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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.74 São Paulo June 2008

 

TRADUÇÕES

 

Psicanálise hoje: minha experiência de quarenta anos como psicanalista

 

Psychoanalysis today: my experience of forty years as a psychoanalyst

 

Psicoanálisis hoy: mi experiencia de 40 años como psicoanalista

 

 

Saúl Peña Kolenkautsky*

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Peruana de Psicanálise
Membro fundador do Royal College of Psychiatrists
Presidente honorário da Sociedade Peruana de Psicanálise
Professor honorário da Universidade Nacional Maior de São Marcos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste texto, autor enfoca sua experiência de vida, forma de trabalho e sustentos fundamentais resultantes de seus quarenta anos no fazer analítico. Salienta que seus pacientes, fontes de conhecimento notável, possibilitaram a constituição de sua teoria pessoal, o que, em conjunto com sua própria análise, permitiu-lhe dar conta da subjetividade, distintividade e unicidade de cada vínculo. A pessoa vai além do diagnóstico: sua história, sua ideologia inconsciente permitem também descobrir que respondemos em formas diferentes, reconhecendo a existência de elementos comuns. Sua técnica não se sustenta em nenhum esquema, além daquele sintetizado dialeticamente no seu inconsciente. Não escolhe se vai interpretar o impulso, o desejo, a defesa ou o afeto: deixa que sua seleção integral faça frente a cada momento e a cada tempo. A interpretação é uma tentativa de compreensão da mutualidade dos inconscientes (interpretação mutuativa). Deve ser acompanhada de uma autenticidade consciente e inconsciente da parte do analista e de uma humanidade profundamente arraigada. Sem uma genuína, íntima e profunda relação entre psicanalista e paciente, o tratamento não será efetivo. Outro aspecto de sua técnica constitui o que ele denomina de Tânatos terapêutico. Nossa atividade não é exclusivamente erótica ou libidinal, inclui a utilização criativa da agressão. Todas as essenciais, sutis, contínuas, finas e duais experiências vão estruturando a indiscutível lei da mãe, transcendente em âmbito tanto físico-corporal, mental, psíquico, espiritual e afetivo quanto ético.

Palavras-chave: Ideologia inconsciente, Agressificação destrutiva da libido, Não-neutralidade, Contratransferência criativa, Tânatos terapêutico, Interpretação mutuativa, Mutualidade dos inconscientes, Lei da mãe.


ABSTRACT

In this paper, the author presents his vital experience, his treatment approach and fundamental pillars, resulting from forty years of clinical practice. He emphasizes that his patients are a source of remarkable knowledge that allowed him to constitute personal theories. This, together with his personal analysis, allowed him to take notice of the subjectivity, distinctivity and uniqueness of each bond. The person is more than the diagnosis; his history, his unconscious ideology allows us to discover that we respond in different ways, recognizing the existence of common elements. His technique is not based in any scheme, other than that which was dialectically synthesized in his unconsciousness. He does not choose whether he will interpret the impulse, desire, defense or affect; his integral selection will do the best of each moment at each time. Interpretation is a tentative comprehension of the mutuality of the unconscious minds involved (mutuative interpretation). It should be accompanied by a conscious and unconscious authenticity by the analyst and his humanity should be deeply rooted. Without a genuine, intimate and profound relationship between analyst and patient, treatment will not be effective. Another aspect of his technique is was the author refers to as therapeutic Thanatos. Our activity is not exclusively erotic or libidinal, it includes the creative utilization of aggression. All essential, subtle, continuous, fine and dual experiences progressively structure the indisputable maternal law, transcendent in the physical, mental, psychic, spiritual, emotional, and also ethic levels.

Keywords: Unconscious ideology, Destructive aggressiveness of libido, Non-neutrality, Creative counter-transference, Therapeutic Thanatos, Mutuative interpretation, Mutuality of unconsciousness, Maternal law.


RESUMEN

En este trabajo el autor muestra su experiencia vital, forma de trabajo y sustentos fundamentales, resultado de sus cuarenta años en el quehacer analítico. Destaca que sus pacientes son una fuente de conocimiento notable que le permitieron constituir su teoría personal. Esto, junto a su propio análisis, le propició el hecho de darse cuenta de la subjetividad, distintividad y unicidad de cada vínculo. La persona va más allá del diagnóstico; su historia, su ideología inconsciente permite también descubrir que respondemos en formas diferentes, reconociendo la existencia de elementos comunes. Su técnica no se sustenta en ningún esquema, aparte del que está sintetizado dialécticamente en su inconsciente. No elije si va a interpretar el impulso, el deseo, la defensa o el afecto; deja que su selección integral haga frente a cada momento y a cada tiempo. La interpretación es un intento de comprensión de la mutualidad de los inconscientes (interpretación mutuativa). Debe ir acompañada de una autenticidad consciente e inconsciente de parte del analista y su humanidad profundamente arraigada. Sin una genuina, íntima y profunda relación entre el psicoanalista y el paciente el tratamiento no será efectivo. Otro aspecto de su técnica lo constituye lo que denomina Tánatos terapéutico. Nuestra actividad no es exclusivamente erótica o libidinal, conlleva la utilización creativa de la agresión. Todas las esenciales, sutiles, continuas, finas y duales experiencias van estructurando la indiscutible ley de la madre, trascendente tanto a nivel físico corporal, mental, psíquico, espiritual, afectivo como ético.

Palabras clave: Ideología inconsciente, Agresificación destructiva de la libido, No-neutralidad, Contratransferencia creativa, Tánatos terapéutico, Interpretación mutuativa, Mutualidad de los inconscientes, Ley de la madre.


 

 

Estamos diante de uma ciência e de uma arte interminável criada por Sigmund Freud, autêntico gênio que comprometeu sua vida no aprofundamento e conhecimento das características manifestas e perceptíveis, assim como às mais profundas e genuínas do ser humano.

A contribuição de Freud à filosofia da mente foi a de reconhecer que não somente a busca da satisfação de impulsos instintivos move a conduta humana: também a necessidade de manter um significativo contato com os objetos apropriados. A atividade humana é intrinsecamente simbólica e contém a tentativa de comunicar algo.

Para poder contribuir digna e integramente à sua investigação, era indispensável empreender a busca da verdade, a que inclui a alma, o afeto, a subjetividade e a singularidade, neste caso, do psicanalista e do paciente.

Dedicando-se ele ao estudo do outro e de si mesmo, chegou assim ao descobrimento do inconsciente, representado graficamente pela metáfora do iceberg — que, sem excluir a importância do consciente, resgata a significação primordial do inconsciente e do vínculo entre ambos.

Elementos destacáveis seriam os instintos de vida e de morte, Eros e Tânatos e seus derivativos. O que é evidente e tangível graças a esta ciência é a unicidade do ser humano, na sua sanidade e patologia, com sua criatividade e destrutividade, seu amor e ódio num nível real, humano e desidealizado.

Esta ciência conta com diversas e importantes contribuições, que complementam os achados fundamentais de seu criador. Suas fontes são a médica e a cultural.

Outro aspecto essencial no desenvolvimento da psicanálise é o axiológico. Não somente tende à melhora dos sintomas do paciente como à sua qualidade como pessoa. A psicanálise inicia uma nova era na ética humana.

As atitudes em relação à contratransferência evoluíram a partir dos cuidados e prevenções de Freud, em prol de uma boa análise, como um observador abstinente e objetivo. O sentimento tradicional centrou-se na suposta neutralidade e na necessidade de ocultar o pessoal. Mais significativa foi sua assunção implícita de que um analista podia de verdade encobrir ou ocultar sua subjetividade. A inspiração e a utilidade que o analista dá àquela, em conjunção com a do paciente, seria o que conceituei como metáfora do conúbio existencial, que inclui comunicações inconscientes entre um e o outro, com uma reflexão sobre eles mesmos e uma abertura a serviço de ambos. Traduz uma mudança de tendências e o incremento do sentido de liberdade, de humanidade e de mutualidade analítica. Exercendo influência no que se pensa e se sente, sem excluir elementos objetivos — pelo contrário, fortalecendo-os —, isto constitui o reconhecimento de uma ciência humanista e científica não-dogmática. A variabilidade, os afetos, a intuição, a ressonância emocional e a empatia iluminam o conceito de comunicação inconsciente. A natureza distintiva da psicanálise gerou um espírito de subjetividades e de intersubjetividades.

A psicanálise valoriza a liberdade real — não ilusória nem idealizada. É importante o reconhecimento da não-neutralidade. Somente através da consciência desta pode-se aspirar à possibilidade de uma tentativa de neutralidade.

O paciente não é o único indivíduo na dupla. Reconhecer as necessidades do analista gera uma experiência constitutiva, positiva e de mutualidade, que sustenta a importância da trajetória da relação. Na sua conduta, o analista expressará sua autenticidade, o transcendente de seu compromisso com a vida, numa existência com conotações inconscientes, filosóficas e éticas. Uma análise de entrega plena.

A vitalidade da experiência da paixão lúcida é a essência da psicanálise e o compromisso que a impulsiona a ajudar outros. O analista não é um personagem ideal, mas uma pessoa que, para aproximar-se do paciente, tem de ter consciência de suas próprias potencialidades neuróticas, perversas, psicóticas, etc., e desse lugar resgatar a possibilidade de uma mutualidade e de um “nós” que vá além das possibilidades de ambos.

É indispensável reconhecer a transcendência e vigência da identidade analítica, sem excluir seu passado. A psicanálise contribuirá decisivamente para conceituar múltiplos encontros, incluindo os aspectos interdisciplinares, que nos enriquecem no campo biopsicossocial e cultural, num contínuo fluxo de energia. A diversidade é um elemento primordial, que permite uma aproximação mais realística para ampliar a compreensão do desenvolvimento psicológico e da vida em geral.

A reavaliação da teoria epistemológica e da formação paradigmática são revoluções científicas na psicanálise. Há uma incomensurabilidade de paradigmas, em que diferentes cientistas, enquanto observam o mundo do mesmo ponto e na mesma direção, tendem a ver diferentes coisas. Essas noções ajudaram a fortalecer as visões de verdades psicanalíticas, subjetivas, dinâmicas, pluralistas e com perspectiva na procura da integração, incluindo racionalismos, objetivações e compromissos com o método.

As noções de verdade, realidade, certeza e experiência no setting clínico constituem as preocupações dos psicanalistas e de seus esclarecimentos. É indispensável aprender a viver sem a idéia do intelecto infinito e do absoluto conhecimento. O fenômeno psicológico não pode ser visto fora do contexto intersubjetivo.

A inerente impredizibilidade e fluidez da vida emocional em geral e do processo de terapia em particular demandam tolerar a incerteza, a ambigüidade e a perplexidade ante o inesperado. Requer uma objetividade realista e não-dogmática, que permita tirar o rótulo de verdade do consultório com uma conceituação dialética, útil e criativa para ambos, num pensamento inovador.

A construção da teoria pode ser utilmente conceituada como uma forma específica da experiência pessoal do analista e do paciente. É considerada como outro aspecto vital do percurso da própria experiência do afeto, do pensamento, da fantasia, da sensação, de nós mesmos e, assim, sucessivamente.

Certas construções teóricas podem ser removidas da posição de representações da verdade e da realidade, mas igualmente podem ser retidas e consideradas como outra faceta da experiência do analista em relação a um dado paciente. O paciente trata de transmitir o que sentiu, para que o analista possa tentar compreendê-lo, vivendo a experiência por ele vivida.

O pluralismo denota a coexistência de múltiplos esquemas de referência e a utilização e integração, e não necessariamente a síntese de múltiplas orientações e experiências, dentro da psique de um indivíduo ou do espírito de uma instituição. O analista é estimulado a conviver com múltiplas linguagens. Essa liberdade não pressupõe que ele possa tratar seus pacientes segundo seu próprio capricho e fantasias, pelo contrário, o aproxima de um sentido de não ter que saber e nem manter um sentido de convicção. Pode ele, desse modo, experimentar e conhecer seu paciente através de sua própria experiência pessoal.

Em campos culturais e científicos, é reconhecida a existência de uma crise de comunicação devida à fragmentação da experiência e à dispersão do conhecimento em muitas disciplinas, cada uma com seu próprio crescimento, incrementando uma linguagem privada. Não se deve esquecer, porém, de que o todo é mais do que a soma das partes.

A suposta não-resposta do paciente é uma de suas maneiras de responder e é o analista que equivocadamente sente que o paciente não está respondendo. Não só em palavras resume-se a comunicação: sentimentos, gestos e silêncio também são respostas. É muito importante aceitar o outro tal como ele é. Isso permitirá valorizar sua comunicação em prol não só dele, quando não de ambos.

Em razão da natureza desta comunicação, pareceu-me pertinente contribuir com um testemunho pessoal. Minha experiência de vida mostra minha forma de trabalho e suas bases fundamentais, resultantes dos meus quarenta anos no ofício analítico.

As patologias graves, especialmente os pacientes borderlines ou limítrofes, constituem um dos campos em que me sinto especialmente motivado. Talvez isso se deva ao desafio, à curiosidade e ao inesperado da experiência, paralelamente ao grau de compromisso, responsabilidade, autenticidade e um sentimento que oscila entre extremos, como se o trabalho fosse uma forma de descobrir aspectos novos não somente nos pacientes, mas também em mim.

É possível que, entre os diversos tipos de pacientes, os borderlines representem a nossa época e cultura, tais como as pacientes histéricas na época vitoriana de Freud, quando a repressão da instintividade era o fator social ou cultural que prevalecia. O fato de hoje predominarem esses pacientes pode sugerir que eles refletem o momento de crise de identidade, de reconhecimento, de pertinência e de imprecisão interna de nossas experiências vividas e compartilhadas, que atravessamos em nível mais geral.

Acredito, igualmente, que o tema tenha a ver com minha pessoa, uma vez que provenho de duas culturas, duas raças, duas religiões, duas maneiras de ver o mundo, sintetizadas nos meus pais, que representam duas perspectivas e criam um espaço intermediário e potencial.

Durante uma supervisão, Charles Rycroft perguntou-me o que eu era, já que sou portador de heranças judias, russas, índias, espanholas e peruanas. Respondi-lhe que me considerava uma integração de todas essas raças — e que gostava da minha identidade indo-peruano-espanhola e judio-russa. Acrescente-se a isso que estudei num colégio francês; fiz minha formação de pós-graduação — psiquiátrica e analítica — na Inglaterra, e casei-me com Luise, que é alemã. Surgem, disso, duas associações. Minha analista Paula Heimann, em uma carta que me escreveu, após o término da minha análise, disse-me ter se dado conta que muitas coisas por ela creditadas à minha fonte judia materna — agora que estava informada e conhecia mais a história do Peru — provinham de meu lado inca paterno. A outra associação me remete a uma fala de Masud Khan, numa supervisão: “Escuta, aqui no Instituto as pessoas acreditam que seu êxito terapêutico se deve ao fato de o senhor ter uma personalidade muito penetrante. No entanto, estou convencido que se deve a um par de seios e ao bom leite que o senhor internalizou de sua yiddishe mame.”

É importante mencionar que sou dos que acreditam que o conhecimento analítico provém fundamentalmente da experiência, vínculo e vivência da própria análise e com as pessoas que foram nossos supervisores e mestres. Ou seja, não podemos esquecer a vigência de presenças consciente e inconscientemente escolhidas. Todas elas são diferentes e únicas, como seres humanos valiosos. Obviamente, incluo aqui a enorme experiência com meus pacientes e com a vida.

Minhas experiências com Paula Heimann, fundamentalmente relativas à nossa mutualidade, Donald Winnicott, Charles Rycroft, Marion Milner, Adam Limentani, Masud Khan, Margaret Little e Carlos Alberto Seguín foram os que mais influenciaram o meu trabalho clínico. Para com eles, guardo e guardarei uma permanente gratidão. Gradativamente, foram se integrando, sem serem presenças limitantes ou distorcidas de minha identidade. Muito pelo contrário, permitiram-me manter minha individualidade e diferenças: tal como em relação aos pais, sempre teremos alguma coisa de ambos e, sobretudo, algo que provêm dessa mistura.

Ao optar pela psicanálise, moveram-me experiências precoces relacionando vida e morte, luz e escuridão, ao estar unido ou separado, presença e ausência, proximidade e distância, alegria e tristeza: tudo isso que chamo gozo e sofrimento saudável. Vivi tais experiências com plenitude e com realismo, sem desnaturalizá-las nem transformá-las em sintoma ou enfermidade. Elas representam um conhecimento inestimável para o fortalecimento e a sensibilidade criativa; assim como para a compreensão e vínculo com pessoas que enfrentam vicissitudes similares, participando e estendendo aos outros o cultivo e usufruto da vida. É indispensável saber sofrer e saber gozar.

No decorrer desses quarenta anos, vim trabalhando analiticamente com crianças, adolescentes e adultos; com pacientes dos mais diversos diagnósticos, assim como em psicoterapia psicanaliticamente orientada de casal, família e grupo. Meus pacientes representam uma fonte de conhecimento notável, a eles devo boa parte do que aprendi e passou a constituir minha teoria pessoal.

Descobrimos que traumas ou experiências tremendamente dolorosas e violentas não são apenas geradores de patologia, mas podem se transformar em fontes de criatividade, de inspiração, de integração e de saúde, para um maior fortalecimento, humanidade, sabedoria e compreensão do outro. Observamos que de pais saudáveis podem surgir filhos mais ou menos sadios, e de pais patologizantes, carentes ou privadores (possivelmente pela potencialidade e as capacidades de contra-identificação criativa e restitutiva) podem surgir pessoas com um potencial criativo inegável.

O conhecimento e a experiência de minha formação analítica — como paciente na análise e nas supervisões e como analista em relação com meus pacientes —, me fizeram dar conta nitidamente da subjetividade, singularidade e unicidade de cada pessoa e de cada vínculo: analista e paciente. Tudo isso permite reconhecer que a pessoa vai muito além do diagnóstico; que sua história, sua ideologia inconsciente permitem também descobrir que respondemos de formas diferentes, sem que isso signifique que não percebamos elementos comuns.

Nesse amplo espectro, encontrei-me assumindo uma atitude que poderia, com alguns pacientes, ser considerada como muito clássica e, mesmo, ortodoxa; com outros, uma análise heterodoxa, com parâmetros novos. Isso tem a ver com o que sentimos como sendo o mais genuíno, indispensável e real para um paciente específico, num determinado tempo, espaço e situação. Enfatizo que isso não é um simples enunciar, mas uma sustentação teórica importante, séria e verdadeira. Acredito que o trabalho analítico não é, exclusivamente, do ego e do consciente do analista, mas que, graças a Freud, se dá uma importância maior à parte do iceberg que não se vê e que, prioritariamente, essa parte vai influir na mente e na conduta humana.

A análise é um trabalho que tem a ver, fundamentalmente, com os inconscientes de ambos — paciente e analista — sem, obviamente, excluir os conscientes. O que chamo de ideologia inconsciente tem a ver não só com os aspectos instintivos — genéticos, constitucionais, celulares — inerentes à nossa natureza, mas com toda a nossa experiência humana, das mais primitivas às mais sofisticadas — sobressaindo-se as mais próximas, profundas e íntimas da nossa relação e experiência — e com o ambiente através do nosso corpo e dos nossos sentidos, fonte de conhecimento intuitivo e criativo da nossa possibilidade humana. Esse inconsciente permanentemente se nutre do instintivo e do patoplástico. Ou seja, não somente de nossa raiz, igualmente de nosso caule, folhas, flores e frutos, que muitas vezes prevalecem sobre nosso ego. É ali que descobrimos, conhecemos e nos acompanhamos de aspectos inseparáveis de nosso ser, tal como o instinto de vida-Eros e o instinto de morte-Tânatos, que dirigirão sua força e sua energia a nós mesmos, ao outro e ao mundo. Por isso, a análise tem a ver com a mutualidade dos inconscientes e conscientes, com mãe, pai, vida, morte, sonho, realidade e todas as relações significativas num ambiente e num tempo determinados.

Tudo isso tem que ir acompanhado do compromisso, cultivo e eleição da liberdade, responsabilidade e autenticidade do trabalho analítico; do reconhecimento da nossa não-neutralidade. Isso me leva à concepção de um dos aspectos que distingue meu trabalho analítico: a contratransferência criativa. Conceituo a contratransferência criativa não apenas como a resposta do analista ao estímulo do paciente, mas como a que se estende à totalidade da nossa personalidade e à consciência de que nossas interpretações e nossas respostas estarão profundamente influenciadas não só por nossa objetividade, mas por nossos instintos, impulsos, valores e subjetividade de uma ou de outra forma, apesar da nossa suposta ou aparente neutralidade. Ela inclui aspectos da biografia, da idiossincrasia e da personalidade do analista, que provêm de sua infância e de sua própria ideologia inconsciente.

Existe outro prejulgamento, idealizar uma objetividade dessubjetivada, sobre o qual penso que, muito pelo contrário, é necessário integrar e considerar dentro da atividade analítica cotidiana e que chamo de subjetividade objetiva. A paixão lúcida é indispensável e reconhecível na minha prática analítica.

A técnica que utilizo não busca sustentação em nenhum esquema além do que está sintetizado dialeticamente no meu inconsciente. Acredito responder, numa forma discriminativa, subjetivo-objetiva e com senso comum, às intervenções de meus pacientes, que considero fundamentais para a mudança; sem sua participação, por mais experiência que tivéssemos, não poderíamos conquistar o que aspiramos.

Utilizo a transferência não num sentido generalizado absoluto ou de clichê, ou como a única possibilidade de aproximar-se da compreensão do material. No meu entender, tal forma desvirtua seu valor indiscutível ao ser empregada não só discriminativamente, mas consciente e inconscientemente quando a consideramos a eleição mais pertinente e apropriada em nosso vínculo com o paciente. Quanto aos termos transferência positiva e negativa, penso que não são termos felizes, uma vez que acarretam um juízo de valores. A transferência é positiva desde o momento em que nos brinda com a possibilidade de um conhecimento e um espaço para poder analisar o libidinal e agressivo, sem dar-lhe um caráter pejorativo nem idealizado, que se sustenta no prejulgamento.

Faço uso de confrontos, interpretações e reconstruções, tomando em conta o que vai surgindo através do vínculo: uma escuta empática e um silêncio que acolhe e comunica quando as palavras são demais.

Não escolho previamente se vou interpretar o impulso, o desejo, a defesa ou o afeto, mas deixo que minha seleção integral faça frente a cada momento e cada tempo. Toda interpretação em essência é um confronto com a realidade interna e externa e depende tanto de sua exatidão quanto da utilização que o ego do paciente possa ou queira lhe dar, mobilizando seus impulsos criativos ou destrutivos. A interpretação deve se acompanhar de uma autenticidade consciente e inconsciente por parte do analista e de sua humanidade profundamente arraigada.

Sem uma genuína, intima e profunda relação entre o psicanalista e paciente, o tratamento não será efetivo. Os fatores curativos da psicanálise provêm tanto do analista como do paciente. Ambos se necessitam.

Atitudes essenciais de meu ofício analítico e terapêutico são a liberdade, a responsabilidade, a espontaneidade, a naturalidade, a autenticidade, a paixão lúdica e o estar preparado para o inesperado.

Como a transferência e a contratransferência que, em seus inícios foram consideradas interferentes ou perturbadoras do processo analítico, até se dar conta de sua utilidade — o mesmo se passa com as resistências: elas são elementos essenciais da análise e da mudança, dependendo de como o analista responde a elas. Ou seja, se o analista não é capaz de conter adequadamente uma determinada comunicação e utilizar uma resistência apropriadamente, sem se dar conta, ele está interferindo ou resistindo ao processo. A não ser que, compreendendo suas próprias limitações e erros, trate de reconhecê-los e restituí-los.

Existem outros aspectos igualmente cruciais dentro do processo analítico que dependem muito de como são conceituados e integrados na atividade clínica. A concepção do Édipo, a meu ver, não se inicia entre os três e cinco anos, mas desde o começo da vida ou previamente a ela. O relevante é que a criança estabelece um vínculo precoce com sua mãe, inclusive antes de nascer, incorporando ou internalizando sensações que têm a ver com aspectos parciais dela e sensações primitivas sem que exista, muito menos ainda, um ego formado ou estruturado, já existindo, no entanto, a introjeção dessas sensações primitivas no inconsciente. A continuidade do vínculo e a incorporação das experiências do nascimento e, depois, o contato com o corpo e psique da mãe, através de sua pele, de seu tato, de sua boca, de seu gosto, de seu olfato, de sua audição e de sua incipiente visão, lhe permite vê-la como um todo e com ela se comunicar, já não só em nível pré-verbal, senão verbal e simbolicamente. Todas as essenciais, duais, sutis e finas experiências vão estruturando a indiscutível lei da mãe, transcendente tanto em nível físico-corporal, mental, psíquico, espiritual e afetivo como ético. Muitas vicissitudes integram as sensações incipientes no processo de descobrimento da mãe, como objeto não-diferenciado, até a diferenciação, individuação e o reconhecimento de objetos separados; do mesmo modo se dá o processo com o pai, desde sua presença através da mãe e, logo, de si mesmo.

Os vínculos e as relações totais instintivas, psicológicas, emocionais, afetivas e cognitivas, tanto eróticas, libidinais, sexualizadas, como tanáticas, agressivas, destrutivas, hostis, de intercâmbios múltiplos, de potencialidades de incesto, parricídio, filicídio — ou seja, a relação da criança com sua mãe, com seu pai e a relação da mãe com o pai através de todo o processo, é o que considero o aspecto mais relevante do Édipo e indispensável para a conquista de uma identidade própria; a solução real e não idealizada através da vida. Tem, sim, como máxima intensidade ou estrutura, de três a cinco anos, porque de outra forma estaria se engrandecendo e edipizando a existência, negando, excluindo e minimizando os primeiros anos de vida, prévios ao Édipo clássico, tão importantes e transcendentes.

É indispensável que nós, analistas, reflitamos a respeito de qual é a fonte do conflito humano. No meu entender, é o instinto de morte e seus derivados, isto é, o que chamo de agressificação destrutiva da libido, a que vai produzir quase toda a patologia humana (tal como desenvolvo no meu trabalho sobre Contribuição psicanalítica ao estudo da agressão, violência e medo).

A sexualidade, o Eros, constitutivos do instinto de vida, dão prazer, paz e felicidade, salvo quando há uma agressificação destrutiva da libido, que os desvirtua e os desnaturaliza: na aparência é sexual, mas uma sexualidade com fins destrutivos. As angústias são as expressões conflitantes da luta entre o instinto de vida e instinto de morte; à diferença da depressão, na qual a pessoa ou o paciente deseja morrer, a angustia é expressão do desejo de viver diante da ameaça de morte.

Devido a importância dos vínculos infantis entre pais e filhos, um fator relevante na gênese da homossexualidade, tanto feminina como masculina, é o fato do não estabelecimento de um vínculo homossexual saudável com o pai do mesmo sexo durante a infância.

Um aspecto de minha técnica constitui o que denomino Tânatos terapêutico. Nossa atividade não é exclusivamente erótica ou libidinal, mas serve-se da utilização criativa da agressão porque, consciente ou inconscientemente, vamos utilizá-la em benefício de nossos pacientes. Dessa maneira, eles não nos sentirão cindidos de nossa dualidade inerente à nossa natureza, ou que queremos aparentar uma desagressificação e dessexualização psíquica, senão que somos plenamente conscientes de que temos que integrar com criatividade nosso Eros e nosso Tânatos. Isso contribuirá para que os pacientes saiam da repressão — um dos principais inimigos da saúde mental —, do submetimento, da supressão; assim como aprendam a não temer seus próprios impulsos, como se estes fossem necessariamente negativos, maus ou destrutivos. A intenção conseqüente é liberá-los e ensinar-lhes a possibilidade de comunicara seu Eros e seu Tânatos criativamente (meu mestre Winnicott dizia que, mesmo quando fazemos amor, se não o integrarmos com uma dose adequada de agressão criativa, a relação amorosa se desvitaliza).

Em relação à interpretação, considero que é uma tentativa de compreensão do mutualismo dos inconscientes, tanto do analisando como do analista. Essa é a razão pela qual denomino minha interpretação “mutuativa”. Que quero dizer com isso? Que, para mim, o paciente fala de seu inconsciente através de seu consciente — por isso Freud nos dizia que interpretar é fazer consciente o inconsciente. O analista escuta inconscientemente, como o paciente, através de seu consciente. Ou seja, o consciente serve ao analista para acolher o que o paciente diz e poder sintetizar. Ao responder com a interpretação ou com quaisquer outras respostas que dê, estará respondendo igualmente com seu inconsciente através do consciente.

O vínculo é um espaço intermediário e potencial. Haverá uma comunicação primordial dos inconscientes, sem deixar de valorizar nem de integrar dos aspectos conscientes o indispensável e útil.

Há uma real diferença entre reciprocidade, que implica os mesmos sentimentos em cada pessoa, determinados por um deles no outro, e mutualidade, que implica que os mesmos sentimentos de um para com o outro estão presentes em ambas as pessoas, existindo porém em cada um, independentemente de sua existência no outro.

Acredito ser importante nos pronunciarmos sobre nossa identidade analítica e como nos definirmos. Quanto a mim, sinto-me um freudiano dialético, existencial, heterodoxo e não dogmático; no plano político, um humanista independente. Tomo a experiência freudiana nutrindo minha pessoa de meu vínculo com meu analista, com meus supervisores e meus mestres e em síntese com minha experiência analítica com meus pacientes, a continuidade de minha análise em minha auto-análise e minha experiência de vida. Isso vai me descobrindo aspectos novos — e continuo aprendendo.

Do ponto de vista filosófico e ético, respeito e valorizo a motivação e liberdade de eleição do campo de trabalho do psicanalista. Do mesmo modo, os diversos fundamentos conceituais, clínicos e técnicos. Sou contrário a uma atitude sectária, identifico-me com a diversidade e pluralidade tendentes à integração. O essencial é a qualidade do compromisso, expressão de uma dedicação séria e consciente.

Embora reconheçamos que a análise clínica é a fonte primogênita e indiscutível do conhecimento analítico como técnica terapêutica, como método de investigação e como teoria, a psicanálise aplicada e interdisciplinar não é mais nem menos que esta. Como ciência humanística, não pode estar isolada nem da história do homem nem das disciplinas incluídas na cultura. Disso surge a importância de que o analista seja uma pessoa do mundo e amante da cultura. Há uma série de espaços não revelados que subsistem.

A psicanálise não apenas contribui para essas disciplinas, como também recebe delas e se enriquece com contribuições importantes, que fazem da ciência analítica a disciplina que mais profundamente permitiu conhecer o homem em suas relações humanas. Esse intercâmbio enriquecedor e valioso, numa cópula exogâmica e criativa constitui, do mesmo modo, a metáfora do conúbio existencial.

 

 

Endereço para correspondência
Saúl Peña Kolenkautsky
Fone: (51) 12643407
E-mail: saulpk@terra.com.pe

Recebido em: 30/05/2008
Aceito em: 10/06/2008

 

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
* Médico psiquiatra e psicanalista de crianças, adolescentes e adultos. Pós-graduação no Departamento de Psiquiatria do Hospital Obreiro de Lima. Membro efetivo e analista didata da Sociedade Peruana de Psicanálise. Pós-graduação no Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres e no Instituto da Sociedade Britânica de Psicanálise. Membro fundador do Royal College of Psychiatrists. Pioneiro da psicanálise no Peru; presidente honorário da Sociedade Peruana de Psicanálise. Ex-presidente da Federação Psicanalítica da América Latina. Professor honorário da Universidade Nacional Maior de São Marcos.

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