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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.75 São Paulo dez. 2008

 

ENTREVISTA

 

Transferência

 

Transference

 

Transferencia

 

 

Em 25 de novembro de 2008, Dr. Isaías Melsohn* abriu generosamente as portas de sua casa para receber a colega Marta Úrsula Lambrecht, do corpo editorial do Jornal de Psicanálise, a quem concedeu a honra desta entrevista. A ambos, nossos agradecimentos. Dr. Isaías tem um longo percurso como psicanalista e vários escritos em que expõe sua instigante concepção crítica à teoria psicanalítica, a exemplo do livro Psicanálise em nova chave (Editora Perspectiva, 2001).

Marta: Em nome do Jornal de Psicanálise, agradecemos sua disponibilidade para nos conceder esta entrevista.

Isaías: Pretendo, neste encontro, ampliar o tema da transferência – e pensei no que poderia dizer de um tema como este, tão amplo e discutido de longa data. Vou tentar ser breve e caracterizar um aspecto que me parece fundamental, que é a atenção ao passado e a rejeição do passado. O próprio termo “transferência” tem sua origem na convicção de que são os fatos que determinam lastros de configurações emocionais no passado remoto, que ressurgem como força dinâmica a determinar as relações do presente do paciente com o analista, para o qual se transfere – digamos isto com acento – o contexto da dimensão afetiva emocional que foi, na verdade, originada no passado.

Está certo pensar assim? Ou formular a convicção de surgir historicamente no desenvolvimento da técnica e da teoria analítica sobre a transferência do passado para o presente? Transferência no sentido de ubicação na figura do analista em relação ao paciente, e do paciente em relação ao analista da dimensão emocional impulsiva, que configura o estatuto psicológico do momento.

Acontece, porém, que, para sermos um pouco sintéticos, tem se mantido um grande debate quanto à importância da busca do passado – não que o passado não tenha tido seu fundamento de determinação psicológica e etiopatogenia –, mas se, de fato, o presente não é o fundamento da situação, e se não é ele que deve ser o objeto da pesquisa e do trabalho da relação dinâmica que se estabelece. Uma transferência, dessa maneira, é entendida não mais como transferência de lugar e de locus psicológico do passado e do presente, mas meramente uma transferência que é o dualismo vivido na situação eu/tu. A dualidade de dois personagens que configuram uma situação de relação emocional, que é o fundamento do que se conceberia nesta visão diversa da clássica de transferência. Transferência é o que se passa no eu/tu, aqui, ad hoc. Menos importância para o passado, e sem a dimensão emocional, passa ser o lastro fundamental, como um aqui e agora a ser investigado, buscando os dinamismos e as configurações inconscientes determinantes dessa transferência ad hoc atual.

Isso vem sendo discutido há muito tempo: grandes figuras da história da psicanálise se põem ora bem do lado da fundamentação histórica do passado, ora bem de outro, ao colocar o passado um pouco de lado e explorar o aqui e agora da relação emocional viva com uma pessoa. É isto que acentuo com os termos de dimensão emocional viva, atual. Determina-se numa atualidade. Não que não possa derivar-se como forma de ser do passado, mas ela atinge sua complexidade na consideração de duas pessoas vivas hoje. Por aí, nós devemos entrar e fazer uma cunha nessa coisa de transferência, como se a pessoa fosse um ser acabado e o analista também, um ser configurado de uma determinada forma que se insere no contexto das determinações chamadas inconscientes do paciente com respostas da personalidade do analista. É sempre uma transferência, falando como ela é concebida. Transferência quer dizer: para a configuração emocional do paciente, o analista aparece como sendo, de certo modo, certo ator, certa forma de ser que se embate de acordo com a configuração psicológica do paciente. Sobre isso, tenho minhas dúvidas e muito a discutir, porque cada pessoa é diversa de outra. As pequenas configurações da pele afetiva das pessoas são de, tal monta, ricas que (o analista) passa a ser uma figura que traz coisas e evoca uma dinâmica do paciente que já preexiste à situação analítica e se concretiza na situação analítica; mas, ao lado disso, traz a realidade viva da dimensão humana complexa de duas figuras que interagem e onde há sempre um novo a ser pensado e apreendido.

Tratei de reencontrar nos meus escritos alguma coisa desse tipo para trazê-la aqui, para dar um pouco de vivacidade histórica para nossa conversa.

Abordo a sessão analítica repetindo um pouco o que tentei resumir na sexta aula de meu livro Psicanálise em nova chave.

No término de nosso curso teórico, quero falar a vocês da sessão analítica. E retomo, antes das observações finais, o trecho que encerra o trabalho que nos serviu de roteiro.

O destaque dado ao fenômeno da expressividade na arte obedece a dois motivos. Falo aqui da distinção entre o expressivo e o lógico discursivo. Entre um gesto que eu faço e apenas a menção teórica desse gesto. Entre o ríctus da face e a mera descrição desse ríctus. Em primeiro lugar, o que é expressividade? É uma autonomia de forma como veículo de expressão de um setor específico da relação homem/mundo e sua irredutibilidade ao discurso do saber. Em segundo lugar, mostrar que essa forma é da mesma ordem que o dos acontecimentos da sessão psicanalítica. Porque lhe é alheio ao discurso do saber, embora possa ser englobado? O maestro de música lê uma partitura e discute com os integrantes da orquestra. “Aqui você faz um expressivo suspenso fino, delicado como nós fazíamos em Viena”, dizia Bruno Walter, grande regente da escola alemã-austríaca. Isto é uma leitura discursiva da finura, porque a finura da coisa só vai sair na pauta. A beleza de uma sonata pode ser analisada discursivamente, e eu aprendo ou ensino os movimentos que a alma segue para captar aquilo. Posso ajudar você a seguir esse caminho de captação afetiva, mas, em si mesmo, não estamos na dimensão afetiva, estamos ainda na sua periferia e quase alheios a ela. A expressividade, movimento inicial de base da vida mental, alimenta todas as formas de construção simbólica. Ela lhes dá o caráter de vivência e permite apreender o mundo exterior em referência ao mundo interno. Quer dizer, o mundo me afeta, não é distante como o esquizofrênico que dizia: “A árvore está lá, mas ela não diz nada”.

Não somente na situação analítica, é claro, mas em todos os momentos da vida humana, o expressivo afetivo emocional, perpassa toda a vida humana. Na sessão analítica, ele pode ser objeto e sujeito, quer dizer: aqui podemos redescobrir sua emergência e seu desdobramento no próprio movimento por meio do qual o Ego agora constitui os seus objetos. Situações existenciais importantes se entreabrem para o paciente na sessão analítica. Estamos falando de “transferência”. É um presente absoluto que adquire forma mediante os conteúdos do pensar, imaginar, e de comunicação expressiva que se articula nesse contexto humano.

Repetindo: situações existenciais importantes se entreabrem na situação analítica, pois ela é um presente absoluto, que adquire forma mediante os pensamentos, as imaginações e as comunicações que surgem nesse contexto de relações humanas.

Marta: Na sua concepção, então, o conceito clássico de transferência é significativamente discrepante do que o senhor está desenvolvendo aqui.

Isaías: Muito importante sua questão, porque uma coisa é dizer, como muitos analistas disseram: “Agora fez cocô em mim e pode sentir muito prazer nisso”. Se quero fazer uma interpretação figurativa, posso dizer que fazer cocô é me atacar, mas há analistas que acreditam que o paciente quer fazer cocô neles – Meltzer, aqui, dizia isso.

A importância do passado ou a visão do puro presente é uma linha demarcatória nítida, a compreensão de dois grupos de analistas distintos. Uns concebem a determinação no passado e usam, nas interpretações, hipóteses e formulações postas no passado, propondo que seja redescoberto e que aceda à memória, mas o passado como tal. Muito diferente da minha concepção.

Enfatizo que é necessário captar a essência do presente. Sem se importar quanto à origem, porque não é a possibilidade e a semelhança com coisas que ocorrem na infância que captam a minha atenção e interesse, mas, sim, a dinâmica própria da configuração presente. Daqui a pouco darei um exemplo. Primeiro queria pôr os pingos nos is com relação à sua pergunta e dizer que é o puro presente, mesmo sem falar em inconsciente no presente e a própria dinâmica supostamente inconsciente agora. Há analistas que dizem que esse inconsciente, essa maneira de ser talvez seja aquilo que organizou sua maneira de ser desde sempre. Isso pode acontecer, e amplia a visão histórica de si próprio do ser humano. Mas o que é realmente significativo é partir para esse suposto passado, real, que ocorreu, sempre de um presente vivo.

Esse presente adquire forma através do pensar, do imaginar e da comunicação que se articulam nesse contexto, nesse momento da relação. Algo presente, ainda não conhecido, que é o fluir dos impulsos que se articulam no contato entre dois seres humanos, se traduz em múltiplos conteúdos, às vezes, pura vivência de angústia ou terror, sem conteúdo de representação. Uma imagem de algo que surge “lá fora”, um acontecimento de “ontem” são expressão final dos movimentos emergentes, aqui e agora, dos impulsos e do sentir que se condensam nessas imagens. O paciente se projeta em direção ao objeto “lá fora” ou ao “ontem”. Mas esse objeto, ou o passado, em cujas direções o pensar se lança, são pontos momentaneamente estáveis, por meio dos quais a totalidade do presente se projeta numa estrutura de impulsos despertada pela experiência humana agora vivida; para o paciente, essa experiência adquire fixidez, forma e sentido no conteúdo do que lhe aparece lá fora. Algo presente se transforma num pensar. Assim constituído por esse paciente, esse pensar é a forma por meio da qual ele organiza sua experiência presente; é a construção simbólica que a configura e lhe dá expressão.

Na textura íntima dos objetos assim criados, o analista vai apreender o sentido das vivências. As características e o valor que os objetos assim criados têm para o paciente, a estrutura da comunicação, no aspecto lingüístico e afetivo, a apreensão de seu sentido expressivo permitirão ao analista captar a angústia, a trama de intenções e os seus desvios, os planos de intersecção de defesas, isto é, os movimentos interiores por meio dos quais as pulsões despertadas na relação interpessoal se configuram no contexto final do relato do paciente. A projeção da vivência criada e o modo dessa projeção são funções do que ela desempenha no mundo interior: é assim que o mundo interior se articula e se expande num pensar; desviando-se, embora, do aqui e agora, dá forma e conteúdo ao aqui e agora.

Numa palavra, o tipo de universo simbólico que surge na sessão analítica emerge como um mito por meio do qual a personalidade dá expressão e sentido ao que experimenta no momento. Cabe ao analista desvelar essa correlação. O segundo momento, o da comunicação do analista, é que vai criar a cisão, vai introduzir o movimento de retorno do pensar, que está todo no objeto, por exemplo, para a intenção subjetiva que constitui esse objeto, que organiza o objeto.

No seu campo, o processo psicanalítico tem por objetivo a transformação da consciência do objeto em consciência de si, que participa na constituição dos seus objetos. Se assim é, podemos ver como nos distanciamos da concepção clássica e voltamos a nosso ponto inicial: a consciência, como estratégia de disfarce de impulsos e de objetos inconscientes, cede lugar à noção de consciência produtora de suas intenções e das formas de pensar correspondentes. Por isso, também, a psicanálise não se insere no âmbito das ciências da natureza. Por suas características, ela pertence ao domínio das disciplinas fenomenológicas.

Na história da técnica analítica, podemos observar uma gradual mudança de objetivos, condizente com a apreensão implícita dos problemas aqui discutidos: voltada, inicialmente, para a busca de conteúdos infantis reprimidos presentes hoje, ela se dirige, atualmente, para a apreensão dos sentidos vividos, visando à transformação das estruturas de impulsos e das formas de simbolização da consciência. As vivências são desarticuladas no nível de sua objetivação e apreendidas a certa distância, agora como intenções do Ego. Esse problema de desarticular as vivências impulsivas que dominam a pessoa também é concebido examinando o suposto passado das vivências. Aqui, é desarticulado no momento ex-novo em que surge. A transposição ao discurso – quero dizer, discurso como forma de pensar – é expressão desse distanciamento. Mas o instrumento que põe em marcha o processo é a comunicação recíproca de experiências no nível da expressividade, no nível da comunicação emocional entre paciente e analista.

Importante, porém, ter em mente que a sessão psicanalítica não é um campo de observação, como se costuma às vezes ouvir. Imagine você se, para um filho que chega muito bravo da escola, porque a professora o castigou por uma traquinagem qualquer, eu dissesse: “Observo que você está com muita raiva”? Ele iria me mandar, juntamente com a professora, para aquele lugar!

Paciente e analista são participantes e são envolvidos pela trama de impulsos e reações emocionais recíprocas. Sensíveis ambos ao clima único que imanta o encontro de dois seres humanos, cabe ao analista apreender o sentido e transformá-lo em condições de acesso à palavra. A proposta de Freud, da atenção flutuante, sugere um estado de consciência que permite uma apreensão não horizontal. Nessas condições, podem ser percebidas conexões verticais paratáxicas, reveladoras de formas expressivas de conteúdo emocional de sentidos. O desenvolvimento da técnica permitiu elaborar de forma bem mais precisa e minuciosa os problemas aí envolvidos. Identificação projetiva, do paciente e do analista, contratransferência, rêverie são, hoje, moeda corrente nos meios psicanalíticos.

Cabe, por fim, acentuar a função expressiva na comunicação do analista. Também invadido pela experiência emocional, o analista enfrenta uma dupla exigência: aceitar a invasão, acolhendo-a, a fim de poder, a seguir, apreender o seu sentido e formulá-la numa interpretação.

O paciente acolhido com compreensão – daqui a pouco vamos discutir com pormenores o que é acolhimento – poderá agora, ouvir a si próprio falado por outrem; poderá se re-conhecer dentro e através do outro, numa nova fusão, desta vez simbólica, que é, também, uma das realizações supremas do dizer humano. Mas é fusão como visão, o que implica distância. Eis porque esses momentos constituem experiências de intenso caráter estético. Elas criam condições para a emergência de novas correntes intersubjetivas, para o distanciamento, por liberação de ansiedade, e para reintrojeção de novas formas de simbolização. À semelhança do que se passa na construção poética, a interpretação psicanalítica e seus efeitos de mudança resultam da união do sentido expressivo e da significação discursiva, do som e da letra, do poder musical e designativo da palavra.

O que é acolhimento?

Um paciente vem à sessão e se queixa se vai ou não continuar, porque ele acha que está melhor e já conseguiu muitas coisas. O analista diz: “Você se tortura ainda por saber se deve trabalhar aqui ou não; no entanto, você diz que conseguiu muitas coisas para você”. Depois, vem outra situação, em que o analista diz: “Você sente isso ou aquilo porque você é capaz de fazer com você...”. Ele nunca se põe a si próprio no papel que ele pode desempenhar para o paciente, e o paciente está recuando da exteriorização para a interiorização a que o analista o força com suas sugestões interpretativas. O paciente vai embora, ele tinha pensado interromper a análise, volta na sessão seguinte e diz: “Ah, eu consegui sentir que realizei muitas coisas, consegui trabalhar”. O analista diz: “Pois é, você conseguiu perceber que você é capaz de muitas coisas e você faz tudo isso com seu esforço; você sente um conflito dentro de si se vai ou não continuar aqui”. O analista não fala nada do papel dele. O paciente diz: “Hoje veio um fiscal no serviço para olhar algumas coisas. Eu entreguei para um outro fazer, deixei ele cuidar do fiscal porque eu não quero enfrentar, quero ficar mais tranqüilo”. Em suma, o fiscal, que é o analista, põe o paciente para fiscalizar permanentemente, é tentado a ser posto de lado, dizendo: “Eu não suporto essa tortura de me fiscalizar sempre, e não suporto essa tortura de você ser fiscal permanente de meus atos. Eu quero viver independente disso”. Então, ele tenta, ao mesmo tempo em que ele é fiscal de si, libertar-se de si por impossibilidade de projetar através da transferência e acolhimento verdadeiramente aceito – isto que é acolhimento: aceitar o papel de fiscal terrorífico que eu, analista, sou para o paciente. Eu nego isso a ele, e nego poder projetar e elaborar de uma forma adequada essa projeção de fiscalização permanente de meus atos. Negação de acolhimento. Tem gente que sempre fala em acolhimento.

Uma paciente entra na sessão e conta um pouco de seu sofrimento para o analista. O analista diz, então: “Você percebe...”. Parece que a paciente respondeu da seguinte forma: “Cheguei à conclusão que não vou ter mais relações sem camisinha com meu marido”. O analista interpretou essa camisinha lá com o marido, quando na verdade era uma retirada do analista, que não iria se entregar plenamente, com todo seu espírito, a uma relação em que o analista que fala essas coisas e faz com que a paciente se afaste. Quer ficar limpa de qualquer contato afetivo.

Passado no presente.

Um paciente entra em uma sessão e diz: “Eu vim te pagar porque vou entrar em férias amanhã”. É um caso famoso da Marilsa Taffarel, famoso para mim porque eu o repito sempre. Dias atrás, a analista havia dito para o paciente que quinta-feira seria o último dia da sessão em andamento, porque ela iria entrar em férias. Depois retomariam. O paciente chega, paga a analista e diz: “Amanhã eu entro em férias”. Evidentemente, ele tomou a primazia do rompimento – e nós ainda não sabemos o que esse rompimento significa, se é uma autonomia, se é um retorno a si próprio, se é uma fuga. Mas, logo a seguir, o paciente fala: “Interessante, hoje eu encontrei aquele arbusto da minha juventude”. (Na semana anterior, o paciente havia dito que notara, no jardinzinho da analista, um arbusto que era muito parecido com um da sua juventude.)

Há uma semana, os dois arbustos eram parecidos. Ele era próximo dessa figura analítica: eles são parecidos, há relações, há coisas que pertencem a ambos. Hoje, ele encontrou o arbusto dele, não só aquele parecido, mas um outro verdadeiro: ele acolhe, ele é um arbusto e ela é um arbusto. Nessa configuração – ele é o arbusto –, inconscientemente, ele se representa como um arbusto. Não há uma representação de mim como um arbusto. Eu sou um arbusto ou eu me represento como um arbusto, não. Arbusto parecido, arbusto diferente, arbusto verdadeiro e arbusto apenas parecido são configurações poéticas que representam muito mais dinamicamente o que são duas pessoas, que não se diz que são pessoas: a própria pessoa é um arbusto que cresce, que se desenvolve, que é verdadeiro na inspiração do oxigênio, do carbono, e não mantém representado simbolicamente no inconsciente uma apreensão de si próprio. Ela se fará por um processo de empobrecimento discursivo e racional, em que passo a compreender que configurei a mim como arbusto, porque tenho um poder descritivo de força emocional muito maior do que se dissesse: eu e você. Só o poeta dirá: eu e você com uma poesia, que canta o que é eu e você como arbusto. Ele disse diretamente como arbusto. Segunda coisa: é um erro ir para o passado e tentar compreender o que foi esse arbusto no passado? O que aconteceu de rompimento com o nosso, que vai guiar minha apreensão em um suposto passado da juventude, em que ele tinha um arbusto que era dele, e que ele vivia com esses recursos? Não. Isso está se passando hoje, e vou investigar, vou captar na forma de dizer se ele está triste ou se ele se sente livre; que vai apreender seus próprios recursos com a força que ele tem, amputando talvez um desenvolvimento diferente ou dando-lhe plenitude. Vou tentar esgotar o presente, para depois pensar nesse passado, que não é passado: é puro presente, que vai buscar no passado lembranças para dar plena força à multiplicidade de sentidos emocionais que o presente possui. Tempo é agora, é presente do passado, presente do presente e presente do futuro: tais os três vetores do tempo. Não há um passado puro nem um presente puro nem um futuro puro. Os três são articulações de intenções do momento, e só os três, em conjunto fazem a dimensão temporal do ser humano.

Isto quanto à temporalidade e quanto ao presente do passado.

Então, depois, escrevi, como um preâmbulo ao primeiro seminário desse curso, em 1988 (naquele tempo já estava enferrujado, pensando as coisas que eu penso hoje):

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este é o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis

“O dizer do poeta traz a presença à vida. O dizer do poeta é visionário e o faz ver. Ei-lo, aqui, o poeta, Fernando Pessoa, que se diz Ricardo Reis, no seu dizer vidente do que o psicanalista vê e diz.

Assistimos, na história da técnica, à progressiva assimilação do princípio segundo o qual as mudanças visadas no processo psicanalítico são criadas na experiência emocional da sessão, no presente vivo da relação intersubjetiva. O retorno a este tema tem o propósito de fixar certos pontos, que se diriam doutrinários. É, igualmente, opinião prevalente, senão universal, a nortear a técnica analítica, que, a partir do presente, tomado como forma modelada no passado, há que remontar a esse – ao passado – e buscar, a fim de revelá-las, as constelações de representações afetivas reprimidas, nele inscritas – nesse passado –, tidas como núcleos constitutivos importantes da configuração da personalidade.

Todavia, consoante o pensamento desenvolvido nos estudos aqui apresentados, o presumido passado reprimido, inconsciente, é muito mais uma estrutura emocional, uma forma ordenadora de apreensão afetiva do mundo do que, propriamente, uma teia de representações empíricas discretas, registradas como engramas e destituídas de conexão com a palavra. Esse é o modelo teórico clássico, engramas, passado, desligados da palavra, amputados de sua conexão de possibilidade de consciência e por isso inconsciente. Se é verdade que o homem é um ser histórico, sua história e sua temporalidade são expressas no seu presente. Isso sempre foi dito também na psicanálise assim chamada clássica. São expressas numa forma deguisée, escondida, aparente, que devem ser desfeitas para apreender suas raízes verdadeiras, inconscientes. Não devem ser buscadas, essas expressões, a título de passado impresso em camadas alheias ao seu estar-presente no mundo. O presente, no seu fluir, contrai em si próprio o presente do passado, que é a memória; o presente do presente, que é a percepção, e o presente do futuro, que é a expectação. A dimensão temporal do homem é que constrói a unidade; e a essência de seu ser contém um único tempo, que se abre naqueles três vetores simultâneos.

Se esse modo de entender se figura válido, a experiência íntima do tempo, encarnada nos conteúdos em que se manifesta, deve ser olhada em nova perspectiva. Na prática clínica, os momentos evocativos, a irrupção de lembranças, devidamente tomados no conjunto da sessão analítica em que emergem, assumem significação peculiar, e é essa significação que deve ser objeto de atenção, antes mesmo da consideração dos elementos mnêmicos como pretérito a serem analisados. É que a memória é um ato simbólico criador. Ela se constitui como forma de intelecção, como espontaneidade de movimentos intencionais que, acionados pela situação presente, voltam-se ao acervo da experiência pregressa e dele extraem materiais propícios à concepção e expressão do presente, e não o contrário. Eis porque cabe levar em conta. Primeiramente, este; sem, no entanto, descurar daquele. Será dado a observar, por esta forma, que o significado atual empresta a sua marca e permite destacar sentidos pregnantes em acontecimentos do passado, revelando o porquê de seu ressurgimento e não ao contrário. O presente, assim ampliado, servirá à integração subjetiva na marcha para a consecução de uma história pessoal e do projeto existencial nela implícito.”

Estes comentários sugerem, pois, como procedimento metodológico, que a investigação da gênese psicológica das representações deve ser precedida pela análise da significação do momento presente. A ilustração clínica foi apresentada no caso dos arbustos.

Outras modalidades narrativas preenchem funções análogas. Trata-se, em suma, de formas de elaboração da subjetividade comuns na vida da consciência. A estrutura de um contexto emocional é, com freqüência, altamente complexa, seus ritmos são polimorfos, e múltiplas as vertentes afetivas que entram na sua constituição. Esse conjunto de fatores mobiliza a imaginação produtiva na sua criativa excursão em busca de episódios que, percorrendo durações e espaços inerentes nas formas narrativas, servem de suporte à textura dos movimentos anímicos contidos naquelas emoções e distendem no tempo os momentos simultâneos em que se cristalizam. Ou seja, a imaginação criativa busca situações narrativas que percorrem espaços e tempos longos, que servem para que o presente, que é múltiplo, possa percorrer distâncias e tempos mais amplos, para ser constituído como relato. Então, o relato que se passa por muito tempo é a expressão da simultaneidade de coisas complexas e opostas. Os dois arbustos são um encontro que, de outra forma, não teria expressão possível, porque é tudo junto: oposição, subordinação, liberdade, autonomia. Tudo explode nos dois arbustos, que são expressos numa temporalidade longa. Acrescente-se a tais itinerários da vida imaginária, as ressonâncias expressivas que emanam da palavra e ter-se-ão os principais componentes que participam da criação de formas de expressão próprias da vida emocional.

Há vários problemas de técnica a que me refiro aqui, o problema do sensorial, o da percepção, o das configurações bionianas do aqui e agora como sensorial fugindo de si próprio, com as que não posso concordar, porque o sensorial é o repouso do emocional. Se Otelo não mata a Desdêmona, que é uma situação sensorial, não dou expressão ao crime de ciúme.

Entra um paciente e diz para a analista: “Aquele carro machucado, lá embaixo, é seu?”. Era um sábado e o carro era um dos poucos que estavam ali. A analista conta ter dito para o paciente: “Você não fechou a porta”. E explica que, habitualmente, é ela quem abre e fecha a porta. É uma situação vulcânica, porque o paciente entra, ela fica perdida. O carro dela é um Volkswagen. O paciente diz, a seguir, que o carro está amassado, precisa de um conserto. Ela fala algo assim sobre como ele sente tal coisa. O paciente é muito rico de expressividade, é um artista, e diz: “Hoje vou ao concerto, espero te ver lá. É muito fácil ver você”. É preciso explicar que a analista é grande e gorda. Ela é uma massa grande. O carro estava amassado, ele estava muito amassado. A analista nos conta que, depois, ela veio saber que a família do paciente, diplomata, vai se mudar e ele vai perder análise. Daí estar absolutamente amassado e perdido. Para seu conserto interno, que está arrebentado, essa massa gorda, enorme, que ele vai perder: isso é expressividade.

Marta: Uma breve palavra para um analista jovem, em início de carreira psicanalítica, o que o senhor diria?

Isaías: Eu tentaria ver, dentro de sua dimensão de captação de sensibilidade, quais são as mãos afetivas que conseguem captar a névoa da emoção. Tentaria, se se tratasse de uma pessoa que tem algo de poético possível, dar exemplos dessa dimensão que pode ser expressa perfeitamente no ensino, com exemplos ricos. Assim, os arbustos, o amassado. Apresentei, certa vez, uma sessão analítica para discutir num congresso. O paciente entrou, deitou-se, colocou os sapatos em paralelo, em direção à porta e disse: “Tenho vários pares de sapatos com cordões, só um mocassim”. E continuou: “Neste fim de semana, estava lendo uma avaliação de dois primorosos contistas, Clarice Lispector e um argentino enorme de dois metros de altura. Quando eu era estudante de ginásio, o professor de química mandava fazer uma tabela de Mendeleiev, olhava a tabela, pegava um lápis e furava os papéis”. Como analista, eu pensava comigo: um professor pegar um lápis e furar um papel, que coisa altamente sexual! Química é uma aliteração de mica: química, mocassim. Dois contistas importantes: Lispector, lispa, lápis, ctor. Ele falava também de um professor de japonês; depois se lembrou que o autor era o homenzarrão, que é o Cortázar: cortá zar; o analista era o Sapienza. Lista, lápis, SAP, homenzarrão, enza, Sapienza. Tudo. Ele estava falando da relação dele com o analista. É uma configuração expressiva, poética da linguagem. Examinemos a poesia clássica portuguesa, os trovadores, em que autores estudavam o número de consoantes e de sílabas que precisavam para criar um soneto, um alexandrino de onze sílabas, etc. – aqui, nossos pacientes repetem isso. Sapienza. Esse paciente entra na sessão e tudo se configura como um mito, ele coloca os sapatos magicamente em direção à porta. A relação dele com essa figura fantástica, do contista, escritor argentino, que é o Cortázar, como Sapienza, é de um homem poderoso que sabe tudo, um professor de português que dizia: temos que aprender o japanês e dizer claramente: doze, treze, catorze, quinze, dezasseis! (risos).

Marta: Qual a sua concepção de contratransferência?

Isaias: Não tenho muito a dizer. No alemão é gegenübereignen: diante da transferência, não é contra, mas diante de. Dirigir-se para. É ter diante de si – que se dirige a você e você responde com alguma coisa. Este é o sentido original de Freud. Não é rejeitar a transferência, como foi concebido nos seus primórdios. Mas passa a ser uma dimensão importante a resposta emocional às configurações do paciente. Quem desenvolveu e pensou mais longamente sobre isso foram os ingleses, os seguidores antigos de Melanie Klein, que se distanciaram um pouco dela e formaram o middle group. Porque onde há bons psicanalistas, há sempre três escolas, cada uma tem três nuances, então são nove... (risos).

Na verdade, numa configuração mais ampla, é como fazer análise da apreensão afetiva do próprio analista, daquele fiscal introjetado, do arbusto.

Marta: O senhor chega a comunicar seus sentimentos ao paciente?

Isaías: Às vezes, como, por exemplo: eu vi tal coisa em você e acho que foi um exagero eu ter dito isso ou aquilo. Eu retomo. Acho importante poder dizer.

Uma vez, cochilei na sessão e o paciente perguntou: “Você dormiu?”. Respondi que sim e o paciente falou: “Se você dissesse não, eu me levantava daqui e nunca mais voltava”.

Marta: Gostaria de dizer mais alguma coisa?

Isaías: Importante relembrar um aspecto ao qual gostaria de dar mais atenção. Na sessão analítica, devemos estar atentos a dois níveis da linguagem: ao representativo e ao expressivo. O primeiro refere-se à noção de representação como conteúdo mental, que significa vários outros conteúdos, não presentes, mas implícitos no saber. Eu digo árvore, está presente em floresta, madeira, marcenaria, etc. Agora, se eu digo árvore!!! (entonação forte), é um bicho que saltou na minha frente. Então, a linguagem de uma sessão pode surgir como verdadeiro mito, por trás do papel de significação representativo da frase, da palavra. E isto é chamado de sensorial ao lado do onírico mítico, em moda para certas pessoas que captam os dois níveis em que podem se exprimir. Há outros níveis estudados por lingüistas como Giacomo,1 mas estes dois são importantes para o psicanalista: o representativo e o mítico-poético. Assim, podemos estar atentos ao significado de um texto, onde uma porta é uma porta em sua significação, e depois captar o sentido mais profundo que tem essa porta para abrir-se aos tesouros da alma.

Marta: Em nome do Jornal de Psicanálise, e no meu próprio, mais uma vez, sinceros agradecimentos por sua generosidade em nos oferecer os valiosos frutos de seu pensamento psicanalítico.

 

 

* Primogênito do casal Icek e Rywka, que emigrou para o Brasil em 1926, Isaías Melsohn nasceu em Lublin, Polônia, em 10 de janeiro de 1921. Adquiriu a cidadania brasileira em 1945 e formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1946. Psiquiatra no Hospital do Juqueri, em 1947. Docente no Instituto de Psicanálise da SBPSP, em 1954 (ano em que, ao participar do I Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, defendeu a cientificidade da psicanálise e sua prática também por não-médicos). Psicanalista didata em 1960. Professor de psicologia na USP, de 1962 a 1964. Membro visitante da Sociedade Britânica de Psicanálise (sua estada da Inglaterra, de 1971 a 1973, incluiu um período de análise com Hanna Segal e seminários e supervisões com Betty Joseph, Herbert Rosenfeld, Irma Pick, Sidney Klein). Um dos fundadores, em 1976, do Curso de Psicoterapia de Orientação Psicanalítica no Instituto Sedes Sapientiae. De São Paulo e Rio, sua participação, na forma de trabalhos apresentados, cursos e conferências, estendeu-se a Caracas, Paris, Londres, Roma. “Elaborador crítico de todos os objetos que lhe passam diante dos olhos em forma de ciência, música, literatura, pintura, escultura, cinema e teatro”, nas palavras de Jacó Guinsburg, o título de “Notório Saber” foi conferido a Isaías, por unanimidade, pelo Instituto de Psicologia da USP, em 1991. Na apresentação do livro Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida, de Bela Sister e Marilsa Taffarel (Editora Escuta, 1996), afirma Fabio Herrmann: “Isaías pensa em teia. Tudo se refere a tudo, e ele aspira a abarcar em cada tema, por mínimo que seja, o conjunto inteiro do conhecimento humano. Cada problema leva-o às fontes gregas de nossa cultura, atravessa a cultura, reposiciona a psicanálise.”
1 Giacomo Devoto, um dos mais renomados lingüistas do século 20. Deixou extensa obra, na qual se destacam Storia della lingua italiana (1940); Origini indoeuropee (1962); Avviamento alla etimologia italiana (1968). Nasceu em Gênova, em 1897, e morreu em Florença, em 1974. (N. do E.)

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