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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.74 São Paulo jun. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Análise didática: uma história feita de críticas1,*

 

Training analysis: a history made of criticism

 

Análisis didáctico: una historia hecha de críticas

 

 

Fabio Herrmann2

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A visão que temos de nossas teorias, práticas e instituições costuma ser a de que estas decorrem exclusiva ou principalmente de reflexões ou descobertas. No caso das regras que norteiam a formação, porém — como, aliás, no estabelecimento das teorias dominantes e das práticas clínicas usuais —, os jogos de força entre correntes e grupos psicanalíticos desempenham um papel destacado. A regulamentação da análise didática, em especial, é menos o produto de uma ampla discussão entre os analistas que o resultado da complexa história de nosso movimento. Por tal razão, provavelmente, grande parte dos escritos mais notáveis sobre o assunto possuem um inequívoco tom crítico. No presente artigo, o autor procura rastrear algumas das linhas mestras dessa história e dessas críticas. Dentro do quadro de uma revisão histórica, avaliam-se certos problemas implicados na organização institucional da análise didática e busca-se compreender o motivo da ambigüidade central: aquilo que mais se critica é o que mais se pratica.

Palavras-chave: Análise didática, Formação, Movimento psicanalítico, Transferência.


ABSTRACT

We usually regard our theories, clinical practice and institutions as mainly or exclusively being brought up by discoveries or abstract considerations. Nevertheless, as far as the training requirements — but also dominant theories and clinical practice — are concerned, they are determined by the political interplay between psychoanalytical groups as well. Regulations concerning training analysis are particularly the conjunctural effect of complex historical trends in our international movement, rather than the sensible result of worldwide discussions on this topic. This is probably why most of the relevant papers published on this matter have an unmistakably critical tone. In this paper, the author tries to follow the main streams of this history and criticism. Within this historical framework, he tries to evaluate the central ambiguity involved in the issue of training-analysis regulations: when practical matters are discussed on an idealistic ethical basis, we usually end up by doing precisely what we criticize the most.

Keywords: Training analysis, Psychoanalytic training, Psychoanalytic movement, Transference.


RESUMEN

El punto de vista que tenemos de nuestras teorías, prácticas e instituciones suele ser el de que éstas surgen exclusiva o principalmente de reflexiones o descubrimientos. En el caso de las reglas que guían la formación, a pesar de &– como en el establecimiento de las teorías predominantes y de las prácticas clínicas usuales - los juegos de fuerza entre corrientes y grupos psicoanalíticos despliegan un rol sobresaliente. La reglamentación del análisis didáctico, en especial, más que el resultado de una compleja historia de nuestro movimiento, es el producto de una amplia discusión entre los analistas. Por tal motivo, probablemente, gran parte de los escritos más notables sobre el tema poseen una inequívoca tonalidad crítica. Dentro del contexto de una revisión histórica, se evalúan ciertos problemas implicados en la organización institucional del análisis didáctico y se busca comprender el motivo de la ambigüedad central: aquello que más se critica es lo que más se practica.

Palabras clave: Análisis didáctico, Formación, Movimiento psicoanalítico, Transferencia.


 

 

Preâmbulo de 2008**

Em 1993, o Jornal de Psicanálise (vol. 23, nº 50) debruçou-se sobre a questão da análise didática, para pensá-la como uma psicanálise regulamentada. Seus editores, Liana Pinto Chaves e Luis Carlos Menezes, encomendaram então a Fabio uma resenha histórica sobre o tema. Formação e movimento psicanalítico ocuparam as preocupações do Fabio escritor e pensador da Psicanálise, principalmente dos anos 80 até meados dos 90, quando ocupou cargos administrativos — foi presidente da SBPSP, da Fepal, chair para a América Latina do Comitê de Programa no Congresso Internacional de Roma de 1989 e do Comitê de Sociedades, criado na gestão de Horácio Etchegoyen na IPA. O resultado foi este longo artigo, que passeia, no seu estilo irônico-crítico, pela história da constituição da análise didática desde os primórdios da invenção da Psicanálise, analisando preferencialmente a formação psicanalítica vigente na SBPSP.

Agora, em 2008, com este número, A análise do analista, o JP volta ao tema e seu corpo editorial, por sugestão de Luis Carlos Menezes, decide oportunamente republicá-lo, resgatando-o do limbo das passadas edições, cujo destino em geral é o esquecimento. Os quinze anos decorridos em nada afetaram sua atualidade e a clareza com que registra e expõe a característica principal da análise didática: ter-se constituído como uma história feita de críticas pela burocratização que o destino do movimento psicanalítico lhe impôs. Assim, este artigo conclama todos os psicanalistas a contornar, pelo constante uso do pensamento crítico, o destino da regulamentação burocrática impeditiva de discussões balizadas no próprio método psicanalítico; discussões que tomem em consideração a troca de experiências e avaliação de resultados sobre este ponto fundamental da formação, que é a análise daquele que deseja ser analista.

Para finalizar, retomo as palavras de Fabio na “Introdução” que preparou quando este mesmo JP, em 1999 (v. 32, nos 58/59), decidiu pela republicação de um texto seu de 1983, “A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face do absurdo”:

Ao fim de contas, idéias são assim mesmo. A gente pensa que as tem, mas somente as pule. Seu movimento visceral continua à revelia do autor que, acreditando haver enterrado algum momento intermediário da produção — com o esgotamento de uma edição, por exemplo —, acaba por se surpreender ao encontrar o corpo andando redivivo por aí. Talvez, antes que com as evangélicas figuras da ovelha perdida e do filho pródigo, seja mais honesto admitir a comparação com o também bíblico Lázaro: qualquer estágio que se sepulte de uma idéia acaba por levantar da cova e sai atrás do autor, cobrando seu destino…

Leda Herrmann

 

Freud gostava de citar como exemplo do valor antitético das palavras primitivas o vocábulo latino sacer, que significa ao mesmo tempo sagrado e maldito (Freud, 1910/1957a, p. 159). No conhecido artigo (de 1910) sobre o tema, este exemplo tem papel proeminente; mas já figura na primeira ata das Reuniões psicológicas das quartas-feiras, de 1906, que, comentando um manuscrito de Rank sobre o incesto (Numberg & Federn, 1979, p. 36), faz menção a este valor antitético.

A análise didática é justamente assim: considera-se o lugar sagrado da formação psicanalítica, por isso mesmo falar dela soa quase sempre blasfemo. (Não fosse a blasfêmia um dos destinos mais comuns da fala humana e talvez o mais tentador.) Quando se discutem o poder dos analistas, os males das instituições, a formação de grupos transferenciais nas sociedades, é sempre a prática da análise didática que é logo posta à mesa. Do lado de fora dos institutos, a análise didática é usualmente comparada a um instrumento disciplinador fascista; nos comentários internos de corredor, entra, não raro, no capítulo do abuso de poder econômico. Desde os pretendentes à formação até alguns dos mais importantes pensadores psicanalíticos parecem estar cheios de críticas à análise didática — no entanto, sua prática continua e é vista como central para a formação.

Em consonância com uma antítese de tal monta, realizamos um levantamento histórico-bibliográfico, a fim de apurar a tendência dos textos mais interessantes sobre o assunto. E, de fato, estes se centram numa crítica geral à formação analítica e apontam quase sempre problemas sérios na condução das análises didáticas, quando não criticam sua mera existência — modelares, a este respeito, são os artigos de Balint, Szasz e Bernfeld, aos quais nos referiremos muitas vezes no texto. A questão que se nos defronta neste artigo é, portanto, tentar compreender a razão de tantas críticas, acompanhando simultaneamente o próprio desenvolvimento histórico que deu forma à análise didática atual. As duas dimensões estão interligadas, pois, como veremos, não só a história da implantação da análise didática foi e continua sendo sob certos aspectos criticável — no momento, por exemplo, a condenação da chamada análise condensada talvez cumpra um papel político dentro dos jogos de poder internacional da psicanálise —3, como, por outro lado, a crítica da formação psicanalítica, e da análise didática em particular, tem sido um dos motores da história do movimento psicanalítico. Quase todas as cisões começaram com algum tipo de pronunciamento contra a formação oficial, às vezes ao estilo progressista, às vezes como um pronunciamento conservador. O certo é que seria impossível atender ao pedido do Jornal de Psicanálise de preparar uma resenha histórica da instituição da análise didática, sem tomar em conta que esta é, como reza o título, uma história feita de críticas.

Qual a extensão real da prática da análise didática entre os grupos analíticos? Há tempos, fui convidado a participar de uma mesa sobre formação psicanalítica no congresso de certo grupo lacaniano em Belo Horizonte. Um dos painelistas explicava como haviam superado este “instrumento de poder da IPA”. Os postulantes àquele grupo deviam completar seus cursos e análises antes de se apresentarem à instituição, quando então seriam julgados aceitáveis ou não. Para minha surpresa, ao argumentar que, nesse caso, também tinham eles uma espécie de análise didática, ou seja, uma análise regulamentada como condição de acesso ao título de psicanalista, a reação do orador esteve entre surpresa e indignada. Segundo o colega, a coisa era totalmente diferente ali, porque não tinham didatas. Havia umas trezentas pessoas no auditório. Perguntei-lhes se não corria entre eles alguma lista não oficial de quem deveria ser procurado para análise por um postulante realmente interessado em ser aceito e subir na instituição. Houve um assentimento cúmplice dos mais jovens e um pouco de mal-disfarçado riso. Em suma, a questão é mais ou menos a seguinte: nós temos uma lista impressa de analistas que podem ser procurados pelos candidatos e um regulamento que prevê o tempo mínimo e as condições de feitura da análise didática; mas todo grupo psicanalítico de formação e boa parte dos grupos de formação psicoterápica exigem que o postulante se submeta a uma terapia de certa duração, considerada séria, e possuem também listas das pessoas elegíveis para cumprir tal exigência: a lista pode ser escrita ou falada, decretada ou construída por boatos, eis a diferença principal, ao que parece. A questão verdadeiramente relevante, portanto, seria decidir se convém ou não exigir análise prévia de quem quer ser analista, pergunta já de si blasfema hoje em dia, mas que ao ser feita em diferentes oportunidades a Freud recebeu alguns ‘nãos’ e outros ‘sins’, acabando por resolver-se praticamente ao longo deste século4 por uma regulamentação formal que encerrou a discussão, ou tentou, pelo menos.

Por ora, fiquemos num âmbito mais ameno e pessoal. Fiz minha análise didática com o dr. Armando Ferrari, no começo dos anos 70, e nunca me arrependi disso. Discutir minha vida e profissão com aquele italiano inteligente e apaixonado pode ter sido tudo, menos monótono. Houve dificuldades — que análise não as tem? —, mas talvez o que mais impregna minha memória daqueles anos é uma sensação de bom humor. (Quando não um manancial de riso.) Certa vez, diante de um trocadilho meu, replicou-me exaltado que eu estava... Estava... Na braveza, fugira-lhe o português e completou severamente: “Doutor, o senhor está schermando con le parole!” Meu italiano não dava para tanto. Schermando?, perguntei. “Sim”, contestou pensativo, “como se diz isso que se faz com espada, florete?” Pensei um pouco eu também. “Ah, esgrimindo?” “Isso mesmo, o senhor está esgrimindo com as palavras!”, completou Ferrari com a mesma imperturbável severidade. (Penso que foi a primeira vez que escutei uma bronca com tradução simultânea...) O que quero dizer, e sendo simples é também fundamental, é que esta coisa de análise didática só se pode levar com um mínimo de humano bom humor. Tratada em tom altissonante, fica sagrada ou maldita ou, pior, converte-se na ocasião ideal para elevadas declarações de princípios éticos.

Anos depois, tive muitas oportunidades de recordar essa lição, ao tornar-me analista didata. Implantado o atual sistema de escolha de didatas por eleição da Assembléia Geral5, durante bom tempo ninguém se apresentava. Como que estávamos todos à porta de entrada, convidando uns aos outros, gentilmente: “Passe por favor”. “Não, não, meu caro, você primeiro.” Como, na época, eu era presidente da Sociedade, alguém me fez ver delicadamente que estava atravancando a porta, e decidi candidatar-me.

O sistema anterior, em que os novos didatas eram escolhidos pelos futuros pares, havia desembocado num impasse que a seu tempo será discutido. Acabávamos de viver tempos difíceis na Sociedade e nosso contato com os organismos psicanalíticos internacionais estivera quase cortado. Assim, quase imediatamente após ter sido eleito para a função, no fim de 1985, era o único representante de São Paulo no Pré-Congresso Didático da Fepal, que antecedeu o Congresso do México, de 1986, e não pude escapar da apresentação de um trabalho, mesmo sem ter praticamente vivência alguma da função. Talvez por isso, em 1987 e 1989, nas Conferências de Analistas Didatas dos Congressos Internacionais de Montreal e de Roma, fui convidado a dirigir grupos de discussão. Em nenhuma dessas oportunidades deixou-se de falar sobre análise didática. É claro que, não tendo grande experiência na matéria, pois ainda estava começando, foi fascinante participar da discussão dos mais velhos e conhecedores. Pude notar que, nos sucessivos encontros grupais, uma constante nunca faltava. Os debates começavam em tom maior, com os próprios analistas didatas assumindo ativamente as críticas que, de hábito, se lhes fazem: poder transferencial, doutrinação dos candidatos, complicações da moldura analítica por fatores institucionais. É como se a parte candidato renascesse dentro do didata nesses momentos, ou penetrassem em nós até mesmo as críticas externas à IPA; e os discursos inflamavam-se até à empolgação. Pouco a pouco, porém, a curva emocional entrava em descendente, terminando nosso concerto, em tom decididamente menor, por admitir a imprescindibilidade da análise didática, a necessidade de algum tipo de seleção dos didatas e a fatalidade dos empecilhos práticos. No fim, a situação presente parecia aos diferentes grupos de discussão ser a menos ruim.

Quem sabe venha a ser esta a conclusão da conversa que agora iniciamos: um mal necessário. Entretanto, a teoria do mal necessário, apareça onde aparecer, sempre se me afigura um pouco falaciosa. Geralmente, conduz-nos a concluir pelo mal necessário a convergência entre uma evidente confusão e uma intenção oculta. Reside a confusão em juntar, num mesmo objeto de juízo, dois objetos da realidade distintos. O corte malfeito, em nossa questão, faz identificarem-se análise didática e análise regulamentada: a primeira é, antes de mais nada, um bem necessário; a segunda, talvez um mal dispensável. Em termos gerais, regulamentos fazem-se assim: a gente avalia uma série de casos concretos e prevê, sensatamente, qual regra geral abarca todos eles; estabelecida esta, aplicam-na ao próximo caso e só aí se avalia a extensão da tolice cometida. Pois a média de situações particulares redunda em princípios puristas ou em medidas mesquinhas de controle. Quem recolhe as sobras, neste caso, é o espírito burocrático, que se sente à vontade para proferir a terrível sentença final: seria até melhor não haver regulamentos, mas se os há é para serem cumpridos. Regulamentos não são entidades inofensivas, não são simples parâmetros; eles determinam uma paulatina drenagem da essência para as regras formais, sobretudo quando, como em nosso caso, a essência da operação analítica é tão fugidia: discute-se qual a essência da psicanálise e a triste resposta burocrática é: uma terapia feita em quatro dias da semana. A intenção oculta é pois a da burocracia. Em princípio, a Psicanálise, enquanto disciplina — não menos que a psicanálise, a prática clínica —, é a antípoda precisa da burocracia. Todavia, como sempre e como em toda parte, alguns espíritos burocráticos extraviam-se para dentro de nosso movimento. Seu destino é aqui ingrato, uma vez que estão condenados a enxergar à volta a criação do pensamento psicanalítico, sem poder dela participar e não raro tendo suficiente sentido estético-científico para apreciar o produto. Não são pessoas más ou maldotadas, apenas foram parar onde não deviam. Há duas posições em que se pode refugiar o burocrata psicanalítico: na periferia das escolas teóricas, transformando em certeza dogmática as inquirições do pensador e difundindo a ortodoxia resultante, e no centro das decisões administrativas, criando e operando regulamentos. Como veremos, a opinião dos autores que se debruçaram sobre o assunto em nosso movimento psicanalítico não deixa demasiadas dúvidas. Em sua eterna luta dialética contra o pensamento psicanalítico, ao qual serve letalmente, a intenção burocrática tem na regulamentação do ensino e, em especial, na análise regulamentada o instrumento perfeito para fazer-se necessária, o necessário mal.

Haverá meios de desfazer a confusão entre análise didática e regulamento? Não sei. Apenas sei, e quero deixar registrado logo no começo deste artigo, que o trabalho de analista didata, se levado com algum humor e autocrítica, pode ser verdadeiramente estimulante e agradável. Meus analisandos ensinam-me a sorrir de minhas próprias insuficiências e a ser simples ao falar da vida, ainda quando não o seja necessariamente ao escrever sobre matéria teórica. Enfim, ao lado da escrita teórica e da clínica, participar da formação de novos analistas ajuda a ver a vida passar sem mágoa, pois mais vida vem depois, também em nosso pequeno mundo psicanalítico. E como desta vida nada se leva, melhor é deixar nela o máximo possível...

 

2

O curso d’água formador da análise didática, como a conhecemos atualmente, nasce de três fontes principais, cada uma delas produzindo seu filete, que se vai engrossando e abrindo um leito tortuoso, para desembocar num rio que parece hoje querer correr montanha acima. São elas: o ensino da terapia analítica, a institucionalização do movimento psicanalítico internacional e o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Alguns autores (Balint, 1948; Szasz, 1958) que tratam da história da formação distinguem também três períodos no processo geral de regulamentação da análise didática: o primeiro vai do fim do século 19 até 1918, com o Congresso de Budapeste, ou 1920, com a formação do Instituto de Berlim; o segundo estende-se até o começo da Segunda Guerra ou até a morte de Freud, em 1939; o terceiro abrange o pós-guerra e a rigor poder-se-ia estender sem grandes modificações até nossos dias. Sigamos as três linhas de origem brevemente, referindo-as aos períodos sucessivos e procurando localizar suas intenções principais.

Pelos fins dos anos 1890, Freud já era ocasionalmente procurado por alunos seus para que os ajudasse em dificuldades pessoais ou, o que era ainda mais comum, para que interpretasse seus sonhos. Ao mesmo tempo, prosseguia a auto-análise de Freud, no mesmo passo de sua produção teórica e prática clínica, funcionando estes três espaços como sistemas de reverberação: o que vinha de um dos emissores influenciava os outros dois e encontrava comprovação, às vezes por um processo que hoje chamaríamos de sugestão intelectual, outras por uma autêntica fertilização cruzada. Por fim, com o início das Reuniões psicológicas das quartas-feiras, em 1902, embrião da Sociedade Psicanalítica de Viena (Numberg H. & Federn, 1979, pp. 10-11), fundada em 1908, a prática de revisar em grupo as histórias pessoais e os problemas psicológicos dos membros ganha sistematicidade. Na reunião científica de 15 de janeiro de 1908 (Numberg H. & Federn, 1979, pp. 289-293), o dr. Urbantschitsch, médico, proprietário e diretor do próspero Cottage Sanitarium de Viena, apresentou algumas notas, tiradas de seu diário pessoal, em que descreve o próprio desenvolvimento sexual até o casamento. Como se vê, a franca exposição da vida psíquica, para si mesmo e para os outros, acompanha a invenção da Psicanálise. Freud insistia na necessidade de auto-análise do psicanalista e, mais tarde, na conveniência de fazer-se analisar de tempos em tempos (Freud, 1937/1964, p. 249).

Mas de que análise se tratava? Freud (1912, pp. 116-117) recomendava análise prévia6, principalmente entre 1910 e 1920, e referia-se à análise didática, Lehranalyse7, diferenciando-a de forma cortante da análise terapêutica. O primeiro termo, análise prévia, sugere a conveniência de um período de análise pessoal antes de começar a atender pacientes, o segundo implica que um instrumento básico da instrução do analista é a transmissão concreta do método, por meio de um ensino em carne viva, por assim dizer. De fato, as primeiras análises didáticas eram curtíssimas, se julgadas pelos padrões atuais, e só foram crescendo mercê de uma institucionalização a que logo chegaremos. Eitingon analisou-se com Freud por dois meses, com duas sessões semanais, ou melhor, conversas peripatéticas, pois se davam nos fins de tarde, enquanto percorriam as ruas de Viena (Balint, 1954). É verdade que também as análises terapêuticas eram muito mais curtas. Entretanto, não havia então como confundir análise e análise didática. A segunda consistia numa demonstração do método e visava simplesmente ensinar sua técnica, aproveitando para esclarecer dificuldades pessoais que poderiam prejudicar o tratamento dos futuros pacientes, por gerarem reações de contratransferência. Um subproduto dessa tendência pode ser encontrado mais tarde na chamada análise de controle, praticada pelo grupo de Budapeste, em que o próprio analista didata supervisionava os casos de seu candidato, no divã, buscando esclarecer os empecilhos de ordem pessoal que as podiam fazer estagnar. Depois de 1920, as coisas mudariam substancialmente, mas para compreender a linha de transformação é preciso considerar a segunda fonte mencionada: a institucionalização do movimento psicanalítico e, em especial, a regulamentação do ensino que este oferecia.

Quando, no Congresso de Nuremberg, em 1910, foi proposta pela primeira vez a formalização do ensino da Psicanálise, Freud contestou vigorosamente a idéia, afirmando não ser uma sociedade órgão de ensino, mas que cabia aos membros, em caráter pessoal, oferecer cursos livres, a que livremente os pretendentes iriam aderir (Girard, 1982, pp. 920-921). O acesso à formação obedecia então a um princípio de auto-seleção e aceitavam-se analistas leigos. À medida, porém, que a institucionalização começou a ocorrer, acompanhando diretamente o sucesso e a popularidade da nova prática terapêutica, alguns fenômenos foram paulatinamente delineando o quadro atual da análise didática. A duração foi crescendo, os regulamentos foram se cristalizando e a diferença, antes claríssima, entre análise didática e análise terapêutica começou a desaparecer8.

Siegfried Bernfeld (1962), num memorável trabalho apresentado à Sociedade de São Francisco, em 10 de novembro de 1952, poucos meses antes de seu falecimento, mas só publicado dez anos depois, oferece uma explicação muito plausível para isso. Com a descoberta do câncer de Freud, em meados de 1923, ele e todos os demais analistas concluíram que sua morte seria questão de meses. Nesse período de morte provisória do mestre, alguns discípulos mais dotados consideraram-se livres da tutela e descompromissados para “seguir seu próprio caminho”; Rank, por exemplo, deu asas à sua teoria do trauma de nascimento, que haveria de receber de Freud, em 1926, severas críticas (Freud, 1926/1959b, pp. 135-136, pp. 150-153), seguida, em 1937, daquela tão conhecida reprimenda, com a história dos bombeiros que retiram o candeeiro que incendiou a casa, em vez de apagar o fogo (Freud, 1937/1964, pp. 216-217). Quando Freud ressuscitou da morte anunciada prematuramente, diz Bernfeld, puniram-se nos filhos os pecados dos pais ambivalentes. A forma da punição foi o controle estrito dos alunos, praticado pelos institutos de formação, a exemplo do de Berlim — reação autolimitante que lembra um pouco nossas próprias medidas recentes, de restrição à entrada no Instituto, depois da ameaça de intervenção da IPA9. Lá, em Berlim, haviam importado de Viena, no início dos anos 20 um analista de analistas, Hanns Sachs, já que os demais não se podiam analisar reciprocamente — este se consagrava praticamente só a isso, sem sequer participar das decisões burocráticas do Instituto, o que faz de Sachs o primeiro analista didata completamente especializado do movimento psicanalítico. Em 1922, a análise didática durava entre um ano e um ano e meio, enquanto as primeiras análises didáticas freudianas não passavam de seis meses. Em 1924, isto é, depois do episódio descrito por Bernfeld, o primeiro regulamento do Instituto previa três anos para a formação, iniciando-se com o ensino teórico, seguido de dois anos de casos supervisionados, ao passo que cabia à análise didática ocupar os anos finais da formação. Em 1925, a Sociedade de Viena publicou suas regras, que previam dois anos para a formação total.

Inexoravelmente, a institucionalização internacional prosseguia. No Congresso de Wiesbaden, em 1932, o Comitê Internacional de Formação, criado em 1926 no Congresso de Bad-Homburg, estipulava novas recomendações para a formação de analistas: duração de três anos, sendo dois de formação teórica, dois de supervisão e um ano e meio de análise didática. Mas foi só com a edição das Standing Rules do Instituto de Londres que a análise didática começou a atingir suas proporções atuais: quatro anos era o tempo previsto (Balint, 1948, p. 165). Algumas observações ficam evidentes quando se acompanha tal desenvolvimento. A regulamentação do processo formativo de analistas não parece ter se pautado por discussões abertas acerca da necessidade metodológica de seus requisitos, antes estes foram sempre decretados, conforme se lê em Balint (1948) e Szasz (1958). Por outro lado, e de forma um tanto paradoxal na aparência, ao mesmo tempo em que a obrigatoriedade da análise didática se estabelecia por regulamento — assim como a de seleção dos candidatos, duração dos cursos, etc. —, esta se ia transformando de instrumento de transmissão de uma prática em análise comum, apagando-se a diferença entre terapia e didática. Vale dizer que a compulsoriedade incidiu sobre aquilo que justamente menos pode ser controlado: a livre disposição de se fazer analisar, indispensável para a análise terapêutica e não tanto para uma análise de instrução ou de demonstração.

Este movimento paradoxal não cessaria de acentuar-se desde então. Nos regulamentos atuais da IPA detalham-se a forma da análise didática e os critérios para que uma formação seja reconhecida, de acordo com a tendência presente de uniformizar os institutos e garantir padrões internacionais. A ideologia dominante é a de que os psicanalistas estão filiados à IPA, antes e acima de que às suas sociedades e devem pois serem produzidos pela mesma forma e formação. Uma reação contra a centralização excessiva começa hoje a esboçar-se por parte das sociedades, que viram reconhecida sua pretensão a constituir um Colégio de Representantes das Sociedades para supervisionar o funcionamento do Conselho Executivo central. Dentro dessas lutas burocráticas, entretanto, a análise didática cada vez mais é considerada como uma análise terapêutica, somente mais ambiciosa que outra qualquer, e assim essencialmente dependente do desejo espontâneo dos analisandos — de quem se espera apenas que a desejem na hora certa. Pode-se supor que a cada grama colocado no prato da liberdade para o autoconhecimento, coloca-se outro grama no prato da regulamentação, refletindo provavelmente a contradição inerente a uma ciência do inconsciente — ou seja, do desconhecido, da descoberta infindável —, que foi incorporada por um movimento rigidamente regulamentado: como ser livre para descobrir e ao mesmo tempo garantir que sempre se vão descobrir as mesmas coisas, o cânon freudiano ou os cânones das escolas?

Nesse contexto, uma observação de Girard (1982, 930-932) ilumina a terceira fonte das atuais análises didáticas. Ele mostra que, inicialmente, a formação se dava no quadro de uma Psicanálise que era essencialmente prática de descoberta, ainda sem uma teoria abstrata e legislativa, por assim dizer. Quando Freud sentiu a necessidade de instituir teorias gerais da Psicanálise, a começar pela metapsicologia, por volta de 1915 a 17, as análises didáticas, como as análises terapêuticas, começaram a ser pautadas de seu interior por normas teóricas. No período da primeira tópica, analisavam-se sobretudo os destinos das pulsões e sua evolução infantil; com o advento da teoria estrutural, em 1923, passaram a centrar-se principalmente na análise do ego, buscando fortalecê-lo, assim como colaborar no desenvolvimento do superego — num texto clássico, Straychey (1934) fala no analista como “superego auxiliar”.

Enquanto na Europa central as teorias freudianas dominavam, na Inglaterra houve o rompimento kleiniano, que encontrou um modus vivendi complexo na Sociedade Britânica, e, na França, o lacaniano, que gerou nova instituição, na seqüência de uma “crítica radical” às normas de formação. Nos Estados Unidos, o problema foi diverso: a luta para manter a hegemonia médica na profissão de analista levou à ruptura com o Comitê Internacional de Formação, que logo se dissolveu, em 1938. Com efeito, a ascensão do nazismo, forçando a emigração maciça de analistas, e o clima de pré-guerra na Europa, tiraram da IPA, da Sociedade Britânica e de Jones, em particular, a capacidade prática de manter o domínio sobre os numerosos grupos norte-americanos. Estes reivindicaram para si o controle da própria formação, ameaçando romper com a IPA. Por fim, relutante, Jones, então presidente da IPA, teve de ceder: a American Psychoanalytical Association estabeleceu, em 1937, um organismo centralizado para a qualificação de analistas e regras próprias — entre as quais, segundo os críticos que surgiram nos anos 50, como Balint, Szasz, Bernfeld e outros, havia princípios de “burocratização e doutrinação”. As sociedades latino-americanas foram formadas já sob o impacto da morte de Freud e no terceiro período da institucionalização; vem daí que entre nós pareça tão natural a presente forma do ensino: nunca conhecemos outra.

Esse desenvolvimento das escolas psicanalíticas marcou o destino da análise didática de mais de uma maneira. Em primeiro lugar, as análises continuaram a se diferenciar, pois a competição entre as correntes exigia que os analistas, desde o começo da formação, já fossem direcionados segundo as propostas teóricas que mais tarde deveriam defender. E qual instrumento melhor do que a própria análise para levá-los a encarnar posições? Em segundo lugar, como este uso da análise didática sempre foi considerado perverso, até mesmo por seus praticantes, ele teve que ser negado, no sentido comum e no sentido freudiano, com cada grupo afirmando que suas análises buscavam apenas os objetivos fundamentais de autoconhecimento e harmonia psíquica; com isso, já não se podendo discutir certas metas concretas, a reflexão sobre a análise didática refluiu consideravelmente, sendo substituída por acres acusações recíprocas de proselitismo ou de abuso de poder entre as correntes psicanalíticas. Por fim, como os diferentes grupos internos da própria IPA não se podiam entender completamente nem admitir de público as divergências, seu único termo comum passou a ser os assim chamados standards: à medida que cresce a fragmentação ideológica do movimento psicanalítico, parece que a busca de padrões centralizados torna-se o único ponto de acordo possível sobre a formação. Enfim, em 1989, justamente quando o Congresso Psicanalítico Internacional de Roma discutia O campo comum da Psicanálise, sua Conferência de Analistas Didatas teve como tema Que faz uma Análise Didática suficientemente boa?10, valendo-se caracteristicamente da expressão winnicottiana, ou seja, de uma concepção que não está na disputa da hegemonia teórica internacional.

 

3

Esta breve história da análise didática e a de alguns textos que a discutem sugerem umas quantas reflexões.

De início, foi constatada a importância de o analista desenvolver uma visão de suas próprias condições psíquicas, como forma de melhor perceber as do paciente. Ao mesmo tempo, embora menos citada, foi crescendo a idéia de que o caminho mais natural para aprender a analisar assemelha-se àquele correntemente utilizado no aprendizado artesanal, ao estilo do ensino da pintura ou da estatuária nos ateliês de arte, vale dizer que se aprende ao ver fazer; e a principal forma encontrada de ver fazer análise foi a de submeter-se o candidato à analista à psicanálise com um colega mais experimentado. Claro, o grande problema gerado pelo conjunto desses requisitos tão sensatos foi, e continua sendo, a própria mistura dos projetos. A análise de minhas dificuldades psicológicas não fornece um parâmetro absolutamente universal e pode não se aplicar às de meus pacientes. Mais séria, entretanto, é outra das conseqüências do cruzamento de projetos. Cria-se uma associação inevitável entre a forma psicanalítica transmitida, as peculiaridades da prática de meu analista, e os efeitos transferenciais produzidos pelo tratamento a que me submeto. Noutras palavras, o estilo analítico do didata e de sua corrente predileta são transmitidos com uma força psíquica toda especial, pois foram o caminho da solução ou ao menos do manejo de questões muito íntimas do analisando. É, mal comparando, como se quiséssemos ensinar um determinado estilo de nado a um aprendiz em constante risco de afogamento num rio caudaloso; é evidente que, se sai ileso, a implantação do estilo é muito mais eficaz e possivelmente imutável, quando comparada à daquele que aprendeu numa tranqüila piscina.

Em segundo lugar, análise terapêutica e análise didática têm uma complexa e turbulenta história de convivência. A análise terapêutica era de início encarada como um tratamento médico mais ou menos convencional: dirigia-se a doentes e pretendia curá-los. Devagar, porém, a psicanálise foi alterando seus objetivos e reino de aplicação. Quando cresceu o número de analistas, a prática passou a dirigir-se mais e mais a pessoas psiquiatricamente normais. Por um lado, estas são em maior número, e os milhares de consultórios psicanalíticos não se poderiam lotar apenas de neuróticos e psicóticos; por outro, os pacientes mais ou menos normais são muito mais fáceis de analisar. Não se trata de uma impostura, como pode sugerir a imagem de analistas conseguindo fáceis resultados terapêuticos com doentes que não o são. O que se passou foi mais simples e honesto: de tratamento médico para doenças psiquiátricas, a psicanálise transformou-se em algo que até mesmo no campo da medicina encontra paralelos na tendência a privilegiar a medicina preventiva, o prolongamento da vida saudável e a preocupação com a qualidade de vida. Mais exatamente, a prática analítica reforçou uma de suas dimensões, a de um instrumento de melhor viver, meta nobre sem dúvida. Contudo, certo resquício dos objetivos anteriores interfere nesse novo estado de nossa prática; com efeito, para manter a dignidade médica, bem como para defender a necessidade de análise do paciente médio, por vezes sucumbem os analistas à tentação de criar uma pseudopsicopatologia sob medida, cujo diagnóstico calca-se sempre num grau maior de gravidade que o da psiquiatria clínica. Como resultado dela, hoje em dia, nossa literatura tende a considerar o sujeito psiquiátrico normal como um neurótico — somos todos neuróticos, é uma frase que se difundiu enormemente na cultura psicanalítica de divulgação —, enquanto os neuróticos são vistos como psicóticos e os psicóticos, com ou sem razão, como inanalisáveis, caindo fora de uma classificação psicanalítica, cuja existência é, além disso, constantemente negada por quem a usa. No mais, a análise terapêutica de pessoas razoavelmente sãs pode e deve sobreviver como uma forma de serviço importantíssimo que se presta à coletividade humana: aprimorar a vida psíquica, coletiva e individual.

O problema que nos concerne apenas dá as caras quando cotejamos as duas espécies de análise. No começo, a análise terapêutica supunha um doente e a análise didática, um analisando aproximadamente normal. Quando esta simples distinção foi se apagando, duas ocorrências seguiram-se. A primeira foi tornar-se a análise didática o verdadeiro padrão para todas as análises, questão a que deveremos voltar mais à frente. A segunda, sempre referida pelos textos sobre análise didática, foi a tentativa de estabelecer uma distinção com base em regulamentos estritos. Número de sessões, duração, condições do analista que a conduz, inserção da análise didática no processo de formação, tudo isso se transformou em matéria legislativa — e, por vezes, com conseqüências inequivocamente executivas, em todos os sentidos alegóricos do termo. Vem daí a justeza do nome que encabeça esta edição do Jornal de Psicanálise: análise regulamentada. Todas as tentações do poder acabaram por desembocar na questão sagrada da análise didática.

Não é de estranhar, isso posto, que os escritos mais interessantes sobre a análise didática sejam textos críticos, não raro virulentos, apesar de em geral serem da lavra de didatas. Muito pouco se escreveu de importante sobre o lado bom da análise de formação, que, não obstante, também existe. Sem deixar de praticá-la, temos sido severos críticos da regulamentação da análise; parece mesmo ser de bom-tom fazer uma ressalva pessoal, mostrando que se sabe serem incompatíveis análise e regulamentação, todas as vezes em que o assunto vem a ser discutido. Os autores demonstram a impossibilidade ética da análise didática, os didatas médios afirmam que, pessoalmente, discordam da obrigatoriedade e não se deixam influenciar por ela. É uma história de consciência culpada a da análise didática: quase se poderia crer que todos a executam de mau grado.

 

4

Como vimos, há sólidos argumentos contra a análise didática. Não vamos examiná-los sistematicamente: quase todos alinham ponderações fortes e verdadeiras, com certos exageros que se diria serem expressamente calculados para sua inviabilização. É como se o argumentador se visse tragado pelo receio de ter razão e levasse seu arrazoado um pouco longe demais, justo até o ponto em que ele se contradiz ou se torna impraticável. Este curioso fenômeno, o receio de ter razão, surge regularmente também em debates políticos a respeito da justiça social e em considerações pessoais a propósito da vida econômica de cada um, ou seja, sempre que algum tipo de prática consensual é contrastada com os princípios que se afirma norteá-la, surgindo a disparidade entre interesse de grupos e exigências da razão.

A forma mais virulenta dos argumentos contra a análise didática assenta-se numa espécie de demonstração de impossibilidade técnico-ética. É mais ou menos assim. A análise só é possível numa atmosfera em que a sugestão não exista ou esteja extremamente rarefeita. Esta preocupação muito justa sempre obcecou Freud.11 De fato, aquilo que uma análise mostra acerca do inconsciente poderia atribuir-se à influência sugestiva, inclusive seu próprio efeito terapêutico, tirando da Psicanálise a pretensão científica e aproximando-a do curandeirismo12. Este é um problema bem real, que tem muito que ver com a análise didática, pois o caráter formativo potencializa a força de sugestão: o paciente-candidato tem todo o interesse em acreditar no que aparece em sua análise, caso contrário nunca chegará a considerar-se analista.

Reflitamos um instante sobre isso. Quando uma interpretação procura demonstrar ao analisando a forma de seus processos mentais, é forçoso estar atento à possibilidade de que o processo mesmo de construí-la seja a própria demonstração. Por exemplo, se estou convencido da existência de algum dos mecanismos psíquicos descritos pelas teorias, minha compreensão das idéias do paciente inevitavelmente se deixará guiar por ele e acabarei encontrando-o sem falta, ou melhor, eu mesmo o construirei interpretativamente. O mais ilustre exemplo desse tipo de circularidade pode ser encontrado na Interpretação dos sonhos, quando Freud, depois de dividir em partes o sonho da Injeção aplicada em Irma e fazer associações sobre cada parte do sonho, conclui pela evidência do mecanismo onírico de condensação. Como procurei mostrar no capítulo final de Andaimes do real: o método da Psicanálise (2001a, pp. 309-323), qualquer texto ou relato, mesmo que não se trate de um sonho, se submetido a semelhante procedimento interpretativo, acabará por demonstrar a existência de condensações, uma vez que o caminho interpretativo faz uma espécie de descondensação do material. Dividindo em partes e associando sobre as partes, ele constrói um segundo texto, em comparação ao qual o texto original só pode parecer condensado. Noutras palavras, o mecanismo demonstrado é apenas o inverso dos passos de sua demonstração. Numa obra teórica, porém, essas coisas podem ser descobertas e corrigidas. Freud mesmo estava alerta para o problema da circularidade, em termos gerais, tanto que escreve na História do movimento psicanalítico (1914/1957b, p. 17): “Se qualquer pessoa pensa em situar repressão e resistência entre as premissas, ao invés de entre os achados da Psicanálise, eu me oporei fortemente”. Claro como água. Ele sabia muito bem que a interpretação não alcança demonstrar suas premissas, mas deve sempre produzir descobertas empíricas — conquanto discutir a problemática empiria onde se cumprem tais descobertas não esteja no âmbito deste artigo —, ou achados, para escapar à circularidade e à tautologia. O efeito mais deletério da circularidade interpretativa revela-se na situação analítica concreta, como uma sorte de circuito de convicção, contra o qual pouco pode fazer o analisando.

Na análise concreta, a força sugestiva da situação nunca pode ser descartada. O paciente está sob a influência do analista e espera alívio e conhecimento, nesta ordem. A análise didática junta a tal sugestionabilidade o interesse em atingir uma investidura profissional. Com tudo isso, argumenta-se, o risco de exercer poder sugestivo sobre o candidato, levando-o a aceitar, à força transferencial, um bloco de definições teóricas a respeito de sua vida mental é máximo. Szasz (1958), em seu clássico artigo sobre a formação analítica, dedica um item inteiro à renúncia ao poder, sob a epígrafe agourenta do dito de Lord Acton: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe de forma absoluta”. Valabrega (1983, p. 47) vai mais longe, afirmando que: “a análise só é possível no interior de um campo de suspensão, de renúncia ao exercício do poder. Exigência sine qua non13.

Para sermos justos com a análise didática, devemos reconhecer aí dois problemas distintos. O primeiro, com cuja existência concordo em absoluto, é o risco de uma implantação no candidato — Szasz fala em “indoctrination” e em “brain-washing”. Com efeito, a formação de grupos de poder dentro das sociedades, sob a égide de teorias fechadas do funcionamento psíquico, pode realmente conduzir à implantação de uma personalidade artificial em certos candidatos, pois estes, além de serem submetidos a uma análise que, executada sob tais premissas, lhes ensina a nomear seus processos mentais com o repertório lingüístico da teoria dominante, aprendem em aula a existência dos mecanismos que sua análise lhes mostra e são supervisionados segundo os mesmos critérios no trabalho com os próprios pacientes. Sofrendo tamanha convergência de doutrinação, não é de estranhar que os discípulos de cada escola não somente acreditem nas teorias que se lhes ensinam, como até mesmo exibam os processos psíquicos postulados por elas. Como eu mesmo escrevi em O divã a passeio (2001b, p. 12): “Tal circuito fechado e constantemente realimentado conduz o postulante a viver interiormente as teorias adquiridas, não como modelos aproximados e falíveis do psiquismo, mas como verdade intuitiva: chego a imaginar às vezes se o único exemplo vivo de certas teorias psicanalíticas não seriam os adeptos da escola que as propõe”.

Piera Aulagnier — esta autora de opiniões tão firmes quanto conseqüentes com sua postura pessoal, de cujo convívio uma morte prematura nos privou — parece-me ter dito o essencial sobre o tema. Para ela, a teoria psicanalítica pode muito bem ser compreendida sem que o leitor se submeta a qualquer análise pessoal. Entretanto, a posição diante das teorias é decisivamente influenciada pela análise, para bem ou para mal. Atribuindo uma verdade imanente às teorias, o sujeito aliena-se, pois situa sua verdade fora de si, no âmbito do saber alheio14. A análise de formação deve ter pois função desalienante, o analista que a conduz mediando entre conhecimento teórico e descoberta prática, de sorte a permitir ao analisando que encontre em si mesmo os sentidos do inconsciente e não os reproduza pelo desejo de satisfazer o saber de seu analista. Ora, este é um passo delicado, já que o próprio analista é objeto de uma “transferência passional e alienante”, que pode ser alimentada para moldar o sujeito segundo os cânones do grupo a que vai pertencer. Ou seja, puro conhecimento teórico não faz um analista, mas a mediação da análise pode levá-lo, no outro extremo, a um estado de submetimento teórico.

Quando entre nós, por exemplo, espera-se que um candidato faça uma realização da teoria, ao invés de adquirir conhecimento livresco, a intenção geral é de promover esta desalienação. Para isso, contudo, é necessário que o candidato tenha, em primeiro lugar, um sólido conhecimento da teoria sugerida, que conheça igualmente outras teorias e sistemas teóricos e que adquira com o professor certa visão crítica, por meio de pequenos experimentos de teorização de situações particulares. Em segundo lugar, sua análise pessoal deve estar sendo conduzida necessariamente fora do quadro do sistema teórico ensinado, para que não se confundam as duas ordens de aquisição: o lido e o vivido. Se ensino e análise coincidem em transmitir esquemas da mesma escola, a relação transferencial com o analista leva a viver intimamente as propostas teóricas, e o candidato nem precisa estudá-las em detalhe, pois as sente na carne. Então, fecha o livro e confia na intuição, que, sem exceção, vai realizar o conceito ensinado. Este exemplo de máxima sugestão analítica, entretanto, não deve ter suas conseqüências exageradas até o ponto de negar a possibilidade da análise didática ou do ensino teórico. Quanto ao segundo, basta que o ensino seja sério e diversificado, sem doutrinação numa só escola; quanto à primeira, que o didata tenha o bom senso de não reforçar em seu analisando tendências irracionais ou místicas. É um desvio possível, mas se o elevamos ao grau de impugnação, acabaremos por desiludir-nos de tal maneira que sobrevirá um conformismo masoquista com os problemas concretos de cada instituição de ensino psicanalítico.

Um tipo mais ameno de impugnação da análise didática passa pelo problema da contaminação institucional. Ana Freud, já em 1938 (1950/1968), pôs a questão em pratos limpos:

Não hesitaríamos em qualificar de tecnicamente errado se um analista selecionasse seus pacientes em seu círculo de conhecidos; se os deixasse compartilhar seus interesses, ou discutisse suas opiniões pessoais com eles mesmos ou em sua presença; se se descuidasse a ponto de julgar o comportamento deles, de expor-lhes suas críticas a outras pessoas de modo a afetar suas decisões; se manipulasse ativamente os pacientes, oferecendo-se como modelo, e terminasse a análise permitindo ao paciente identificar-se pessoal e profissionalmente consigo (p. 420).

Não obstante, acrescenta ela, “nós cometemos todos e cada um desses desvios da técnica clássica quando analisamos candidatos” (p. 421), pessoas que convivem em lugar tão próximo e vitalmente importante como é uma sociedade de psicanálise. Opinião a que Grotjahn (1954, pp. 254-262) acrescenta: “o paciente-candidato... é convidado a formar uma neurose de transferência numa tela distorcida pela realidade”. Imagine-se a projeção de um filme numa tela ondulante e teremos a vívida imagem do que Grotjahn queria dizer. Alguns remédios para essa situação já foram tomados em nosso meio: o analista didata não mais opina sobre seu analisando e procura-se evitar o convívio de ensino direto. Resta, é claro, a questão da filiação. Nos pequenos grupos psicanalíticos, é inevitável o conflito dentro da irmandade de analisandos de poucos didatas. Já nas sociedades maiores, o verdadeiro conflito estabelece-se entre os grupos transferenciais, que formam redes de poder e não raro autênticos exércitos em combate no interior da instituição. Contudo, esta não é uma razão para abandonar a prática da análise didática, mas para realizá-la mais conscienciosamente, já que estas redes se formam também em torno de supervisores de prestígio e de autores psicanalíticos, onde os há.

Em suma, o exagero no tom das denúncias contra a análise didática colabora para seu não esclarecimento. Se exigimos, com Valabrega, um campo de absoluta renúncia ao poder como condição sine qua non para a prática analítica, não só se torna impossível a análise didática, como também o exercício de toda e qualquer análise. Humanamente impossível, pelo menos, pois quem dirá que é de todo imune ao exercício de qualquer poder? O poder curativo, por exemplo, atrai o analista; ele deve procurar evitar seus abusos, mas nunca chega a eximir-se do desejo de curar, sob pena de estar simplesmente a racionalizá-lo. Nossa prática é uma luta de recuos contra impropriedades e deficiências — e, honestamente, assim deve ser. Absolutos morais conduzem à racionalização ou à apatia. É o que mostrava antes a propósito de algumas discussões entre didatas, em nossos pré-congressos. Começa-se por colocar certas exigências éticas muito louváveis; depois, essas exigências são radicalizadas; por fim, ao constatar que se exige o impossível, conclui-se que nada há a fazer, senão continuar tudo como está. O poder resultante da exigência intelectual de abstenção completa acaba por ser o da burocracia teórica e institucional que, em sua missão histórica de servir a qualquer ortodoxia, obstaculizando a criação do pensamento original, vê cair-lhe ao colo o controle da formação analítica, enquanto o pensador se retira da liça. Só uma dose de bom senso dá liberdade à criação. Pessoalmente, creio que o paradoxo da denúncia radical, como forma de manter o status quo, não deve ser menosprezado nas sociedades de psicanálise. A análise didática não é uma monstruosidade ética: ela pode ser bem ou malfeita, e isso depende, entre outras coisas, da abertura teórica das próprias sociedades. Se é verdade que sugestão sempre há, não é menos verdade que as sugestões podem ter caráter muito diverso na prática: pode-se influir para que um certo tema seja considerado pelo paciente, ou pode-se influir para que ele engula uma teoria inteira. Muito diferente em termos éticos e técnicos, não é mesmo? Concluindo: mais preciso e prático que exigir um campo de renúncia absoluta ao poder, podemos esperar do analista que conduza suas análises procurando andar em direção contrária à do exercício do poder.

 

5

A análise didática, afora tantas outras funções, desempenha o papel de protótipo para a imaginação psicanalítica. Quando dizemos que uma análise didática nada mais é que uma análise, isto também pode ter o sentido de afirmar que imaginamos toda e qualquer análise terapêutica como se fosse uma espécie de variação algo imperfeita da análise didática. Em nossa Sociedade, por muito tempo, os analistas mais experientes tiveram sobretudo candidatos em análise, o que explica sua teorização da prática ter sido fortemente influenciada por este modelo. Mas, na verdade, esta é uma idéia muito difundida, Lacan afirmou certa vez ser a análise didática a análise padrão. Como os candidatos já se submeteram, comumente, a uma análise terapêutica e, por outro lado, prevalece em parte do mundo psicanalítico a concepção de que toda psicanálise se deve desenvolver numa atmosfera de disponibilidade, que desloca o problema dos objetivos terapêuticos, os analisandos didáticos não exigem cura rápida, atuam menos e comportam-se melhor, segundo um código não escrito do bom paciente. Não é raro que o candidato faça muito mais questão de conservar o setting e de fazer com que seu analista siga ainda mais à risca a moldura psicanalítica habitual do que este mesmo desejaria.

Como resultado, embora os analista didatas queixem-se freqüentemente da dificuldade de analisar candidatos, pela incidência de teorização e de contaminações do quadro em função do ensino, o certo é que costumam referir-se à análise padrão como se fora didática. Por comparação, apenas poucas análises de pacientes comuns conseguem rivalizar com este ideal, retirado das exigências protocolares da análise didática. Número e distribuição de sessões, constância do uso de divã, mas sobretudo a ausência de atuações mais óbvias, de exigência de melhora imediata e uma disposição firme de ir até o fim distinguem geralmente os candidatos em análise.

É claro que este modelo tem seus inconvenientes. Se, por um lado, oferece a todos os analistas uma espécie de referência ideal, que pode servir como elemento de preservação do padrão psicanalítico, por outro, acaba forçando-os a criarem um tipo muito especial de regra de exceção. É comum no meio psicanalítico valorizar sobremaneira a distinção entre psicanálise e psicoterapia. Todavia, quantas psicoterapias feitas por analistas não são mais que análises com objetivos terapêuticos mais definidos, realizadas com um número menor de sessões semanais? Nesse caso, elas se distinguem realmente da análise didática, não da psicanálise como Freud a praticava, por exemplo. O paciente ideal, então, é na verdade o candidato. Se a análise imaginariamente perfeita é a didática, as exceções transformam-se em regra geral e quase tudo o que se faz na prática cotidiana é psicoterapia, do que decorre que encolha o universo da experiência considerada analítica e aumente exageradamente a área não legislada que é a da psicoterapia.

Por fim, no tocante à formação, surge um problema análogo ao do ensino médico nos grandes centros hospitalares: da mesma maneira que o estudante de medicina aprende a realizar um atendimento que depois não terá como manter no exercício corrente — dúzias de exames complementares, intervenções cirúrgicas sofisticadas —, o candidato começa sub-repticiamente, e sem consciência disso, a ser preparado para se tornar didata. Se não chegar a sê-lo, ou enquanto não o for, talvez sinta estar executando uma função menor, menos perfeita do que a psicanálise. No mundo do ensino, como em tantos outros, a idéia de transmitir uma forma de trabalho idealizado para que a prática habitual aproxime-se dela o mais possível é uma fantasia dominante. Provavelmente, seria muito melhor ensinar simplesmente a clinicar tecnicamente bem e teorizar a experiência que de fato vem sendo executada pelo candidato, ajudando-o a pensar sua prática, tal qual as condições concretas permitem que se dê, não como a imaginação a valoriza.

 

6

Uma das mais severas críticas dirigidas à análise didática é a de promover a infantilização dos candidatos15. Outra, a de ajudar os institutos a selecionar e promover os mais dóceis e medíocres. Examinemos ambas as acusações em conjunto, já que estão conectadas: aquele que se mantém infantilizado dificilmente chegará a ser inovador e crítico. Na verdade, esta crítica deve ser dirigida contra o sistema de formação como um todo, mais que contra uma parte dele. Desde sua institucionalização na década de 20, como sustenta Bernfeld, houve a expressa intenção de controlar os candidatos, ao menos tanto quanto de ensinar-lhes uma técnica e algumas teorias. Afirma aquele autor — “minha tese é a seguinte: a formação conduzida por nossas escolas profissionais (institutos) distorce alguns dos mais valiosos aspectos da Psicanálise” (Bernfeld, 1962, p. 458). A formação analítica é acusada, por diferentes críticos, de ser autoritária; limitadora da liberdade de pensamento; partidária com relação a certas correntes teóricas em detrimento do conjunto da Psicanálise; por fim, de promover a infantilização dos candidatos. Tudo isso se faz ver com mais força quando o grupo dirigente é gerontocrático, problema que não parece ser o nosso, ou quando opta por uma seleção estreita de dois ou três autores, que serão os únicos obrigatoriamente ensinados.

Do ponto de vista estrito da análise didática, o ponto parece ser outro. Idealmente, uma análise só se pode cumprir quando o analisando deseja analisar-se. Idealmente? Os analistas em geral seriam muito mais enfáticos que isso. Todos os anátemas do repertório psicanalítico cairiam de imediato sobre quem se propusesse a analisar alguém à força. Como resolver, pois, a contradição óbvia entre o desejo de se fazer analisar e a regulamentação da análise didática? A corda estoura sempre do lado mais fraco. Para não dar demasiadas voltas num problema já discutido, repetirei apenas que se espera de um candidato que deseje livremente analisar-se na hora certa e pelo tempo predeterminado. Ou seja, não só a consciência deve ser dócil, mas até o inconsciente!

Talvez, porém, o problema esteja um tanto deslocado, senão nunca teria solução. Por desejo, na formulação acima, entenda-se vontade. Pensando bem, esta é uma das mais comuns confusões terminológicas que costumamos cometer. Vontade é, basicamente, consciência e intenção; desejo é a matriz simbólica das emoções, sua fonte inconsciente de produção. Mas o desejo de analisar-se independe de regulamentos e em larga medida independe mesmo da vontade pessoal. Aliás, o que vem a ser o desejo de analisar-se? Para usar minha própria terminologia, que espero não resulte hermética para o leitor, o desejo de analisar-se nada mais é que a presença potencial do Homem Psicanalítico no sujeito que nos procura. Desejo de analisar-se é, portanto, a disposição intrínseca ao psiquismo, mas incrementada pela ação do método psicanalítico, a permitir que suas auto-representações entrem em crise, a que se rompam os campos do inconsciente que as restringiam. Tal disposição há ou não, e quando há, pode estar presente em graus diversos, segundo a constituição psíquica do sujeito. A análise de personalidades psicopáticas, por exemplo, é quase impossível, porque qualquer ruptura de campo ameaça o desencadeamento de uma psicose. Já a vontade de analisar-se, ato de liberdade, é determinada por inúmeras circunstâncias, desde o sofrimento psíquico até a conveniência econômica, passando, no caso presente, pela ambição a se tornar analista, sejam boas ou más razões que a motivem. De qualquer modo, é evidente que existe uma proposição contraditória na expectativa de que o analisando descubra, quase por coincidência, uma intensa vontade de análise justamente quando é aceito por um instituto. E, como sempre, paradoxos de conduta impedem o diálogo adulto.

Entretanto, penso que há um fator coadjuvante na infantilização do candidato, mas de tal monta que poderia mesmo ser considerado o fator principal. Aqui, sim, trata-se de um fenômeno ideológico bem-delimitado e inequívoco. Responda depressa, por favor: qual a teoria psicanalítica com maior sucesso de público entre os psicanalistas que conhece? Suponho que você tenha respondido o inconsciente, a resistência, a transferência, a sexualidade infantil, o complexo de Édipo, uma ou várias delas. Pois engana-se redondamente. A teoria psicanalítica de maior popularidade do mundo é a da mãe.

Que teoria é essa? Comecemos do começo. Nos tempos de Freud, as concepções genéticas lineares desfrutavam de grande prestígio. A idéia básica não é difícil de entender. Supunha-se que o estado presente de algo é produzido pelo desenvolvimento de seu estado imediatamente anterior, e assim por diante, até o mais primitivo. Alterações funcionais, aspectos contraditórios ou obscuros de algo eram geralmente atribuídos a resíduos anacrônicos do desenvolvimento. Os progressos da microscopia permitiam que a histologia e a embriologia dominassem o pensamento médico. O darwinismo popularizava-se extraordinariamente, até formar uma moda científico-popular. A lingüística evolutiva parecia também explicar quase tudo: os estudos sobre o sânscrito de M. Müller ambicionavam reduzir os meandros nevoentos da mitologia a equívocos devidos ao duplo sentido de palavras primitivas. Não resulta estranho em absoluto que Freud, que conhecia muito bem as tendências científicas vigentes — os exemplos acima estão todos mencionados em sua obra —, houvesse transposto para sua teoria do psiquismo o bem-sucedido princípio genético.

Depois, é claro, o mundo intelectual daria suas voltas inevitáveis e a gênese linear não haveria de gozar do mesmo favor científico. Porém, o movimento psicanalítico já recebera seu impulso inicial e o dever de manter-se fiel aos esquemas de pensamento canônicos. O analista médio, que é treinado a pensar em termos genéticos estritos, ora não crê com muita convicção em filogênese, símbolos universais ou na horda primitiva. Mas acredita na infância, evidentemente: no desvalimento da criancinha e no acolhimento materno. Sua teoria reduz, portanto, a concepção genética freudiana a um só de seus elementos: ao desenvolvimento imaginário da relação mãe-bebê. Segundo essa teoria popular, cada sujeito adulto seria, na verdade, um bebê disfarçado, à espera de encontrar tão-somente, dentro e fora de si, a mãe certa. O analista que recebeu essa influência desde o início da formação raramente chega a desgrudar-se do modelo interpretativo mãe-bebê. O defeito básico desse interpretante é que se remete a uma infância perfeitamente abstrata — não lembrada, não específica —, mas vem daí também seu sucesso, pois, sendo abstração, pode ser aplicada a todo e qualquer paciente, que será o bebê de seu analista, mãe abstrata.

Conduzidas segundo o modelo mãe-bebê, as análises didáticas verdadeiramente infantilizam o candidato, bebeificam-no, se se pode utilizar tão bárbaro neologismo. E se há convergência absoluta nos demais setores da formação, se as supervisões seguem o mesmo roteiro básico, se, no curso teórico, todos os textos da Psicanálise são lidos nesse registro e se até mesmo os trabalhos de crítica institucional usam o modelo mãe-bebê para explicar as relações nas sociedades e institutos, podemos concluir que a infantilização do candidato não é apenas um acidente indesejável, mas é um efeito colateral da proposta básica da formação. Se levarmos a linearidade genética às suas mais absurdas conseqüências, conclui-se que só chegando a pensar como um bebê a gente alcançará uma intuição realmente profunda dos fenômenos psíquicos.

 

7

A análise didática começou em São Paulo, em 1937, com a chegada da dra. Adelheid Koch, do Instituto de Berlim. Em termos gerais, a década de 30 assistia à ampliação dos objetivos e ambições da análise didática. Aquela época foi marcada, como mostra Balint (1954, p. 160), pelas queixas, feitas por Ferenczi a Freud, de que sua análise pessoal fora muito incompleta, não tomando suficientemente em consideração a transferência negativa. Ferenczi pretendia que o candidato deveria ser “melhor analisado que seu analista” e propunha uma “análise absolutamente completa”, na qual até as mais “recônditas fraquezas do caráter” pudessem emergir e ser tratadas. Freud, em Análise terminável e interminável (1937/1964, p. 234), mostra-se muito cético a respeito da possibilidade de uma análise absoluta, capaz de prevenir todos os futuros problemas de alguém. Na verdade, é difícil dizer quanto dessa discussão pode ter influenciado os inícios da formação em São Paulo, mesmo porque só nos anos 40, após a morte de Freud, a identidade do querelante veio a público. De qualquer maneira, o certo é que, concomitantemente à criação de nosso Instituto, consolidou-se a tendência a que Balint, um tanto ironicamente, se refere como tentativa de transformar a análise didática numa “superterapia”, segundo a proposta de Ferenczi.

Ao tentar compreender o sentido presente da análise didática no Instituto de São Paulo, creio que podemos tomar como hipótese provável a conjunção de pelo menos três fatores: a convicção de que a análise didática deveria ser sempre absolutamente completa (a “superterapia” de Balint), a aceitação implícita de sua obrigatoriedade, com regulamentação formal, e a referência kleiniana, que passou a ser dominante em nosso Instituto nos anos 60 e que depois derivaria para o sistema atual, klein-bioniano.

A regulamentação da análise didática vinha de fora, do estrangeiro, de um lugar altamente considerado, e inacessível em termos práticos, a IPA. Ainda me recordo de ouvir falar da IPA como se fora uma potência estrangeira a que estivéssemos submetidos de forma colonial. Não me espantaria, aliás, escutar o mesmo hoje e, para ser inteiramente honesto, depois de termos, os brasileiros, participado de alguns encontros de cúpula da IPA, não posso dizer que a imagem esteja despida de toda razão. Assim, não só os parâmetros da análise didática — quatro ou cinco vezes por semana, cinco anos, um ano prévio ao começo dos cursos e, hoje, a questão dos dias separados — foram aceitos e geralmente praticados, como, o mais importante, quase nunca foram discutidos abertamente para saber se são ou não são os melhores e se podem ser derivados racionalmente das exigências inerentes ao método psicanalítico. A propósito, mesmo no âmbito da IPA esta discussão raramente tem se dado abertamente: não posso esquecer a estranheza que gerou uma pequena observação minha, feita durante um encontro internacional16, sobre ser a questão da freqüência um problema de técnica ou de regulamento, mas não uma característica definidora do nosso método.

Regulamentos são convenções práticas. Entretanto, se se agrega ao fato de haver um regulamento, a pretensão a uma análise absolutamente completa, o resultado pode ser paradoxal. Principalmente se este objetivo fica obscurecido por uma negação, expressa, no caso, pela asserção repetida de que a análise — a didática inclusive — não tem qualquer objetivo definido, senão o de promover crescimento mental. O resultado paradoxal é simplesmente que as exigências regulamentares perdem toda a importância, porque o candidato, para merecer chegar a sê-lo, deve aspirar a submeter-se a uma análise muito mais profunda e extensa do que a que se lhe exige.

Quão completa? Aqui intervém o fator teórico-ideológico. Como as teorias que servem de base a nosso trabalho, em São Paulo, postulam perturbações muito primitivas do desenvolvimento da psique — Leitmotiv do pensamento klein-bioniano —, uma análise completa teria de literalmente chegar ao ovo. A forma concreta de semelhante exigência, contudo, não chega a ser tão radical. Ou talvez seja ainda mais radical, porque entre nós tornou-se costume atribuir à “falta de análise” qualquer deficiência prática ou teórica do analista. Tudo se passa como se a análise didática, mais do que ser uma das precondições para o exercício da psicanálise, juntamente com a capacitação teórica, a educação da sensibilidade, a cultura geral, a experiência de vida, o desenvolvimento técnico, etc., fosse a autêntica pedra de toque da formação analítica. No fundo dessa crença na onipotência da análise pessoal — que não sendo idéia de ninguém, parece ser de todos — estaria, por conseguinte, a convergência dos três fatores históricos acima: regulamentação, superterapia e ideologia teórica. Ela atende ao regulamento da IPA, pretendendo ignorá-lo por suplantar suas exigências; atende à completude ferencziana, justamente por negar-lhe a possibilidade, propondo, em lugar do analista completamente analisado, um analista que nunca deixe de se fazer analisar; atende à teoria local, ao ambicionar ir sempre mais para trás, rumo ao recanto mais primitivo na mente.

Os começos históricos da análise didática, em São Paulo, não continham tais pressupostos de maneira explícita. Ao contrário, como é comum nos tempos pioneiros, beneficiavam-se de certa precariedade criativa. Flávio Dias — numa intervenção bem-humorada na reunião sobre a História da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que nosso departamento cultural organizou em 1985, completada por uma entrevista para o extinto Folhetim, da Folha de S. Paulo — lembra os idos de 1937, quando a dra. Koch começava a atendê-lo e ao prof. Durval Marcondes em análise didática. Parece que, embora já começando a entender o português, depois de um ano de estada, a doutora tinha dificuldade com certas expressões mais coloquiais ou chulas de nossa língua falada. Assim, segundo Flávio Dias, Durval Marcondes teria preparado uma lista seleta de expressões muito fortes para a época, que lhe pretendia entregar na sessão seguinte. Por azar, porém, a malfadada lista ficou no bolso de um terno que a esposa do professor conscienciosamente inspecionou antes de mandar ao tintureiro. Descobrindo a lista, ter-lhe-ia dito: “Então, Durval, é disso que vocês falam nessa tal de psicanálise?”

Por muitos anos, os didatas em São Paulo foram poucos. Quando entrei no Instituto, em 1971, não era possível sequer completar o número estatutário da Comissão de Ensino, razão pela qual nunca se votava essa função. O rápido crescimento da Sociedade converteu essa escassez num problema sério, pois os analistas didatas passaram a ter sua clínica quase que só composta de candidatos. Com isso, não era possível apresentarem trabalhos clínicos, mas a acusação mais séria que se lhes dirigia então dizia respeito ao poder absoluto que os didatas concentravam, à formação de clãs transferenciais e ao monopólio econômico da formação. Tais acusações podem ser vistas hoje de forma algo relativizada, pois a Sociedade então era como uma família grande, na qual poder, proselitismo e dinheiro geram violentas discussões... à mesa de domingo. Na segunda metade dos anos 70 e no começo da década seguinte, não obstante, houve uma concentração real de poder por parte de um grupo ideológico dominante na Sociedade. Então, foi ativamente obstada a promoção de novos didatas e abandonada a seleção formal de candidatos, cabendo ao analista decidir pessoalmente sobre a aceitabilidade de alguém para análise e condição de ser analista17. A Sociedade já não era pequena e as filas de espera de pretendentes cresciam de maneira notória. A suspeita de que se tinha estabelecido um monopólio da formação por parte de um só grupo chegou até à IPA. Agora, sim, o ideário da análise didática, registrado acima, tornara-se plenamente efetivo. Por exemplo, corria a voz de que era necessário, além da análise regulamentar, submeter-se a uma reanálise com a pessoa certa para chegar a ser didata. Houve uma reação em 1982; a partir daí, novo grupo dirigente reformulou os estatutos e buscou contornar a falta de didatas, por meio de eleição por assembléia. Quando a modificação já fora feita, porém, e já se cuidava da questão das filas de espera, foi que o Conselho Executivo da IPA decidiu-se a intervir sobre a situação passada, durante o Congresso de Montreal, em 1987. Como resultado, nosso Instituto ficou fechado ao ingresso de novos candidatos por anos e a inda hoje a seleção é um tema delicado. Talvez o produto final desses eventos venha a ser, paradoxalmente de novo, o de fazer com que a análise didática se torne talvez ainda mais idealizada, agora como atestado de passagem por um crivo improvável: o da seleção para o Instituto.

O desafio que nos cabe responder no futuro próximo pode ser, por conseguinte, o da desideologização da análise didática. Ao fim da apresentação à Sociedade Britânica, em 1947, do trabalho ao qual tantas vezes voltamos, Balint acusa os candidatos de “serem facilmente intimidados e dependentes... jurando cegamente pelas palavras de seus mestres”. “Mais graves são as acusações contra nós, os analistas didatas”, continua ele, citando Freud, em Linhas de avanço na terapia psicanalítica, 1919 [1918]: “rejeitamos enfaticamente que... (o analista), com a arrogância de um Criador, forme o paciente à sua imagem e semelhança e diga que está bom” (Balint, 1948, p. 172). Naquele tempo e contexto, o problema central era o autoritarismo declarado do sistema, que se refletia nas análises. Hoje, entre nós, a desideologização passa felizmente por um caminho menos espinhoso: basta sermos todos um pouco menos crédulos nas virtudes de nosso modelo teórico único, na onipotência da análise pessoal e na supremacia das instituições estrangeiras.

 

8

Revendo o primeiro texto que produzi sobre análise didática, para o já mencionado Congresso da Fepal de 1986, no México (Herrmann, 1986b), encontrei um fragmento que pode ser uma variação amena, no contexto de tantas críticas maiores. Pelo menos, pese a ser produto de minhas primeiras impressões como didata, não é opinião que tenha renegado com os anos.

Estou diante de meu analisando. Estamos sós? Nem tanto. Por trás de nós, digamos assim, posta-se a sociedade de psicanálise e seu instituto. À nossa frente, o exercício analítico do candidato, que já o pratica e dele se quer assenhorear. De um lado, uma instituição, de outro, a população de outro consultório. Encaremos ou não este fato, ele penetra nosso espaço analítico, determina nossa posição recíproca, confere uma especificidade ao surgimento do desejo. Uma instituição, um analista, um candidato, seus pacientes. Idealmente, creio, a análise didática não se diferencia: é análise simplesmente. Isso, todavia, como meta e intenção, pois nossa prática revela algumas idiossincrasias.

A primeira delas, nessa rápida revisão pessoal, é o sentido particular das teorias utilizadas na interpretação. Toda análise compreende um sistema interpretante, um acervo de teorias que a norteia. Em parte, elas estão nos livros. Entretanto, a seleção de teorias dominantes e a filtragem do sentido que lhes atribuirá o analista é antes obra grupal. Dentro de cada sociedade, formam-se correntes de opinião e, sobretudo, uma espécie de modus vivendi, cujos valores são bem mais operantes do que as grandes teorias professadas nas bibliografias de trabalhos clínicos. Ideologias, pode-se dizer. São núcleos de identidade, mais ou menos retirados das teorias dominantes, que definem as virtudes básicas de um analista. Cada qual reflita sobre sua própria instituição. Tolerância à frustração pode ser o lema de um grupo. De outro, a desobstrução do caminho da experiência ou o anti-racionalismo, que às vezes chega a induzir um clima contrário a toda forma de manifestação cultural ou até de teorização — coisa que já configura uma teoria ideológica, com certeza. Freqüentemente, as sociedades psicanalíticas pensam em si mesmas como grandes famílias, pais e filhos e um difuso Complexo de Édipo.

Tal cultura psicanalítica, um tanto igual, um tanto variável de sociedade para sociedade, constitui a fonte teórica de inúmeras interpretações nas análises didáticas. Em qualquer análise o fenômenose dá; porém, na análise didática, ele posiciona os parceiros do jogo de maneira muito especial. É que o analisando participa do próprio grupo ideológico ou nele se quer introduzir. Disso resulta, sabemos, um monumental ponto cego, ou melhor, um sistema adesivo, grudento. Quando um candidato escuta a interpretação fundada nos cânones grupais, primeiro, nos meses de iniciação, vê-se diante de um modelo nebuloso, porém desejável, de conduta humana ideal a que quer aderir. Confunde-o depois com ser analista e, por fim, vicia-se na forma canônica — como numa droga qualquer —, exigindo de seu analista que lhe aponte constantemente as falhas de cumprimento da moda psicanalítica aceita. De sua parte, procura identificar-se com as qualidades exigidas. Pode ser que deva eximir-se de toda patologia, ao que se convencionou chamar normalidade medíocre; pode ser, o que entre nós é mais comum, que deva ostentar uma patologia mínima aceitável — alguma neurose, um núcleo psicótico, o mínimo de doença, em suma, para ser considerado normal, e não arrogante, por exemplo.

A par disso, naturalmente, a análise pode prosseguir com frutos. Contudo, a convergência de interpretações baseadas na microcultura grupal, ouvidas na análise, nas supervisões e de colegas, limita decisivamente a manifestação de aspectos contrários do desejo. Numa palavra, a forma de representação dominante de um dado grupo psicanalítico tende a converter-se em teoria interpretativa, depois em norma de vida e critério de cura para o par analítico.

Além disso, há algo mais numa sociedade de psicanálise. É um dos poucos lugares donde não existe saída ou aposentadoria. Não nascemos nela, mas geralmente nela permanecemos até morrer, enterrando nossos mortos entrementes. Isso lhe empresta um ar definitivo, em que a inaceitação repercute como sentença capital, não raro significando uma meia-morte profissional. É compreensível portanto que o candidato se precavenha, adotando uma família postiça, com todas as lealdades e ciúmes. Assim, o desejo encontra novo limite de manifestação na análise, ou pelo menos uma posição especial. Seja o didata um chefe de grupo, seja um dos seguidores menores — circunstância ainda mais grave, porventura —, a curiosidade teórica do candidato pode facilmente ser interpretada como arrogância ou traição do patrimônio familiar e, reciprocamente, a contestação de sua família originária acaba por expressar-se num repúdio experimental pela corrente teórica ou ideologia do analista.

Reina então, em diversos momentos de análises didáticas, um princípio educacional afetivo que, noutro contexto, batizei como a regra do des/obede/serás18. É preciso que sejamos induzidos (pelo grupo, pelas instituições) a descumprir com um dos modelos de conduta, emoção ou pensamento vigentes, para que o ambiente possa efetuar uma ação corretiva, aparentemente natural, que determinará a forma futura de nosso ser. Serás no futuro aquilo a que desobedeceres hoje. A análise pode participar de tal função. Desvios do modelo cultural são interpretados como prenúncios de catástrofe, quando o próprio modelo representa a teoria interpretante do analista didata, e qualquer incidente de vida, provocado ou não pela instituição, é traduzido de imediato como confirmação do castigo esperado. Trata-se, portanto, de uma pedagogia conformadora, de âmbito ontológico, originalmente constatável nos sistemas familiais, porém inteiramente operante como referência nas análises didáticas. Um núcleo identitário, expresso em nossa fórmula pela raiz obede, que substancia certo modo de ser analista, veicula-se pela tensão entre a resistência (des) e o futuro (serás), fixando o sistema transferência-contratransferência na reprodução ininterrupta do mesmo modelo identitário.

Não creio que se siga, dessas considerações, a impugnação pura e simples da análise didática. Pelo contrário. Uma ilação coerente é que a análise didática vem a ser o lugar onde suas próprias contradições devem ser superadas. Para tanto, é indispensável ter presente o caminho pelo qual o projeto pedagógico indesejável penetra no trabalho analítico, à revelia do par. Já vimos que uma das portas de entrada é a transformação da cultura grupal em teoria interpretante, com o feitio de moda. Outra via de penetração, nada desprezível, é a identificação dos conflitos intrapsíquicos, derivados das vivências originais infantis, com as figurações institucionais de poder e conhecimento. Tanto os obstáculos inerentes à carreira psicanalítica, que vão desde a possibilidade de recusa do candidato nalgum grau de seu progresso institucional até à dificuldade de dominar nosso complicado ofício, quanto as representações de aquisição de capacidade analítica acabam por reencarnar os primitivos elementos de ambivalência e competição, como é sobejamente conhecido. Constitui-se agora um código de comunicação, específico da análise didática e aceito pelos parceiros do processo, que traduz todas as vivências presentes em termos primitivos e reciprocamente privilegia a transferência institucional. O campo transferencial, por tal descaminho, imiscui-se no Instituto e Sociedade, as relações são sempre remetidas ao conflito edípico.

Ora, seria justamente aconselhável que se cuidasse de compreender as instâncias formadoras em seu nível próprio, os conflitos atuais em sua dimensão presente, ciência como ciência, política como política, afastando de vez a pesada metáfora das relações familiais, pais, filhos, irmãos, como interpretação corrente das relações institucionais. Quem sabe assim a análise didática desse um passo para ser simplesmente análise, sendo a Sociedade, sociedade científica e nada mais. É preciso convir em que o vazamento transferencial para a formação não é obra apenas do candidato, mas passa também por um código lingüístico de corte regressivo, que empobrece e faz monótona a comunicação nas sessões e torna a vida institucional viciada em interpretações transferenciais. Temos cuidado, em nossa Sociedade, de desligar inteiramente a análise didática do sistema de aprovação, impedindo o didata de pronunciar-se sobre seu candidato em qualquer instância e procurando evitar as interpretações transferenciais como tradução dos conflitos formativos do instituto.

Por último, vale a pena dedicarmos algumas linhas à presença dos pacientes dos candidatos no campo transferencial. De fato, e até de direito, a análise didáticafunciona como parâmetro e modelo para o candidato em seu trabalho profissional. Aí são tratadas as angústias da clínica, a supervisão conta com tal apoio para complementar seu exercício, e, mais, há uma inegável tendência à mimetização do próprio analista, nos princípios de nossa atividade analítica. O ponto que pretendo destacar, entretanto, é a presença de uma supervisão oculta no íntimo da relação analítica dos candidatos, que toma algumas feições características. A primeira delas, a mais direta, é a apresentação de material de pacientes na sessão, à espera de luzes superiores. Até aí, nada de mais. Porém, a complicação surge quando uma identificação aparentemente intensa com um próprio paciente leva o candidato a adoecer em consonância, usando inconscientemente a análise como campo de prova. O candidato diagnostica-se através da própria clientela, funde análises, utiliza às vezes um paciente como duplo-enfermo, para comunicar seus conflitos pessoais. Ou, inversamente, algum paciente transforma-se num emblema identitário, numa neurose de empréstimo. Tende o candidato a transplantar a seus pacientes a patologia mínima, aceita por seu grupo formativo como normalidade concebível. Menos que esse mínimo, seria tratado de ingênuo por colegas e supervisores; mais, de afoito. A mesma patologia teórica que, supõe, todos os homens experimentam, dissemina-a entre seus pacientes e a trata como sua, na própria análise, através de um circuito de duplo empréstimo. Pois bem, tanto a rejeição taxativa da supervisão oculta, quanto, está claro, a confusão de papéis que decorre da aceitação da proposta de supervisão constituem equívocos a evitar. Só a minuciosa e fina discriminação das identificações é resposta adequada. No fundo, estamos aí para isso mesmo. Para mediar um desenvolvimento clínico, não, porém, como modelo pessoal, mas como eixo de transformação da vida psíquica do candidato em instrumento terapêutico ativo. Acolher interpretativamente uma clientela vicariante pode ser, por conseguinte, um dos nós mais complexos e estimulantes da tarefa didática.

 

9

Percorremos até aqui alguns dos caminhos históricos que criaram a análise didática tal como é hoje praticada. É hora de fazer um balanço final dos resultados.

Nossa primeira constatação é que boa parte dos textos que discutem sua história, fazem-no de forma crítica, às vezes virulenta. A que se deve isso? É que uma visão histórica suprime toda a ingenuidade. Tendemos a acreditar que a Psicanálise é uma criação abstrata, obra do espírito humano que se deseja desvelar melhor para si mesmo. Como tal, teorias, técnicas e as instituições vigentes são em geral discutidas como se fossem necessárias ou pelo menos fruto de uma reflexão descomprometida, quando, na verdade, todas elas chegam a nós respingando sangue histórico. No caso presente, a análise didática é, como vimos, produto de lutas complicadas dentro do movimento psicanalítico e reflete, por isso mesmo, os lances dessas pelejas: a formação do primeiro grupo psicanalítico em Viena; a criação da IPA; a morte anunciada de Freud e a criação do Instituto de Berlim; as duas guerras mundiais; a campanha de independência norte-americana contra as exigências do Comitê Internacional de Formação e contra Jones, em especial a busca de aliar a Psicanálise à Associação Psiquiátrica Americana, como especialidade médica; as controvérsias kleinianas e o esforço da Sociedade Britânica de manter-se unida e preponderante no movimento internacional, conseguindo reter a sede burocrática da IPA; as cisões na França; a tentativa de firmar a hegemonia atual do Conselho Executivo da IPA, por meio do constante apelo à questão dos standards, e o germe de oposição que começa a encontrar por parte das Sociedades Componentes. Chegamos até à fundação das sociedades e dos institutos latino-americanos, particularmente o de São Paulo, que nos interessa, verificando que, entre nós, reina uma espécie de naturalização da idéia de análise didática, que nos leva a considerar aquilo que se produziu em circunstâncias históricas muito especiais como resultado de uma reflexão pura sobre as conveniências do processo de treinamento psicanalítico. Quem se debruça sobre a história concreta — mesmo aqui, quando o faço por encomenda expressa do Jornal de Psicanálise —, já não consegue fechar os olhos a quanto de circunstancial há em nossa formação presente. Os autores que nos serviram de referência estavam quase todos empenhados nalguma controvérsia sobre a formação e encontraram na história as provas de que as coisas, embora sejam assim como são, poderiam ter sido diferentes e podem vir a ser diferentes, caso nosso movimento siga novos caminhos.

As críticas dirigem-se principalmente ao papel doutrinador que têm as formações e à possibilidade de a análise didática colaborar na doutrinação. Controle autoritário, infantilização dos analisandos, poder dos didatas, manutenção doutrinária do corpo teórico psicanalítico, impedimento de criatividade teórico-clínica dos candidatos são as censuras mais ásperas que tem merecido a instituição da análise didática. Em minha opinião, cada uma dessas críticas tem alguma justiça, a certas observações aliei-me, juntando novos argumentos críticos. Entretanto, é igualmente justo dizer que as próprias críticas, tanto quanto a análise didática, são fruto de circunstâncias históricas precisas: na realidade, das mesmas circunstâncias ambas, vistas apenas de ângulos distintos. Enquanto os aparelhos de poder iam ditando regras, alguns analistas, nem sempre externos a esses aparelhos, procuravam opor-se; isso nos vale, no mínimo, para meditar sobre a arbitrariedade histórica dos organismos de suporte das ciências, da nossa em particular, e em como as teorias dominantes são selecionadas de acordo com as marés do jogo de influência política, pelo menos tanto como por sua efetiva capacidade em responder a certos problemas do conhecimento.

Que resta de todas essas críticas? Serão apenas queixas dos perdedores do jogo político? Essa visão tão popular quanto cínica não parece digna de nossa consideração. Resta, sim, um convite à reflexão e ao aprimoramento. Antes de mais nada, caro leitor, é preciso convir numa crítica final. E esta é a seguinte: se a história da análise didática é feita de críticas, conforme afirma o título deste artigo, isto se deve primariamente ao fato de não ter sido matéria de pensamento construtivo. Quero dizer com isto que, se as decisões acerca de como regulamentar a formação tivessem resultado de um debate aberto e livre entre os pensadores da Psicanálise, dificilmente estes teriam de recorrer tão pesadamente à crítica do produto final. Quando, ao pensar um problema, creio que meus argumentos possam vencer pela força de suas idéias e, nesse caso, modificar de imediato a realidade, não me sinto impotente ou amargo. Contudo, tem pesado uma proibição sobre o pensamento metodológico a propósito da análise didática; assim, a única forma de reflexão passa a ser a denúncia crítica, pois o pensamento mais elevado não se sente acatado como legislador, quando prevalece a regulamentação burocrática das comissões. Diante do poder administrativo, o analista que tem um projeto de pensamento e escrita é extremamente vulnerável: se, além de atender seus pacientes, deve dedicar 20 ou 30 horas semanais ao trabalho intelectual, ele só consegue acumular funções políticas quando apoiado unanimemente por toda a instituição; basta que surja uma pequena oposição, e o tempo de enfrentá-la já ultrapassa sua escassa disponibilidade. Só lhe resta, então, usar sua arma frágil: ele escreve, como vimos até aqui.

Outra pequena conclusão diz respeito ao fatalismo reinante com relação ao problema do submetimento e falta de criatividade do analista-candidato. É costume creditar à força da transferência o fato de que as teorias dominantes num local e os mestres ou prepostos de mestres que as encampam formem seus séquitos de discípulos dóceis. E se tudo vai por conta da transferência, então é inevitável, ou vamos analisar sem transferência? O exemplo mais taxativo que se costuma apresentar dessa aparente fatalidade é o destino da escola criada por Lacan19. Lacan abandonou a IPA e formou um movimento que primava pela denúncia contra o poder dos mestres; no entanto, qual mestre terá imposto com mais força que ele um estilo e sua autoridade? Fatalidade transferencial, pois? Qual nada! Projetos conseqüentes. O que se passa, com a IPA e com o lacanismo, é que a Psicanálise tem convivido com um projeto altamente contraditório. Ela constitui uma zona do saber na qual as verdades teóricas são tênues e pouco demonstráveis. Assim, seu destino só pode ser o de produzir constantemente, explorando sempre novas áreas que não foram ainda objeto de investigação teórica. Chover no molhado, detalhando e reafirmando conceitos conhecidos, embora possa fertilizar outras formas de saber, em que o acúmulo de experimentos leva à ruptura de paradigmas anteriores — como sustenta uma das teorias do conhecimento mais em voga entre os psicanalistas, a de Kuhn —, não irriga em nossa disciplina, só faz poças d’água. Todavia, justamente por isso, desde Freud faz-se um esforço consciente para manter um corpo doutrinário intocável. Não consigo imaginar outro exemplo de ciência em que alguém afirmasse algo parecido com a conhecida exigência de Freud acerca das crenças mínimas a serem aceitas para que alguém se possa chamar psicanalista. Quem conceberia Einstein escrevendo que, para se dizer físico, o postulante deve acreditar no tempo e no espaço, ou em sua relatividade? Ou que Weber exigisse daquele que se pretende sociólogo declarar sua adesão explícita à teoria dos tipos ideais? Tendo muito pouca coisa provada e, com isso, escolas e correntes que se contradizem frontalmente, estamos na situação paradoxal de precisar produzir livremente sempre as mesmas conclusões — as da psicanálise freudiana e, depois, as da escola dominante em cada lugar. Por isso, o projeto de formação, dentro ou fora da IPA, envolve um capítulo não escrito de submetimento intelectual, muito parecido ao que se exige do postulante a qualquer designação religiosa. Assim, mesmo denunciando o projeto alheio, qualquer escola só pode formar-se afirmando um cânon novo e mantendo-o à custa da transferência analítica dos discípulos.

Se a análise didática tivesse apenas esta função, penso que a deveríamos proscrever. Mas não sendo este o caso, é melhor proscrever apenas a doutrinação escolástica, abrindo o ensino, em cada lugar, ao pensamento direto sobre os problemas da alma humana, sem ligar o estudo e a clínica ao seguimento de uns tantos autores. É claro que a transferência das análises dos professores dificulta este projeto tão sensato, assim como outros fatores que não cabe aqui enumerar. Mesmo sem ainda poder mudar a realidade só por pensá-la, pensar um pouco não custa nada. Pensemos, pois.

O movimento de transmissão de uma forma humana qualquer, seja a de ser humano, seja uma profissão, arte ou ciência, tem de atravessar um estreito e decisivo desfiladeiro. Nalgum momento, quando entre uma e outra gerações há que se transmitir o como ser ou o como fazer algo, é mister que se passe apenas a essência da arte em questão, num sentido lato, e não as idiossincrasias do sujeito transmissor. Mas, como separar uma coisa de outra? Num texto recente (Herrmann, 2001c), procurei mostrar que, desde a antiguidade mais remota e nas culturas ditas primitivas, o culto dos antepassados tem servido a este propósito. Em poucas palavras, o processo funciona assim. Erige-se uma estátua ou qualquer outra forma de representação que fixa a forma mínima e essencial do aspecto humano a ser transmitido, que leva o nome de um ancestral prestigiado. Destarte, quando o mais velho e o mais novo prostram-se juntos diante do símbolo do antepassado, aquele transmite a este um como ser ou como fazer essencialmente algo, porém sem reivindicar para si a autoria nem impor ao outro suas próprias peculiaridades. Além disso, a agressividade despertada pela sujeição já não se dirige a ele, ao mais velho, mas ao antepassado, reverenciado por ambos. No caso da Psicanálise, fazemos o mesmo com Freud, no lugar de ancestral modelar.

Óbvio, este é um recurso ligeiramente primitivo, porém humaníssimo e — por que não o dizer? — inteligente. O que pode acontecer, entretanto, é que novos antepassados sejam inscritos na lista, como Klein ou Lacan. É que os transmissores, professores ou autores atuais, também desejam poder passar suas características, mas estão divididos entre o temor ao ataque da nova geração e a ambição de criar sua própria escola. Nada melhor que erigir outro antepassado, desde que este seja depositário do desejo de perpetuidade de cada um de nós. O resultado, então, é uma luta entre correntes, cada qual buscando derrubar a estátua alheia, de maneira parecida à das chamadas guerras raciais da Ilha de Páscoa, discutidas no texto acima citado. Haverá solução melhor? Creio que sim. É possível conservar uma estátua de Freud, mas que esta não seja simplesmente a do conjunto de suas teorias — estas merecem melhor destino, o de serem estudadas com cuidado e senso crítico —, mas, como propus certa vez, feita, por exemplo, à imagem de seus charutos: estes que o ajudaram a pensar e depois se esfumaram, pois imagino que ninguém se sinta dono dos charutos de Freud (Herrmann, 12 jun. 1993). Ao mesmo tempo, temos o método psicanalítico, criado por ele para produzir conhecimento e cura. Sendo a forma essencial de nossa disciplina, não tem dono também, não carrega idiossincrasias, só tem o problema de ser um tanto desconhecido, ou antes, de estar algo esquecido e misturado com idiossincrasias de escolas. Se o ensino da Psicanálise voltar-se à prática direta do método, procurando pô-lo em evidência e fazê-lo produzir conhecimentos fora dos cânones estabelecidos pelas escolas, talvez se possa superar o paradoxo da transmissão: nem será minha cara nem a sua que se vão implantar, nem um nem outro seremos atacados como usurpadores e tampouco estaremos condenados a descobrir, livremente, sempre a mesma coisa.

Imagine-se um instituto de formação onde cada professor estivesse desenvolvendo um projeto pessoal de investigação sobre determinado aspecto da alma humana. Alguém estaria estudando o sentimento de alegria, outro talvez se interessasse pelos jogos de poder no casamento, um terceiro poderia estar fazendo uma revisão crítica das metapsicologias, para saber qual o rendimento de cada uma na produção de interpretações com pacientes de perversões, etc. Os temas, é óbvio, não importam demais nesta fantasia, basta que se afastem dos assuntos-clichê das escolas — é possível que alguém estivesse até interessado numa análise crítica de alguma delas. Os candidatos poderiam acompanhar tais investigações em seminários, que haveriam de cobrir tanto a pesquisa em si mesma, quanto os textos clássicos que fossem considerados necessários para introduzir-se ao tema específico e à investigação psicanalítica de modo geral. O tempo de acompanhamento de um certo seminário dependeria do interesse e rendimento da pesquisa. Alguns professores especializar-se-iam no ensino das bases metodológicas da Psicanálise e outros nos fundamentos teóricos freudianos, a fim de proporcionar um curso introdutório. Com isso, já teríamos todo o necessário para um ensino não-escolástico, pois quem acompanha a investigação temática num setor do psiquismo está logo inclinado a escolher algum outro setor da psique para estudar, de preferência algo que ainda não foi tocado ou permanece muito obscuro. Foi assim que nasceu a Psicanálise, nada impede que se desenvolva assim, dentro do espírito das reuniões psicológicas das quartas-feiras, que Freud fazia com seus colegas. Suprimida a luta de posições entre as escolas, restaria, como fator principal, a curiosidade científica,

Num sistema como este, nenhuma linguagem ou cânon conceitual poderia ser tão dominante a ponto de implantar-se nas supervisões e análises, criando o fenômeno de emolduração. Qual o papel da análise didática nesse caso? Transmitir a forma psicanalítica em estado puro. Pois indiscutivelmente a idéia de análise didática não é má. Ela invoca, em primeiro lugar, a utilidade de um analista conhecer-se razoavelmente para suportar os trânsitos emocionais que sua prática clínica exige. Depois, e nisso talvez esteja a especificidade da análise didática, o fato mesmo de experimentar reorganizar-se emocionalmente, estudar a forma de seu próprio pensamento e de seus afetos, compreender como diferentes relações o tocam de uma ou outra maneira constitui um ensinamento muito especial. Experimenta-se o poder do campo transferencial, a eficácia das resistências e como elas são eventualmente vencidas, prova-se o efeito interno das interpretações. Ou seja, a análise didática, sem deixar de executar-se no geral como uma análise terapêutica, transmite excelentemente uma forma de operação, que é a do método psicanalítico.

Pesando num prato as críticas todas que se fazem contra os desvios da análise didática, em particular contra os propósitos de sua regulamentação, e pondo no outro prato esta simples função de transmitir a forma psicanalítica, penso que o fiel da balança se inclinará para o positivo. Uma análise levada a efeito num ambiente isento de excessivo proselitismo, sem escola única, uma análise permeável à experiência analítica do próprio candidato com seus analisandos e em que o desejo de analisar-se não seja imposto, mas só tomado em consideração, não pode ser alvo de críticas ferozes.

 

10

E o problema da superterapia? Como lidar com a fantasia de que uma análise substitua tudo o mais, por ser tão completa que esvazie o inconsciente inteiro?

Há anos, quando ensinava em certa faculdade, uma aluna perguntou-me, com séria e sancta simplicitas, se era verdade que o sujeito analisado já não tinha inconsciente e, nesse caso, também não sonhava. Eu acabara então de ter alta de minha análise didática e contei-lhe. Ela quis saber como era. Quanto aos sonhos, expliquei-lhe que ainda sonhava, porém que meus sonhos já vinham com interpretação em sublegenda. Apenas, como meu analista era estrangeiro, as legendas estavam em italiano, e muitas vezes eu não as conseguia entender. Logo, um resto de inconsciente sempre havia.

Pois bem, para combater essas fantasias basta um pouco de bom humor. Há outras fantasias que também pedem o mesmo tratamento. Algumas pessoas pensam que uma análise só responde ao interesse pelo conhecimento. Outras que o desejo de analisar-se é o único tema da análise didática. Às vezes se escuta que a cura e o alívio de sofrimento não têm nada a ver com o tratamento analítico. Ou que o corpo e suas sensações não cabem em nossa prática. Que o futuro analista só deve ser movido pelo amor à Psicanálise, não por interesse profissional. Ou que, como analistas, não podemos experimentar desejo algum. Existe, ao todo, um código imaginário de bom comportamento que tem mais peso na orientação ideológica de nossa prática do que os 24 volumes da obra de Freud juntos, e cujo selo distintivo é, sem qualquer sombra de dúvida, a abstração do homem concreto. Ao escutar conselhos desse tipo, recorde-se da história seguinte, com a qual termino este já longo artigo.

Quando se constrói um edifício religioso, é prática obrigatória da Igreja Católica que a planta seja aprovada por uma comissão do Vaticano. Trata-se de uma espécie de nihil obstat formal, a exemplo daquele que se dava aos livros religiosos. Certa feita, uma congregação planejava edificar um seminário, aqui no Brasil, cuja planta teve de ser, competentemente, submetida ao Vaticano. Veio a permissão, porém com um só reparo em latim: sunt angeli?, são anjos?, perguntava o encarregado. A princípio, a congregação pensou que fosse algum tipo de elogio à santidade do projeto; até que, revendo a planta, descobriu-se que o arquiteto não planejara nela banheiro algum!

 

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* Com algumas alterações, este artigo foi publicado em: Slavutzky, A., Souza Brito, C.L.& Souza, E.L.A. (1996) (Orgs.). História, clínica e perspectiva nos cem anos da psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
** As notas de rodapé e citações foram mantidas, porém convertidas para os padrões ora adotados pelo JP. Para familiarizar o leitor com algumas características da SBPSP na época da produção do artigo, introduzi notas, assinaladas pelo sinal de asterisco. Atualizei também as referências bibliográficas dos livros de Fabio (L. H.).
1 Colaboração na pesquisa históricobibliográfica de Sandra Lorenzon Schaffa e Leda Affonso Figueiredo Herrmann. Agradeço a Vera Sevestre e Irene Pereira o levantamento bibliográfico prévio. A tradução de citações, no texto e nas notas, é de responsabilidade do autor.
2 1944-2006. Analista didata da SBPSP
3 De 1987 até o final da década de 90, a SBPSP viveu sob o regime de intervenção branca da IPA. Primeiramente, interrompeu-se por quatro anos o processo de seleção de novos pretendentes à formação analítica. Em seguida, foi proibida a prática da análise condensada (freqüência a mais de uma sessão num mesmo dia), que durante anos propiciou o acesso à formação a colegas do interior e de outros Estados, favorecendo a expansão do movimento psicanalítico para além da cidade de São Paulo.
4 O autor refere-se ao século 20.
5 Esse sistema esteve vigente na SBPSP de meados dos anos 80 a meados dos anos 90.
6 Aqui ele dá seu apoio à iniciativa da “escola de análise de Zurique”, que exigia análise prévia para “aqueles que pretendiam analisar outras pessoas”.
7 Balint (1948), no seu artigo On the psychoanlytic training system, à pág. 171, faz interessante observação sobre as mudanças na terminologia inglesa para análise didática. A primeira tradução foi instructional analysis, “uma tradução servil” do alemão Lehranalyse, a segunda didatic analysis, também na esteira do alemão didaktische Analyse, firmando-se, por fim, training analysis.
8 Entretanto, Freud apresenta opinião divergente da identificação entre os dois processos, ainda em Análise terminável e interminável, de 1937. Ao considerar as dificuldades impostas ao praticante da psicanálise, diz: “Mas onde e como poderá o pobre coitado adquirir as qualificações ideais que necessitará em sua profissão? A resposta é na própria análise, com a qual se inicia o preparo para sua atividade futura. Por razões práticas, esta análise só pode ser curta e incompleta. Seu principal objetivo é habilitar o professor a julgar a possibilidade de o candidato ser aceito para futura formação” (Freud, 1937/1964, p. 248).
9 A serem tratadas, pelo autor, mais adiante.
10 Uma análise dos relatórios oficiais dessa Conferência mostra-nos trabalhos basicamente prescritivos, com recomendações de como deve ser uma análise didática — por exemplo, que ela deve ser análise, que não deve ser uma repetição do já conhecido nas teorias psicanalíticas, que deve levar em conta estarem analista e analisando inseridos numa instituição, etc.
11 “É muito provável, também, que a aplicação em larga escala de nossa terapia nos levará a aliar livremente o ouro puro da análise com o cobre da sugestão direta...” (Freud, 1919/1955, p. 168).
12 “Quando Freud recomendou prudência na utilização analítica do conceito de cura, visava essencialmente a proteger a análise contra a tentação e as armadilhas da sugestão...” (Valabrega, 1983, p. 44).
13 Itálicos do autor.
14 A autora aponta para a extrema ambição do discurso psicanalítico corrente e critica com vigor os procedimentos de formação que endossam a apropriação de um credo teórico, falsamente proposto como encarnação do método psicanalítico; método este que exige “subordinar todo saber sobre um enunciado a uma interrogação sobre o enunciante” (Aulagnier, 1990, p. 56).
15 Ver, por exemplo, Bernfeld, 1962, p. 480.
16 VI Simpósio da IPA — A IPA hoje — A IPA amanhã, Linden Hall, Inglaterra, 1988.
17 Um estudo de fôlego sobre a história da psicanálise em São Paulo pode ser encontrado na dissertação de mestrado de Roberto Yutaka Sagawa: Os Inconscientes no divã da história, apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp, em 1989.
18 Ver Herrmann, 2001d, Des/obede/serás, pp. 127-152.
19 Provavelmente o texto mais contundente já escrito acerca da filiação psicanalítica é o livro de François Roustang, Un destin si funeste (1976), em que o autor, desiludido com os destinos da escola lacaniana, procura demonstrar a fatalidade da submissão dos discípulos ao mestre, já a partir do grupo original de Freud. O título, retirado da tragédia Atreu, de Crébillon, e citado no Seminário sobre a carta roubada, de Lacan, faz referência à arte de bem-devorar os próprios filhos ou, no caso, os discípulos. Esta bela, mas acérrima crítica, ilustra também o paradoxo da denúncia radical de forma exemplar. Não por levar a uma espécie de conservadorismo institucional — que Roustang renunciou a todo intento de formação convencional —, mas por condenar radicalmente toda e qualquer instituição psicanalítica à repetição do canibalismo teórico e transferencial. A propósito, Castoriadis, em Les carrefours du labirynthe, critica com igual ênfase este gênero de fatalismo histórico, mostrando que mesmo as marcas originárias, como a dominação transferencial na Psicanálise, só serão mantidas se um processo histórico lhes der sustentação, segundo o interesse do grupo dominante.

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