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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dic. 2007

 

A INTERPRETAÇÃO EM JOGO

 

O corpo e a clíncia: hospedaria de possibilidades no mundo contemporâneo

 

The body and the clinic: hosting possibilities in the contemporary world

 

El cuerpo y la clínica: alojamiento de posibilidad en el mundo actual

 

 

Caio César Souza Camargo PróchnoI, II* ; Maria Lúcia Castilho RomeraI, II, III, IV**

I Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia
II Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia
III Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
IV Membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos — CETEC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo por base as idéias sobre: organizações narcísicas, regime da farsa, sociedade do espetáculo, articuladas com elementos da clínica contemporânea, o presente trabalho pretende considerar o lugar que o método psicanalítico ocupa no paradigma emergente das ciências, a partir da experiência analítica com jovens cujos sofrimentos psíquicos configuram-se graves. Encapsulados a uma imagem de superficialidade, apresentam marcas (grifes, tatuagens, piercings) e veiculam a inacessibilidade ao nada. Uma condição de relativa demarcação de lugar pode sobrevir da experiência de um vínculo em condição de análise. Este abre-se para surpresas hospedeiras do estranhamento inerente à reapropriação do corpo individual e social inaugurando ou reinaugurando deste modo o tempo e o espaço das singularidades, quebrando partes do engessamento da funcionalidade e da padronização.

Palavras-chave: Corpo, Contemporaneidade, Clínica psicanalítica, Método psicanalítico, Jovens.


ABSTRACT

Based on ideas concerning the narcissistic organizations, the regime of farce, the society of the spectacle, articulated with elements of contemporary clinic, this work intends to consider the place that the analytical method is placed in the merging paradigm of sciences. The work is based on analytical experience with young people with severe psychical sufferings. These youngers, cocooned in an image of superficiality, show body marks such as tattoos and piercing which express the inaccessibility to nothingness. From the bond experience in analysis, a certain space demarcation condition can supervene. This analytical bond opens up for surprising experiences of strangeness which are inherent in the process of reappropriation of the individual and social body. In that sense, the time and space of singularities are inaugurated or re-inaugurated rearranging parts of the “casted” functionality and standardization.

Keywords: Body, Contemporary time, Psychoanalytic clinic, Psychoanalytic method, Teenagers.


RESUMEN

Tomándose como base las ideas referentes a las organizaciones narcísicas, el régimen de la farsa, la sociedad del espectáculo, articuladas con los elementos de la clínica actual, el presente trabajo intenta considerar el lugar que el método psicoanalítico ocupa en el paradigma emergente de las ciencias, a partir de la experiencia analítica con jóvenes cuyos sufrimientos psíquicos se configuran como graves. Encapsulados a una imagen de superficialidad, presentan marcas (grifes, tatuajes, piercing) y vehiculan la inaccesibilidad al nada. Una condición de relativa demarcación del lugar puede sobrevenir de la experiencia de un vínculo en condición de análisis. Esto se abre para sorpresas hospederas del extrañamiento inherente a la reapropiación del cuerpo individual y social, inaugurando o reinaugurando así el tiempo y el espacio de las singularidades, rompiendo, en partes, la rigidez de la funcionalidad y de los patrones.

Palabras clave: Cuerpo, Contemporaneidad, Clínica psicoanalítica, Método psicoanalítico, Jóvenes.


 

 

Introdução

Este trabalho apresenta alguns pensamentos acerca da contemporaneidade articulados com a clínica psicanalítica. Nossa tentativa será a de pensar a expressividade do mundo nas relações analíticas e como estas, norteadas por uma postura metodológica psicanalítica/interpretativa e por ruptura de campo, podem ocupar um lugar fundamental para recuperação do caráter humano na constituição das subjetividades. Os desafios são esquadrinhados, à medida que são mostrados os limites que a concepção de ciência, mais recorrente, impõe à interpretação como forma de produção de conhecimento.

Na primeira parte, alguns momentos da clínica com jovens, que se poderia considerar de alta tensão, são evocados. O texto passa a ser escrito na primeira pessoa do singular, pois trata-se da experiência clínica de um dos autores. Trata-se do tempo da seara vivencial onde o leitor é convidado a se implicar no texto. Esperamos que este intento seja atingido para que a segunda e terceira partes possam cumprir suas funções, como circuitos de apoio ou referenciais teóricos disponibilizados para possíveis interlocuções. Nas considerações finais serão, talvez, apenas reforçados alguns alinhavos deixados no decorrer de todo o texto, convidando o leitor para novas aberturas desafiadoras.

 

Sobre indagações e surpresas

Desinventar objetos. O pente por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear.
Até que ele fique à disposição de ser
uma begônia. Ou uma gravanha.

Manoel de Barros

Outro dia me perguntaram mais uma vez o que faz um psicanalista...! Foi em uma primeira aula, com uma nova turma de estagiários em psicologia clínica! Em meio a risos e angústias os alunos disseram: “Ele cria um mundo novo... não que isso seja um delírio”. Saí da sala pensativa! De um jeito diferente eles estavam versando sobre interpretação e daí ao inconsciente é muito menos que um passo! Talvez seja mesmo o passo! Além disso, apreendi, mais uma vez, que o mundo pode ser visto com várias lentes. Ser olhado com “outros olhos” pode ser um bom ponto de partida. O mundo é um conjunto de múltiplas interpretações, diferentes perspectivas de um algo, que por si só também é uma interpretação... uma criação poética... um engendrar a partir da posição e situação de uma subjetividade.

Absorta nestes pensamentos fui levada a algumas memórias de minha convivência com jovens: aqueles que me procuram não para saberem o que faz um psicanalista mas para possibilitarem com maiores chances de erros e acertos que eu seja uma psicanalista: meus pacientes jovens.

Pois bem, tenho recebido jovens em minha clínica psicanalítica com relativa freqüência. Não poderia afirmar que eles me procuram!?! Pelo menos inicialmente, eles vêm meio trazidos, alguns quase obrigados. Talvez a obrigatoriedade aparente seja dos pais, do(a) namorado(a). Mas, com leves olhadelas pela lente psicanalítica, já dá para perceber que há obrigatoriedade quase fatal: ou vêm ou morrem! E fazendo um zum na lente, dá até para perceber que não é apenas o to be or not to be, mas uma versão to be the not to be (ser o não-ser) que se instaura. O nada a se instaurar sem pedir licença e brotando do próprio ser.

No relato que virá a seguir, condensarei em um personagem elementos de alguns analisandos. Tal personagem veicula realidade e ficção, fruto de elaborações e fantasias, e representa aquilo que apreendi como elo comum na especificidade de cada um dos jovens que comigo reconstituíram tempos de suas vidas.

Como tantos outros, nosso personagem, a quem chamarei Felipe, chegou com ares de bicho farejador. Roupas dark com tatuagens discretas como adereços. Seu jeito de entrar me dava a impressão de que iria vasculhar todo o consultório. Era rápido, movimentava-se muito e era como se tivesse um medo muito grande de não encontrar a porta de saída. E nós mal estávamos conseguindo construir a porta de entrada. Procurava algo em meio aos achados e perdidos de minha fala! Sua mãe morrera de uma séria doença depois de muitos e, certamente, longos anos lutando para sobreviver. Perto dos seus seis anos vislumbrara algum sinal estranho no corpo da mãe que veio a ser o prenúncio da doença. Agora perto dos seus dezoito anos, menos de um ano depois da morte da mãe, ele chega até mim. Muito silencioso em relação à mãe e um pouco receoso por temer que eu o considerasse um “drogado” como algumas pessoas da família o haviam identificado. Gostava muito de artes plásticas. Trouxe três pastas com muitos desenhos carregados no branco e preto e nas figuras que denotavam violência. Eu os olhava lentamente, sentindo uma sobrecarga a cada folha que eu virava. Surpreendemo-nos quando vimos que durante uma sessão visitáramos apenas metade de uma pasta. Nós íamos conversando sobre os desenhos. Não raro ficávamos em silêncio... apenas olhando. Eu mesma me sentia sufocada pelo impacto que me causavam. Dizia isso para ele e era como se eu estivesse justificando por que demorava tanto em cada desenho. Passei a perceber que só mudava a página quando algo pudesse ser falado e que nos possibilitasse uma outra apreensão do desenho. Ele me olhava muito, também. No princípio aflito, gaguejava ou tamborilava os pés e as mãos no divã, onde ficava sentado. Depois, à medida que podíamos juntos ir transformando pela imaginação/fantasia e palavra/símbolo aqueles desenhos antropornográficomórficos em personagens, contextos, vida, planta, bicho, medo, seu estado de ânimo e, também, o meu iam ficando mais serenos, até a próxima página.

Em sessões em que ele não me trazia seus desenhos, era comum revelar-me gestos transgressores, por assim dizer, por ele cometidos na escola ou nas ruas. Percebia que de cada “transgressão” conversada o resultado era parecido com o desenho: saíamos com uma outra possibilidade de visão daquela situação assustadora. Algo diferente parecia marcar os nossos encontros e eu percebia que, paulatinamente, ele ia me levando em conta para versar com ele sobre algum de seus “gritos”, que era como passamos a tratar aqueles seus momentos de impacto na e com a realidade. Paulatinamente e sem tantas “pauladas” Felipe se reapropriava um pouco de sua marca identitária ou se apropriava da condição de desenhá-la de maneira que pudesse frear um pouco o deslizar automático para a morte por onde era conduzido. O descompasso ou o com-passo menos desenfreado que imprimimos às sessões, particularmente, quando nos ocupávamos dos desenhos, talvez tenha demarcado algum lugar para a existência de uma potencialidade criadora e enfrentadora de adversidades, com um certo colorido de vida.

Podemos observar que nas relações estabelecidas com meu jovem personagem-cliente algo de inusitado, de diferente pôde ser conversado, apreendido, ou melhor, surpreendido! Deixamo-nos habitar por algo que desmontava a situação tantalizante que o hipnotizava em sua condição de grande sofrimento psíquico.

E aí podemos nos indagar: o que faz isso acontecer? O que faz um psicanalista? “Ele cria um mundo novo.” Talvez, no encontro com seu analisante, os dois propiciem uma abertura, uma fenda a um inusitado... da ordem do poético.

E eu não estava enganada em considerar que a conversa dos alunos tinha alguma razão. Não uma razão comum, mas uma especial ou uma razão muito particular ao assinalar em direção do novo! Lembro-me de uma passagem em um dos textos de Fabio Herrmann onde ele alerta para o fato de que “quem não cria crê” (Herrmann, 1991, p. 147). A criação impõe uma resistência importante à reação automatizada da crença que pode dogmatizar e domesticar a vida psíquica. A criação impõe um certo sofrimento de autonomia, uma dor de liberdade, uma comparação com as divindades que não suportam a ousadia prometéica. Portanto, podemos suspirar aliviados quando acertamos o passo, ou melhor, quando desacertamos um pouco o com-passo e suspendemos os sentidos rotinizados para facultarmos a assunção de outros sentidos para a vida, para a morte e para o mundo!

No próximo tópico tomaremos em consideração a realidade atual e alguns pensamentos a respeito dela.

 

Mundo... Mundo...

Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima
Não seria uma solução!

Carlos Drummond de Andrade

Em que mundo vivemos? Vivemos?!? Esta é uma pergunta que tem sido formulada de diferentes maneiras nos variados campos de conhecimento das ciências.

Nas três últimas décadas, muitas contribuições teórico-reflexivas têm sido publicadas em torno da complexa questão da contemporaneidade.

Os primeiros ensaios abordando, a partir de pontos da Modernidade, os emergenciais de um novo tempo datam do final da década de 60 do último século e serviram como organizadores para pensamentos posteriores. A Modernidade e seu paradigma erigido sobre a premissa de que conhecer significa quantificar, calcular, prever, de orientação nomotética, consubstanciado na teoria heliocêntrica de Copérnico, na teoria de Galileu sobre a queda dos corpos e na física clássica de Newton, apresentava, então, segundo Boaventura Souza Santos (2004), sinais de crise. Através deste grande golpe à postura anterior geocêntrica, o homem se vê agora sem bases sólidas, pois a Terra já não é mais o centro do universo. Perde seus antigos suportes, principalmente sua divindade onipotente, perde seu norte, os antigos valores entram já nessa época em crise absoluta. O Nada já se impõe em substituição à morte de Deus. Tudo isso é a primeira grande crise, da qual a atual é um de seus mais perversos desdobramentos, a qual, segundo este autor, alavancou o estado caótico em que se encontra hoje a ciência, os cientistas e particularmente as humanidades.

A sociedade mudou, suas formas de organização e reconhecimento se diluíram em formas fugazes de apreensão. A sociedade do espetáculo vislumbrada por Guy Debord (1992) assim como a cultura do narcisismo do norte-americano Lasch (1988) mostram como o ser humano vai perdendo seu eixo central ou como ele fica perdido de si mesmo, submetido à ordem imposta pela silenciosa construção de uma criatura de que ele mesmo não se reconhece como criador. Talvez, o momento histórico em que a alienação se perfaz em sua integralidade universal: a perda da essência humana e entrega de subjetividades a instâncias de estranhamento.

Não foi apenas a sociedade que mudou, o que poderia ser considerado a mais pueril das constatações do óbvio. O que foi ou está sendo colocado em questão é a própria humanidade e seus vetores centrais de constituição: tempo e espaço relacional.

O que, também, ficou colocado em questão, em decorrência disso, foi a própria concepção de ciência configurada pela Modernidade, seu pressupostos, sua própria utilidade, por mais paradoxal que isso possa parecer. Importa dizer que dessa crise emerge um outro paradigma para a(s) ciência(s) cujas principais características são definidas por Souza Santos: “Todo conhecimento científico natural é científico social; todo conhecimento é local e total; todo conhecimento é autoconhecimento; todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum” (Santos, 2004, p. 5) (itálicos da autora). Tal autor defende uma posição epistemológica antipositivista e procura fundamentá-la à luz de debates travados recentemente na física e na matemática. E ainda afirma:

ponho em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das explicações causais e defendo que todo conhecimento científico é socialmente construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objetividade não implica a sua neutralidade (Santos, 2004, p. 9).

Pois bem... e a psicanálise? Como se insere nesse discurso e neste contexto: social/lingüístico/espetacular/narcísico?

Antes de mais nada é preciso considerar algo que mesmo Freud na sua conferência XVIII: “Fixação em traumas — o inconsciente de 1917 já havia apontado:

ao enfatizar dessa maneira o inconsciente na vida mental... conjuramos a maior parte dos espíritos da crítica contrária à psicanálise... No transcorrer dos séculos o ingênuo amor-próprio dos homens teve de submeter-se a dois grandes golpes desferidos pela ciência. O primeiro quando souberam que a Terra não era o centro do universo... com Copérnico, embora algo semelhante já tivesse sido afirmado pela ciência de Alexandria. O segundo golpe foi a prova do homem ser descendente do reino animal... por Darwin. Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais violento,... que procura provar ao ego que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa (Freud, 1917/1980a, p. 336).

As idéias e premissas de Freud, inovadoras, tanto para o século XX quanto para o XXI, tais como inconsciente, sexualidade infantil, feriram brutalmente o narcisismo da humanidade quando descentrou da consciência o ser do conhecimento. É claro que esta não é a primeira vez que se resgata esta citação das Obras Completas de Freud. Tantas são as vezes que se conjuga essa idéia com questões centrais da psicanálise, da filosofia, da história que quase já não nos reportamos ao texto onde ela foi inserida pelo próprio Freud. Tal citação já é praticamente considerada de autoria anônima ou heterônima e sendo assim poderíamos indagar: mesmo tantas vezes versada, por que isso não fica tão claro aos psicanalistas? Por que muitas vezes nós vamos procurar no claro o que no escuro se perdeu? Ou nos perdemos?

Odilon de Mello Franco Filho (2004), ao levantar algumas questões relativas à cientificidade da psicanálise e a sua inserção no campo do conhecimento num texto muito original que faz da realidade uma ficção veritativa, reconhece e alerta para a crise de identidade dos analistas.

Mas que crise então é essa? Uma crise de menos-valia ou talvez, simplesmente, uma crise em relação à potencialidade do método interpretativo. Portanto, uma crise metodológica. Nós nos afastamos da empiria da clínica e passamos a acreditar que a pesquisa experimental de comprovação conceitual nos salvará da falência que a ciência hegemônica nos decreta. Possuímos um instrumental teórico-técnico-metodológico que nos faculta uma aproximação muito maior da verdade da condição humana, da complexidade do ser humano considerado enquanto tal e não como elemento maquínico, robotizado, e... no entanto... parece des-acreditarmos dele. Estaríamos como que desconfiados de nosso saber e com saudade dos números, os quais nos dão uma tranqüilidade, uma paz, uma ausência de contradições.

Então: quem melhor do que Freud com seus escritos para enlaçar o natural com o social; o corpo que é mente e a mente que é corpo? Quem melhor do que Freud para reconhecer na especificidade o universal? Por fim, quem melhor do que Freud para reconhecer que só o conhecimento traz o poder2?

Podemos constatar estar a psicanálise em íntima sintonia com as características do paradigma emergente circunscritas pelo cientista social Boaventura Souza Santos, anteriormente citado. O conhecimento desvelado por Freud engendrou no seu decorrer o seu próprio método, rompeu com o centralismo da racionalidade e viu o irracional como o avesso da razão. Um avesso que não é o contrário, mas a própria tessitura do texto da razão.

Freud encarnou, por assim dizer, de tal modo o método interpretativo que para todo lado que ia produzia conhecimento dentro de uma outra lógica que não aquela da ciência centrada no ser da consciência. E não dá para não lembrar:

Aqui, naquele lugar havia uma pedra
Onde alguém parou para olhar o mar
O mar não parou para ser olhado
Era mar pra tudo que é lado
(Leminski, 1987).

Freud parou para olhar o sentido dos sonhos, dos sintomas, dos lapsos, mas o mar do método interpretativo não parou para ser olhado e foi para tudo que é lado dentro da experiência humana. Como já havíamos indicado as interpretações são infinitas, e vão, em seu dinamismo agonístico, muito além daquele que está num certo momento agindo sobre o real enquanto intérprete.

Para Fabio Herrmann (1997) o mundo em que vivemos participa de cada um de nossos pensamentos de formas distintas: uma delas é determinando como o sujeito psíquico é constituído. E o autor argumenta:

é que a psique que nos usa como lugar de sua ação, mas que nós temos a ilusão de dominar como a um instrumento, não é de nossa fabricação pessoal, cria-se no real, desenvolve suas propriedades historicamente e é infundida no indivíduo por seu tempo e sua cultura moldando-o ao estilo presente de pensar (Herrmann, 1997, p. 131).

É a partir disso que precisamos tomar em conta o regime do pensamento do mundo para que possamos ajudar o sujeito a se reconectar com a condição descentrada, do ser de conflito de onde ele advém. Sujeito psíquico porque sujeitado a múltiplas sobredeterminações. O homem não é livre e não pode ser livre de si mesmo, por mais doloroso e paradoxal que isso possa parecer. Livrando-se de si mesmo o ser humano se brutaliza, vira bicho, e a barbárie impera. Não é tão distante essa condição de todos nós.

Na atualidade o ser humano está se pragmatizando. O pensar sem propósito pragmático é abolido, a livre associação de idéias ou as idéias suspensas em busca de novas e criativas formas de articulação são exiladas do pensamento funcionalista onde tudo já está ou deve estar pronto. A imediatez ganha espaço privilegiado e segue a nova ordem da temporalidade momentânea do “tudo deve ser para ontem!”. Mas... ontem e amanhã estão submetidos à ordenação fragmentária de um hoje-presente sem laços de continuidade. Vai-se produzindo, como nos adverte Nietzsche (2005), o último homem — o ser mais desprezível, aquele que só se preocupa com o conforto e bem-estar, atualmente é um verdadeiro apêndice do mundo do consumo e da servidão ao imperativo da mercadoria. A plena essência da subjetividade danificada a caminho da destruição.

Neste sentido, o ser humano destitui-se de sua dimensão histórica e inaugura uma espécie de atemporalidade, constituindo memória desvinculada, carente de marcas vinculares. Sua marca é ser marca. Não se tem marca, é-se a marca. E qual marca? Aquela que pode ser a mais deslizante para que o vazio existencial continue circunscrevendo a regra do descartável. Tudo tem que ser deslizante sem barreira, sem contato, sem atrito.

Com os imperativos de ação anteriormente abordados, o que resta nesse mundo que possa instituir a condição de sujeição implicada na construção de qualquer pensamento? O que resta nesse mundo onde a questão intrigante que se colocava no início do século passado e que balizava os valores humanos, qual seja, ser ou ter, já não mais se coloca? O vazio do ser na impossibilidade do ter resulta no parecer. É preciso aparentar ser ou ter para se driblar a angústia fundamental que inaugura a condição humana, é preciso fugir do conhecimento aterrador de nossa condição finita e mortal. A angústia primária que lança o homem para a busca de si mesmo vai ser ludibriada dentro de um regime de pensamento do mundo que poderíamos nomear, de acordo com Herrmann (1997), de regime da farsa. Tudo é aparência. Há uma crise no mundo representacional. Tal autor conclui:

O homem sente-se impotente para pensar, vivendo como numa novela de tevê: é um personagem de roteiro já armado, sempre o mesmo, variando de ambientação e de nome a cada ano mas nunca de enredo básico (Herrmann, 1997, p. 154).

No regime da farsa adoece até a razão, impõe-se a barbárie. Passamos a não ter mais parâmetros para sustentar esta realidade. Cria-se, por assim dizer, um ego inflado, um eu faraônico que se expressa pelos adereços e se auto-representa dentro de uma ótica fetichizada e que deriva em uma ética caracterizada por um conjunto de códigos, artigos e parágrafos camufladores da ausência de princípios que a fundamentem. Inauguramos o mundo do vale mais eu ou do vale tudo que seja eu. O ego está petrificado em si mesmo e por isso muito longe de poder exercer sua função de articula(dor) e visita(dor) das várias maneiras de ser ou das exigências das várias instâncias psíquicas. A petrificação pervertida numa só máscara, aquela de Narciso embevecido e apaixonado com sua própria imagem, independência excessiva camuflando a dependência que está na essência da angústia substantiva: nós não somos completos.

Em trabalho anterior Romera e Torrecillas (2000) constataram a opressão em bloco para um fortalecimento ostensivo do eu através de uma reflexão clínica. Configuraram a relação enviesada e absurda que o eu passa a estabelecer com a realidade que se lhe afigura extremamente ameaçadora e sobre a qual só lhe resta uma postura de camuflagem. Constataram que a ilusão de domínio total e absoluto gera mentes alucinadas que não podem suportar a dor da separação, diferenciação e angústia.

 

E o corpo?

O corpo é a carne do verbo
O corpo é uma invenção feita por mais de um
E o mundo por muito mais que dois!
Quantos mais?
Um.
Puxa! Quantos?!?

Dama BavKar

Apesar de Freud em O ego e o id (1923/1980b) ter sido claro na assertiva de que o ego ou eu é antes de tudo corporal, pouca atenção tem sido dada à dimensão corporal no campo analítico. Na realidade o corpo na sua dimensão relacional parece esfumaçar o enfrentamento das marcas que o corpo traz.

Pois bem: o que é o corpo? Destino e destinado, ele é o objeto por excelência da mente e sua realidade primeira. Sua constituição, enquanto tal, se alicerça na experiência da alteridade. Porém, poderia ser indagado: como se realiza ou se processa a idéia de corpo?

Para Armando B. Ferrari (1995) esta idéia se dá como fisicidade e como simbolicidade. O bebê vai tendo uma relação dele com seu próprio corpo nos dois termos que o autor denomina uno-vertical e bino-horizontal. A mãe participa desta construção como uma espécie de apresentadora do mundo à criança e da criança ao mundo. Identificada com a criança, ausculta suas necessidades e as encaminha para a busca de satisfação visando à sua sobrevivência. A criança vai sentindo a si mesmo vivendo, através de seu corpo, da idéia que faz de seu corpo e da idéia que sua mãe vai lhe passando sobre ela e sobre o próprio mundo.

Isto nos faz pensar que a experiência que uma pessoa tenha de si mesma seja sempre somente em termos de relação. Relação que poderá ser de confronto, diálogo, conflito, violência... mas... sempre relação. Se esta relação vem a faltar, o indivíduo perde a capacidade de experimentar e de ser. Pois bem, a condição humana nos faculta o trabalho de transcendermos o nosso organismo para que ele possa sobreviver ou para que possa vir a ser corpo. O nosso corpo é o dado e como que um dando — um processo contínuo de vir-a-ser. A mente entra em função na relação a este dado-presença, a este processo de transformação. Inicia-se, assim, uma relação que irá se caracterizar por uma tensão jamais apagada. Um processo agonístico e dialético de luta, não havendo mesmo assim qualquer reconciliação final. O dado-presença permanecerá, para a mente, um problema contínuo, dia após dia. Alcançar a condição de simbolização representa ou implica, usando o modelo de Ferrari (1995), o eclipse do corpo3.

Diante disso o que poderíamos dizer em relação ao corpo fadado a ser exposição do regime do pensamento da farsa? Ao corpo cabide? Assistimos, na sociedade do espetáculo, a um corpo inundado de sensações não-transformadas. As fibromialgias e anestesias são expressivas da coisificação do corpo. Plena superfície da mais globalizante reificação. O corpo como um objeto fantasmagorizado e vazio. O corpo ex-posto! O resgate do corpo alijado implica o enfrentamento com a incompletude, do se posicionar diante do Nada na condição de incorporação da angústia. O enfrentamento com o sinistro, o não-eu. Implica o trânsito articulado entre o presente, o passado e o futuro que só é possível a partir da relação de alteridade, das marcas e da memória.

 

Considerações finais

Talvez a circunstância atual esteja constituindo a idéia do corpo infalível! Noções como corpo-objeto, expropriação do corpo, corpo maquínico estão sendo pensadas no intuito de se dar conta da nova ordem psicopatológica ou da psicopatologia da vida contemporânea.

Vivemos numa espécie de regime da farsa (aparentar), do atentado (esperando o próximo assalto) e de uma ordem opinativa (cada um opina com base na propina). Estamos no mundo da ação total (ou global) e da pobreza ou do empobrecimento do pensamento, da ausência da substancialidade!

No corpo há muita massa muscular sendo desenvolvida e pouquíssima substância psíquica. Todos nós que trabalhamos na clínica temos constatado a presença em nosso trabalho da organização psíquica narcísico-esquizóide ou do ser escondido no ou do corpo esgarçado. É este o panorama!

Porém, o que nos surpreende é que, apesar de todos os pesares!?, de todos os pesos, de todas as injunções, o corpo fal(h)a! Programado para ser infalível e... no entanto... falha... rebela-se!?! E, com isso, são renascidas as nossas esperanças de ainda podermos crer na existência do humano!

As repercussões desta estranha mentalidade do corpo ex-posto se dão, na clínica, de algumas formas, tais como: pessoas muito aflitas e imediatistas; sessões que se estendem por completa impossibilidade de organização para a separação; menor freqüência de sessões semanais com períodos de interrupção.

No mundo da superficialidade as marcas (grifes, tatuagens, piercings) exibem um corpo cujo destino parece ser a explosão. Encapsulado a uma imagem cujo acesso lhe é totalmente negado, as vias de ascensão a uma condição de relativa demarcação de lugar, a ser ocupado pelo jovem no mundo de hoje, podem sobrevir da experiência de um vínculo em condição de análise.

Nosso recurso diante destas intempéries é o da con-versa ou da com-vers-ação. Transformar a ação em verso e instituir a ação de versejar a dois (ou três). Criar mais do que desvendar sentidos. E antes de mais nada respeitar o humano enclausurado, encapsulado em cada corpo, e esperar, no sentido de ter esperança, que ele poderá advir na e da relação terapêutica. O vínculo produtivo para a análise organiza-se a partir da suspensão de sentidos e abertura para surpresas ou sustos que se constituem como hóspedes destinados, especificamente, àquela hospedaria. Inauguram-se ou reinauguram-se deste modo o tempo e o espaço das singularidades quebrando partes do engessamento da homogeneização, da funcionalidade e da padronização. Abre-se um espaço para uma autêntica subjetividade que possa dizer, afirmar e se encantar com o seu estar aí no mundo e se possível... transformá-lo.

 

Referências

Debord, G. (1992). A sociedade do espetáculo. Recuperado em 01 de novembro de 2005, em: http://www.terravista.pt/ilhadomel/1540.        [ Links ]

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Freud, S. (1980b). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 19). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923.)        [ Links ]

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Romera, M. L. C., & Torrecillas, F. G. (2000). Bloco da solidão: Angústia no desamparo. Alter: Jornal de Estudos Psicodinâmicos, 19(2), 337-344.        [ Links ]

Santos, B. S. (2004). Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Caio César Souza Camargo Próchno
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Maria Lúcia Castilho Romera
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Recebido em: 28/10/2007
Aceito em: 04/12/2007

 

 

* Psicólogo, Professor Associado do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP e Pós-Doutorado pelo Instituto de Filosofia da Universidade de Leipzig (Alemanha).
** Psicóloga, Psicanalista, Membro Associado da SBPSP, Membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos — CETEC, Professora Associada do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia, Doutora em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP e Pós-Doutorado pelo Centro de Estudos da Teoria dos Campos — CETEC PUC-SP.
1 Grupo de pesquisa onde o trabalho foi realizado: Grupo de Pesquisa das Relações de Corpo, Consumo e Instituição — Parte deste trabalho foi apresentada no XX Congresso Brasileiro de Psicanálise realizado no Grand Bittar Hotel em Brasília no dia 13/11/2005
2 Ao falarmos em poder, importa notar: particularmente aos analistas, interessa aquele que advém de um trânsito pelo estranho que habita a casa que todo nosso corpo é, que todo nosso corpo social é. Tal corpo desde sempre se constitui na e pela intersubjetividade, sendo que todo estranhamento enquanto algo novo e insólito será interpretado como uma interrogação à intersubjetividade.
3 Segundo Ferrari o eclipse representa uma redução gradual do espaço ocupado inicialmente pelas sensações marasmáticas (esparsas, confusas) em benefício de formas mais racionais à sobrevivência do indivíduo no ambiente.

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