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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.74 São Paulo June 2008

 

ENTREVISTA

 

A análise do analista

 

The analysis of the psychoanalyst

 

El análisis del analista

 

 

Esta entrevista com Jean Laplanche foi realizada em julho de 1993, em Paris, por Luis Carlos Menezes e Marcelo Marques, para o número 26(50) do Jornal de Psicanálise. Em razão de sua atualidade para a discussão do tema da presente edição, A análise do analista, o conselho editorial do JP resolveu republicá-la.

Menezes: O nosso Jornal de Psicanálise vai dedicar um número ao tema da análise didática, ou seja, sobre a exigência de que a análise do analista seja realizada obedecendo algumas normas regulamentares, estabelecidas de maneira estrita pela IPA. A Sociedade à qual o senhor pertence, a APF (Association Psychanalytique de France), fez uma reforma, em 1972, em que foi abolida a prática da análise didática: o senhor, depois Pontalis, foram os autores de tais propostas. Gostaria que nos falasse dessa reforma e dos motivos que os levaram a abandonar a prática da análise didática.

Laplanche: Precisamos voltar historicamenteà origem da APF, a partir de Lacan, da separação de Lacan1. A origem da APF, a partir de Lacan, teve muitos determinantes — mas, quando refletimos a posteriori, um dos principais encontrava-se no fato de que Lacan misturava e confundia a análise pessoal, o ensino e a doutrinação dos estudantes e, finalmente, visava constituir uma escola de pensamento. Houve muitas outras razões, mas esta foi muito importante. Foi importante naquele momento, e parece mais importante agora.

Refletindo sobre isso hoje, sobretudo da maneira como eu teria escrito essa história, podemos perceber que a maneira de Lacan confundir a doutrinação e o poder do pensamento psicanalítico com a formação dos analistas não nasceu nem terminou com ele. Não terminou com Lacan, apesar de vermos em muitos grupos lacanianos o poder dos analistas confundir-se com a doutrinação psicanalítica do pensamento de Lacan. E também não nasceu com Lacan — não basta, por isso, sair de Lacan para sair do problema: a questão nasceu com Freud. A partir do momento em que Freud funda um movimento psicanalítico unificado em torno de uma doutrina, a psicanálise de formação torna-se, ao mesmo tempo, uma psicanálise que cria discípulos e não apenas pessoas que são psicanalistas. A reflexão tem que se voltar para essa tendência do exercício do poder sobre os espíritos, que ficava encoberta, escondida na própria psicanálise. A psicanálise não é somente um meio de liberação, pode ser também um meio de doutrinamento e de servidão. Outro exemplo, que mostra o vivo disto: Lacan fazia, sobretudo no fim de sua vida, análises de cinco minutos, o que era uma maneira, entre outras, de ter muitos discípulos. Se você tem análises de cinco minutos, pode atender 30 ou 40 pessoas por dia, e mesmo que algumas análises sejam terapêuticas, o número de análises didáticas aumenta de maneira considerável. Ora, isto, que é um defeito maior de Lacan, encontra-se em Freud. Freud não fazia análises de cinco minutos — no entanto, diz explicitamente em um de seus textos: “Faço análises curtas”. Curtas no tempo, embora com sessões longas e muitas sessões por semana. Curtas na duração — cinco, seis meses, digamos —, “para poder estender minha influência”. Quer dizer que o que está presente no encurtamento das sessões com Lacan, se encontrava já com Freud, na idéia de que quanto mais ele fazia psicanálises de formação, quanto mais recebia pessoas em Viena, mais estendia sua influência. Em minha opinião, isso contradiz o caráter essencial da análise, que é a de não ser uma doutrinação, nem mesmo uma formação, mas uma espécie de liberação, na qual cada um deve encontrar sua verdade.

Menezes: É verdade que Freud queria separar a psicanálise da sugestão e do hipnotismo...

Laplanche: Freud queria separar a psicanálise da sugestão, mas, de um outro lado, ele refundou alguma coisa que é de conotação sugestiva. Senão, por que a análise dita de formação seria totalmente diferente da análise pessoal em geral, e mesmo da análise terapêutica? Na análise terapêutica, alguém vem nos procurar porque tem um sintoma. Sabemos que a primeira coisa a fazer é não nos ocuparmos do sintoma, não tratarmos do sintoma. O sintoma mudará, se modificará, desaparecerá, o que nós tratamos é da personalidade em seu conjunto, não do sintoma. Alguém vem nos procurar, dizendo: “Eu quero ser psicanalista”. Por que levaríamos isto mais a sério do que se ele, por exemplo, dissesse: “Quero me livrar de tal ou qual sintoma”? É preciso considerar o fato de alguém nos procurar com a intenção de ser um psicanalista como um sintoma igual a outros, como alguma coisa que deverá poder entrar na análise da mesma forma que qualquer outro objetivo, qualquer outro pretexto para começar uma análise.

Portanto, se damos à análise um objetivo, o da formação, se se começa a análise com um objetivo, isso quer dizer que desde logo admitimos que essa análise deva levar a algum lugar, que ela deve ter um fim predeterminado. Há palavras de Freud que dizem explicitamente que seu objetivo é a “Bildung”, isto é, a formação. Bildung no sentido de training, da mesma maneira que se faz o training de um piloto de avião. O training de um piloto de avião significa que lhe é ensinado a pilotar aviões. O training de um psicanalista consiste em começar a análise visando, de saída, fabricar um analista. A psicanálise é, assim, concebida como um processo finalista, que objetiva produzir algo como um produto acabado, no caso, um analista. Há, pois, uma contradição no próprio Freud. Uma contradição com o fato de que, em nenhum caso, quando iniciada, a análise deve estabelecer um objetivo. Isso se agrava quando essa análise é empreendida, primeiramente, com um objetivo de formação, o que o psicanalista admite, numa conivência com seu futuro analisando: “Sim, vamos tentar fazer de você um analista” — e, mais, quando a instituição dá sua voz, seu aval a isso: “Nós reconhecemos que tal análise tem um propósito intrínseco, o de fabricar um psicanalista”.

Você vê que a nossa reflexão interna, a minha, em todo caso, quanto ao poder lacaniano nos faz perceber que esse defeito, que Lacan levou ao extremo, era inerente ao próprio pensamento de Freud, a partir do momento em que ele concebeu as análises de formação como fazendo parte desse grande edifício, que comparo a uma igreja, fundado por ele, que é a Associação Psicanalítica Internacional. A idéia de base para o futuro é que não se trata de tornar terapêutica a análise de um candidato, sob o pretexto de dizer: “É preciso que ele esteja doente para vir nos procurar”, não é? Alguém vem nos procurar por muitas coisas: alguém vem nos procurar porque não está bem consigo mesmo, sem que seja forçosamente um sintoma neurótico; alguém vem nos procurar porque tem dificuldades conjugais. Se alguém nos procurar, em razão de dificuldades conjugais, será que diremos: “Sim, caro amigo, vamos ajudá-lo a divorciar-se”? Isso me parece mesmo contrário à análise. Ou nós vamos, ao contrário, ajudá-lo, digamos, “a se reconciliar com sua esposa”.

Então, procurar um psicanalista e declarar: “Eu quero me tornar um psicanalista” e dele ouvir: “Caro amigo, de acordo, nosso objetivo comum é torná-lo um psicanalista”, me parece ser um obstáculo insuperável para o desenvolvimento de uma verdadeira psicanálise.

Menezes: O senhor falou sobre o que se passa entre analista e analisando. Poderia falar agora da instituição e de sua participação na análise didática?

Laplanche: É evidente que quando alguém, como membro da instituição, procura um psicanalista para lhe pedir para se tornar analista, que essa psicanálise seja, depois, submetida a uma avaliação: “Será que fizemos verdadeiramente um analista?” — não há, então, mais nenhuma escapatória para o fato de que se fica preso num processo de fabricação. O psicanalista fica preso num sistema no qual só ele pode dizer: “Está bem, vamos fazer de você um analista”.

Menezes: Sob encomenda?

Laplanche: Sob encomenda. Eis o que chamo de psicanálise sob encomenda. No lugar de uma psicanálise sob demanda, uma psicanálise sob encomenda.

Menezes: E o fato de ter esse objetivo, análise com um objetivo predeterminado: se isso tem efeitos sobre a análise do lado do analisando, terá também do lado do funcionamento do analista? Segundo o senhor, como funciona um analista a quem se delega, em sua função didática, fazer análises didáticas? Que incidência, a seu ver, pode ter sobre o funcionamento do analista em sua escuta, em seu manejo da transferência?

Laplanche: Penso que isso simplesmente o impede de fazer análise. O impede de liberar as potencialidades de seu paciente, de seu analisando, no sentido de que ele talvez pudesse tornar-se engenheiro ou artista e não psicanalista, por que não? Todas as possibilidades que a psicanálise deve poder liberar acham-se, ao contrário, canalizadas a partir do momento em que ele tem no espírito uma finalidade, não é? O próprio da escuta psicanalítica é, ao contrário, ser uma escuta sem finalidade. A partir do momento em que o analista se diz: “Será que meu paciente vai ser um bom analista? Será que vai ser um mau analista?” A partir desse momento, sua escuta e suas interpretações tomarão um sentido totalmente diferente do que se ele estivesse livre.

Menezes: Isso pode afetar a espontaneidade do analista, criar inibições em sua atividade associativa?

Laplanche: Penso que sim, forçosamente, diria que a um nível quase elementar. Lembro muito bem de alguém que, uma vez, veio me procurar porque eu era um psicanalista conhecido e ele achou que indo para o divã de um psicanalista conhecido ficaria seguro de mais tarde entrar na APF, e isso independentemente de ter passado pela Sociedade, já que não pedira uma análise didática. Mas aqui conta apenas o fato de ele ter pensado: “Pronto, estou certo de que Laplanche vai fazer de mim um psicanalista e que serei admitido nas instituições”. Nesse caso, a psicanálise rapidamente, ao fim de um ano, fracassou, pois se tratava apenas de um objetivo de carreira.

Podemos considerar isso em outros níveis. Não tomemos o caso mais caricatural, aquele em que o psicanalista faz relatórios sobre a psicanálise, o que ainda acontece, como sabemos, em certas Sociedades. Não somente a análise é feita no quadro institucional, mas o psicanalista faz relatórios sobre a psicanálise. Essa prática, que não foi completamente suprimida, existia muito no tempo de Freud. Não é, pois, algo absolutamente tão distante de nossa vista. Mas o simples fato de se saber que, em certo momento, nosso trabalho vai ser avaliado em razão justamente de tal objetivo é igualmente uma inibição considerável do processo de pensamento, tanto do analisando quanto do analista.

Menezes: No exemplo que o senhor deu, da pessoa que foi procurá-lo porque o senhor tinha um nome, etc., ele tinha um objetivo relacionado com a carreira, com o interesse e não com a sexualidade, no sentido da oposição que o senhor costuma destacar entre o interesse, a autoconservação e o sexual na análise.

Laplanche: Digamos que se pode tomar isso agora do ponto de vista teórico, num aspecto que eu lhe agradeço por ter levantado. É certo que, quando alguém vem nos consultar, é ao mesmo tempo do lado da autoconservação e do lado da sexualidade que a situação se coloca. Quer dizer, se alguém se encontra numa situação embaraçosa em seu trabalho, por exemplo, porque regularmente entra em conflito com seus superiores, eu imagino que coisas desse gênero são do domínio da autoconservação. Ele vem nos procurar porque tem um sintoma no âmbito da adaptação e da autoconservação. Sabemos muito bem que não é senão a partir do momento em que deixamos a autoconservação de fora, que começamos a conhecer as motivações sexuais profundas desses conflitos é que há análise. É a mesma coisa, lhe agradeço também por notar, é exatamente a mesma coisa, só que o caso de que eu falava é um caso extremo do que acontece. As pessoas normalmente escrevem ou telefonam para as instituições psicanalíticas para pedir: “Eu quero me tornar psicanalista”. É uma profissão, não é um ofício. Eu saio do baccalauréat, ou de uma licenciatura, ou saio de não sei onde, ou eu sou médico, eu gostaria de ter essa qualificação: isso é tipicamente do domínio da autoconservação.

Menezes: Gostaria de voltar à situação específica de 1972 e da reforma então ocorrida na APF.

Laplanche: A situação de 1972 foi uma reforma que, a meu ver, correspondeu a uma tomada de consciência tardia do fato de que não era porque tínhamos deixado Lacan que tínhamos resolvido o problema do poder analítico e dos aspectos profissionais da profissionalização da análise pessoal. A reforma se fez praticamente em dois tempos.

Menezes: Ela veio quase dez anos depois da separação de Lacan.

Laplanche: Ela veio aproximadamente dez anos depois porque o grupo se constituiu em 1963 e a reforma se fez em 1972. Houve um projeto em 1971, sob minha direção, que não passou, que era um pouco mais radical. Esse projeto (e isto tem apenas interesse histórico) subtraía à instituição não somente a análise pessoal, mas as supervisões que deveriam se fazer fora da instituição. Era bastante radical, houve muitas objeções e, por fim, não passou por causa das supervisões. Meu projeto previa que não somente a análise pessoal fosse tirada da instituição, como acontece agora, mas que, igualmente, a entrada — não digo a validação — nas supervisões fosse feita fora da instituição.

Menezes: Mas a validação se faria pela instituição?

Laplanche: Sim, a validação na instituição. Houve muitas objeções, o que era natural. Como é que se poderia deixar alguém, sem nenhum aval institucional, começar um tratamento analítico? As objeções eram o que eram, mas não atingiam o essencial. O essencial dizia respeito à análise pessoal — no ano seguinte, fazendo a concessão sobre as supervisões, fizemos passar a reforma. Qual o conteúdo dessa reforma?

Não é apenas uma questão de nomenclatura porque, freqüentemente, nos dizem: vocês não têm didatas, mas vocês os chamam de outra maneira. Ora, nós não temos didatas, claro, e não temos psicanálise didática. Como é que isso se organiza concretamente?

Quando alguém quer se tornar analista, nós o mandamos para uma análise. Se ele ainda não fez análise, lhe damos a nossa lista. Na maior parte das vezes, porém, as pessoas sabem que devem vir a nós tendo feito uma análise. Nós examinamos o candidato seja qual for o divã do qual ele venha.

Menezes: Tendo feito uma análise ou ainda em análise?

Laplanche: Eles estão em análise ou estão em fim de análise ou, às vezes, terminaram uma análise. Nossa comissão de formação examina candidatos depois da análise, avalia, na medida em que se pode fazê-lo, (isto, de critérios, é outra questão: entre a prática e a teoria, todo mundo se coloca critérios sobre o que é um funcionamento analítico). Mas, digamos, nós tentamos avaliar nossos candidatos por sua personalidade e pelo fato de que a análise tenha lhes proporcionado a tomada de consciência do que é a análise através de sua análise pessoal. E isso independentemente de seu divã de origem.

Quer dizer, nós não recusamos nenhum candidato a priori, porque ele vem de um divã lacaniano, porque ele vem de um divã da Sociedade de Paris, porque ele vem de um membro associado nosso, e não de um titular. Aconteceu até de examinarmos pessoas que estavam no divã de um de nossos alunos, de um de nossos candidatos.

Não é apenas formal, se você quiser. É uma regra que permite justamente que não haja a prescrição de se passar pelos titulares da Associação, passar pelo viés de certas pessoas que sejam fabricantes de analistas, de não lhes fazer sair de uma fábrica reconhecida de analistas.

Menezes: Como é a hierarquia na APF?

Laplanche: Subsiste entre nós a distinção titular e associado, além dos candidatos. Na noção de titular, a diferença é a sua capacidade de dar supervisões; as supervisões têm que ser feitas com titulares. O que distingue os titulares na formação é seu direito de dar supervisões e de participar da comissão de avaliação. Somente os titulares participam da comissão de formação, que seleciona os candidatos e avalia as supervisões, etc. Os outros podem fazer isso, mas as únicas validáveis entre nós são aquelas dadas pelos titulares.

Menezes: A noção de titular corresponde, digamos, a uma idéia daqueles que têm um engajamento maior com a instituição?

Laplanche: É, geralmente, são as pessoas que consideramos com um maior envolvimento com a instituição e que são mais representativas da instituição.

Menezes: Mas isso não quer dizer nada. Não tem relação alguma, então, com a análise do candidato?

Laplanche: Não. A partir do momento em que admitimos alguém como membro associado, nós o consideramos um analista. A partir do momento em que reconhecemos alguém como um analista, ele pode tanto fazer análises de formação, como análises terapêuticas, ou análises que sejam ao mesmo tempo de formação e terapêuticas, como é freqüentemente o caso, não é? Não colocamos nenhuma restrição.

Menezes: Em que se baseia a sua instituição para reconhecer e avaliar os analistas? Poderíamos pensar, por exemplo, que se alguém faz análise com pessoas reconhecidas, didatas ou titulares, poderia estar mais seguro de que fez uma boa análise, de que teria com isso uma garantia a mais? Se a análise pode vir de um outro divã, quais os critérios para o reconhecimento de um analista? É sobretudo pelo trabalho de supervisão, é nele que se põe a ênfase?

Laplanche: Não. Há um reconhecimento antes das supervisões, já que nós primeiro admitimos as pessoas às supervisões, na seleção de candidatos. Os membros do comitê de formação atendem regularmente pessoas que querem se tornar analistas. Geralmente, o secretário lhes pergunta: “Você fez análise?” Em geral, nós não vemos senão pessoas que fizeram análise.

Menezes: Assim eles serão admitidos como analistas em formação...

Laplanche: Como analistas em formação é que eles são admitidos nas supervisões. Não há ensino antes das supervisões. É muito difícil avaliar um candidato — mas, em minha opinião, é completamente falacioso avaliá-lo pela qualidade do seu analista. Afinal de contas, mesmo um bom analista pode fracassar numa análise, uma análise pode fracassar com um analista muito bom e reconhecido, e o inverso também é verdade, não é? Examinamos o candidato por ele mesmo, e não por seu analista. Três pessoas o vêem, eventualmente outras, se há alguma dúvida. Às vezes o mandamos embora, às vezes ele volta dois anos depois de ter continuado sua análise ou de ter retomado uma análise, e assim por diante. Nós abandonamos completamente a idéia de que: “Bom analista, portanto, bom candidato”.

Menezes: Isso remete à questão do interesse.

Laplanche: Sim, e remete também ao fato de que o que se trata de julgar é, certamente, uma personalidade. Nós temos de julgar uma personalidade e nós conseguimos julgar a maneira como a pessoa entrou no processo analítico; temos de saber como se desenrolou sua análise, o que não é sempre fácil, mas, enfim, temos de apreciar isso.

Menezes: Na APF, as supervisões são bastante longas, vários anos com o mesmo paciente — e não é tão raro que mesmo assim sejam recusadas pela comissão de ensino. Fico com a impressão que, na avaliação da formação, é dado um peso muito grande ao trabalho em supervisão.

Laplanche: É verdade. Damos grande ênfase à supervisão. É raro uma supervisão durar menos de três anos: ela pode durar quatro, cinco, seis anos. Achamos muito importante que a supervisão permita avaliar o candidato no manejo da transferência e da contratransferência. A validação das supervisões, portanto, leva em conta tanto a dinâmica interna do analista-candidato, quanto a dinâmica interna de seu paciente. Sem dúvida, mais sobre o processo no analista que no seu próprio analisando. Em todo caso, damos pelo menos tanta atenção à evolução do analista-candidato da primeira ou da segunda análise supervisionada, quanto ao processo em seu paciente.

Menezes: Há um detalhe importante para o leitor. As duas supervisões exigidas não podem ser simultâneas, o que permite uma historização do percurso do candidato e, evidentemente, são apenas análises de adultos e individuais, além do que, a supervisão é sempre individual.

Laplanche: Sim, não há supervisões coletivas, e a validação da primeira supervisão é necessária para a admissão à segunda. E elas são sucessivas. O que faz que nosso percurso seja bastante longo, talvez um pouco longo demais, mas é assim.

Talvez vocês queiram saber como se passa a validação da supervisão. De um comitê de formação de nove membros, designamos três para validar, mas eles apenas relatam. A decisão depende do comitê de nove. Os três entrevistam sucessivamente o candidato e o supervisor. Há uma entrevista com o candidato e uma entrevista com seu supervisor.

Menezes: O senhor estava expondo, no começo, as razões que o levaram a eliminar a análise didática de sua associação. Vinte e um anos se passaram desde então. Destes vinte anos, qual é o balanço? Quer dizer, o senhor falava do objetivo da doutrinação pela análise didática desde Freud até Lacan. Sem análise didática, vocês conseguiram ter menos doutrinação, por exemplo? Isso funciona mesmo na prática?

Laplanche: Creio que funciona, digamos, para a maioria dos candidatos que nós formamos. Creio que é algo bastante indispensável e ao que nossos novos membros são enormemente apegados, algo que eles valorizam muito: o fato de que não os tenhamos obrigado a seguir uma análise institucional. Se fizéssemos atualmente uma votação, veríamos, creio, que a maioria dos membros que se formaram nesse sistema o encara com muita simpatia pelo fato de não os termos obrigado a se submeter a um percurso predeterminado, porque eles tiveram verdadeiramente uma análise, e não uma análise pró-forma.

Vocês sabem disso, freqüentemente se diz: a psicanálise didática é uma primeira análise. Depois de entrar na Sociedade, a gente faz uma análise de verdade, porque aquela não era a verdadeira. Então, muitas pessoas consideram que isso lhes permitiu fazer de cara uma verdadeira análise.

Menezes: Do ponto de vista da doutrinação, da formação de mestres, de clãs, etc., em relação a isso, vocês conseguiram algum progresso? O senhor dizia, no princípio, que este era um dos problemas... Os espíritos estão mais livres? (Risos.)

Laplanche: Eu acredito. Mas a psicanálise é um poder imenso, não é? Não somente pelo exercício das análises pessoais: mesmo o ensino da doutrina psicanalítica é um poder imenso. Não se pode estar certo de que esse poder não continue a se exercer, não se pode igualmente estar certo de que os clãs não comecem a se reconstruírem. De outra parte, é preciso de qualquer forma, ver que a essa coisa que fizemos continua a se opor uma parte de nossa Associação. Uma parte, uma minoria, estaria bastante de acordo, de uma forma bem disfarçada, com a idéia de voltar a uma análise didática, institucional, por boas e por não tão boas razões. Todo mundo sabe que um analista didata enche a sua agenda de horários e que um que não é didata tem mais dificuldade em fazê-lo. E isso não deixa de ser importante, não é?

Quer dizer que há listas de espera, quando se é titulado didata e se tem o nome na lista: “Se você quer virar psicanalista, você deve ir no fulano, no beltrano, no sicrano”. É evidente que, do ponto de vista autoconservativo do analista, é extremamente importante. Portanto, sem fazer acusações maldosas, há simplesmente colegas que não veriam com maus olhos se forçássemos as pessoas a passarem por seus divãs. De outra parte, há, a meu ver, alguma coisa de totalmente sintomática: é que essa reforma, que existe desde 1972, portanto, já há mais de vinte anos, como você diz, nunca foi ouvida em nível internacional. Eu sempre disse: se nos levassem a sério, deveriam nos excluir, porque nós recusamos um dos parâmetros maiores da Associação Internacional, que é a análise didática. Um exemplo recente, quando nos perguntaram: “Vocês fazem análise didática com quatro sessões?” Respondemos: “Nós não fazemos análises didáticas, logo não podemos dizer de quantas sessões elas se compõem”. É esta a verdade, não é?

Tomei o exemplo do rei. Perguntam ao francês: “Em que idade um rei pode ser sagrado rei?”. Responde ele: “Não temos rei, não podemos lhes dizer em que idade eles podem ser sagrados reis, vivemos numa república!” Mesmo assim, insistem: “Certo, mas em que idade um rei pode ser sagrado rei?” Nós estamos sem análise didática e nos questionam incessantemente: “Ah, quais são seus critérios de entrada em análise didática? Qual é o seu número de sessões?”

Menezes: Eles não levam vocês a sério...?

Laplanche: Não fomos levados a sério e talvez as pessoas que defenderam nossas idéias tenham se dito: “Atenção, porque, afinal, quem sabe, poderiam talvez nos excluir, se soubessem que, verdadeiramente, não temos análise didática.” Há, por exemplo, o que chamamos de “Pré-congresso sobre a formação”. Para esse pré-congresso, convocam-se os training analysts. Então, nos dizem: enviem-nos, não sei, dois ou três training analysts. Enviamos pessoas regularmente, só que enviamos titulares, sem entrar em detalhes: “Na verdade, nós não temos training analysts, quem deveremos mandar?” Quem sabe, até respondessem: “Certo, mas seus titulares na verdade o são... vocês o chamam de outra maneira, mas são training analysts”, não é?

Menezes: Entre as exigências da IPA, há a de que o training analyst seja didata, que a análise didática se faça com quatro sessões semanais, realizadas em dias diferentes, não podendo haver sessões no mesmo dia, etc. Até aqui falamos sobretudo da primeira condição, a do analista didata. Há também a questão da freqüência às sessões. Renê Diatkine lembrava, outro dia, de ter ouvido Paula Heimann, nos anos 50, afirmar categoricamente, num congresso: “Análise, são cinco sessões por semana; quatro sessões é psicoterapia!” Atualmente, análise são quatro sessões por semana; três sessões é psicoterapia. O que o senhor pensa disso?

Laplanche: Em primeiro lugar, vou lhes contar uma história engraçada, a respeito dos lacanianos. Foi na Faculdade de Nanterre, Saint-Denis, que é dirigida pelos lacanianos, eles têm um departamento de psicanálise, de pesquisa. Um deles recebe um dia um candidato e lhe pergunta: “Você está em análise?” “Sim, eu faço análise” — responde o candidato. “E sessões de que duração?” “Bem, 40 minutos”. O professor lacaniano levanta então os braços: “É terrível, você não sabia, mas está em psicoterapia, porque análise é em sessões de cinco minutos!” Eu penso que é uma questão séria, e que não há nenhuma razão para tratá-la dizendo: ele tem o espírito analítico, e o espírito analítico é tanto uma sessão como quatro. Claro, em psicoterapias de uma sessão por semana, pode ser que ocorra alguma coisa de analítico, é certo. Mas eu penso que a freqüência de quatro sessões é de toda forma boa, se não a tornarmos uma questão meramente formal.

Quer dizer, acredito que certa continuidade na semana permite melhor analisar, seguir o processo inconsciente e que, se só temos três sessões, sobretudo se elas estão amontoadas, concentradas em três dias, ou, como se fazia antigamente com pacientes do interior, duas sessões no mesmo dia, a meu ver, temos dificuldade de acompanhar. Então, não é somente formal, é real. A isso se opõem, freqüentemente, limitações econômicas, mas eu acho que uma análise de quatro sessões é preferível.

Menezes: Mas, além disso, há os pacientes do interior, que fazem duas sessões num dia, quatro sessões em dois dias seguidos.

Laplanche: Eu jamais fiz isso. Confesso que não tenho a experiência. Não tenho uma opinião muito favorável, mas não tenho a experiência. E eu não a teria iniciado; pessoalmente, não teria aceitado. Sei que há limitações, mas eu não o teria feito. Não vejo como o que se passa na vida de alguém possa se achar retomado em análise se fizermos duas sessões no mesmo dia — e que, no intervalo entre as duas sessões, ele deva comer um sanduíche no McDonald’s. Não tenho nada contra os sanduíches do McDonald’s, mas enfim... (risos). Também quanto às supervisões, eu sou bastante favorável a que se tente, tanto quanto possível, fazer quatro sessões para a supervisão. E aqui é a mesma coisa: não podemos impor isso como uma regra rígida, mas penso que é um ideal que é preciso tentar atingir o mais freqüentemente possível.

Menezes: Mas na APF não são exigidas quatro sessões?

Laplanche: Na APF não se exige, mas muitos de nossos colegas, como eu, incentivam os candidatos a tomar análises de quatro sessões para a supervisão. Não é exigido de um ponto de vista formal. Nós não recusaríamos uma supervisão, digamos, de três sessões.

Menezes: É uma preferência...

Laplanche: É uma preferência bastante marcada. Eu acredito que o imperativo da Internacional desempenhou um papel, mas é verdade também que não podemos sempre encolher a psicanálise, passar de cinco para quatro, etc. Tive uma análise de seis e mesmo de sete sessões por semana com Lacan, portanto, estou bem posicionado para falar, é uma coisa inteiramente diferente.

Menezes: Por outro lado, o senhor não acha que quanto mais se caminha para um formalismo estrito, mais se faz a economia de um esforço de pensamento? Cada vez que se vai discutir se são cinco e não quatro, quatro e não três, 50, 40 ou, cinco minutos, o tempo da sessão para haver análise, isto é, quando se enfatiza demais a questão formal, não se acaba evitando o pensamento, a reflexão em bases analíticas? Será que a gente não acaba se afastando da coisa analítica com esses tipos de critérios formais?

Laplanche: Estou inteiramente de acordo com você. Penso que isso deve ser examinado de um ponto de vista analítico e não de um ponto de vista formalista. Mas da mesma forma, de um ponto de vista analítico, poderíamos dizer quase tudo, não é? De 50 a 45, de 45 a 40, de 40 a 35, os cinco minutos estão no fim da conta, não é? Bom, há um momento em que é preciso parar. Os critérios formais são somente formais, estou inteiramente de acordo, mas é preciso mesmo chegar a pedir um mínimo de autodisciplina.

Essa questão — número de sessões, duração das sessões —, é preciso examiná-la de um ponto de vista não formal, mas analítico. Por outro lado, evidentemente, não há nenhum argumento psicanalítico que nos diga que quatro é melhor que três, ou que três é melhor que quatro. Parece mesmo que se diz, hoje, que três é melhor, porque é o triângulo edipiano. (Risos).

Menezes: É o número mágico.

Laplanche: É o número edipiano, então será três o bom critério. Estou brincando, mas... tomemos a duração das sessões. Acredito que a prática lacaniana não é somente uma prática dos cinco minutos ou de sessões curtas, não é somente uma prática, digamos, cômoda para eles. Penso que é uma prática profundamente antianalítica, porque não se leva em conta a necessidade de segurança do paciente, quer dizer, de ter certo tempo que lhe é reservado, e que lhe damos no tempo, o que eu chamo de moldura (setting) psicanalítica, que não é somente no espaço, é também uma moldura no tempo, essa moldura lhe oferece um continente, faz parte do continente que permite ao processo primário, tanto quanto possível, funcionar. Se não dermos um tempo fixo para o processo primário funcionar, isso pode ser profundamente desestabilizante. Então, a questão agora do número de sessões talvez não seja exatamente a mesma coisa, porque podemos dizer três ou pode ser também quatro...

Menezes: Um dia sim, um dia não...

Laplanche: É, de qualquer forma, uma questão de poder seguir a vida cotidiana, mais ou menos como os sonhos, com tudo, com um intervalo suficiente. Freud e os velhos psicanalistas falavam da resistência do fim de semana: na época, eles tinham o sábado e o domingo. Temos agora a resistência do fim de semana à inglesa. Sei que eu, pessoalmente, tenho uma prática especial, isto me é particular. No verão, interrompo sempre três meses. É outra coisa, é no ano. Interrompo sempre, o que é muito longo, dois ou três meses, por razões pessoais.

Menezes: Três meses seguidos?

Laplanche: Três meses seguidos. Eu interrompo sempre: julho/agosto/setembro, ou agosto/setembro/outubro, por razões pessoais. Eu acho que é muito menos constrangedor fazer interrupções mais ou menos longas do que durante o trabalho, quando é preciso haver um seguimento de qualquer forma suficiente.

Menezes: Há uma pergunta que eu gostaria de lhe fazer ainda, sobre um assunto em que o senhor tocou há pouco. É a questão da tolerância da IPA que, aliás, não é tão tolerante assim em relação a outras Sociedades. Pelo que entendi, a IPA se fez mais ou menos de surda para poder tolerar as inovações da APF. Em sua opinião, essa tolerância da IPA se deve ao fenômeno Lacan, à autoridade científica dos membros da APF, a que se deve esse privilégio?

Laplanche: Não creio que se deva tanto ao fenômeno Lacan. Creio que se deve, de fato, a uma posição um pouco particular da psicanálise francesa, em que os psicanalistas são considerados ao mesmo tempo pensadores-filósofos, que não têm forçosamente uma grande influência no movimento internacional. Depois, há também certa vontade de não criar conflitos. Penso que como a APF não brandiu o estandarte, não quis fazer proselitismo e dizer: “Vocês devem fazer como nós”, ou: “Vocês não são analistas se não forem como nós”, na medida em que nós não fizemos isso, houve uma tolerância mútua. A partir do momento em que não houver mais essa tolerância, é evidente que haverá problemas institucionais graves.

Menezes: A APF não brandiu o estandarte... De um lado, eles, a IPA, se fizeram de surdos; de outro, vocês disseram as coisas à boca pequena... Se fazer de surdo e falar à boca pequena não são coisas complementares?

Laplanche: É isso mesmo. É inteiramente complementar. Mas eu jamais me calei, não é? Sempre fiz questão de dizer muito claramente o que a gente fazia. Não sou de fazer proselitismo: “Vocês devem fazer assim”. Mas sou um daqueles que mais desejaram, quando nos pediam para que mandássemos didatas, que, em vez de afirmar que iríamos mandá-los, lhes fizéssemos, sim, notar que não temos didatas.

Menezes: Por que a APF não fez questão de defender sua posição na IPA, não digo por proselitismo, mas para defender uma posição... não há uma vontade política?

Laplanche: Não há vontade política e a APF não tem uma unidade interna suficiente para fazer isso. Quer dizer, se ela tivesse realmente desejado, teria criado um conflito externo, mas certamente também um conflito no seu interior. Um conflito no exterior, com a IPA, criaria seguramente um conflito interno na APF.

Tomando as coisas de um ponto de vista mais positivo, bem ou mal, há uma situação democrática no interior da APF, que faz com que as minorias se submetam à linha decidida pela maioria. Mas não até o ponto de, por causa disso, se dizer: “Vamos fazer uma guerra de conquista!”, não é?

Menezes: Ir à IPA e defender uma posição, debater, não seria necessariamente uma guerra de conquista...

Laplanche: Também não vamos exagerar! Sempre que foi o caso, nos pré-congressos, todas vezes indicamos representantes, estivemos presentes. Anne-Marie Sandler, há quatro ou cinco anos, fez todo um relatório sobre o assunto, sobre as modalidades de formação. Nossa modalidade de formação foi exposta com clareza, mas sem se levantar o estandarte da guerra, não é?

Você sabe, é raro que um governo democrático deflagre uma guerra. São geralmente os governos totalitários que deflagram guerras. Na medida em que a APF funciona democraticamente, ela não deflagrou uma guerra ideológica. Ela tem o direito e, aliás, também a fraqueza das democracias.

 

 

Tradução de Maria Lúcia Gutierrez
1 Constituída em 1954, a partir de uma cisão da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP) congregou D. Lagache, J. Lacan, F. Dolto, S. Leclaire e um certo número de jovens analistas, alguns próximos de Lagache, mas que seguiam os seminários de Lacan e/ou faziam sua análise com ele. Entre estes, encontravam-se J.-B. Pontalis, D. Anzieu, J.-L. Laplanche, G. Rosolato, F. Perrier, P. Aulagnier, W. Granoff, V. Smirnoff e outros. Em 1963, houve nova cisão, agora na SFP, com a formação, de um lado, da Escola Freudiana de Paris (EU), organizada em torno da pessoa e do pensamento de Lacan, e, de outro, da Associação Psicanalítica da França (APF), grupo relativamente pequeno em que ficaram Lagache e boa parte dos analistas citados (Laplanche, inclusive), ex-discípulos de Lacan, em rebelião contra ele. O reconhecimento pela IPA foi o terreno em que ocorreu tal cisão: a APF passou a integrar a IPA, ao contrário da EPF de Lacan.

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