássico do termo. As intervenções foram tentativas de comunicar o que vivi na experiência presente e chamar a atenção da paciente para o que ela própria vivia. Algumas dessas intervenções romperam o clima instaurado pela paciente e que impregnava a sessão, talvez sem que ela mesma se desse conta. Outras favoreceram a expansão de um clima emocional já presente, possibilitando o surgimento de fenômenos mentais novos — sentimentos, emoções, idéias, imaginações, sonhos... Assim, à medida que isto foi ocorrendo, surgiram, na relação verbal e experiencial com o analista, configurações até então desconhecidas (por não terem sido vividas), gradações de significados, novas articulações entre os pensamentos. Este movimento expandiu a continência às emoções, as possibilidades de representações e o campo das comunicações possíveis, o que talvez traga novas possibilidades em seu viver.

 

Referências

Bion, W. R. (1983). Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965.)        [ Links ]

Freud, S. (1969a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 18, pp. 11-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920.)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). Construções em análise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 23, pp. 289-304). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937.)        [ Links ]

Freud, S. (1969c). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 12, pp. 189-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914.)        [ Links ]

Heinsenberg, W. (1990). Physics and philosophy: The revolution in modern science. London: Penguin Books, 1990. (Trabalho original publicado em 1958.)        [ Links ]

Klein, M. (1991). As origens da transferência. In M. Klein, As obras completas de Melanie Klein, Vol. 3. Inveja e gratidão e outros trabalhos: 1946-1963 (pp. 71-80). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1952.)        [ Links ]

Roazen, P. (1995). Como Freud trabalhava. São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

Segal, H. (1982). Contratransferência. In H. Segal, A obra de Hanna Segal: Uma abordagem kleiniana à prática clínica (pp. 117-125). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1977.)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Julio Frochtengarten
R. Januário Miraglia, 99 — V. Nova Conceição
04507-020 São Paulo, SP
Fone: (11) 3034-5575
E-mail: juliofro@uol.com.br

Recebido em: 25/10/2007
Aceito em: 13/11/2007

 

 

* Membro Efetivo da SBPSP e Analista Didata do Instituto de Psicanálise da SBPSP.
1 Trabalho apresentado em mesa-redonda da Jornada as Teoria dos Campos realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 11 de agosto de 2007.
2 Como declarou Eva Rosenfeld, uma das psicanalistas analisadas por Freud, em depoimento a Paul Roazen (1995): “Freud estava no cais e ‘pescava’ o relacionamento com a mãe, mas permanecendo no cais, ao passo que nós estamos ‘no mar’ com nossos pacientes” (p. 216).
3 “... temos que nos lembrar que aquilo que observamos não é a Natureza em si, mas sim a Natureza exposta ao nosso método de investigação” (Heinsenberg, W., 1958/1990, p. 48).
4 Categoria D4 na Grade formulada por Bion.
5 Vínculos -L, -H, -K (Bion).
6 K.

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