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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

DEBATE

 

Transferências

 

Transferences

 

Transferencias

 

 

Em 2 de dezembro, o corpo editorial do JP – na ocasião, representado por Leda Maria Codeço Barone (editora), Alice Paes de Barros Arruda, Beatriz Helena Peres Stucchi, Iliana Horta Warchavchik e Marta Úrsula Lambrecht – recebeu Mariângela Mendes de Almeida, Orlando Lúcio Neves De Marco e Suzana Kiefer Kruchin para um debate a respeito do tema presente número: Transferências. Também foi convidada a colega Cândida Sé Holovko, que responderá pela editoria do Jornal de Psicanálise no biênio 2009-2010.

JP: De obstáculo à alavanca da análise, de estatuto periférico a estatuto central no processo de cura, a Transferência viaja ao sabor dos ventos ao longo da obra freudiana, na qual se abrigou no coração do método: sem transferência, o paciente é inacessível à psicanálise e não pode por ela ser curado. Que conseqüências podemos tirar desta afirmação na atualidade? De que maneira tal afirmação pode ser considerada, levando em conta a clínica de cada um de vocês?

Mariângela: Penso que a transferência carrega o espírito da psicanálise no sentido ter sido ao mesmo tempo uma questão muito inicial, que passou por muitas transformações e foi alvo de reflexões, aportes, de mudanças derivadas da própria clínica e da prática ao longo dos anos. Acho que isso faz com que a transferência seja um tema muito importante em termos de representar a psicanálise, o trabalho em psicanálise, as mudanças, as evoluções. E o que me atraiu muito, particularmente, antes de conversar com vocês, são os novos aspectos da transferência nos termos de como ela tem se colocado para nós na clínica atual com a consideração dos estados primitivos da mente, se é legítimo se falar em transferência ou não. A própria evolução da transferência em termos do trabalho com crianças, toda a polêmica em torno do trabalho com bebês também. Então, o que me atraiu muito, na questão proposta pelo Jornal de Psicanálise, foi a possibilidade de discutir as mudanças.

Leda: Essa foi também uma idéia nossa. Pensar a transferência a partir de diferentes lugares e práticas clínicas.

Alice: Considerando todas essas mudanças que você aponta, talvez você pudesse fazer um link e dizer como elas se dão em sua clínica.

Mariângela: Trabalho muito com crianças, com pais e bebês e também com adultos, sempre a partir de uma reflexão do aqui e agora presente na sessão. Aí já se põe toda a questão da transferência em termos de como ela acontece na qualidade da relação. A transferência como situação total, que se estabelece na transposição para relação ali com o analista de situações relacionais. Aspectos relacionais que não precisam, necessariamente, estar tão definidos e formulados em termos de sujeitos, pessoas ou padrões, mas em todo um aspecto que pode mesmo ser até mais primitivo. Aspectos presentes em cada indivíduo desde o início da vida mental e aspectos antecedentes em relação ao desenvolvimento dessa vida mental. Como é que podemos falar em termos desses aspectos, que se atualizam numa relação com um analista de criança, também na questão do atendimento a pais e bebês ou a crianças com transtornos autísticos? Como esses aspectos, tão característicos da forma de cada indivíduo se colocar nas situações, podem ser demonstrados, expressos, manifestos numa relação no setting analítico?

Marta: E você acredita que a transferência que se desenvolve na análise de adulto é a mesma transferência que se tece numa relação de análises de crianças?

Mariângela: Essas são as questões. Dá pra falar em transferência – ou precisamos criar um novo termo, que dê conta nesse tipo de situação que é, de alguma maneira, levado ou manifesto? Temos aqui um aspecto muito interessante, que é essa nossa busca por conceitos, por palavras que possam abordar e abarcar esses novos desenvolvimentos. Não dá para falar que a transferência se dá da mesma forma – mas de que modo chamar então isso que se dá? É um aspecto da transferência?

Leda: Ou transferências, no plural?

Mariângela: É como o próprio desenrolar da questão do mental na psicanálise, em termos de abarcar ou não psicóticos, abarcar ou não crianças desenvolvendo transferência desde o início. Enfim, toda a polêmica de Anna Freud e Melanie Klein em termos de considerar se a criança é capaz ou não de fazer transferência desde o início. Na questão dos bebês, existe uma polêmica muito parecida entre Serge Lebovici e Bertrand Cramer. Considera Cramer que o contato do terapeuta é com o mundo representacional dos pais: não há transferência a partir do bebê. Já Lebovici acredita que a transferência pode passar também pelo bebê, ou seja, o bebê também ali vai expressar corporalmente relações anteriores. Mesmo numa vida muito inicial, na qual ele viveu aquilo, vai se expressar na relação com quem está ali, numa relação de cuidado, de oferecimento de mente para pensar a situação. Não dá para dizer que é uma transferência igual, mas acho que isso nos mobiliza a pensar naquilo que acontece. Podemos expandir o conceito de transferência a partir dessas novas configurações ou devemos criar outro conceito para dar conta disso? Trabalho muito com crianças com transtornos autísticos, em que a mesma questão se coloca. Não existe identificação projetiva, mas de alguma maneira existe uma forma de estar, uma não-relação. Anna Alvarez aborda isso quando conta de um paciente que atendeu durante muito tempo, perguntando-se sobre o que está sendo colocado ali em termos de relação de objeto, ou de uma “não-relação de objeto”, que se atualiza naquela situação.

Leda: Ao pensar nas questões para o debate, colocamos esta em primeiro lugar, salientando o que Freud considerava adequado para o tratamento psicanalítico. Para ele, a possibilidade do surgimento da transferência era um divisor de águas. Sem transferência, não há análise. A psicanálise é adequada para o que ele denominava de neuroses de transferência, e não para as outras patologias denominadas de neurose narcísicas.

Alice: Se a gente for pensar hoje nos borderlines, que compõem grande parte da nossa clínica, como é que isso vem desenvolvendo? O próprio Bion trabalhou esses núcleos, que outros autores, como você diz, têm expandido.

Orlando: Quando vocês me encaminharam a pergunta, não pensei no termo obstáculo – obstáculo ao trabalho da associação livre, como aparece em Freud –, mas no percurso que a transferência tem na psicanálise. Acho que a transferência é uma situação em que o analista é um obstáculo ao paciente, porque se o paciente pudesse ser só do jeito dele, sem nenhuma interferência, não haveria toda a dimensão da vivência e daquilo que é provocado muito além das palavras. Acho, às vezes, que até o que a palavra procura esconder, o que ela revela daquilo que não é possível ainda ser falado, é que faz acontecer. No sentido da pergunta, a transferência tem um caminho que continua em outros autores depois de Freud. De alguma maneira, uma das transformações que Freud fez foi no sentido de que o paciente e seu médico buscando a cura mudam com isso a transferência. Então, não se tem mais a cura, existe uma experiência que, vivida por essa dupla, pode gerar uma série de coisas. Entre elas, você pode falar de cura, lógico, mas acho que a transferência é uma conceituação que traz para a psicanálise o estatuto de uma clínica muito específica, daquela clínica que existe do paciente e seu médico – tem o diagnóstico, recebe tratamento, e assim por diante. A transformação que a transferência trouxe é fundamental, porque ela coloca um novo nível de investigação, um novo nível epistemológico. Vamos conhecer a partir das perdas, do objeto, das relações do objeto que aparecem ali, dos objetos perdidos e projetados nessa relação. Há toda uma experiência que pode variar na maneira em que é aproveitada. Mas isso não quer dizer que não aconteceu análise: a gente não pode mais é falar em resultado no sentido de um resultado médico. Acho que a pergunta me levou a essa questão do obstáculo: o analista é o obstáculo, porque ele vai se interpor às relações que estão sendo feitas, de maneira a produzir ali alguma coisa nova.

Suzana: Ele é obstáculo, mas é também aquele que propicia a criação de um espaço interno que faz com que haja um diálogo interno, o diálogo é consigo mesmo. Nesse sentido, o analista, o outro que escuta, é necessário e fundamental. É fundamental para que haja essa oportunidade de falar de si. E acho que isso só se estabelece no campo transferencial. Fora desse campo – do qual é tão difícil falar, de definir e que é quase mágico –, você pode fazer conjecturas sobre o outro, pode fazer especulações, mas não aceder à verdade do outro. Se é que se chega a uma verdade – talvez a aproximações dessa verdade.

Leda: Pontalis nos diz que é impossível descrever a transferência, escrever uma sessão e relatar a transferência. O que se pode é falar sobre a transferência, chamando a atenção para o acontecimento em si, daquilo que ocorre na sessão, que é vivido pela dupla. Outro aspecto da questão: embora Freud já tivesse falado que sem transferência é impossível a análise, em outro texto (que também apontamos aqui, sobre o amor de transferência) Freud vai falar do acontecimento real. Vocês não acham que, aí, ele já está falando de outra coisa, que não é da mesma natureza daquilo que ele diz da transferência como atualização de algo do passado?

Cândida: Você está falando sobre a repetição de uma história de relações que os pacientes viveram com seus objetos primitivos, que são transferidos para o analista, e desse reviver no aqui e agora da situação analítica, que pode propiciar o surgimento de uma outra história?

Leda: Estou tentando destacar o aspecto do novo, do inusitado da transferência, lembrando o que Freud diz do incêndio no teatro. Uma encenação está em curso, quando alguém de fora grita: “Incêndio!”. Algo então irrompe de forma inesperada e viva. Estou tentando pensar, trazer para a discussão, se mesmo em Freud não há um paradoxo, uma oposição ou diferença nessas suas duas idéias.

Cândida: Penso que sim, há um momento na teoria freudiana em que Freud acrescenta à idéia de transferência como obstáculo, da transferência como resistência ao trabalho analítico, a noção mais corrente entre nós da transferência como um instrumento fundamental facilitador de elaborações e expansões do universo psíquico. Essa nova versão de antigos conflitos vai dar a oportunidade de que algo novo irrompa naquela relação e que, embora possa ter vínculos com a experiência passada, estará emergindo a partir dessa experiência com aquele analista específico. Penso que neste ponto Freud abre um caminho para as teorizações posteriores da contratransferência, conceito que designa todas as respostas emocionais que o analista experimenta na relação com seu paciente e que é uma importante ferramenta para alcançar um entendimento do analisando e formular uma interpretação pertinente.

Alice: E às vezes até de uma forma até muito intensa. Como a questão da paixão, do agir.

Cândida: O que me faz recordar de uma colocação do filósofo psicanalista Paul Assoun, no seu livro Freud e a mulher, de 1983, que ilustra bem o que vocês estão dizendo. Ele fala que o paradoxo do amor transferencial é que ele é, ao mesmo tempo, motor e obstáculo à cura, “...o que obriga ao analista a posição de encarnar este mesmo paradoxo no processo analítico, onde o analisando passa da demanda de ser amado, que conduz o sujeito ao estado de clausura alienante, ao desejo de amar, de onde eclodem possibilidades infinitas de outras construções.”

Alice: Parece-me que sim.

Cândida: Nesse caso, a transferência é um facilitador, um promotor de desenvolvimento, de crescimento psíquico, não um obstáculo, muito pelo contrário.

Mariângela: É um pouco por essa brecha que se pode fazer alguma conexão com a questão dos estados mais primitivos. A idéia da irrupção e do que emerge como ação e como maneira de se colocar numa relação. Podemos discutir se a questão é com esse analista em particular ou não, ou se é uma colocação muito mais maciça, massiva, independente de uma relação específica com o outro, no caso de se pensar que não se trata de uma clássica relação de objeto. Quando examinamos material clínico, os momentos de relação daquele paciente, ou de não-relação – de qualquer forma, algo é ali atualizado –, a gente pode ver algumas finas e sutis modificações gradativas que apontam para estes modos de se colocar na situação.

Alice: Quando você fala que ajuda, pensei na transferência negativa. Quer dizer, ajuda ou não, não é? Ao mesmo tempo, quando Orlando falou do obstáculo e você de obstáculos como foco, pensei na questão da resistência. Sem resistência, você não trabalha. Se o material é mole, entre aspas, flácido, você não tem como trabalhar. Não se prega prego na areia. Acho que não dá para dizer que a transferência é sempre um obstáculo, na medida em que é algo que está a favor do nosso trabalho, que o favorece. Na verdade, mais que favorece, ela o viabiliza, se bem que existe também esse aspecto de viabilizar, levando em conta que se não houver ali algo com o qual é necessário você se haver, o trabalho analítico não acontece.

Cândida: Sim, mas mesmo a análise de uma transferência negativa pode abrir a possibilidade de um campo novo. Lembro que Melanie Klein propunha iniciar o trabalho analítico com crianças a partir da interpretação da transferência negativa, já Anna Freud pensava diferente. Atravessar a transferência negativa é, assim, uma das funções do nosso trabalho de psicanalistas.

Alice: Sim, claro, se você conseguir atravessá-la.

Suzana: Tanto a transferência positiva como a negativa estão no campo da paixão transferencial. Acho interessante o que Pontalis fala sobre a repetição transferencial. Ele diz que é uma estranha rememoração, pois não é algo que já aconteceu, mas que acontece agora. Advém algo que só nessa situação transferencial pode surgir. É repetição e é primeira vez.

Orlando: O acontecimento real.

Leda: E é Freud quem diz isso. Pontalis retoma o tema.

Orlando: Fiquei pensando nesse novo encontro, duas pessoas que se encontram – o fogo se dá nesse encontro –; esse novo encontro acontece entre duas pessoas e traz à tona a realidade psíquica, porque, ao mesmo tempo em que se fala, alguma coisa está sendo encenada, essa idéia da cena é uma idéia muito utilizada no conceito de transferência. Você, em análise, está repetindo uma cena, esse jogo interno das relações internas. Há uma cena acontecendo e, depois, aparece um alarme, quer dizer, aparece no encontro um fogo que traz, e, eu diria, traz de forma viva – porque no início da conceituação da transferência pensava-se nas repetições de modelos anteriores: esse fogo faz com que seja viva –, uma nova invenção. Uma nova neurose de transferência foi vivida. Há a percepção do fogo, do acontecimento real, pois existe o acontecimento real, mas a realidade psíquica é que vai ser movimentada a partir disso.

Suzana: Freud fala da realidade do incêndio, mas tenho a impressão de que aqui Pontalis usa a noção de real, que é um conceito de Lacan. Surge aquilo que não está inscrito, que não foi simbolizado. Acho que esse fogo também é novo, ocorre agora: não ocorreu antes porque não tinha inscrição psíquica. A coisa forte da transferência me parece ser isso, a possibilidade desse acontecimento.

JP: Pareceu-nos sobremaneira refinada a observação de Pontalis – em seu texto “A estranheza da transferência” – sobre o texto de Freud “Observações sobre o amor de transferência”. Nesse texto, comentando o apaixonamento da paciente e sua súbita mudança, quando renega o tratamento afirmando estar curada, Freud faz o célebre comentário: “Há uma completa mudança de cena; é como se uma peça de fingimento houvesse sido interrompida pela súbita irrupção da realidade – como quando, por exemplo, um grito de incêndio se ergue durante uma representação teatral”. Pontalis vai chamar a nossa atenção nessa afirmação de Freud não propriamente para a imagem de fogo ou de material explosivo, mas para a oposição entre comédia e cena, por um lado, e acontecimento real por outro. Tira ele algumas conseqüências importantes de sua observação, entre as quais: “...a transferência é um agir, a transferência é uma paixão, e não um dizer”; “...a repetição que a transferência provoca é o que escapa à representação, à cena representada e figurada, e à série de ‘ensaios’ que, precedendo-a, a permitiram”. Que implicações, úteis para a clínica, podemos buscar na observação de Pontalis? O que ela evoca considerando a clínica de vocês?

Suzana: Mais adiante, nesse texto, Pontalis diz que a repetição transferencial nos coloca em frente dessa realidade que se apresenta como um acontecimento real, ou seja, não simbolizado, sem representação psíquica, como esse incêndio no teatro que põe fim à representação e mistura em desordem espectadores e atores. Quer dizer, analisando e analista: seus lugares ficam confusos. É um acontecimento que não ocorreu outrora, ocorre agora, advêm. Estranho fenômeno em que se conjugariam repetição e primeira vez. O que se repete na transferência, age-se na paixão e, logo, não acontecera, não encontrara seu lugar psíquico. Interessante é que ele diz que se ensaia sem texto, o que se repete é o que não teve lugar, não existe como evento psíquico, então se repete na ausência e no vazio de todo o texto. Se há um fracasso é na capacidade de representação. Frisa, em seguida, Pontalis: “...é uma estranha rememoração, pois que não é a do evento, de cenas vividas. A situação analítica produz tanto o evento, o que advém, assim como efeitos de sentido”.

Mariângela: Você falou de personagens, de espectador. Acho que em termos de mundo interno, de realidade psíquica, também essas instâncias ficam mais presentes. Um aspecto que está tentando ser representado e um aspecto em que há a emergência do personagem vivo, em “carne viva”. Nessa conversa interna que é mobilizada ali pela situação, como alguém já falou, pode haver um diálogo interno entre as instâncias internas mais relacionadas aos impulsos e às possibilidades de representação mais simbólicas.

Suzana: Pontalis também se pergunta, nesse texto, sobre o fundo daquilo que se repete na transferência, dizendo que não se reduz à repetição: “...não se reduz à constância de hábitos e de traços de caráter, aos esquemas de comportamento, à prevalência de um tipo de relação de objeto (oral, anal), à permanência de um modo de prazer ou gozo, como o masoquista, por exemplo”. Diz ainda que assinalar tais clichês e, eventualmente, fazer com que o paciente tome consciência deles, não somente é ineficaz como também pode ser o meio mais seguro de deixar fora de alcance a fantasia subjacente que agencia o cenário repetitivo. Penso que somente no campo transferencial é possível nos aproximarmos das angústias e fantasias que estão por trás ou agenciando esse cenário repetitivo, que pode advir como evento psíquico apenas na repetição transferencial. Somente neste campo – que seria como que uma terceira margem – é que se pode, movimentando-se as representações e os afetos, construir-se uma história do sujeito em análise. Digo história no sentido de que não há história sem construção, na qual ficção e verdade caminham juntas. Como diz o historiador George Duby, em citação de Pontalis: “Inelutavelmente o historiador deve sonhar. Seriamente, mas sonhar”.

Orlando: Isso me fez pensar que há uma especificidade da observação psicanalítica e que sem essa conceituação a observação psicanalítica seria muito empobrecedora. Focada tão-somente no rememorar: bastaria lembrar ou saber o que aconteceu, rememorar o passado. Acho que o enriquecimento que o conceito trouxe é que toda a observação é uma observação de um mundo que tem de estar presente, que não quer se presentificar, que resiste a ele – mas aquilo que não quer se presentificar é vivido ou é colocado no outro, para o outro viver para você ou, ainda, viver junto com você. Acho que a própria observação pode ser chamada de uma observação específica, nossa, como psicanalistas, cria-se a necessidade dessa conceituação. Lendo a provocação, aqui, me voltou essa idéia do quanto a observação psicanalítica depende não só dos conceitos: de como funciona a vida mental, objetos internos, etc., mas também de como se dá essa comunicação humana, para podermos observar essa comunicação específica, pois desse modo podemos ter alguns esquemas interpretativos que excluem o aspecto causal do trabalho psicanalítico.

Mariângela: Nesse sentido, acho, foi o caminho de Freud sobre o qual você havia falado. Ele fez exatamente esse percurso, partindo de esquemas mais conceituais para outras formas de funcionar como receptor desse tipo de material.

Cândida: Nesse ponto, gostaria de refletir com vocês sobre a importância ou não do sexo/gênero do analista na evocação e elaboração das transferências. Vários psicanalistas nos últimos anos têm se questionado sobre a importância do sexo/gênero do analista no desenrolar de algumas análises, e as opiniões são bastante contraditórias. Recentemente, em novembro de 2008, tivemos entre nós a psicanalista francesa Florence Guignard, que discorreu em uma de suas conferências sobre os diferentes pares analíticos: analista mulher/analisanda mulher; analista homem/analisanda mulher; analista homem/analisando homem; analista mulher/analisando homem. Relatou ela que, há algum tempo, iniciou com um grupo de colegas da Sociedade Psicanalítica de Paris uma investigação para verificar se havia alguma interferência do gênero do analista na escuta e discussão de um material clínico. A experiência detectou variações na escuta das transferências, segundo o gênero dos analistas. Penso que essa é uma reflexão que esbarra em posições polêmicas sobre a relevância ou não da realidade externa no grau de determinação das transferências. A partir de sua experiência, o que vocês pensam sobre esse assunto?

Alice: Das transferências.

Suzana: Acho essa questão difícil. Não é fácil falar sobre ela.

Orlando: Talvez eu não consiga pensar sobre ela em razão da minha experiência. Tenho pacientes com os quais, acho, sou uma supermãe: dou leite. Em relação a outros, me pergunto: por que dei tanta porrada? Por que fiquei disputando com o cara que me solicitou uma coisa mais masculina, que quis brigar? Tenho a impressão que não saberia, no momento, falar sobre essa questão de gênero. Poderia, claro, dizer que uma analisanda tem uma coisa sedutora, que me provoca de uma maneira diferente da sedução de um homem: o material tem essa óbvia diferença. O que penso é quanto o analista se vê sob o foco de variadas forças femininas e masculinas.

Cândida: Trata-se da sexualidade psíquica.

Suzana: A bissexualidade. Mas existe também ali o analista real, um homem, uma mulher, mas que incluem também esses aspectos que temos elementos masculinos e femininos.

Cândida: Resumindo, acho que vocês dois falaram – com o que concordo plenamente – que todo analista, em função de sua bissexualidade psíquica, resultante tanto das disposições biológicas quanto dos processos de identificação com ambas as figuras parentais, estaria a princípio equipado para receber as projeções e fantasias de seu paciente, independentemente do sexo/gênero deste e de qual papel de gênero ele pressiona a partir de sua transferência.

Orlando: Ou até perceber de que não foi capaz de receber, não é?

Mariângela: Na verdade, ia pensar um pouco em que status a gente estaria dando para a questão de gênero como real em relação às outras coisas que também estão presentes e que poderiam também ter status de real e de representação. Às vezes, a gente acaba raciocinando em termos de que somos homens ou somos mulheres como tendo um status de real às vezes maior do que outras coisas que também somos. Mesmo o ‘ser homem’ e o ‘ser mulher’ têm uma representação diferente. Aquilo que você falou: com aquele analista, vão se dar alguns processos específicos – então, sob o aspecto homem e o aspecto mulher, também com aquele paciente aquilo vai se configurar de uma determinada forma. Estava problematizando um pouco isso, como é dar um status diferente para essa questão de gênero, que talvez a gente não problematize com outras.

Cândida: Sim, mas você acha que deveria se dar ou não?

Mariângela: Não sei – e me pergunto por que deveria se dar?

Alice: Cândida, você acha que sim, pelo que estou percebendo, pelo seu percurso. Já que você levantou essa questão, gostaria de ouvi-la.

Cândida: Penso que na maioria das análises bem conduzidas a importância do sexo/gênero do analista, bem como outros aspectos da realidade, deve ter pouco efeito no resultado final. Espera-se que todo analista esteja preparado para responder com passos flexíveis – que incluem uma múltipla variedade de movimentos e de posições – a esse bailado de papéis que sua bissexualidade psíquica e a do paciente propiciam e requerem. Assim como Alizade (2004), também acredito que o analista “...recebe um golpe de projeção em direção a um sexo-gênero e se des-genera ou des-sexa em forma temporária e invisível para assumir o gênero transferencial”. Alguns autores, entretanto, entre eles Karme (1979), acreditam que transferências maternas pré-edípicas podem ser experimentadas com analistas de qualquer gênero, mas que as transferências edípicas maternas e paternas se estabeleceriam com maior facilidade de acordo com o gênero real do analista. Helen Meyer, 1994, observou que o sexo/gênero do analista parece ter um peso maior na seqüência, intensidade e inescapabilidade de certos aspectos transferenciais de erotismo e hostilidade. Existem estudos, por exemplo, de Greenacre, 1959, que sugerem que o gênero do analista só é importante se ele tiver que atuar o papel do pai do mesmo sexo. Muitos também afirmam que o sexo do analista favorece transferências particulares e maiores temores homossexuais, caso do paciente homem com analista homem. Eu, particularmente, penso que em determinadas situações clínicas quando uma falta importante ocorreu ou graves distorções na identidade sexual de algum dos pais perturbou o desenvolvimento do paciente, o sexo/gênero do analista pode ter alguma relevância. Por exemplo, analistas mulheres podem facilitar em pacientes mulheres identificações femininas positivas. Isso é mais freqüentemente observado quando a figura da mãe é muito desvalorizada e falta no entorno da paciente uma mulher que dê suporte para as identificações tipicamente femininas, ligadas às questões da integração de vivências corporais importantes como da menstruação, aborto, gestação. Penso que, no mínimo, se estamos debatendo o conceito de transferências, esse é um tema que deveria despertar nossa curiosidade e questionamento.

Orlando: O que fala do real e do imaginário é para estar no nível do imaginário, assim como a gente poderia dizer, em outros termos, você está no nível do sensorial. Recebi muitos anos atrás o que a mim me pareceu ser uma moça que queria fazer uma operação transexual. Ela chegou e, entre outras coisas, contou que no Hospital das Clínicas eles não fariam aquela cirurgia, a não ser que ela tivesse uma autorização, um acompanhamento, alguma coisa desse gênero. O tempo todo ela insistiu nesse assunto, que para mim estava totalmente fora de questão. E assim foi indo a conversa, que terminou ante sua cobrança: “Afinal de contas, você vai ou não me atestar?”. Quando ela estava de saída, eu disse: “Olha, se você tiver alguma questão sobre isso, estou à disposição, mas não vou atestar nem fazer você ficar para investigar essa possibilidade”. Fico agora me perguntando o que é a representação, o que é esse imaginário, o que é esse sensorial? Até então tinha pensado que se tratava de uma mulher: e era um homem, geneticamente um homem. Senti um alívio. Como trabalhar com uma pessoa que pretende se castrar? Acho que não agüentaria isso.

Cândida: Aí entra a questão de gênero do analista. Se fosse uma mulher, talvez suportasse.

Alice: Angústia de castração: brutal para um homem.

Orlando: Pois é, eu senti um alívio tremendo quando ela foi embora. Era uma pessoa com baixa de criatividade demais. Uma mutilação.

Leda: Quando você falou que era uma moça, pensei que fosse uma moça que quisesse virar homem.

Alice: Também entendi assim.

Orlando: Daí minha confusão. Vocês não fariam essa confusão. Só um homem faria.

Marta: Parece claro, aqui, o que é o subjetivo, o intersubjetivo e o transubjetivo, isto é, algo que está além da transferência e que aparece como a figura real do analista. Alguma coisa que já vem pronta e determina um caminho, determina um campo na relação.

Alice: A transferência precederia a figura real do analista?

Marta: Aquilo que é transubjetivo, por exemplo, a história infantil do analista, os objetos internos do analista, aquilo que já vem predeterminado, que se joga no campo da transferência, isso vai ter uma forma diferente de se manejar e de se tecer de acordo com a constituição interna do analista, e é uma coisa que está além da transferência porque já vem pronta.

Cândida: Você está falando de contratransferência?

Marta: Não diria contratransferência, a palavra contratransferência tem outra conotação. Quando falo de transubjetivo refiro-me a alguma coisa predeterminada, e a contratransferência é uma reação que surge a partir do movimento da transferência e naquela situação.

Alice: Trazendo para a cena, na verdade.

Iliana: O gênero do analista é uma dessas variáveis. É preciso considerar se esse fator está atrapalhando a relação. De alguma forma, isso deve ser explicitado.

Leda: Quero marcar uma diferença entre real e realidade. Real e realidade são dois conceitos diferentes, mas que parecem estar sendo tomados por um só nesta discussão.

Mariângela: Além das perguntas, vão surgindo outros estímulos a partir do que cada um falou. Estava pensando em outro aspecto de gênero e se também ele não vai se tecendo. Quer dizer, o que representa para aquele paciente aquela mulher, porque não é só o bloco mulher-homem, mas, sim, como aquela pessoa funciona como mulher ou com os aspectos masculinos. Do mesmo modo como você falou do transubjetivo, Marta, esses aspectos culturais internos do analista, que vão sendo transmitidos para o paciente, a maneira como o analista se relaciona com esse paciente, também acho que toca a questão de gêneros. Um paciente com o qual vinha trabalhando há muito tempo, uma criança, a gente tinha feito muito progresso, evoluído bastante – mas o paciente estava realmente contando com muito pouco da figura masculina. O pai distante, a mãe de filho único muito onipresente, o tratamento comigo transcorrendo desde que ele era pequenininho até então, aos 8 anos. Naquele momento, a questão da realidade – não que com um homem ele também não fosse ver aspectos masculinos e femininos, assim como comigo –, a idéia de que o paciente precisava também de um continente externo, masculino, para que não ficasse só no representativo, me reconfortou. A preocupação era a seguinte: talvez ele transfira todas essas representações femininas e masculinas com o continente externo exclusivamente feminino, já que ele não tem convívio com o continente externo, no contato com o mundo real, que seja também uma representação identificada com um homem. Foi uma situação importante.

Cândida: Lembrei-me agora quando no texto “Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina”, de 1920, Freud recomenda que uma analista mulher tome em tratamento uma paciente homossexual sua em função da impossibilidade que ele encontrava de analisar as resistências dela. Em 1931, em “Sobre a sexualidade feminina”, ele também afirma que as mulheres analistas têm um acesso maior às transferências pré-edípicas não observáveis nos tratamentos de pacientes femininas que ele havia conduzido. Aqui, vemos claramente como questões de ordem psíquica, precariamente elaboradas em Freud, e a influência do seu contexto sociocultural afetavam a percepção e observação de determinadas transferências. O próprio Freud recebia mal as transferências maternas, mas com o tempo e as influências das analistas pioneiras que o cercavam, finalmente reconheceu a alta importância das relações pré-edípicas na estruturação da identidade sexual da menina. Como se vê, a questão de gênero do analista, que no nosso meio discutimos pouco, já estava colocada por Freud. Lembro também que em “Sobre o amor de transferência”, de 1915, ele faz alusão à interferência das diferenças sexuais, ou seja, ao gênero do analista no estabelecimento da transferência. Diz Freud que a combinação paciente mulher com analista homem favorece muito a transferência erótica.

Alice: É o que Orlando comentava há pouco.

Beatriz: Toda essa história começa com a Dora. Não existe toda essa questão de que ele não podia pensar para quem era o amor da Sra. K., então, isso está sempre presente.

Cândida: Acho interessante trazer isso à tona, porque normalmente a gente não pensa sobre essa questão. É difícil para os analistas falar disso.

Suzana: Acho que a questão do sexo do analista faz diferença. Difícil é avaliar até que ponto isso pesa e a importância que tem em cada análise. Mas não me parece que seja indiferente.

Cândida: Estou falando que é importante ter isso em mente. Penso que é algo para ser revisto e pensado.

Leda: Alguém ainda quer falar sobre a questão? Podemos então passar para a seguinte?

JP: Interessante ainda é outra conseqüência que o autor tira da observação aqui apontada. Diz Pontalis: “Concebe-se que quando a análise acaba assim falando a linguagem da paixão (a paixão está sempre lá, adormecida, e volta à superfície entre os grupos psicanalíticos e mais ainda no interior deles), o analista, numa situação inversa à de Ferenczi evocando a confusão das línguas entre a criança e o adulto, fique tentado a se proteger pela linguagem da ternura: tentação da qual talvez não escapou Winnicott, desconhecendo o pai e, principalmente, recobrindo, com a solicitude da ‘mãe suficientemente boa’, a mulher excitante, desejável, perdida, esquiva e maliciosa...”. Do ponto de vista de vocês, que cuidados tal afirmação de Pontalis impõe ao analista? Que implicações a afirmação traz para a formação do analista?

Leda: Esta pergunta também me fez pensar que, com freqüência, o analista acaba se protegendo também com a teoria e não só com a ternura. Para não viver o impacto da transferência, muitas vezes difícil de suportar, o analista se apega à teoria como defesa. O que vocês pensam disso?

Suzana: Esta questão me fez perguntar: será que eu entendi ou não? Pensei que essa fala se referia à resistência do próprio analista à análise, que, como a criança traumatizada, nega a linguagem da paixão, ou melhor, recusa sua entrada em cena, refugiando-se na linguagem da ternura. Ao se encobrir, ao não se dar lugar às paixões, a sua reabertura, cujo manejo transferencial por vezes não é nada fácil, corre-se o risco de perpetrar a violência vivida pela criança. Por que inversamente à Ferenczi? Este nos fala da violência sofrida pela criança quando invadida pela linguagem da paixão, que é a do adulto. Ferenczi foi muito sensível a essa confusão de línguas que se estabelece entre as crianças e os adultos. Na análise, então, é fundamental que isto seja reconhecido e não negado.

Leda: Pontalis chama a atenção para o fato de o analista não suportar ver que o que está acontecendo ali, é a paixão mesmo, que ele tenta então ‘suavizar’ – lidar com a transferência é perigoso, é difícil. É nesse sentido, o de o analista não poder suportar algo que é da natureza da paixão e usar a ternura para se defender. Lógico que não para atuar, mas para saber do que se trata.

Cândida: Sair de uma interpretação edípica e passar para uma interpretação pré-edípica ou pré-genital? Porque às vezes o paciente está vivendo uma transferência edípica erotizada, e o analista acaba usando uma linguagem pré-edípica para se defender da turbulência evocada.

Leda: Não é nisso que estou pensando, conceituando se a transferência é edípica ou pré-edípica, mas de o analista perder de vista aquilo vivo da transferência. (Invocar os demônios e depois mandá-los embora, sem conversar com eles.)

Alice: Isso foi o começo da psicanálise. Breuer se assustou com a transferência de Ana O. e caiu fora. Freud então retoma a questão e, a partir daí, surge a psicanálise, para nossa felicidade. Acho que pesa, aqui, a experiência do analista. No início de meus atendimentos, lembro-me de ter atendido um moço, jovem também. E ele instalou maciçamente uma transferência amorosa muito grande, e eu tentando desenvolver aquilo para o trabalho poder seguir. Mas aquilo foi de uma intensidade – o tal do fogo que muitas vezes irrompe de um jeito que você não sabe o que fazer. Me lembro dele contando como passava as noites: jogava o lençol para um lado, jogava o lençol para o outro, e depois perdia o sono. E eu tentando lidar com aquilo que acontecia naquele meu início profissional, com o ainda incipiente instrumental desenvolvido para dar conta de tudo o que surgia. Aí a pessoa do analista também é convocada. Porque tem isso, é a pessoa do analista, como você dizia no começo, que está lá e que é convocada. E é muito difícil: em determinado momento, ele se levantou e veio me dar um beijo, e, literalmente, segurei o cara, porque não estava conseguindo segurar de outras maneiras.

Leda: No caso, aqui, estamos falando da paixão amorosa, mas podemos pensar também na agressividade.

Suzana: A agressividade e o ódio também estão no campo das paixões, não apenas as manifestações amorosas.

Iliana: Era sobre isso que eu falava: quando a transferência está atrapalhando, como é que você pode explicitar e colocar isso em palavras, para não precisar de alguma maneira agir? Seria como dar cidadania ao que surge.

Mariângela: A pergunta me remeteu a uma preocupação com essas várias instâncias de compreensão, algo na linha do que você estava falando, um pouco pelo lado inverso. Pensei no risco de muitas vezes a gente dar um tom e fazer uma compreensão edípica para situações que são até mais primitivas. Me ocorreu um exemplo trazido recentemente pela colega Maria Angélica Braga de Oliveira e Alves, em seminário sobre estados primitivos da mente, com Célia Korbivcher. Era uma situação de um sonho de um paciente, que também envolvia um aparente enamoramento pela analista. Ele sonhou que estava num mezanino e cuspia nas pessoas lá embaixo. Após o relato, diz ele para a analista: “Daqui a pouco eu vou cuspir em você”. O caso tinha outras vinhetas que a gente acabou vendo e discutindo o que seria esse cuspe, essa situação de uma transferência negativa ou de um ataque ao analista. Estaria num nível de percepção dele “de eu e outro”? Seria um cuspe projetivo, na linha da inveja, de aspectos edípicos de separação? Ou o cuspe poderia – tratava-se de um paciente muito primitivo, praticamente borderline – significar, naquele momento, uma dificuldade de aceitar que havia uma separação entre ele a analista? Uma discriminação difícil para ele tolerar, sendo o cuspe muito mais próximo da criança primitiva, que usa cuspe para grudar? A analista se sentia extremamente invadida por citações de namoro e intenções de conquista por parte do paciente – mas por baixo disso havia toda uma dificuldade de discriminação. Acho que esse sonho ilustra muito bem a possibilidade desses vários níveis de compreensão, há o risco alertado pela pergunta. Mas o cuidado, esse cuidado que se impõe à função do analista é o de estar muito atento ao nível do funcionamento do paciente. Muitas vezes, somos pegos, inicialmente, por esse aspecto de enamoramento ou mesmo de ataque. Também associo um pouco isso à questão da ternura em Winnicott, com seu olhar para os aspectos mais primitivos do funcionamento mental. Cabe, então, ficarmos atentos também nessas áreas e instâncias, como o sonho do paciente sugeriu.

Orlando: Brincando um pouco com o material: não surgiu nenhuma associação ao cuspe, como se fosse uma coisa ejaculatória?

Alice: Eu também. Pensei num elemento de fertilização ejaculatória.

Orlando: Disfarçar uma agressividade.

Mariângela: A gente pode, aí, continuar pensando também nessa questão ejaculatória, mas num nível também mais primitivo.

Orlando: Pensei nessa questão da contratransferência. O analista pode ser evasivo, malicioso, e ele está dentro dessa cena. Às vezes, o ser terno, a vontade de ajudar pode atrapalhar muito. A vontade de ajudar pode ser algo que se interpõe àquilo que o material está trazendo. Acho que a transferência é forte para abrir um espaço onde se dá esse contato com essa cena viva, ligado àquilo que está inconsciente, e, portanto, você não sabe ainda. A possibilidade que essa pergunta traz é a de que o nosso trabalho é o da observação constante, de auto-exame. Você estava até mencionando as características do analista. Acho que esse auto-exame constante, exame dentro da situação vivida, é um exame de fato, e se você fica preso em ajudar, em ser terno, pode atrapalhar esse exame. Não que nessas coisas a gente não tenha mesmo uma inclinação, uma vontade, às vezes até como resistência, pois o paciente chama para isso (para a ajuda). Muitas vezes, não sabemos se estamos ajudando, mas pode-se estar justamente num momento em que é necessário perceber em que cena a gente está.

Cândida: Acho que você está trazendo claramente a questão dos aspectos conscientes e inconscientes da transferência. Às vezes, o paciente vem com uma demanda bem consciente, achando que sabe o que quer, mas sabemos que a transferência passa por outros caminhos.

Orlando: Esse campo é aquilo que não se sabe. É acreditar que existe algo que não se sabe. E eu acho que o que você trouxe é muito importante. Não sei se é só uma questão de começo. Ah não, é só uma fantasia! Não, é uma paixão real.

Alice: Claro.

Orlando: É uma paixão viva. É um fogo que vai acender tudo aquilo que está na vida psíquica de ambos, mas ela é real, é viva ali. Senão, você não está realmente trabalhando com algo vivo.

Alice: Quando você fala em voltar-se para dentro, fiquei pensando numa coisa que eu pelo menos tenho lido um pouco mais, justamente por conta dos borderlines e da proposta que Green traz dessa intersubjetividade, em que o analista é totalmente convocado para fazer esse mergulho e tentar de alguma maneira figurar elementos que estão muito aquém, não representados. Não sei como vocês vêem isso, o trabalho do negativo na transferência, na atualidade? É uma coisa para se pensar.

Orlando: Só para acrescentar, é mesmo uma coisa muito nova: Ogden, por exemplo, fala do terceiro analítico. Que o campo transferencial cria um terceiro que precisa ser pensado por ambos. É uma radicalidade em relação à transferência.

Leda: A partir do que estamos conversando, penso que há outra questão importante: quando não é possível ao analista colher o vivo da paixão, o paciente atua. Acho que é o caminho direto da atuação. Lembrei-me de algo que li há muito tempo num dos “Seminários de Lacan”. Creio que no texto Lacan fazia uma crítica a certo uso da transferência, contando, então, um fragmento de uma sessão na qual havia uma disputa entre paciente e analista e a interpretação girava em torno de um ataque ao pensamento do analista. O paciente retruca, sentindo-se incompreendido e, ao sair muito insatisfeito da sessão, vai comer miolos fritos. Preciso rever isso que li, porque faz muito tempo e não sei se estou contando corretamente, mas o que importa é que ela me ocorreu a partir do que contou Alice sobre o beijo que levou do paciente.

Alice: Não levei, não. Mas quase.

Leda: Certo, mas gostaria de dar outro exemplo, quando de fato o paciente age e agride o analista. Será, vamos pensar, que aquilo que surge na relação transferencial com tanta intensidade poderia ser contido ou não? Porque, às vezes, surge numa violência tal que surpreende o analista.

Alice: Quando você falou em violência, comecei a pensar: a violência das pulsões na situação transferencial, que muitas vezes surge, surpreende e é muito difícil de lidar. A violência da qual você pode ser alvo de fato. Me lembro de atender uma pessoa encaminhada por um serviço de ambulatório do terceiro setor: um investigador de polícia. Ele vinha com um volume que podia ser uma arma. Na ocasião, eu tinha consultório em casa. O paciente estava ali, mostrando um volume que podia ou não ser uma arma. Era investigador, contava casos cabeludésimos. Um clima de medo parecia se instalar, eu me sentia acuada. Como é que você se protege num caso desses? A decisão de não atender pode ser até cogitada. Você tem consultório em casa. Como o analista se protege de questões assim do cotidiano?

Mariângela: Antes de chegar a uma situação mais extrema, vamos pensar em algo que talvez junte estas coisas das quais estávamos falando: a questão do real, do intrapsíquico e do subjetivo. Lembro a contribuição de Antonino Ferro, que vai muito nesse sentido de trazer para o campo tudo o que acontece, pois isso tudo diz respeito ao campo da forma como Ferro conceitualiza sua prática clínica. Situações em que existe esse volume do real teriam volume psicanalítico também para a gente trabalhar. Acho que ele é um autor importante e sua proposta de trazer para o campo também essas situações extremadas, sempre tendo ali um analista implicado, é que de alguma maneira aquilo teria a ver com o campo e não necessariamente seria só uma atuação, mas algo que poderia ser compreendido. Agora, quando a gente chega a situações-limite como esta, não sei se a gente deveria lançar mão de outras coisas também. Quer dizer, a princípio não precisaria, mas...

Alice: A dificuldade é a paralisia que, no fundo, é como vocês estavam dizendo, a pessoa precisa usar para te paralisar como analista.

Leda: Mais alguma coisa sobre esta questão? Então, vamos para a próxima.

JP: Naturalmente, o analista não é o único a ser objeto da transferência, seja ela de que natureza for: de amor ou de ódio, persecutória ou idealizada. Também figuras como o professor, o supervisor e mesmo a instituição de formação encarnam este lugar. Como vocês observam isto em nosso instituto e que efeitos têm sobre a formação do analista?

Orlando: Para falar dessa questão, vou me utilizar de uma anedota que meu primeiro analista, Nelson Coti, me contou, dizendo ser muito representativa da idéia que ele queria me transmitir. Antes da ponte Rio-Niterói ser construída, a travessia entre as duas cidades era feita por barcas. A cena se inicia numa barbearia carioca, onde um cliente está sendo barbeado. Aparece então um sujeito, aos gritos: “Ó, Manoel, corre! Seu filho está passando mal lá em Niterói. Você tem que pegar a barca: e ela já está de saída!”. O português dá um pulo da cadeira, joga longe a toalha e, cara cheia de espuma, barba pela metade, sai em disparada, conseguindo chegar a tempo de embarcar. No meio da travessia, bate ele a mão na testa: “Raios! Não me chamo Manoel. Não sou casado, não tenho filhos, tampouco moro em Niterói. O que estou cá a fazer?”. Nunca me esqueci deste caso, que eu ouvi vinte e cinco anos atrás e ainda está vivo em mim.

Está muito vivo também o jeito de pensar e trabalhar. Fiquei lembrando dessa historinha por que o que significa a tal da transferência? Não é um fenômeno só da sessão: é o que a gente carrega do outro e leva para as relações. E o que a gente carrega que não é nosso? Se pensarmos na anedota, a gente carrega um monte de coisas que não têm nada a ver com o que você vai viver. Mas você tem que carregar a coisa transgeracional. Se você pensar por aí, é um negócio impressionante a relação humana, a comunicação humana. Nelson também falava coisas assim: “Eu sonhei um sonho que minha paciente fez, pôs em mim alguma angústia que à noite fui sonhar”. É uma idéia do trabalho analítico, que ele tem essa intensidade, que a mobilização emocional traz de volta. A transferência, se a gente pensar por aí, transforma-se numa questão muito mais ampla da comunicação humana. Pode-se fazer uma observação, desmontar e pensar essa comunicação a partir do conhecimento da teoria psicanalítica, levando em conta que dependemos dessa intensidade da comunicação. Essa intensidade está ligada às primeiras experiências, as experiências vividas nas ligações mais primitivas que fazemos. Nunca teremos totalmente uma idéia do quanto isso está nos influenciando. Nunca vamos saber direito quem somos.

Cândida: Achei interessante a sua idéia de levantar a questão da transferência transgeracional, um tema também pouco discutido entre nós.

Alice: E muito interessante se a gente pensar em termos de instituto, dos divãs, dos entrecruzamentos dos divãs. São situações difíceis, causadas por esses entrecruzamentos. O membro filiado muitas vezes é colhido numa situação dessas, cuja virulência você está tão bem lembrando.

Mariângela: A especificidade do nosso trabalho, considerando isso tudo que a gente falou, e a própria evolução da psicanálise, é que estamos nos dispondo a se oferecer como uma mente que está sonhando naquele momento. Quem sabe seja isso o que nos torna diferentes dos outros depositários de uma situação transferencial, que talvez não tenham essa mesma possibilidade de germinação e de reflexão sobre a situação transferencial. Essa possibilidade, quer dizer, o sonho não vai acontecer só depois: na verdade, a gente está ali disponível para poder sonhar também sobre aquela situação. Isso distingue muito nosso trabalho. Acho que cada vez mais os instrumentos da psicanálise estão se desenvolvendo no sentido de nos fazer pensar sobre essas situações, tanto as nossas anteriores quanto aquelas que emergem com o paciente, em todas essas instâncias que a gente falou.

Leda: Talvez essa questão nos tenha sido inspirada pelo número do Jornal de Psicanálise que acabamos de fazer e que tratou da “análise do analista”.

Alice: Acho que isso invoca mesmo nossa experiência aqui na própria casa.

Cândida: Faz pensar na questão das transferências na análise didática, uma vez que esta apresenta a característica peculiar de ser um analise que é invadida por regras da instituição. Penso que as turbulências, nesse entrecruzamento de transferências e contratransferências na instituição, também devem ser consideradas do lado do analista didata.

Iliana: Na época de Freud, os pacientes iam em sua casa. Não sei se isso é um defeito ou questões a serem trabalhadas e estudadas.

Alice: Quando Leda relembra aqui a recente experiência com o número sobre “A análise do analista” ela aponta para a complicação que é discutir esse tema. Porque se é uma instituição, são seres humanos, acima de tudo, que estão ali, com todas as características, todos os narcisismos, com todas as limitações, enfim, e isso traz, às vezes de forma muito violenta, questões complexas e complicadas. E como a própria instituição, seguindo um pouco isso que você está falando, pode oferecer condições, não digo de proteger, mas de preservar seus membros dessa virulência? Disso que Iliana há pouco falou, que faz parte da instituição?

Suzana: Acho que essa é uma questão importante para todos. Justamente por isso, por esse ambiente todo de formação em psicanálise, penso que é fundamental que se faça análise. Embora essa complicação possa se dar com seu próprio analista que está na instituição, mas isso tem de ser trabalhado até que o analisando consiga conquistar um lugar com voz própria, não fique siderado em seu próprio analista e ao grupo ao qual ele pertence, até conseguir um lugar de reflexão para si mesmo.

A transferência com a instituição, com o supervisor, com o professor é de fundamental importância para que se possa instaurar um processo de formação analítica. Aquela e estes, supostamente, detêm o saber, são detentores do segredo ao qual o analista em formação quer aceder. Essa transferência positiva fica como que um fundo que sustenta todos os conflitos que possam advir dessas relações transferenciais que podem assumir as formas do ódio, do amor, da persecutoriedade e da idealização. A instituição de formação analítica possui um caráter peculiar, pois não é uma escola, no sentido de um lugar de transmissão de um saber instituído e, sim, poderíamos dizer, um lugar em que vamos nos apropriar de um fazer e de um pensar sobre esse fazer singular, cujo instrumento de trabalho somos nós mesmos, nosso mundo interno conjugado a um saber sobre o mesmo, o que já nos deixa de saída implicados de forma visceral e, portanto, também mais vulneráveis às emanações dessa instituição. É um processo delicado, que não escapa às violências do pulsional, assim como tampouco à severidade do superego. Penso que a condição sine qua non para a formação é a análise pessoal concomitante a esse processo, para que o analista em formação possa ir se apropriando de suas aquisições, no sentido de conquistar um lugar de fala com voz própria, para que vá de fato se constituindo como analista e não permaneça aprisionado a figuras idealizadas, únicas detentoras do saber, ficando assim infantilizado.

É claro que há questões relativas à instituição que são muito importantes e que podem favorecer esse processo de individuação e outras que podem contribuir para oprimir. Tenho a impressão que, aqui, no Instituto, os membros filiados foram conquistando um lugar de participação na instituição que permite outra movimentação, então não há uma hierarquia rígida. Hierarquia é claro que há, são lugares diferentes a que a pessoa vai, através de um percurso, acedendo, mas não de uma forma massacrante. Tenho a impressão que as coisas se tornaram mais leves. E aí há outras questões, como a análise do analista, mas isso já é um campo que se abre para discussões, para reflexões.

Iliana: Pelo menos as idealizações são menos fomentadas na hora em que você está no campo próximo.

Suzana: Ou se acirram também

Iliana: Sim, mas se elas se acirram, têm a chance de ser trabalhadas.

Mariângela: Eu estava pensando que existe uma situação real, vivencial e institucional que a gente vive, mas no momento em que aquilo vai para a sala de análise ela é resignificada totalmente. Acho que nossa vivência como paciente se reconfigura na dupla. A gente tem uma vivência dos nossos seminários, da nossa relação com os supervisores, com os nossos professores, mas na hora em que a gente leva isso para o nosso analista, acho, é outra realidade que vai aparecer ali. Acho que aquilo é tomado de outra instância, mesmo que esse analista faça parte da mesma instituição (ele vai ter as questões dele ali, com aquela instituição), mas naquele momento ele vai estar voltado para as representações internas que aquilo tem ali, naquela dupla. Acho que se esperaria que as coisas fossem assim, para que não resvalássemos para os limites do não contido e do atuado.

Leda: Você está falando dentro da situação de análise, mas outra maneira é pensar dentro da instituição, com o supervisor, com os coordenadores de seminários. Uma parte da questão é pensar se nós ficamos presos ou não a respeito de nossas escolhas, sobre que seminário fazer, com quais coordenadores. Se vamos escolher aqueles da mesma linha teórica ou amigos do nosso analista. Sabemos que isso acontece em qualquer instituição de transmissão e talvez mais ainda em instituições de transmissão de psicanálise. O que pensávamos era exatamente o que Susana trouxe, ou seja, em que medida a instituição, nossa formação aqui, nos auxilia, ou não, a desenvolver um modo próprio de trabalho, a construir uma voz própria. Ou se o que se percebe é uma tendência para reproduzir. É mais ou menos isso que queremos discutir aqui.

Suzana: Mas eu acho que se o analista não se colocar nesse lugar – Pontalis fala do lugar de dono, acho engraçada a palavra dono –, do padre, do médico, no lugar de autoridade; na verdade, o lugar de detentor do segredo, segredo sobre o corpo, sobre o espírito, sobre a sexualidade, no caso de analistas, se ele não se tomar por este que é o dono, ele favorece esse processo de desidealização, enfim, de constituição desse nome próprio. Você não tem que ser igual ao seu analista, pode ter divergência ou não, mas ser uma pessoa separada, não uma cópia do analista. É nesse sentido. Isso favorece, porque não sei se todo analista consegue não se tomar por este que supostamente sabe, a autoridade. Claro que, em início de análise, isso fica com um fundo: se acredita que o analista sabe mesmo, mas você vai descobrindo que não é bem assim, que você também sabe e não só ele.

Alice: Vou fazer aqui um momento de publicidade. No número anterior do Jornal de Psicanálise, publicamos um texto de Bolognini, muito bonito, que fala da família fantasmática institucional e da família pessoal do analista. É muito interessante porque ele superpõe as duas, fala desse peso do suposto saber, dos analistas mais velhos, dos colegas de formação que vão funcionando como irmãos, uma fratria que pode ajudar a conter situações novas, difíceis. E a oportunidade que o jovem analista tem, assim como a criança, de fazer introjeções importantes, que vão fundar e constituir as bases culturais, teóricas e clínicas de seu Eu de trabalho.

Uma coisa que não está na pergunta, mas que eu estou pensando é a questão da transferência no fim da análise. Ela termina? Ou ela é para o resto da vida? Como vocês vêem isso?

Suzana: Eu não sei se termina. Em algum lugar, o analista fica. Pensando em outras análises, na análise atual, sei lá. Acho que essas paixões, que são o próprio movimento da análise, vão arrefecendo, vão se desencantando, mas desencantando no sentido de que aquilo que estava encoberto, adormecido possa vir à luz, acordar. A transferência vai se desfazendo à medida que o analisando passa a habitar-se, a ter um sentimento de existência própria.

Alice: Como se o paciente fosse recuperando de alguma forma essa função analítica?

Iliana: Mas aí, pelo que você está dizendo, a transferência se dissolve, e o analista permanece funcionando como uma função analítica. É isso?

Suzana: Talvez faça parte do processo analítico nos levar a fazer luto pela perda do próprio analista, dessa figura que ocupa esse lugar das idealizações.

Alice: É também de um lugar, talvez, em que você é acolhido; que lhe dá aquela sensação de segurança de um pai ou de uma mãe.

Orlando: Mas não dá para você se apossar do seu próprio processo sem isso. Sem abandonar esse lugar. Caso contrário, você nunca se apossa desse processo.

Alice: É verdade.

Orlando: O processo é seu. A análise é sua. De início, não. Quando vamos para uma análise, a gente não sabe, mas aí temos que nos apossar desse processo. E também da separação, senão você nunca se apossa.

Alice: Sim, mas eu acho que é um luto amplo. É nesse sentido que estou falando que você tem que fazer um luto amplo.

JP: Que experiências – na clínica ou na formação – o termo Transferências evocou para cada um de vocês? Que outras questões sobre este tema vocês gostariam de comentar?

Orlando: Quero falar de uma experiência. Atendo alunos de medicina na faculdade, e um que me procurou falou de uma timidez que atrapalhava sua vida. No final da conversa, disse: “Não sei se eu volto”. Sugeri que continuássemos a conversar, e ele repetiu: “Eu não sei se volto”. Eu quis aí saber por quê. “Pode ser que eu encontre na sala de espera algum colega” – explicou – “e não queria que ninguém me visse na situação em que eu estou aqui, sabendo que preciso de ajuda.” Num certo nível, a gente faz uma entrevista de apresentação aos alunos: contamos o que fazemos e como estamos inseridos na instituição. Acho que essa questão tem até a ver com a transferência dentro da instituição. Pela experiência de vários anos trabalhando lá, a gente frisa algumas coisas: a conversa termina aqui, nós não interferimos com nota, com currículo, com avaliação. Essa função de esclarecimento é necessária para que o aluno saia de uma primeira conversa sabendo que, diante de uma dificuldade, ele não estará sozinho, ele tem como e onde procurar. Quando ele afirmou que não voltaria (era a primeira vez que ele vinha e não havia participado daquela entrevista), eu disse: “A gente trabalha tentando criar uma situação a mais protegida possível. Por exemplo, não estamos no HC incidentalmente, onde os prontuários são comuns. Aqui não. Temos prontuários próprios, lugar próprio, dentro do departamento da faculdade. Tudo isso tem importância para tornar o espaço específico do aluno e acessível a ele”. O menino insistiu: “Mas para mim é muito difícil”. Respondi: “Acho até que se você quiser uma indicação para um outro consultório, que eu não vou te atender no meu, eu faço, é mais protegido. Acho que é uma situação mais protegida. Mas fica aqui o seu lugar, se você quiser, marca e volta. Se quiser pensa, pensa”. Depois que ele saiu – isso ele me falou quando acabou a conversa – pensei que aquilo tudo era uma coisa mais externa, institucional, a transferência que, eu diria, é relativa à instituição realmente são persecutórias da própria instituição. Tem professor que indica, dizendo que o cara precisa ser avaliado. Algumas situações são muito difíceis na instituição. Por outro lado, o potencial que tenho para trabalhar com ele mesmo ali – porque essas coisas são inerentes – é dizer para ele que alguma coisa precisa ser trabalhada, relativa a algum medo que ele sentiu comigo. Alguma coisa que ele precisava me alertar: que ele queria sigilosa, para não se sentir invadido, perseguido. Diria, então, que o potencial do trabalho nosso é esse. Esse ‘onde’ em que a gente pode ser potencialmente melhor. Sobre o resto a gente não tem controle. Eu acho que as transferências, pensando em transferência numa situação muito especial, numa situação de formação, excepcional. Ele se depara ali com a dificuldade de falar, e a gente tem que ajudá-lo a falar. Justamente com essa dificuldade de falar é que a gente trabalha, mais do que com o próprio falar.

JP: Alguém gostaria de acrescentar alguma coisa? Podemos terminar? O JP agradece a presença e a colaboração de todos.

Cândida: Eu também quero agradecer, porque esta foi para mim uma oportunidade única. Ver como funciona o debate.

Leda: Muito obrigado aos participantes e, especialmente, aos colegas do editorial, por estes nossos quatro anos de trabalho em conjunto no Jornal de Psicanálise.

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