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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.74 São Paulo June 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Pensando a análise didática enquanto fetiche e formação ideológica1

 

Thoughts on training analysis as a fetish and as formative of ideology

 

Pensando el análisis didáctico como fetiche y formación ideológica

 

 

Luiz Meyer*

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é basicamente um comentário ao de Mario Gomberoff, também publicado neste número do Jornal de Psicanálise. Ele aborda a interferência da Instituição na análise pessoal dos candidatos e suas conseqüências deletérias, basicamente a manutenção de uma análise que, em sua essência, está em oposição à própria natureza do processo psicanalítico. O aspecto ”didático” torna-se a questão básica, em vez de enfocar-se à análise da transferência. A análise didática, nesse contexto, adquire o significado de um fetiche e de uma formação ideológica. Ela é, portanto, um sintoma baseado no mecanismo da recusa. Uma de suas conseqüências é a esterilização da criatividade e o congelamento, numa repetição constante da relação analista didata-candidato.

Palavras-chave: Análise didática, Analista didata, Fetiche, Formação ideológica, Processo psicanalítico.


ABSTRACT

This paper basically comments on Mario Gomberoff’s contribution published in this number. It discusses the interference of the Institution in the personal analysis of candidates and the deleterious consequences, namely the maintenance of an analysis that is, in its essence, in opposition to the very nature of the psychoanalytic process. The “training” aspect becomes the main issue in detriment of focusing analysis of the transference. In this context, training analysis acquires the meaning of a fetish and of ideological formation, thus becoming a symptom supported by disavowal. The consequences are the sterilization of creativity and the freezing of the relationship between training analyst and candidate in a constant repetition.

Keywords: Training analysis, Training analyst, Fetish, Ideological formation, Psychoanalytic method.


RESUMEN

Este trabajo es, básicamente, un comentario al de Mario Gomberoff, también publicado en este Jornal de Psicanálise. Dicho trabajo aborda la interferencia de la Institución en el análisis personal de los candidatos y sus consecuencias deletéreas, sobre todo, el mantenimiento de un análisis que en su esencia está en oposición a la propia naturaleza del proceso psicoanalítico. El aspecto “didáctico” pasa a ser la cuestión básica en lugar de ser enfocado el análisis de la transferencia. El análisis didáctico, dentro de este contexto, adquiere el significado de un fetiche y de una formación ideológica. De este modo, ella es un síntoma basado en el mecanismo de recusa. Una de sus consecuencias es la esterilización de la creatividad y el congelamiento, en una repetición constante, de la relación analista didacta-candidato.

Palabras clave: Análisis didáctica, Analista didacta, Fetiche, Formación ideológica, Proceso psicoanalítico.


 

 

Assim como Mario Gomberoff, também venho há tempos me dedicando ao estudo crítico da análise didática. Este é o terceiro congresso em que participamos de um painel para expor nossas idéias sobre a questão (já o fizemos em Lima, Berlim e, agora, Santiago). Para além da teimosia — ou da obsessividade —, tomo nossa atitude como demonstração da necessidade de que este tema seja intensa e constantemente ventilado nas reuniões de analistas.

Temos abordado a análise didática porângulos variados, cada um enfatizando, segundo sua percepção, os aspectos que considera básicos para que se compreenda o funcionamento da análise didática, por nós considerada uma prática deletéria. Na minha apresentação, vou utilizar o texto de Mario como suporte, procurando agregar meu ponto de vista a algumas das questões que ele enfoca. O propósito é mostrar como nossas visões, ao se complementarem e se integrarem, criam uma massa crítica que vai ajudar a compreender os fatores que dão força à permanência da análise didática e que procuram justificar sua função.

Logo no segundo parágrafo, Gomberoff usa a expressão “ingerência institucional”. Ele relembra a prescrição pela Instituição de que se faça um número mínimo de horas de análise e/ou supervisão, assim como o momento estipulado para iniciá-las. O resultado dessa ingerência é o desvio do interesse do candidato pelo processo analítico e seu redirecionamento para o cumprimento das regras e dos standards. O objetivo, aqui, deixa de ser empreender uma viagem e aprender com ela e torna-se atingir o mais brevemente possível o ponto de chegada.

Gostaria de acrescentar que essa atitude — a de cumprir estritamente os preceitos legais — parece ter se generalizado, pois também é observado em minha sociedade.

Na verdade, a questão principal não reside nessa distorção e, sim, na própria existência de uma análise cujas regras são exteriores e conflitantes com a natureza do processo analítico. Como diz Mario, ela elimina uma de suas postulações fundamentais: a liberdade de escolha.

Quando Mario escreve que “ambos os integrantes” (analista e candidato) se submetem à organização, ele está chamando a atenção para a rede de conluios e manobras que dão sustentação ao funcionamento da análise didática. Uma delas, continuadamente assinalada, é o deslocamento da função institucional do analista didata e do aspecto mítico de sua pessoa para o primeiro plano, relegando o processo analítico a uma posição secundária ou instrumental. O analista didata tem sua identidade funcional sustentada pela Instituição e, portanto, vê-se obrigado a falar por ela.

Dito de outro modo: sua posição faz com que ele se coloque a serviço da demanda da reprodução dos interesses da Instituição, em vez de servir à descoberta do método analítico e de seu poder transgressivo. O candidato, por seu lado, está imerso em uma atmosfera que estimula a “faceta didática” da análise, de sua aura de atividade diferenciada, destinada a espelhar a qualidade superior do analista didata, quando comparada com a dos analistas tout court. O projeto comum da dupla deixa, assim, de ser a exploração analítica da transferência e de toda a turbulência que ela gera, voltando-se para a manutenção de suas respectivas posições narcísicas, num contínuo exercício de mútua idealização.

Mario menciona que, no meu trabalho de 2003, ao procurar compreender o que possibilitou — e possibilita — a permanência ao longo do tempo do funcionamento de uma estrutura como a análise didática, eu sugiro que ela deve ser compreendida à luz da teoria psicanalítica do fetiche e, portanto, como um sintoma que pertence ao campo da perversão. Um processo que, de uma parte, pretende ser psicanalítico e, simultaneamente, de outra, tolhe a liberdade dos participantes, está tentando não só amalgamar concepções heterogêneas, num sincretismo deformante, mas, sobretudo, harmonizar incongruências. Em suma, visa conformar a prática analítica a concepções que negam a sua essência.

A incongruência, um elemento estruturante da análise didática, exerce, como sabemos, o mesmo papel na construção do fetiche. A situação na qual, vista de relance, uma verdade, por ser traumática, é recusada, sem ser negada, resolvendo-se em um comportamento que mantém vivas ambas as afirmações conflitantes, lado a lado, porém dissociadas, é bem conhecida em psicanálise. Basta, agora, um pequeno esforço associativo para conceituarmos a análise didática como fetiche. Sua natureza sintomática se revela não só através de seu empenho em justapor o que é incompatível, mas também na pertinácia com que o faz (o que em parte explica sua longevidade); na sua crença ambígua no método analítico; na sua maneira distorcida de praticá-lo; na sua capacidade de cooptar as críticas; na racionalização de sua presença enquanto necessidade.

Esse fetiche surge da angústia de castração ligada à eficácia traumática de toda análise. É que, sincronicamente ao seu potencial de mudança, a psicanálise assinala, a quem a pratica e a quem a ela se submete, a extensão de suas limitações, incluindo aquelas ligadas à capacidade de efetuar transformações importantes na personalidade (ainda sendo a psicanálise o meio mais eficaz que conhecemos para alcançá-las). A ameaça de castração é representada pela percepção inaceitável dos limites da própria análise, daquela a que se submeteu e que pratica, da de seus colegas, de suas dificuldades pessoais, de seus sintomas e de suas idiossincrasias. A análise didática, enquanto fetiche, surge como produto da recusa, por parte dos analistas, dos limites da ação da análise. A história da análise didática é, pois, a historia da “legalização” de uma dissociação patológica, essência estrutural do fetiche.

Já escrevemos que a instituição “análise didática”, por essas razões, deve ser compreendida a partir do campo da perversão. Esta não reside (ou não somente) no caráter estranho da prática ou mesmo na violência que a impregna. O que a caracteriza, fundamentalmente, é apresentar o verso como reverso, o desvio como norma, criando falsas equivalências, que corroem a capacidade de julgamento e o discernimento de valores.

Mario assinala o quanto todo esse funcionamento é “incólume a qualquer tipo de críticas”, acrescentando, mais adiante, que ele desemboca em uma extremada concentração de poder, bastante conhecida no meio analítico.

A incolumidade da análise didática à crítica e à estrutura de poder que ela cria são produzidas através da participação coletiva na manutenção do fetiche. Essa participação opera como uma crença partilhada e organizada, destinada a fomentar a manutenção da recusa. Sua finalidade é reinvestir, de forma continuada, a dissociação e a incongruência. Entretanto, para dar força a essa manobra, é preciso ainda um continente que acolha o narcisismo ferido do analista (Giovanetti, 1991) e que sancione a forma defensiva — o fetiche — que ele construiu. A burocracia institucional (Baranger, M., Baranger, W. & Mom, 1978), com seu séquito de standards e de procedimentos, entra, então, em cena. Aquilo que originalmente possuía a dinâmica de um sintoma vai ganhar a dimensão e a forma de funcionamento de uma ideologia — devendo ser compreendida segundo as regras de administração do Poder. O caráter ideológico que a impregna é que faz com que a análise didática se apresente como algo essencial, universal, e que lhe confere um cunho prescritivo, de fala reiterativa, fechada em si mesma.

Mario assinala que a análise didática é “a análise menos original, mais repetida, mais normalizada...”, e que ela institui “um procedimento poderoso, que iguala, poda arestas, que vai contra a diversidade” (Gomberoff, 2008, p. 3). Isso se compreende, pois, como qualquer formação ideológica, a análise didática é totalizante, visando abranger toda a experiência e, desse modo, limitando-a e retirando-lhe sua complexidade (o que lança luz sobre a acusação contínua, encontrada na bibliografia, a respeito de seu caráter autoritário). Isso a leva a operar no plano do já pensado (teorias canônicas, a própria idéia de “didática”), do já feito (prática mecanicista) e do já dito (prescrição de standards). Cria-se, assim, um sistema — cerne da formação ideológica — que visa impedir a percepção das manifestações da história, da indeterminação, do desconhecido, enfim, de tudo o que puder representar o escape do inconsciente. A análise didática vai terminar se debruçando sobre um psiquismo pasteurizado.

O poder que ela cria e que lhe é inerente pode ser compreendido evocando-se as teorias que Freud (1921/1962) expõe em Formação do ego e psicologia de grupo: sua força e capacidade persuasiva — inerente à estrutura da formação ideológica — fazem com que ela congregue à sua volta interesses dirigidos para a negação das diferenças, oferecendo instrumentos de identificação, que criam uma unidade fictícia. Em nome da união com a análise didática — e dos benefícios que dela adviriam —, esses interesses recusam suas singularidades, ficando referidos ao discurso unificador e generalizante da análise didática.

Isso nos ajuda a compreender o que Mario nos diz quando observa que os candidatos “defendem e se identificam com seus didatas, preparando-se para emulá-los no futuro, em uma sorte de identificação com o agressor” (Gomberoff, 2008, p. 4). O que acontece é que, nesse contexto, os candidatos são estimulados ao conformismo e — denúncia recorrentemente encontrada na bibliografia — se identificam com a pessoa do analista. Esse fenômeno é descrito como “identificação realista” e está em franca colisão com a que ocorre na análise tout court, em que a interpretação reiterada da transferência conduz o paciente à identificação com uma função — a analítica — e não com um personagem institucional.

A descoberta do método analítico, de seu potencial e de sua ação transgressiva torna-se, na análise didática, periférica ao processo, uma vez que ela está subordinada à demanda da Instituição — é uma realidade autônoma, extrínseca à dupla, precedendo-a e direcionando-a, impondo a essa dupla um projeto sem autonomia, já que seu resultado é conhecido por antecipação. A “identificação realista”, acima descrita, decorre, pois, do fato de que o analista didata é realmente (institucionalmente) apresentado como objeto ideal e a análise didática como a forma de se conseguir a identidade analítica. A fantasia do sujeito de tornar-se analista só ganha relevância em razão da resposta que lhe é ofertada: uma análise didática, promessa de realização dessa fantasia e de continua reconstrução e revalidação das posições candidato ‹&–›analista didata. O sistema encontra aí sua estratégia reprodutiva, o candidato esperando, com maior ou menor paciência, sua vez de tornar-se analista didata.

No ultimo parágrafo de seu trabalho, Mario nos diz que foi sua intenção refletir sobre a análise didática que, por seu efeito esterilizante, impede a Instituição de colocar-se como uma organização moderna; ao contrário, diz ele, ela estimula o conservadorismo à custa da análise de seus integrantes. Ora, é exatamente para engessar o funcionamento da Instituição, impedir mudanças e modernização que a análise didática foi criada, como demonstra com clareza a historiografia a ela dedicada (Schröter, 2002).

Conceitualmente, essa trajetória pode ser compreendida lembrando-se que o desenvolvimento do saber analítico acabou construindo um rico corpus teórico-técnico-clínico. Em torno dele, por ele incentivado, foi também criada, à guisa de apoio para sua difusão, uma instituição cujo funcionamento foi se tornando, ao longo do tempo, a expressão da burocracia que a dirigia. Ocorreu então uma fratura da qual até hoje padecemos: para manter o controle e a subordinação do desenvolvimento do corpus teórico, das formas de técnica e do gênero de clinica, o poder burocrático lançou mão da conhecida estratégia de dividir para reinar. Para fazê-lo, criou a mãe de todas as análises, orientada por regras pré-estabelecidas a serem reproduzidas por sua descendência. A operação que cria a análise didática, separando-a da análise tout court, obedece a uma lógica de poder quase transparente: ela dá à análise didática um valor de mercado, cuja função é manter e reproduzir a estrutura funcional da Instituição, ou seja, o comando da burocracia.

Assim, da análise como prática teórica-clínica, competência de analistas, passa-se à análise didática, de competência exclusiva dos analistas didatas e expressão das relações sociais que administram o desenvolvimento da psicanálise. Nesse novo campo, o trabalho analítico muda de sinal, tornando-se uma delegação da Instituição, com suas normas e códigos, destinada a fabricar analistas. O pensamento analítico é, dessa forma, expropriado e substituído pela tarefa de formação padronizada. O candidato não teme as surpresas que seu inconsciente lhe reserva, mas sim aquelas que possam impedir sua ordenação à condição de psicanalista. A análise didática é uma espécie de prestação de serviços, exclusiva e excludente (Basaglia, 1994), racionalizada pela delegação que lhe dá suporte. Valendo-se dela, o analista didata adapta a análise às exigências da análise didática.

Os problemas criados pela existência da análise didática apontam para a necessidade de se modificar esse sistema, por meio da extinção de toda categoria diferenciada de análise e o repasse aos analisandos da tarefa de cuidar de suas análises. A partir daí, um debate voltado para as questões produzidas por essa mudança poderia ser iniciado.

 

Referências

Basaglia, F. O. (1994). Cura/Normalização. In Romão, Ruggiero (Comp.), Enciclopédia Einaudi: Inconsciente normal/anormal (Vol. 23). Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda.         [ Links ]

Baranger, M.; Baranger, W., & Mom, J. (1978). Psicopatologia del processo didático. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, 35 (1):181-190.        [ Links ]

Freud, S. (1962). Group psychology and the analysis of the ego. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 69-143). London, Hogarth Press. (Original work published 1921).        [ Links ]

Giovannetti, M. F. (1991). O divã e a medusa: breves considerações sobre a natureza das fronteiras na instituição psicanalítica. ide, 21, pp. 64-69.        [ Links ]

Gomberoff, M. (2008). Relaciones entre el analisis de formacion y la institucion (Trabalho apresentado no Congresso da Fecal, em 2008).        [ Links ]

Meyer, L. (2003). Subservient analysis. International Journal of Psychoanalysis, 84(5), 1241-1262.        [ Links ]

Schröter, M. (2002). Max Eitingon and the struggle to establish an international standard for psychoanalytic training: 1925-1929. International Journal of Psychoanalysis, 83, 875-932        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Meyer
R. Santa Cristina, 217 — Jd. América
01443-020 São Paulo, SP
Fone: (11) 3062-6288
E-mail: luimeyer@uol.com.br

Recebido em: 20/04/2008
Aceito em: 02/05/2008

 

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
* Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Trabalho a ser apresentado no XXVII Congresso Latino-americano de Psicanálise, em Santiago, Chile, de 25 a 27 de setembro de 2008.

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