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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.74 São Paulo jun. 2008

 

DEBATE

 

A análise didática

 

Training analysis

 

El análisis didáctico

 

 

O enfoque deste número, Análise do analista, igualmente regeu o presente debate, que reuniu, em 7 de junho de 2008, na sede da SBPSP, os drs. Abel Fainstein, da Asociación Psicoanalítica Argentina (APA), Stefano Bolognini, da Società Psicoanalitica Italiana (SPI), Luis Carlos Menezes e Luiz Meyer, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

O Jornal de Psicanálise agradece com empenho os entrevistados que, depois de enfrentar uma longa e cansativa (e trilíngüe) jornada, gentilmente se dispuseram a discutir o tema em pauta.

A ausência da editora, Leda Maria Codeço Barone, foi desculpada e plenamente justificada: seu pai, morador no Rio de Janeiro, completava naquela data 90 anos. Os trabalhos foram conduzidos pela co-editora, Alice Paes de Barros Arruda, coadjuvada pelos representantes do corpo editorial, Alexandre Horta e Silva, Beatriz Helena Peres Stucchi e Iliana Horta Warchavchik. Francesca Maria Ricci estrategicamente colaborou na condição de tradutora stand by de italiano.

JP: Observamos uma tendência da IPA em dar autonomia aos institutos de formação de psicanalistas, de maneira a levar em conta as particularidades culturais relativas à Sociedade na qual estão inseridos. Na percepção dos senhores, o que desencadeou tal “flexibilização” ou a que ela atende? Qual seu alcance de maneira geral e, em particular, em sua Sociedade? E em relação a que elementos do famoso tripé — análise didática, supervisão e estudo teórico — ela deverá ser mais contundente?

Menezes: Só um esclarecimento. A flexibilização que ocorreu na IPA não foi sobre o estudo teórico, nem sobre a supervisão. A flexibilização que se fez, com a idéia dos três modelos, deu-se principalmente em relação a uma questão mais crítica, a da análise didática. Por outro lado, de fato, está havendo uma tendência geral na IPA em respeitar mais as Sociedades. Percebe-se uma evolução que leva para um funcionamento próprio de uma federação; isto está ocorrendo na prática, embora, formalmente, a IPA não seja uma federação de Sociedades.

Abel: Isso que o Menezes comentou teve início com uma discussão sobre o número de sessões semanais (vocês me corrijam, se estou equivocado). O problema que a IPA enfrentava referia-se ao número da freqüência de sessões por semana. Isso depois se transformou, devido a todas as dificuldades que o tema trazia, numa discussão a respeito dos modelos, que terminou com a aceitação desses três modelos. Na realidade, trata-se de um eufemismo. Como disse Menezes, não se trabalhou sobre os modelos: o que aconteceu em relação a esse tema é que não houve um delineamento de reconhecimento de modelos — entendendo-se por modelo o conjunto da formação. Para não dizer que aceitava que não fossem quatro sessões, a IPA buscou essa forma mais abrangente de apresentar uma aceitação de distintos modelos. Os modelos em si não foram discutidos. Não entrou em discussão a possibilidade de se fazer análise simultaneamente aos seminários ou antes dos seminários —, bem como se a supervisão deve ser com um analista assim ou assado. Basicamente, se discutiu uma forma para aquela resposta, mas a pergunta inicial era muito diferente.

Cada um conta sua história, mas o que eu tenho como história é que houve uma carta, quando existia a casa de delegados dos presidentes latino-americanos, na qual se expunha que a IPA não podia seguir exigindo quatro sessões por semana, já que isso era insustentável, pelo menos na América Latina. Tamanho foi o ruído criado a partir dessa situação — eu vi a tal carta, firmada por, entre outros, Lucia Martinto de Paschero, então presidente da APA —, que todo um movimento foi deflagrado, resultando ao fim de oito ou dez anos nessa mudança, que foi a aceitação de diferentes modelos. Na realidade, a única coisa que ali se falava sobre os modelos era da possibilidade de se fazer três ou quatro sessões por semana. Não vi outra coisa relacionada aos modelos que não dissesse respeito tão-somente à freqüência de sessões. Talvez o Stefano saiba mais detalhes.

Stefano: No board houve uma discussão mais articulada e mais profunda, porque a filosofia dos diferentes modelos foi examinada. É difícil dizer que tal se deu para permitir a passagem para três sessões ou se o problema das diferenças dos modelos era realmente interessante para a comunidade. Abel dizia que a verdadeira preocupação restringia-se à questão das três ou quatro sessões. Não sabemos se a investigação sobre a filosofia dos modelos foi uma maneira de valorizar o tema ou se havia naquilo um efetivo interesse. Nas instâncias do board da IPA, porém, não se falou apenas do problema das três ou quatro sessões, mas de todo um sistema, da filosofia geral desses modelos.

Esses debates, a meu ver, tiveram origem em duas situações diferentes. A situação latino-americana — sobretudo no âmbito da grande dificuldade econômica —, e a situação francesa, que não enfrentava problemas financeiros, mas guardava uma diferença histórica. Conjuntamente, esses dois componentes produziram uma força que no interior da IPA se movimentou. E um terceiro componente sobreveio: o desejo de uma parte da IPA de acabar com uma situação de cisão mental. A IPA tinha uma regulamentação que não correspondia à sua complexa realidade. Algumas Sociedades trabalhavam as quatro sessões; outras, as três. Mas o regulamento da IPA não tratava desses aspectos. Daí, no interior da IPA e do board, aquele terceiro componente, o da integração mental ou, mais simplesmente, de se encarar a verdade: a de que havia diferenças entre as diversas Sociedades.

Abel: É interessante o que Stefano disse, tomando isso como informação emergente, ou seja, de que no board houve uma investigação do conjunto dos modelos. Se filtrarmos tudo o que falamos aqui no decorrer do dia todo, o que realmente restou foi a questão das três ou quatro sessões por semana. Isso não acontece somente aqui, na minha Sociedade também é igual. De todo esse debate que houve no board, o que chegou a São Paulo e Buenos Aires foi apenas a concordância da IPA em relação aos três modelos. Ninguém falou das implicâncias desses três modelos ou no que eles têm a ver com a supervisão ou com os seminários. Seu único significado foi sua legalização: agora se pode fazer análise três vezes na semana. Nos fatos, o que ficou, é que fora aceito o que já estava acontecendo, ou seja, há Sociedades que analisam três vezes por semana. É uma lástima, já que o board fez todo esse trabalho. Nós não discutimos essas coisas. Em Buenos Aires não discutimos, aqui hoje não se discutiu. Alguma coisa aconteceu. Acho que foi a forma possível de legalizar um tema que era muito específico, isto é, o número de sessões.

Menezes: Parece-me que é assim — e não é. O que esteve presente na discussão da tarde, e também da manhã, foi a questão da análise dentro do sistema de formação e de todos os efeitos idiopáticos que resultam dessa modalidade de análise. Esse é um debate que vem de longa data. A escola húngara, nos anos 30, já questionava esse sistema da análise de formação, propunha alternativas, etc. Lacan fez uma crítica pesada dessa prática, mas acabou criando, já em sua própria escola, o que chamou de passe, que estabelecia um sistema de avaliação institucional da análise do analista e reforçava as posições de poder dentro dela. Por essa razão, Piera Aulagnier e outros analistas de expressão, rompendo com Lacan, em 1969, constituíram o chamado Quarto Grupo. Trata-se de um questionamento que atravessa todo o movimento psicanalítico com muita força e que, ao ser reduzido à especificação do número semanal de sessões, estava posto na IPA de uma forma bastante simplificada. Mais recentemente, houve na IPA um debate bastante intenso, que durou vários anos e foi desencadeado por uma iniciativa que partiu da América Latina. A América Latina é uma presença dentro da IPA: surgiu e se fortaleceu nas últimas décadas e, em convergência com a França, parte da Itália e da Espanha (“Europa latina”), está criando uma nova relação de forças no interior da instituição, quebrando a velha hegemonia anglo-americana, que se instalara já nos anos 20.

No que diz respeito à análise didática, esse debate deixou claro que há realidades diferentes em diferentes países, tal como os elefantes, segundo a imagem dos animais de Stefano, hoje de manhã1. Na Alemanha e países escandinavos, há situações profissionais próprias em razão de normas do seguro social para as terapias, assim como outras realidades socioprofissionais, na disputa no mercado das psicoterapias, nos Estados Unidos. O fato é que são países em que predominam necessidades e vocação para uma função mais regulamentadora, fiscalizadora e mais forte da IPA em relação às suas Sociedades. Já, entre os países de origem latina — é um pouco esquemático isto, mas é algo que corresponde a uma realidade histórica em curso —, há uma ênfase maior no processo analítico e menos nas normas formais. Essa maneira de ver coincide com a preocupação em problematizar e procurar atenuar os efeitos colaterais inerentes a uma análise feita dentro do processo de formação, regulamentada, portanto, e tendo incidências sobre os sistemas de pensamento e de poder vigentes nas Sociedades. Foi em razão dessas preocupações que surgiram historicamente o que foi chamado no Congresso do Rio, em 2005, de modelo francês e modelo uruguaio. Pela primeira vez, houve o reconhecimento oficial e a adoção pela IPA desses outros dois “modelos”, que na verdade correspondem a dois instantâneos de processos ocorridos em contextos e épocas diferentes, em duas Sociedades pequenas: a Sociedade Psicanalítica do Uruguai (APU) e a Associação Psicanalítica da França (APF).

Data esta última do início dos anos 70 e foi adotada por ex-discípulos de Lacan e de Lagache. Estes sofreram na carne a presença de Lacan, psicanalista brilhante, mas que, como todos os mestres, só que de forma muito ativa e poderosa, queria que as pessoas ficassem em torno dele e de sua maneira de pensar. Um dos responsáveis pelo novo sistema sem análise didática foi Pontalis. Num livro autobiográfico, O amor dos começos, conta ele que Lacan tinha como ninguém a arte de manejar a transferência em favor do exercício do poder sobre as pessoas — ao mesmo tempo, reconhece a dívida que tinha em relação a Lacan, só que não queria pagá-la, abrindo mão de um modo próprio de pensar, de falar e de ser analista. Ele diz, nesse livro, que o retorno a Freud de Lacan era, na verdade, uma ida sem volta a Lacan. Pontalis, durante uma supervisão, me pareceu se ausentar por um instante e me disse, como se falasse com seus botões (não falávamos disso), que perto de Lacan ele não conseguia pensar.

A análise didática foi abolida na APF entre 1971 e 1972, algum tempo depois da saída de Lacan, por um grupo de analistas rigorosos, exigentes, com sólida formação intelectual e grande integridade pessoal. Além de Pontalis, o casal Anzieu, Lagache, Laplanche, Smirnoff, Rosolato, Granoff, o casal Favez-Boutonier, Widlöcher e mais alguns outros. Esse sistema foi, pouco a pouco, sendo adotado também pela Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), uma Sociedade bastante grande, mas que não chegou ainda a alcançar o rigor e coerência do sistema que foi adotado na APF. Isto é que foi finalmente reconhecido pela IPA, sob o nome de “modelo francês”, em 2005, no Rio. Acredito que a decisão de reconhecer “os três” e não apenas um — todos concordam que há outras tentativas originais — abriu para a possibilidade de uma abordagem em profundidade da questão pelas Sociedades, que passam, na prática, a ter a responsabilidade por suas modalidades de transmissão da psicanálise, em particular em relação ao ponto mais crítico, mais difícil e mais delicado desta, que é a análise daquele que “está em formação”.

Agora mesmo tivemos um encontro de colegas da SBPSP com colegas da APF, minha associação de origem. No encontro da manhã, discutimos um trabalho, com um caso clínico meu; só que, no começo, um amigo brasileiro da APF, me fez uma menção elogiosa, dizendo que era meritório eu ter me mantido um defensor do freudismo, e que aquilo se encontrava no meu trabalho. Embora os presentes fizessem parte de uma geração mais recente, o interessante é que deu logo para perceber, em seus questionamentos, uma desconfiança despertada pelo elogio, a de alguma “militância” minha direcionada para o horizonte de pensamento da APF, onde há a tradição de um pensamento clínico cujas raízes não evitam, pelo contrário, penetram profundamente nos fecundos labirintos da obra de Freud. Ou seja, eu percebia nas intervenções deles uma suspeita de que a minha filiação à APF e aos seus ideais teórico-técnicos pudesse ter me levado a me figurar e me pôr como o portador ou o representante da psicanálise freudiana da APF, numa fidelidade imaginária, que faria de mim alguém alheio ao meu modo de olhar para as coisas, de pensá-las ao meu modo de ser psicanalista.

Vi como esse problema, inicialmente vivido com Lacan, permanecia um ponto ultra-sensível nas gerações posteriores. E disse isso a eles, argumentando que sempre tivera presente a diferença entre identificações imaginárias com os valores e referências da instituição — que, imitativas, e nestas absolutizadas, se tornavam crenças a serem promovidas, como o faria um missionário de uma doutrina religiosa ou política —, e identificação simbólica — em que algo fica no nível dos ideais e ajuda a pensar, não tirando, no entanto, a possibilidade da autonomia do pensamento, do senso crítico e da liberdade de encontrar o próprio modo de ser e de falar como psicanalista. Disse a eles que o cuidado e a preocupação que tive desde o primeiro dia de minha volta ao Brasil foi a de falar, em meu nome, somente daquilo que fizesse sentido para mim, quando me arriscasse a dizer alguma coisa, de maneira a poder mudar a cada vez o ângulo e a maneira de ver, a poder movimentar-me, sem ficar aprisionado, de forma alienada, a uma tarefa supostamente esperada de mim, de defender algo predefinido.

Existiram momentos que foram importantes para mim na vinda de colegas da APF para São Paulo — não na Sociedade, porque ela não os convidava, a Sociedade só convidava psicanalistas ingleses —, então nós os trazíamos por fora, por conta e risco. (Por outro lado, quando vinham os colegas kleinianos de Londres, eu não só participava dos seminários clínicos como, em geral, apresentava material meu.)

Mas, o que tinha me ocorrido e queria contar, pois é significativo para este assunto, foi um episódio com Fédida, analista da APF, numa das primeiras vezes que esteve em São Paulo. Depois de um seminário mais teórico à noite, ele dava um seminário clínico na manhã do dia seguinte: um colega nosso apresentava o material clínico e eu traduzia. Nessas, ao ouvir a apresentação de um material, em que era visível uma forte inspiração nas referências de Bion, tal como entendidas entre nós, pensei que ia haver um desencontro grande entre os dois, pois o trabalho parecia contrariar frontalmente o referencial da exposição da véspera. Não foi o que aconteceu. Para minha surpresa, vi Fédida abrir a conversa com os presentes mostrando-se muito receptivo ao que fora exposto. Foi assim abrindo e levando as pessoas a falar; o resultado foi uma discussão extremamente interessante do caso. Quando o estava levando para o hotel, não resisti em dizer-lhe da minha perplexidade com a aparente contradição entre a apresentação formal da véspera e a escuta que ele tivera do caso e do colega. Eu lhe disse, em tom de cobrança: “Fédida, como é? Você falou uma coisa ontem à noite e fez outra hoje de manhã; você esta fazendo média, está querendo ser simpático?” Ele me respondeu, indignado: “Menezes, você não vai querer que eu seja dogmático em relação a mim mesmo. Eu estava ali já sendo mais realista que o rei”.

São essas questões que foram discutidas pelo Abel, sobre identificações e desidentificações com o analista didata e com as pessoas que se colocam ou que colocamos em lugar de mestre. Parece-me muito salutar o que ocorreu na IPA, com essa decisão sobre a análise e formação, talvez seja o acontecimento histórico mais importante em um século de sua história. Abre-se a possibilidade de se considerar a formação com base na natureza do que é inerente à psicanálise, de forma viva, tirando-a do sono em que se encontrava, quando reduzida a uma lógica puramente administrativa.

Alice: Foi lembrado que todo esse movimento surgiu a partir da América Latina. No debate de hoje à tarde (Bolognini não estava presente), a colega Dora Tognolli salientou a importância da movimentação institucional a partir de meandros não-oficiais e da relevância dos corredores. De alguma maneira, parecia estar emergindo na discussão uma fala um pouco polarizada entre uma possível demonização dos didatas, por um lado, e, por outro, a tentativa de Luiz Meyer em alargar, justificando não se tratar de uma questão de demonização, mas de psicanálise. A colega Dora foi muito firme ao defender a necessidade de se reconhecer as diferentes camadas institucionais em suas implicações e efeitos, que se fazem notar muitas vezes nos corredores, onde circulam essas tensões. Acho isso muito interessante, porque é pelas frestas, pelos detalhes que a psicanálise se fez. E como, muitas vezes, uma minoria acaba se levantando e sacudindo a IPA, para que outras coisas, o novo possa surgir a partir dessas frestas.

Luiz Meyer: Eu não tenho experiência de freqüentar os organismos internacionais, a não ser em congressos para apresentar trabalhos. Não sei qual é a dinâmica dos board, das casas dos delegados e das varias instâncias administrativas. Então, com o risco de dizer uma grande bobagem em relação a quem tem mais experiência do que eu, vou pegar aquela parte da pergunta: “Na percepção dos senhores o que desencadeou essa flexibilização e a que ela atende?”

Queria apresentar um ponto de vista eventualmente diferente, pedindo para ser corrigido. Quando vocês estavam falando, lembrei-me, por associação livre, do processo que foi movido contra a Federação Americana de Psicanálise — e que, naturalmente, com efeito de longo alcance, rebateu na IPA — pelos psicólogos americanos, um processo extremamente custoso para todos nós, em que a regra americana de que somente podiam existir médicos analistas foi contestada. Foi um processo longo, a Federação americana perdeu, era uma questão de liberdade, e hoje, dentro da federação e da IPA, são aceitos psicólogos para fazer a formação analítica e as Sociedades americanas — Nova York é uma e Nova Orleans é outra — aceitam esses psicólogos. Eu tinha esperança, quando soube desse processo, que houvesse uma grande mudança na psicanálise americana e, para minha decepção, tudo continuou mais ou menos.

Estou trazendo essa lembrança porque acho que essa flexibilização é um efeito de um jogo de poder. As psicanálises ditas periféricas, por exemplo, as sul-americanas, foram ganhando grande peso e grande peso institucional, e algumas, como a argentina, também um grande peso intelectual. Chega um ponto em que a IPA é obrigada a medir forças. Houve um momento em que a IPA tinha uma força extraordinária e não precisava considerar os argumentos adversários. Hoje, a IPA tem que levar em conta o que representa para ela ter uma oposição consistente de uma Sociedade com 800 membros, de uma Sociedade com 600 membros.

Acho que essa flexibilização é um pouco fruto da força de barganha adquirida por várias Sociedades que não querem mais ou que, a médio prazo, pretendem sair da absoluta égide da IPA ou querem criar algumas regras próprias e querem ter a IPA com outra função. Acho que a IPA tem uma flexibilidade política para admitir avanços e recuos e, ao mesmo tempo, para ocupar novas áreas. Todos esses avanços da psicanálise européia em relação à Europa central e à ex-Europa comunista, a atual Rússia, China e Japão são estratégias de ocupação de lugar e de obtenção de novas áreas de domínio e difusão da psicanálise. Nada errado, do meu ponto de vista. Mas quanto à flexibilização tenho minhas dúvidas — e aqui respondo ao Abel: acho, por exemplo, que eles não tiveram o menor interesse em divulgar a filosofia, porque a filosofia não era importante, o importante é saber o quanto se pode ceder, conservando o poder. No Brasil, vocês todos conhecem, existe um ditado que diz: “Vão-se os anéis, mas ficam os dedos”. A meu ver, a IPA jogo um pouco esse jogo, e a flexibilização pode também ser entendida por esse lado. Eu não faço parte do board e não sei se isso seria uma teoria.

Menezes: Mas você disse exatamente o que nós estávamos falando.

Stefano: Concordo com o que se estava dizendo. Somente acrescento uma coisa. Existe uma mudança histórica, segundo minha visão, nesse período. As grandes Sociedades agora têm mais influência, mas a influência de grandes personagens diminuiu. Me explico. No passado, as grandes Sociedades tinham menos poder, um poder concentrado nas mãos de poucos, havia um establishment de 20, 30 pessoas que na realidade governavam o mundo psicanalítico. Agora esse establishment é mais fragmentado, mais amplo, e as Sociedades têm mais poder. Eu não estou completamente certo de que a IPA está tanto assim mais flexível. Isto é, o debate é que é mais amplo. As Sociedades têm menos medo da IPA. Compreenderam que seu poder de influenciar a IPA é maior. Mas não é uma batalha já terminada, porque uma parte do establishment da IPA é ainda muito resistente e toda essa flexibilização não é oficialmente declarada.

Abel: Até onde eu sei, até o ultimo momento, existia um grupo pleiteando dois requisitos: a América Latina que tenha seu modelo, mas que o Norte tivesse o seu. Somente no final é que aceitaram os três modelos para todos. No início era: ‘Vocês querem mudar? Mudem vocês, nós ficamos como estamos!’ Daniel2 teve aí muito a ver para que surgisse um consenso e se aceitasse algo igual para todos. Havia uma forte pressão de um grupo que achava que a América Latina devia se virar como pudesse.

Stefano: E mais. Oficialmente, agora, se as Sociedades argentinas quiserem passar para três sessões, devem formalizar sua adesão ao modelo francês ou ao uruguaio, e não apenas anunciar: ‘nós temos o nosso modelo’. Não há nenhuma flexibilização oficial nesse sentido. Existem três modelos e deve-se aderir a um deles. Na realidade, me parece que neste momento político da IPA ninguém assume a responsabilidade de impor os três modelos, mas oficialmente é assim.

Menezes: Só que na prática a APA, há muitos anos, desde a época do Kernberg3, sete ou oito anos atrás, adotara já um sistema em que não havia mais a exigência de quatro sessões por semana, apenas a referência de que era necessário que fosse uma análise com alta freqüência de sessões, provavelmente um código para dizer de três a quatro.

Abel: Isso o que disse Stefano é importante, porque a IPA não pode impor. A APA fez porque é uma Sociedade grande, com 60 anos de existência. Fez o que tinha de ser feito e ‘um abraço’: fato consumado. O Uruguai também procedeu assim. A IPA como sabe que não pode impor, aceita, ou, como diz Stefano, oficialmente fecha os olhos.

Menezes: Tem a questão da verdade. Talvez por ser a IPA um sistema muito burocrático e artificial, onde não há muito lugar para a verdade verdadeira. Na época da burocracia soviética, se trabalhava o tempo todo com fábricas e outros empreendimentos que existiam somente no papel. O dirigente achava que aquilo que os relatórios anuais apresentavam eram realmente as grandes realizações do socialismo: só que tudo não passava de um embuste. Progredir na verdade é um progresso importante, não só a palavra flexibilização, mas a palavra mais séria ainda, como psicanalista, de olhar de frente a verdade, que é a ética analítica.

Abel: Talvez o mais importante seja o que dissemos durante a manhã: o tema foi colocado na mesa. No board discutiram o tema um ou dois anos. Não sei se houve grandes avanços ou não, mas instalou-se o tema. Essa é a conquista mais importante. Não sei se houve mudanças ou flexibilizações, mas obrigou-se a discutir a questão. Na máxima instância da IPA, tiveram que falar sobre esse tema. Não se podia fugir da realidade.

Menezes: Não sei se poderíamos aprofundar aqui, mas fica para um próximo artigo do Jornal de Psicanálise, para outro momento. O intrigante é refletir e aprofundar a questão da verdade. A lei que não corresponde mais à realidade, mas em que se faz de conta que a realidade é aquela. Isso acontece no âmbito da IPA e também dentro de uma Sociedade onde se criam núcleos de negação e tentativas de imposição.

Stefano: Queria assinalar algo, pois temos um campo bastante aberto e complexo. A IPA corre o risco de se tornar transferencialmente um objeto de oposição, que pode vir a ser utilizado inconscientemente também pelas Sociedades, para imaginar uma fantasia que envolve pais severos e opressores e um filho que luta pela própria liberdade. Este é o risco transferencial. A IPA, para mim, neste momento, é um pai um pouco em dificuldades, que pode ser ainda convencido se os filhos trouxerem razões convincentes. Entendo que é um momento em que o debate é absolutamente possível. E diante do desenvolvimento de produtos resultantes de pensamentos bastante profundos, complexos e respeitáveis, a comunidade internacional torna-se receptiva. É um momento bom para se conversar. A IPA como um elemento superegóico não tem mais um poder forte de castrar. É mais, atualmente, uma composição federal, que deve buscar um ponto de mediação e de encontro entre seus diversos componentes. E creio que se o establishment de poucas pessoas importantes perde importância, a IPA pode se tornar um parlamento ou seu equivalente, no qual as posições das diversas Sociedades podem adquirir força se são sustentadas por uma documentação e por um pensamento adequados. Então, é um momento histórico, bom para conversar.

Alice: Hoje de manhã o senhor trouxe uma idéia que achei interessante pela reversão que evoca, quando o senhor descreveu a questão do superego como algo protetor e não como algo que venha aprisionar o indivíduo, e que possa ser encarado como algo de patrimônio do saber. O senhor está retomando isso agora e penso que é importante ter em mente a idéia de lastro.

Abel: Essa pergunta que vocês colocam aqui, em relação aos diferentes elementos do tripé, em que a flexibilização tem de ser mais contundente, para mim não há nenhuma dúvida de que é com a análise didática. Se em algum lugar temos de pensar no respeito da singularidade do processo, é com a análise didática. Se for para escolher uma, essa é a mais importante. Se a IPA amanhã nos obriga a estudar dez artigos de Freud, não vamos discordar, não é muito importante. Já se IPA obrigar que a análise didática se faça de uma determinada maneira, isso será mais nocivo. Respondendo especificamente a essa pergunta, o mais contundente é a análise, é aqui que mais devemos respeitar a singularidade.

Menezes: Sem esquecer que um dos modelos não incorpora a análise didática.

Luiz Meyer: Queria pegar essa sua expressão “obriga”. Hoje de manhã, você estabeleceu uma oposição entre obrigação e opção. Nós acreditamos que há uma obrigação, de qualquer pessoa que pretenda ser analista, de se analisar. Ao tratar isso como obrigação, não damos à pessoa a opção dela mesmo descobrir a necessidade de se analisar. A questão da formação, de todas as formações, especialmente daquelas ligadas à IPA, é que o sujeito ligado à pratica analítica se vê carente de um instrumento e desesperado para se jogar no divã de um analista. Essa situação não é construída. Nós partimos de uma estrutura externa, que é oferecida àquele que diz que quer ser analista, e nós não trabalhamos com a necessidade da criação de uma estrutura interna que dê sentido para a análise.

Abel: Não pode acontecer por imposição.

Luiz Meyer: Mas tudo está organizado para ser uma exigência curricular e nem se pensa, ninguém diz: você quer ser analista? Freud dizia: Você quer fazer análise? Experimenta. Fica aí um mês, dois meses, e depois vamos conversar. Nenhum de nós tem coragem de dizer para uma pessoa que procura uma instituição para ser analista: ‘Vem aqui, freqüenta os cursos teóricos, traz um caso seu, etc.’, sem perguntar nada sobre o que ele faz, se quer fazer análise ou não. Nenhum de nós tem a coragem de correr o risco de deixá-lo sentir por dentro que é impossível fazer análise sem ser analisado. Isso tem que ser uma descoberta.

Menezes: Não sei se é verdadeira uma passagem que se atribui a Freud, mas a ouvi muitas vezes. Depois de uma palestra, alguém lhe perguntou: “Professor, com alguns pacientes meus estou aplicando o seu tratamento, a psicanálise. O senhor acha que eu preciso também fazer uma análise?”. Freud teria então respondido: “Continue trabalhando, quando o senhor sentir necessidade, procure uma análise para o senhor”.

JP: Em outro número do nosso Jornal de Psicanálise, reconhecemos que a formação do analista deve ser tratada simultaneamente, a partir de dois eixos principais: um que leve em conta as vicissitudes da transmissão e outro que considere o que é um psicanalista nos dias atuais.

No primeiro eixo — o da transmissão —, podemos destacar duas de suas facetas. Uma acentua a identidade e outra aponta para a diferenciação e construção: o analista deve resgatar a herança e fazê-la própria.

No segundo eixo — o que é um psicanalista nos dias de hoje —, destacamos a ampliação do limite da psicanálise, que agora se espraia sobre diferentes campos da cultura, e o surgimento de patologias claramente relacionadas a questões da contemporaneidade. O que os senhores pensam desse modo de ver a formação do analista? Como a análise do analista pode contribuir para a obtenção do tênue equilíbrio entre identificação e apropriação da herança, sem cair na repetição estéril ou na descaracterização do fazer analítico? E, considerando o segundo eixo da formação do analista — as questões postas pela contemporaneidade —, do ponto de vista dos senhores, que mudanças, que transformações o atual sistema de formação de seus institutos devem promover a fim de ter uma presença mais eficaz no mundo de hoje?

Luiz Meyer: Você estava lendo isso e me lembrei do encontro que tivemos aqui sobre Psicanálise na trama da cidade (Fepal), quando aquele analista mexicano afirmou existirem três cidades mais ou menos ‘invivíveis’: São Paulo, México e Cairo. Roma, talvez... São cidades onde o trânsito é absolutamente imprevisível. A contemporaneidade hoje é também a vida urbana. Ele começou a descrever a vida lá na cidade do México, onde acontecem cinco manifestações por dia, 150 manifestações por mês, e essas manifestações, como em Buenos Aires, reúnem os piqueteiros. Vocês imaginam na cidade do México ou na avenida Paulista: quando surgem os piqueteiros, a cidade pára. O analisando não consegue chegar à analise. O transporte público é muito precário. Um dos problemas da psicanálise contemporânea é o acesso aos analistas. Esse analista mexicano começou a falar das várias manobras que ele fazia para poder ter certa freqüência na análise. Uma delas: quando conseguia que o paciente chegasse ao consultório, dava duas sessões. Assim foi combinado. Não é muito diferente do que acontece aqui no Brasil, pioneiro da forma de análise condensada para as pessoas que vêm do interior.

Problemas da contemporaneidade, levantadas hoje por Abel, quando propôs a um paciente sessões de 40, 30, 20 dólares e dele ouviu: ‘Não quero, só quero uma vez’. A questão da contemporaneidade engloba, por um lado, o acesso à análise e, por outro, o significado da análise na mente do consumidor da análise. Isso é o que o analista tem de entender. O que é análise para a pessoa que vem nos procurar, qual é nosso consumidor — que mudou, não só mudaram as patologias —, quem é essa pessoa que vem nos procurar, e a quem nós dizemos venha quatro vezes e pague o equivalente a uma vez só e ele recusa?

Stefano: Quero dizer alguma coisa. Porque é verdade que a complicação, a transformação da contemporaneidade engloba muitas mudanças. No tempo de Freud, os nobres e os ricos burgueses, com suas carruagens e sem precisar trabalhar, tinham o dia todo para ir à sessão. No século 19, os miliardários americanos iam à Bergasse, 19, ficavam seis meses em Viena sem mais nada para fazer, e se levava menos tempo para atravessar toda a Viena do que se leva hoje para andar de um quarteirão a outro numa cidade contemporânea. Na Itália, mesmo nas cidades médias em tamanho, não só nas grandes, nós conciliamos isso, levando em conta a colocação urbana do analista e do paciente. Esta é a realidade. As pessoas se movem com dificuldade, porque devem trabalhar mais para obter a enésima quantidade de dinheiro e de tempo. São outras realidades que complicam a coisa.

Por exemplo: o superego foi diminuído e o ideal de ego narcisista tornou-se maior. Como conseqüência, a idéia de dependência tornou-se menos aceitável, as pessoas não gostam de depender, de se representarem dependentes de outra pessoa por longo tempo. A imagem narcisista de si é ferida e ofendida, porque todos hoje querem ser pessoas independentes. Porque isso tudo, num discurso que se sabe longo, as relações entre mães e filhos mudaram, a interdependência com os genitores mudou. São tantas as razões! Mas, na realidade, o que nós observamos é que houve um tempo em que os pacientes aceitavam ser dependentes e pediam; agora, os pacientes fazem corpo mole, resistem. Quando dizem que vêm uma ou duas vezes por semana é porque estão igualmente afirmando: ‘Eu não quero depender de você. Venho aprender algo que me seja útil, mas não quero depender de você’. Esta é uma das inúmeras complicações com que o analista hoje se defronta.

Abel: Concordo com Stefano. Assim como o tema da dependência está questionado culturalmente, a noção do tempo na cultura mudou. Mudou o tempo que levamos para ir de um lugar a outro, para tal ou qual coisa. Hoje em dia, em 12 horas podemos ir de Buenos Aires para Madrid; em duas horas, em média, podemos ir de Buenos Aires para São Paulo. A televisão é o principal meio de comunicação em relação aos meios escritos e à internet. Há um predomínio da imagem e uma noção de tempo que não tem nada a ver com ler Em busca do tempo perdido, a noção da intimidade é diferente. Lacan dizia que não se pode ser analista fora da cultura onde nos desenvolvemos e vivemos. A noção de ser analista está incluída na cultura em que vivemos. E se vivemos nesse tipo de cultura... Os pacientes dizem: ‘Eu não quero voltar para o passado, não quero nada que tenha a ver com o passado’. Há um imaginário no qual o que importa é o futuro e para o futuro; e há um imaginário em que a psicanálise busca causas no passado. Verdade ou não, há alguma coisa da cultura, refratária, que se opõe a algumas das pautas que a psicanálise propõe.

Respondendo à pergunta do Jornal de Psicanálise, parece-me que a formação de um psicanalista deveria poder transmitir-lhe a necessidade de ser consciente do mundo e da sociedade em que vive. Não podemos pensar tudo a partir do mundo interno. É claro que temos em conta, o tempo todo, o mundo interno. Mas não podemos pensar hoje o mundo interno como se pensava na Viena da Bergasse 19, como não podemos pensar o dispositivo analítico em 2008 como o de 1900. Essa noção de ter em conta permanentemente a realidade em que vivemos condiciona a formação de qualquer analista.

Em relação ao outro ponto, de como a análise do analista pode contribuir para obter esse tênue equilíbrio: quando comecei minha formação, a análise era muito mais assertiva e categórica em relação ao que se passava com o paciente, é tal ou é qual coisa. O analista interpretava sabendo de verdade o que estava na cabeça do paciente. Me parece que hoje, entre nós, em Buenos Aires, temos uma postura muito mais respeitosa de poder sustentar o dispositivo analítico, sustentar perguntas e incertezas e não tanto de dizer o que lhe acontece. O paciente pode encontrar sua verdade, seus desejos, sobretudo o paciente neurótico; uma análise com menos certezas, que leva o paciente a descobrir seus lapsos, que se veja surpreendido pelas próprias produções do inconsciente. Isso ajuda mais no sentido que vocês apresentam aqui, isto é, poder sustentar esse tênue equilíbrio, senão forçamos o paciente a identificações imaginárias: ‘O senhor é isso’.

Hoje falávamos do tema da perversão. Há vinte anos, por exemplo, em Buenos Aires, houve um simpósio sobre perversões. Quarenta anos atrás, existia um livro sobre psicanálise da mania e da psicopatia, clássico, de Arnaldo Raskovsky. Hoje são categorias que não se usam mais. Usa-se a negação da castração, que seria o mecanismo perverso, mas a categoria perversão é um tema que se trata de evitar, porque essa identificação do paciente num quadro fixo não ajuda nesse tênue equilíbrio entre identificação e essa singularidade. Quando postulamos esses tipos de caracterizações, cristalizamos, qualquer que seja o quadro. Quando comecei minha formação, a homossexualidade era parte das perversões. Se hoje alguém faz uma mesa-redonda sobre perversões... e fala de homossexualidade. Tivemos uma experiência em Buenos Aires. Um colega falou da homossexualidade como perversão: a comunidade homossexual denunciou nos jornais e nas rádios que ele era um psicanalista retrógrado. Isso é muito importante, ou seja, a mudança do imaginário a respeito da homossexualidade. Há trinta anos, quando comecei minha formação, a homossexualidade enquadrava-se claramente dentro das perversões e tinha que ser curada.

Menezes: Há muitas coisas que não se entende. Em Paris, nos anos 70, recebi a visita de colega de Porto Alegre, com formação bastante kleiniana na época, que me dizia que homossexualidade sempre era uma defesa contra a psicose, que era uma forma de psicose. Fiquei surpreso, pois nunca ouvira nada semelhante no meio psicanalítico em que vivia. Em 1920, o preconceito contra a homossexualidade, com certeza, não era menor que em 1970. O movimento psicanalítico existia, a IPA existia, estava começando. Nessa época, Freud descreve um caso de homossexualidade feminina, da mocinha que tivera uma crise homossexual. Ele conta que o pai, um industrial, pedira que ele a tratasse para que parasse com aquilo e voltasse a ser heterossexual. Freud faz um comentário irônico no artigo, dizendo que achava curioso as pessoas serem tão conformistas em relação aos preceitos e preconceitos sociais, pois nunca recebia pessoas que lhe pedissem para transformar uma filha heterossexual em homossexual. Ele fez esse comentário num artigo de 1920. E não dá para dizer que Freud não tenha nada a ver com a psicanálise.

Depois, tem a famosa carta para a mãe inglesa, que lhe consulta porque suspeita que o filho seja homossexual. Freud responde a ela que a psicanálise possivelmente não poderia fazer aquilo que ela queria: mudar a orientação sexual do filho. Mas podia ajudá-lo a se sentir um homem inteiro, realizado, feliz, dentro do que era a orientação sexual dele. Freud, em 1920, estava onde nós tentamos chegar hoje, e houve alguma coisa que o psicanalista médio absorveu, transformando o preconceito social em teoria, ao dizer que era psicótico ou necessariamente perverso, quando podemos imaginar que dentro de uma constelação homossexual haja estruturas de todos os tipos. Ora, para Freud há uma inclinação sexual de um homem por outro homem que, pela via da sublimação, sustenta o vínculo social, indispensável, pois daí vem a possibilidade de homens conversarem e conviverem, mantendo e desenvolvendo um grupo social. Tudo isso é Freud, é psicanálise. O que se passou depois que nós perdemos o pé? Houve um retrocesso, houve uma concessão tão grande aos preconceitos que certamente não vieram da clínica. Claro que há acting psicóticos alucinados sobre a forma de acting sexuais, inclusive com comportamentos homossexuais. Mas reduzir a isso... Também há a questão de se aceitar ou não homossexuais para a atividade analítica. Havia uma atitude na IPA em relação a isso.

Há uns quinze anos, aqui na Sociedade, promoveu-se uma reunião de entrevistadores sobre critérios de seleção. Havia senhoras da Sociedade, algumas católicas, outras judias, enfim, pessoas esclarecidas, e lembro de um certo mal-estar, um constrangimento, quando Luiz Meyer levantou a questão dos pretendentes homossexuais e contou que, em outra seleção, entrevistara um homossexual, que ele achava que devia ser aceito.

Luiz Meyer: Essa é uma questão interessante que Abel trouxe e que tem a ver com flexibilidade, com a mudança de critérios e com a confusão. Porque a psicanálise em princípio é voltada para o conhecimento da estrutura psíquica e de seu funcionamento, e é muito habitual que o psicanalista, em vez de se centrar nisso, ponha-se observar o comportamento do sujeito. O comportamento não tem uma relação unívoca com a estrutura mental. Eu posso ser heterossexual e cada relação minha pode ser uma relação inteiramente perversa. Posso ter uma relação sexual com minha mulher e estar pensando nas coisas mais extraordinárias no sentido perverso, agressivo, violento, de atacar o objeto, etc. Posso ter um comportamento externo descrito como homossexual — e, para usar um critério, ter uma estrutura psíquica, se fosse freudiano; genital, se fosse kleiniano — da posição depressiva. É curioso como há uma dificuldade de sustentar (voltando à questão da IPA e da regulação externa) a visão de que o nosso campo é o mundo interno e sua forma de relação com o mundo externo.

A propósito da homossexualidade, numa passagem do congresso de Barcelona, um psicanalista de peso, bastante experiente, contou que era homossexual e que escrevera artigos contando a tortura que tinha sido sua análise, na qual tivera que esconder o tempo inteiro sua tendência homossexual, que não entendia direito. Ele era casado, tinha filhos, etc. — e, curiosamente, tornou-se analista didata. (Risos.)

Houve uma comoção na IPA e a Sociedade americana mudou um pouco o regulamento, já que o problema, evidentemente, é não admitir no meio analítico um analista perverso, que pode ser heterossexual. Agora, por ser homossexual não quer dizer que o analista seja perverso. Esse tipo de debate, ainda contemporâneo, é interessante. Cerca de três ou quatro anos atrás, acho, saiu um artigo no Jornal de Psicanálise de um analista francês, em que este fazia um ataque bastante violento a um analista americano que dizia ser a estrutura homossexual uma estrutura patológica. Essa pergunta colocada aqui sobre a contemporaneidade da psicanálise é bastante vasta, porque abrange desde a estratégia de escolher pacientes que morem mais perto de nossa casa até a necessidade de, ao longo da nossa formação, ir mudando conceitos e tentando cada vez mais ver qual é a relação e qual a dissociação que existe entre a forma de funcionar da estrutura psíquica e a nossa maneira de classificar o paciente.

Stefano: Quero dizer algo sobre identificação e herança, que estão na pergunta. A identificação tem sido descrita por muitos autores como um fenômeno que pode se dar em diferentes níveis. Acho particularmente interessante a teorização sobre identificação de Leon Grinberg. Ao defender toda uma teoria, inclusive kleiniana, ele faz uma grande diferença entre a identificação introjetiva e a identificação projetiva, estabelecendo uma diferença entre identificação total e identificação parcial.

As identificações introjetivas são aquelas que fazem crescer. São equivalentes psíquicas ao que nós, comendo algo, conseguimos fazer chegar o conteúdo nutritivo, não somente à boca, mas ao interior do corpo, e conseguimos também digerir essa coisa, no sentido de que a coisa introjetada torna-se um componente natural de si, porque vem decomposta e digerida. Se nós temos uma coisa só na boca e não a comemos, ela não se torna parte de nós. Se nós a tomamos no estômago, mas no estômago ela permanece não digerida, ocupa o estômago, sem se tornar parte de nós. Há uma equivalência entre esse processo somático e os processos psíquicos, de tomar dentro de nós alguém ou alguma coisa.

Por exemplo, uma herança, ou um objeto analista ou objeto pai ou mãe, numa relação. Na nossa situação de training, pode acontecer que o candidato tenha na boca o analista ou a relação analítica ou o modelo analítico, ou que o tome no estômago, mas que não consiga chegar a decompô-lo, a digeri-lo. Essas são as situações em que o candidato imita o analista, imita o supervisor, se veste como o analista, e não há uma verdadeira herança. Quando, ao contrário, conseguimos criar uma situação na qual o candidato — assim como um filho, pois não há diferença entre uma fisiologia institucional e uma fisiologia familiar — consegue viver momentos de boa intimidade criativa, que podem ser introjetadas, então esse elemento nutritivo vem metabolizado e pode vir a fazer parte da pessoa, sem substituir aquela determinada pessoa. Nas nossas instituições psicanalíticas e nas nossas análises didáticas, e também nas análises em geral e com nossos filhos, se conseguimos criar situações favoráveis a essa introjeção, a essa digestão, a herança, que foi um investimento externo, se torna um componente celular de nosso self, que podemos utilizar como pessoas diferentes.

Penso que nos institutos de training ou nas Sociedades, ou o analista, ou o pai ou a mãe, devem se propor esta questão: se podem estar nessa situação em todos esses equivalentes institucionais ou familiares, em que permanecem como algo externo, na boca, no estômago, não digerido. Se a coisa segue em seu ciclo natural e completo, então é possível que os novos analistas tenham a nutrição de outros analistas e que expressem gratidão à instituição que permitiu esse crescimento, sem que se sintam necessariamente obrigados a se vestir como o pai ou, no outro extremo, jogar fora as roupas do pai. Depende. Dependerá de tantas coisas! Como analistas de instituições, nós podemos colocar a questão se favorecemos ou não a introjeção.

Em relação à questão da homossexualidade, é muito interessante o que vocês observaram, porque, é verdade, mudou tudo. O risco é de que a mudança seja toda de um lado ou todo de outro, num modo não analítico. A mim aconteceu recentemente de fazer a seleção de duas pessoas que queriam ser candidatos, dois homossexuais. Um deles me pareceu uma pessoa sob estado de reação maníaca, de fuga de alguma coisa, não sei bem. Sentia que era alguém fortemente perturbado. Havia algo não condizente. Não me senti em condições de dizer sim. Sentia que naquele momento ele não podia ser proposto como candidato.

O segundo já se apresentara uma outra vez e havia sido eliminado (constava em seu certificado) por ser homossexual. Por duas horas, estive em colóquio com ele e senti que era alguém verdadeiramente interessado em compreender o funcionamento do processo. Me pareceu uma pessoa reflexiva, criativa e, no limite, apresentava um reconhecimento autêntico em relação à pessoa com quem vinha trabalhando e tinha uma capacidade de contato interno e interpessoal incomum. Contou a história de sua vida. Minha impressão, ao final, era que não se tratava de um daqueles casos em que a fixação de objeto específica não era o resultado de um ataque a qualquer coisa, de uma confusão entre si e o outro, de uma busca especulativa de um outro igual a si. Não era uma fantasia interna de penetrar o pai ou de ser penetrado pelo pai, ou de perpetrar atos sádicos em uma criança, era algo primário. Como um imprinting a um objeto sexual, de tipo homossexual, que fosse pré, primo, algo de muito arcaico que não tinha impedido, naquele caso, a alteridade, a relação respeitosa e a cura em relação ao objeto. Meu parecer foi favorável e hoje ele é um candidato da Sociedade. Ambos os candidatos, no entanto, eram homossexuais. As razões que apresentei aos meus colegas foram, de fato, muito mais analíticas.

Luiz Meyer: Sim, são razões psicanalíticas. Menezes lembrou essa passagem de quinze anos atrás, quando eu disse que aquela pessoa podia ser candidato, exatamente por causa disso. Era um médico, instalado, 38 anos, fazia análise e tinha um companheiro com quem há dez anos mantinha uma relação estável. E era um homem com um contato rico. Por que ele não podia ser aceito? A descrição de Bolognini, de todos os traços homossexuais eventuais perversos e da existência de um núcleo homossexual numa pessoa que tem uma capacidade introjetiva, é muito bonita. E por razões psicanalíticas, que são as que devemos ter.

Menezes: Aqui no Brasil criou-se uma coisa que é muito polêmica: uma cota para negros nas universidades. Determinado número de pessoas que devem entrar têm que ser negros. Mesmo com notas menores. Muitas pessoas acham que isso é um projeto racista. É politicamente correto, tem que se aceitar, mas é um absurdo. Assim como orientação sexual não importa, importa, sim, a capacidade de escuta do analista, a capacidade de contato.

(Luiz Meyer despede-se para sair.)

JP: Em que aspectos as discussões da jornada de hoje serviram para ampliar a visão interna de seus institutos? Há contribuições que os senhores levam de volta aos seus lugares de origem? Quais as conclusões?

Abel: Além do prazer, da hospitalidade e de me sentir muito acolhido, foi muito útil sair de Buenos Aires e tomar contato com problemas de outras partes e de outras realidades. Ouvir fora de nosso lugar, de nossa cultura, é muito importante para mim, muito ilustrativo, porque vivemos num pequeno gueto e temos um funcionamento muito fechado. Interessou-me especialmente ver que vocês têm problemas similares aos que temos na APA. Estamos próximos, embora não tenhamos exatamente os mesmos pontos de vista — alguns sim, outros não —, mas o tipo de discussão que vocês praticam é muito parecido com o que praticamos na APA. Com a diferença, talvez, de que vocês desenvolvem um pensamento mais inglês ou kleiniano, o que não acontece em nossa Sociedade, e nesse sentido me parece interessante a diferença.

Disse ao Menezes que me pareceu bastante importante a discussão que tivemos hoje à tarde, na medida em que se pode dizer as coisas com franqueza, sem medo do outro. Mesmo não estando de acordo, podemos falar bastante comodamente. Tenho a sensação que a diferença nos custa mais: ou se é mais agressivo ou as diferenças são dissimuladas. Ouvi aqui divergências expostas com um bom nível. Chamou-me a atenção. A reunião foi muito franca.

Menezes: Foi muito franca hoje à tarde.

Alice: E com as tensões próprias da intimidade de uma família. De manhã, foi uma conversa franca; mas, à tarde, sustentaram-se as tensões. Houve um confronto de posições. Não acha, Abel? Menezes?

Abel: Sim, sim. Em vocês vejo que o peso da regulamentação está mais interiorizado, não sei se a favor ou contra. Em Buenos Aires, em nossa Sociedade, me parece que o tema da regulamentação não está tão interiorizado em relação à transgressão ou perversão.

Menezes: Não resolveram um pouco isso, depois da conversa com Kernberg?

Abel: Não, isso vem de antes. Acho que vem do ano 1974.

Menezes: Quer dizer que as pessoas vinham trabalhando sem muito patrulhamento? Por isso, eu lembrava da evolução da IPA. Hoje, por exemplo, alguns se colocavam a favor de mais patrulhamento em nossa Sociedade, cujo ápice se deu quando da proposta de se acabar com a conversa de corredor, e de se saber finalmente quem é que não estava fazendo quatro sessões. Uma colega, candidata, foi muito enérgica ao dizer que não, que deviam ser mantidas as conversas de corredor, que ali que se passavam coisas criativas, produtivas e necessárias.

Alice: Essa colega foi presidente da Associação dos Candidatos por um tempo, é uma pessoa que tem a vivência de transitar na instituição, a partir desse lugar.

Menezes: É, achei que foi muito oportuno. Uma colega falava que temos que acabar com a conversa de corredor porque há muita “perversão”, porque há analistas que não seguem as quatro vezes por semana, etc., que é o se fala nos corredores. Havia um tempero inquisitorial, muito asséptico nessa proposta. Dora, ao valorizar as conversas de corredor, marcou a importância de se ter lugares privativos no convívio societário, pois, ao se querer impor uma transparência excessiva, de cunho totalitário, esta será esterilizante para a criatividade grupal.

Stefano: No controle...

Menezes: Sim, no controle...

Abel: A outra colega também frisou que seria importante falar em voz alta o que se fala nos corredores. Os corredores, por isso, não devem ser suprimidos. Há coisas que sempre vão aí surgir e que, tomadas como emergentes, poderão ser processadas.

Stefano: Corredor como equivalente do pré-consciente — topicamente.

Beatriz: Vem ao encontro daquilo que Abel defendia hoje de manhã, a respeito da questão da crença na regulamentação.

Stefano: Gostaria de retomar um ponto geral. A IPA teve, recentemente, dois presidentes muito particulares, tanto Daniel Widlöcher quanto Cláudio Eizrick4 foram figuras bastante atípicas. Isto é, não faziam parte do establishment, segundo meu posto de vista. O establishment mantinha uma tradição em que o poder era, sobretudo, anglo-americano, ao lado de um contrapoder francês. Com algumas alternâncias, o jogo se fazia de fato entre Londres e Paris, que era onde estava o poder. Enquanto francês, Widlöcher foi um presidente (e posso dizer porque estava no board nessa época) muito democrático, no sentido de abertura a todas as Sociedades; e Eizirik um exemplo de uma figura vinda de um mundo que, não fazendo parte do establishment, trouxe uma internacionalização à IPA verdadeiramente nova. Esses dois presidentes contribuíram particularmente para mudar a situação. Isso facilitou para as Sociedades um início de consciência da própria possibilidade de atuar sobre a comunidade internacional; atualmente, as Sociedades sabem que com argumentos bem pensados elas podem influenciar a IPA.

Quanto à jornada de hoje, fiquei muito feliz de estar aqui e sentir uma Sociedade viva, capaz de trocas muito francas, e igualmente testemunhar contribuições ativas e fortes em seu convencimento. Volto para a Itália com uma sensação de movimento no campo, com alguns elementos específicos que quero ter em mente. Entre outros, uma coisa que Abel disse esta manhã, a propósito do exemplo de progresso parcial, quando contou aquele detalhe metodológico da programação científica, que passa de uma fórmula total da diretoria científica a uma fórmula parcial, articulada.

Alice: Solução de compromisso?

Stefano: Solução de compromisso, que permite modular a coisa. Tenho-o em mente porque é um exemplo de dispositivo institucional melhorado. Pode ser replicado em outros segmentos da vida institucional, já que não diz respeito a questões de tipo geral, mas a uma metodologia técnica, uma técnica institucional, que pode progredir e melhorar seus argumentos específicos. Não havia me ocorrido, mas me faz pensar que existe no campo institucional uma possibilidade de melhorar nossos dispositivos e o intercâmbio com outras Sociedades com soluções adotadas por uma Sociedade em particular. Nisso, estamos de acordo com o que dizia Abel, que é verdadeiramente importante essa troca internacional, porque as mentes se abrem.

Abel: Stefano falava a respeito do programa do Capsa5, o comitê em que estamos juntos, e que substitui as anteriormente conferencias inter-regionais. A IPA promovia uma conferência inter-regional em Buenos Aires e o comitê convidava alguns membros e fazia a conferência.

O Capsa, não faz convite aos membros. As Sociedades é que dizem: queremos convidar tal ou qual membro. A IPA somente estipula que o convidado deve ser de outra região. Nós não intervimos, dizendo quem vamos convidar. A Sociedade decide. Dentro daquela mesma linha de evitar favorecimentos: se isso quem decide é o poder político, vou fazer com que meu amigo vá. Terminava sempre sendo assim — mesmo que não fosse, as pessoas acabavam suspeitando de que tinha sido. Se Portugal, por exemplo, ora convidar Menezes, a IPA não vai ter nada a ver. Em nosso caso, Stefano e eu estamos na representação de nossas regiões no Capsa, amanhã serão outros.

Para dar outro exemplo, no congresso do Rio, em 2005, onde fui co-chair do PC6, coube-nos organizar aproximadamente 40% das atividades: 60% foram propostas pelos membros. Em Chicago, em 2009, no comitê que presido, selecionaremos 90% das atividades a partir das quase 600 propostas dos membros. Somente haverá convites se essas propostas não preencherem um bom programa para se fazer o congresso. Nosso objetivo é o de buscar dispositivos que liberem a atividade científica daquela baixa política que, sobrepondo-se ao interesse geral, visa apenas ambições pessoais ou de pequenos grupos.

No caso do Capsa, temos o envolvimento e a participação dos membros da Sociedade e não de um pequeno grupo na decisão de quem vai, quem viaja, quem fala. Esse é o caráter que queremos imprimir em nosso movimento.

Menezes: Que não estimula a burocracia ou profissionalismo político, a influência das amizades.

Abel: Pode ser amigo, mas não vai ser convidado. (Risos.) No último boletim do congresso da IPA, ao lado de uma foto de Chicago, entre outras informações, a de número dois diz: “Não aguarde convite”, porque muitos colegas importantes achavam que seriam convidados. Horacio Etchegoyen ia mandar uma proposta para fazer um painel, mas não foi convidado, nem ele nem ninguém. Mas serão bem-vindos. Temos que nos acostumar a olhar cada detalhe.

Menezes: No Rio, as comunicações aos presidentes foram feitas em inglês. Em Berlim, tínhamos pedido a Eizirik que providenciasse tradução simultânea, quando houvesse reunião de presidentes. Eizirik fez isso e não somente convidou os presidentes, mas também os diretores da IPA e os antigos presidentes. Tudo com tradução simultânea: alemão, espanhol e francês. Terminada a reunião, a pequena plenária se dividiu em dez grupos. No Rio, não existia nada disso. Naqueles dez grupos de presidentes e membros do Instituto, constituídos previamente, grupos com línguas diferentes, combinamos que eu ficaria no grupo que falava francês, minha colega do Instituto no grupo espanhol e Leo7 no grupo inglês. Na plenária, depois, todos apresentaram seus relatórios, cada um falando em sua própria língua ou numa próxima, e sempre com tradução simultânea. Uma mudança radical, os presidentes realmente conversaram. São pequenas coisas, mas que permitem mudanças importantes. “Apenas um passo para o homem é um grande passo para a humanidade”, como disse Armstrong.

Alice: Ainda não ouvimos as conclusões de Menezes sobre a jornada e este encontro.

Menezes: Eu estava, ontem, na expectativa do que ia acontecer na jornada de hoje. Em Atibaia, criou-se a expectativa equivocada de que as coisas iam mudar rapidamente. Como ficou claro que precisamos de mais tempo para amadurecer nossas idéias e opções, e de que esta jornada não seria senão uma ocasião a mais para isso, eu sabia que haveria uma diminuição do interesse, tanto dos que desejam que algo se modifique como dos que não querem que isso ocorra. O clima em Atibaia foi muito bom. Mas eu já previa que teríamos aqui não muitos participantes; realmente, foram menos que lá, mas fiquei extremamente satisfeito com a qualidade das discussões de hoje. Acho que estamos avançando. A participação dos dois colegas de outras Sociedades, Abel e Stefano, foi valiosa pelas reflexões e idéias que trouxeram, incisivas, interessantes. As pessoas deram o melhor de si. Tivemos menos gente, mas conseguimos um resultado excelente. Estou muito satisfeito.

Não sei o que vocês, visitantes, levam, mas para nós o que vocês deixam é muito importante. Minha preocupação como presidente sempre foi a de que a Sociedade de São Paulo começasse a ter um pensamento psicanalítico sobre essa questão, e isso está acontecendo. Agora, o Jornal de Psicanálise vai difundir. Quando começamos a trabalhar nesse assunto, ainda na primeira gestão, uma colega com muita experiência da Sociedade disse que isso seria impossível, e que poderia até levar a Sociedade a uma cisão. Pouco a pouco, fomos conduzindo para abrir a discussão num clima de tranqüilidade, sem pressa. Num primeiro momento, eu temia que pudesse haver reações explosivas: não foi o que aconteceu. Há, seguramente, muita resistência em discutir esse assunto em nossa instituição, mas esta se fez mais presente na forma da recusa a pensar e a dialogar, na tendência em ignorar que a discussão possa acontecer e de que esteja acontecendo. Mas já registramos isso em Atibaia e, hoje, principalmente à tarde, quando tivemos uma discussão muita franca, muito viva, como já comentamos.

Alice: Mas só a sua presença...

Menezes: São Paulo merece ter um debate como teve hoje de manhã. Claro que hoje muito ajudado pelo Abel Fainstein da APA e por Stefano Bolognini da Sociedade Italiana. Agradeço muito a vocês, estou contente, foi um passo a mais num processo que, a longo prazo, envolve toda a nossa Sociedade. Tenho esperanças que o Congresso de Atibaia e a nossa jornada de hoje deixem marcas a partir das quais possamos ir avançando.

Alice: Queria voltar a duas situações que nos chamaram a atenção hoje de manhã. Abel, em sua apresentação, acabou pulando uma coisinha, não sei se acidentalmente ou não, mas quem acompanhava no texto impresso percebeu. Abel observou que, para Lacan, o fato de uma análise ter sido feita por um didata não garantiria ter sido aquela análise uma boa análise, só se saberia a posteriori. Continuou dizendo que nós aspiramos que facilite, considerando se tratar de analistas mais experimentados, e que aquilo apontava para a proposta institucional de formação contínua. Qual seria tal proposta, que você iria fazer, mas deixou passar?

Abel: Bem lembrado. Um grupo da APA está trabalhando num projeto de formação continuada. A formação não termina quando se termina o Instituto; quer dizer, a formação dura todo o tempo e, nisso, a instituição psicanalítica tem uma função muito importante, porque consegue, através de mecanismos de desidentificação, corrigir alguns desvios. Por exemplo, os candidatos podem participar de qualquer reunião científica, mas não participam muito. Em geral, vão aos seminários e às reuniões de candidatos. Uma vez que o candidato termina sua formação e passa a participar da vida institucional, das reuniões científicas e congressos, ele começa então a produzir os frutos do que recebeu na formação. O intercâmbio com os colegas permite essas desidealizações, das quais Stefano falava hoje de manhã. A aposta é ver se a psicanálise foi didática a posteriori, quando o colega está dentro da instituição, participando da vida institucional e vai “completar” sua formação, favorecendo as desidentificações e restos transferenciais que ficaram rondando. Às vezes, o analista não pode elaborar sozinho; em outras, é necessário que volte para a análise.

Conheço analistas que terminaram sua formação e participam da vida institucional, em reanálise. Por exemplo, uma colega já graduada, ficou impactada com uma situação apresentada num seminário, que tocava sua vida pessoal. Voltou para a análise através de uma situação ali gerada ao sentir-se sensibilizada por um tema que, em sua análise, não havia pensado sob aquele ângulo. Esse movimento é permanente. Se ficamos fechados com nosso supervisor e com nosso analista, sempre comemos do mesmo prato. Não se abre a cabeça. Se venho aqui e escuto outras pessoas, posso perceber coisas que nunca tinha pensado de tal forma. Se no dia de amanhã, fico angustiado, pensando no que as outras pessoas falaram, ou me percebo aflito, tenho que buscar um analista que me ajude a dar conta. Isso também acontece com a política institucional. Quem trabalha na política institucional percebe a quantidade de coisas pessoais que são mobilizadas pelo grupo, ansiedades e angústias em todas as pessoas. Isso é o que entendo por formação continuada: não termina no dia em que terminamos o Instituto. Que a instituição, por isso, sirva a esse processo de formação contínua — veremos, daí, se a análise foi didática e como o analista trabalha e interage como analista, como pensa a instituição.

Alice: Sim, aqui temos um plano de formação continuada, um pouco diferente.

Abel: Basicamente, é reanálise do analista, seminário de pós-graduação e supervisões de pós-graduação. Na APA, temos promoções. Para ser membro efetivo, há que se ter de três a cinco anos de membro associado, bem como créditos em atividades de pós-graduação, seminários, supervisões, supervisões institucionais, reanálises, artigos, livros. Enfim, todas essas atividades inerentes à instituição. A passagem de membro efetivo dá-se ao completar três anos e 100 pontos. E os pontos são variados: um livro corresponde a 25 pontos; um artigo em revista, 30; uma supervisão, 20; um seminário de pós-graduação, 10. Ao completar 100 pontos e três anos, a pessoa automaticamente passa a membro efetivo. Há casos de pessoas que nunca completam, mas isso não depende do poder político. Ninguém avalia. Cumprir tais requisitos é o que importa para que a promoção se concretize.

Stefano: É um dispositivo institucional sobre a pessoa.

Abel: Somente uma coisa mudou de dois anos para cá. Agora, é obrigatória a apresentação de um trabalho perante todos os membros — trabalho esse que pode ser rejeitado. Há um comitê de leitura dos trabalhos, cuja composição é aberta a quem quiser se candidatar. Os mais votados por toda a instituição são escolhidos. Esse comitê tem o poder de rejeitar ou não o trabalho. Caso o comitê decida pela negativa, o trabalho não recebe os 25 pontos nem pode ser apresentado naquela obrigatória reunião pública na Sociedade — apesar, naturalmente, de sua publicação ficar liberada.

Stefano: Como é seu mecanismo de formação continuada?

Alice: A formação continuada é diferente aqui e...

Menezes: Aqui, a formação continuada não está relacionada à passagem para membro efetivo.

Alice: A formação continuada, aqui, é recente: começou por volta de quatro anos atrás. Muitos candidatos terminavam a parte teórica dos seminários, mas não apresentavam os dois relatórios de supervisão. Pensou-se que se esses candidatos, mantendo uma ligação com o Instituto, por meio da freqüência aos seminários, teriam mais possibilidades de apresentar os relatórios finais, para então passarem a membro associado. Hoje, para continuar pertencendo aos quadros institucionais, o candidato não pode ficar afastado da instituição por mais de três semestres, depois da conclusão dos seminários. É uma coisa do Instituto. Isso suscita alguma polêmica, certa dificuldade, porque as pessoas que chegam à nossa instituição são pessoas experientes, não-iniciantes. Algumas vezes, isso acaba promovendo uma situação regredida para os candidatos, especificamente, pois existem muitos membros associados que se tornam membros e permanecem liberados, sem participar da vida institucional. Por que só os candidatos devem se dobrar à formação continuada? Muitos didatas também agem assim. E aqui entra a célebre discussão sobre a distinção da função didata e da análise didática, já que muitos didatas igualmente ficam afastados, sem se integrar à vida institucional. De alguma forma, existe isso, e é uma situação desconfortável.

Menezes: Isso foi muito discutido em Atibaia. Surgiu lá a idéia de que os analistas qualificados para a função didática pudessem solicitar, a cada cinco anos, enquanto desejarem colaborar nessa participação, a renovação da mesma. Que esta não fosse definitiva e não tivesse um caráter de título nobiliárquico ou de ponto de chegada de uma carreira: que fosse apenas uma disposição de colaborar, por algum tempo, no exercício dessa função.

Stefano: Na Itália é por cinco anos. Depois de sete anos, se examina o que o analista didata produziu em termos de ensino e de produção científica, análise e supervisão. Recentemente, pela primeira vez aconteceu de analistas de training perderem essa função porque não haviam produzido nada. Termina, assim, uma época na qual o título de didata era um título de nobreza.

Menezes: É encorajante saber que vocês na Itália chegaram a um encaminhamento semelhante ao que surgiu em nosso congresso interno, pois não sabíamos que vocês tinham adotado essa solução. Após sete anos, então, é examinado? Qual é a categoria de membro que pode ter a função didática?

Stefano: Há os que exercem a função de examinar os didatas, isto é, avaliar após sete anos quem pode continuar a exercer funções didáticas. É um comitê de didatas.

Menezes: Aqueles que ficam sete anos são didatas. Se durante sete anos não fez nada, perde a função didata?

Stefano: Sim, perdem a função didática e tornam-se membros efetivos. São todos membros efetivos, com função didática ou sem. Não existe mais o titulo definitivo de didata.

Menezes: Qualquer membro efetivo pode postular o exercício da função didática? Uma vez membro efetivo, é preciso cumprir um determinado número de anos?

Stefano: Na nossa Sociedade, o membro efetivo que desejar exercitar a função didática entra com um pedido oficial para isso. Deve, então, apresentar trabalhos e demonstrar ter participação ativa na vida societária, científica, etc. Uma comissão da Sociedade vai examinar e avaliar a idoneidade daquela pessoa para o exercício da função didática.

Menezes: Há um numero mínimo de anos?

Stefano: Um mínimo de três anos, depois de se tornar membro efetivo.

Abel: Na APA, é automático, se sou membro efetivo, posso pleitear a função didática. Tenho que ir ao Instituto e requerer a função didática, declarando e assinando que tenho compromissos a cumprir no Instituto. Não é preciso mais nada, a não ser a formalização daquele compromisso.

Menezes: Nossa tendência, pelo que ouvi em Atibaia, seria fazer mais como na Itália. Depois de se passar a membro efetivo, dá-se um tempo e, só então, solicita-se a função didática.

Alice: Foi uma das idéias mais aceitas em Atibaia, sim.

Menezes: Foi também sugerido que, depois de cinco anos como membro efetivo, o analista passasse a didata. Não me pareceu uma boa idéia, já que o permite passar cinco anos sem necessitar de nenhuma participação científica ou pedagógica. Temos uma comissão de qualificação de didatas que poderia, num sistema assim, passar a ser uma comissão para o exame de pedidos para o exercício da função didática. Mantendo o nosso sistema de avaliação, que é bom, o postulante apresentaria tudo o que fez, mostraria a sua clínica, depois de algum tempo como membro efetivo, e receberia a função didática por cinco ou sete anos. Ao final desse tempo, ele mostraria à comissão o que fizera naquele período em sua função didática. Com base naquilo, a comissão decidiria se o manteria na função didática ou se a deixaria para outro colega mais disponível.

Abel: A questão forte é que não queremos valorizar tanto a trajetória acadêmica, porque há analistas que dão aulas muito boas, bons seminários, e...

Menezes: Mas se avalia muito a clínica aqui na passagem a didata. Alguém que é membro efetivo e quer ser didata apresenta todos os seus trabalhos, seu currículo e um memorial. A comissão de qualificação faz uma lista de dez nomes de didatas, entre os quais o postulante escolhe quatro, constituindo com eles um grupo para a discussão de seu material clínico. A comissão, no final, se reúne com os quatro integrantes da subcomissão e os ouve, conversa com eles sobre seu trabalho com o postulante. É um sistema baseado na interlocução. O postulante escolhe os colegas que, acredita, saberão entender seu modo de pensar e com os quais poderá dialogar mais à vontade. É como um ato de generosidade ou de interesse da instituição, em que os trabalhos são estudados cuidadosamente.

Abel: Quem escolhe os dez nomes dentro da instituição?

Menezes: Os quatro membros da comissão de qualificação para analista didata são eleitos pela comissão de ensino (antigamente, dois eram nomeados pela comissão de ensino e dois pela diretoria). Essa comissão, que tem um mandato de dois anos, é que escolhe os nomes. Para cada postulante, é formada uma subcomissão que, terminado aquele processo de qualificação, se dissolve.

Abel: É personalizada...

Alice: Temos aqui um candidato à IPA: dr. Bolognini. Pensei em articular sua candidatura à presidência da IPA, quando de sua fala, hoje de manhã, sobre o desafio que se coloca para IPA: respeitar as diferenças, as especificidades locais e, ao mesmo tempo, conseguir transitar entre essa identidade científica que o senhor apontou, assegurando a constância da qualidade do saber, que é a nossa identidade como psicanalistas.

Stefano: No momento, devo honestamente reconhecer que minha possibilidade é imaginar e individuar o problema em dois pólos, no interior dos quais se desenvolvem os possíveis desafios. A respeito das especificidades — o reconhecimento das diferenças —, o objetivo é manter um nível alto e uma caracterização que seja comum aos psicanalistas das diferentes Sociedades. Isto é, ao lado da diferença, incorporar a semelhança. E, se possível, no caso da diferença, também as suas similaridades, que permitirão manter um sentimento de identidade comum, mesmo que sejamos diferentes na especificidade.

O exemplo dos dois tipos de elefantes e sua diferença do hipopótamo serve para descrever esse campo em que nos movemos8. Aquilo que podemos realisticamente projetar, é analisar juntos a transferência de ideais excessivos e vínculos de amor em relação às coisas que temos por preciosas e que não queremos eliminar; decidir juntos o que é útil e conveniente e, ao contrário, o que é fruto de uma transferência neurótica de objetos da família analítica, que foram idealizadas, e compreender o que é útil, o que é autêntico e o que é um fetiche do ponto de vista institucional, analítico. Esse trabalho é feito em conjunto, a partir daquela troca da qual falávamos. Uma posição muito privada impossibilita o senso de realidade. Se não há uma dimensão compartilhada, o senso de realidade se perde, estou certo disso. Imagino que no futuro a IPA — esta é a minha fantasia familiar — saberá manter uma boa relação com os pais e mães, uma relação que deverá ser afetiva e não idealizada.

Então, não devemos eliminar as coisas para esquecer o passado, mas tampouco devemos ficar capturados numa relação semelhante à idolatria. Há uma comparação que dá uma idéia disso. Se a comunidade analítica pode pensar em Freud como sendo um avô, os analistas de hoje podem se imaginar no papel de pais que, com os anos, tornar-se-ão-se também avós. Quando pensamos que podem ser gerações que assim vão se suceder — podemos aí igualmente pensar em eventuais mudanças, se são úteis, se são realísticas, sem nenhum sentimento de sacrilégio. Que possamos conservar o que achamos útil e conveniente, sem nos sentirmos prisioneiro de algo bom. Está em nós sabermos nos colocar no ciclo das gerações com uma função adulta

Abel: É de se esperar que nossa identidade não esteja sustentada em identificações imaginárias, de idolatria, mas que tenhamos nossa identidade em nossa estrutura de insight, única, que nos permite trabalhar com o inconsciente. Essa é a única identidade que deveríamos insistir, e não se encontra escrita em lugar nenhum. É um trabalho permanente, em que temos de estar sentados, pensando o tempo todo, porque senão o mais fácil seria: todos de branco. A identificação imaginaria é a mais fácil. Todos têm de estudar Freud. Sim, há que se estudar Freud, mas isso não é suficiente. Pode se estudar Freud durante dez anos, guardar Freud na memória, e não ter a possibilidade de entender o que é o inconsciente. Se percebermos uma identidade da comunidade psicanalítica, então somos psicanalistas, todos os que temos uma permeabilidade ao nosso próprio inconsciente e ao inconsciente dos pacientes. Essa é a nossa identificação com a função analítica, a simbólica. A outra seria: ‘todos vestimos cor clara’; “todos somos freudianos, lacanianos, ferenczianos’; ‘todos escrevemos um trabalho’. Me parece que essa identidade é a que nós temos que fazer cair. Há somente uma que deveríamos o tempo todo buscar uma forma de sustentar, que é a identificação simbólica.

Menezes: Che Guevara dizia que não se deveria nunca perder a ternura. Talvez o psicanalista nunca possa perder o humor em relação a si mesmo e aos seus mestres. Uma epígrafe de Nietzsche, na Gaia ciência, alegre saber, diz: “Eu sempre habitei minha própria casa, nunca imitei ninguém. Eu sempre zombei de qualquer mestre que nunca zombou de si mesmo”. Tomando um recuo, não em cada um individualmente, mas da visão do conjunto, do momento analítico ao longo das décadas, tenho a impressão de que a obra de Freud vai permanecer como uma obra de interlocução, de tensionamento — que será sempre útil para alcançar isso, desde qualquer posição.

Por exemplo, Widlöcher me dizia, há algum tempo, que conversava muito com os lacanianos, mas que só dava para trabalhar com os lacanianos que estão sempre dialogando com a obra de Freud, porque os lacanianos que não fazem isso vão ficando sem interesse, estéreis em seu pensamento. A discussão não é produtiva, porque você tem que entrar no sistema de Lacan, fica ali dentro, e se não está no sistema não se produz nada. Isso vale para qualquer recorte, também para um kleiniano, etc.

Acho que sempre a tensão com a obra de Freud, o diálogo, em algum momento, no conjunto do movimento analítico, é um fiador, uma garantia epistemológica da psicanálise e quase uma sustentação do método, da possibilidade de se relançá-lo. Há lacanianos que entendem que Lacan pegou o essencial de Freud em seu sistema: espremeu o limão e tirou o suco. O que sobrou deve ser jogado fora, porque não tem utilidade. Numa época, os kleinianos diziam que Freud foi mesmo muito bom e que deixou coisas interessantes e importantes — mas em Melanie Klein é que se encontraria o que importa para a clínica. Pode valer para uma pessoa ter essa experiência do inconsciente, do contato com mundo interno, ser um bom analista, mas individualmente. Do ponto de vista do movimento analítico, é essencial manter um trabalho, manter-se em tensão com a obra de Freud. Que a obra de um único homem ocupe um lugar tão importante nos desenvolvimentos que vão ocorrendo é uma particularidade do nosso campo; uma particularidade um pouco irritante, mas o fato é que, na medida em que se perde o diálogo com essa obra, o que vemos é um empobrecimento, uma esterilização do pensamento.

Stefano: É interessante que, quando uma pessoa do mundo não-psicanalítico ou um jornalista entrevista um psicanalista, freqüentemente faz uma pergunta provocativa: ‘É verdade que Freud está superado?’ O psicanalista, com muita paciência, explica: ‘Não, as coisas ditas por Freud permanecem substancialmente na base da psicanálise’. É verdade que não só Freud contribuiu para a psicanálise. Mas a provocação é aquela, Freud encontra-se superado.

Menezes: E essa provocação não vale para os filósofos. Nenhum jornalista aborda o filósofo para perguntar se é verdade que Platão está ultrapassado? Ou, na literatura, se é verdade que Shakespeare está superado? Seria uma pergunta estúpida.

Stefano: É tudo ou nada. Se Freud não é o único psicanalista no mundo, não é o único psicanalista da história, então Freud não existe mais, é superado!

Menezes: E se Freud fosse o único psicanalista, Abel não poderia ser psicanalista, nem eu, nem você.

Alice: Em nome do Jornal de Psicanálise, da Leda, nossa editora, em meu próprio e de todo corpo editorial, quero agradecer muitíssimo a fertilização que os senhores, participando deste debate, trouxeram para o nosso grupo.

 

 

1 Referira-se Bolognini aos dois tipos existentes de elefantes: o indiano, menor em tamanho, que vive em bosques, e o africano, de maior porte, ambientado nos amplos espaços das savanas. Comparativamente, o problema da IPA consiste em reconhecer a especificidade de cada um e de seu espaço geográfico. E, sobretudo, não confundir elefante com hipopótamo.
2 Daniel Widlöcher, presidente da IPA de 2001 a 2005.
3 Otto Kernberg foi presidente da IPA de 1997 a 2001.
4 Atual presidente da IPA.
5 Analytic Practice and Scientific Activities Committee.
6 Programme Committee.
7 Leo Rangell, presidente honorário da IPA.
8 Ver Nota 1.

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