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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Os três tempos da análise (o tempo ∞ e seus andamentos)1

 

The three tempos of analysis (the conditional verb form ∞ and its tempos)

 

Los tres tiempos del análisis (el tiempo y sus andaduras)

 

 

Fabio Herrmann*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo entra pelos meandros da idéia psicopatológica do autor sobre os três tempos da análise, explicando-os pela ótica do tempo do Homem Psicanalítico ∞, ou o futuro do pretérito. Toma como pontos fundamentais a teoria do eu e a idéia de que o analista é uma posição no campo transferencial. O autor usa relatos clínicos para exemplificar cada um dos tempos da análise como tempos de andamento musical.

Palavras-chave: Teoria dos Campos, Campo transferencial, Fabio Herrmann.


ABSTRACT

This paper goes to the ins and outs of the author’s ideas on psychopathology regarding the three tempos of analysis, explaining them from the view point of the tempo of the Psychoanalytic Man ∞, or the conditional verb form. He considers as fundamental points the theory of the I, and the idea of the analyst as a position in the transference field. The author presents clinical accounts to illustrate each analytical tempo as musical tempos.

Keywords: Multiple Fields Theory, Transferencial Field, Fabio Herrmann.


RESUMEN

Este trabajo entra por los recovecos de la idea psicológica del autor sobre los tres tiempos del análisis, explicándolos por la óptica del tiempo del Hombre Psicoanalítico, o el futuro del pretérito. Toma como puntos fundamentales la teoría del yo y la idea de que el analista es una posición en el campo transferencial. El autor usa relatos clínicos para ejemplificar cada uno de los tiempos del análisis como tiempos de andadura musical.

Palabras clave: Teoría de los campos, Campo transferencial, Fabio Herrmann.


 

 

Quem quer ser analista? A intolerável simplicidade

Ao rever a digressão teórica da última aula, não consigo deixar de me penitenciar por sua complexidade. Nenhuma das passagens que redigi parece-me inexata ou incompreensível, mas a impressão de ter feito e exigido de vocês um árduo esforço de compreensão permanece. O motivo é claro. Procurei pôr a nu o arcabouço da análise, que é exatamente o oposto daquilo que intui o senso comum dos analistas, usando, porém, termos e noções retiradas desse mesmo senso comum, e torcendo-os, espremendo-os, torturando-os até obrigá-los a confessar a verdade que escondem. Suponho que, de modo geral, os autores psicanalíticos, com Freud à frente, devam ter provado remorso semelhante. Nas primeiras aulas, procurei mostrar como a complexa montagem do aparelho psíquico freudiano dificilmente serviria para um paciente abrir a porta do consultório do analista. E não é que faço pior? Qual analista se disporia a abrir as portas de seu consultório, caso soubesse, antes da hora, de toda essa complicação de tempos e sujeitos. Será um vício comum? Não, meus caros, Freud, como os demais pensadores da Psicanálise, estavam todos em busca da simplicidade, mas de uma simplicidade profunda – não da aparência intuitiva que ostenta o pensamento superficial, o qual leva de imediato a insolúveis complicações práticas. Freud queria mostrar o que significa haver psique. Para tanto, teve de construir sistema após sistema, sendo que um dos últimos – cisão, negação, descredenciamento (ou recusa), perversão e psicose –, não de todo integrado na segunda tópica, aponta numa direção muito parecida àquela que acabamos de percorrer, como lhes fiz ver no início da aula passada.

Como ficariam as coisas, ditas com simplicidade? Acho que se vocês suportaram até aqui, merecem saber. Pois bem, vamos ao resultado prático. O eu é uma ilusão de óptica do quotidiano. Mas, as instâncias psíquicas são uma ilusão de óptica da teoria. O que há, na clínica, é o sujeito, uma posição psíquica, e seu tempo, ∞, o da ruptura de campo.2 Abandonando as aproximações de senso comum, tais como antes e depois, o novo eu e o eu anterior, mudanças de visão sobre o passado, etc., bem como expressões de cunho erudito, como diálogo negativo, dialética e outros que tais, só nos resta descrever os fenômenos em sua realidade clínica, nua e crua, de ruptura de campo – vejam, porém, como a resultante ficaria incompreensível, ou pior, dogmática e um bocado mística, sem o duro trabalho anterior.

O sujeito psíquico vê-se assediado de fantasmas assustadores, desde pequenas incongruências que desafiam o fluxo de suas idéias, até imagens aterradoras que habitam seus sonhos, seus devaneios, até mesmo suas intenções conscientes. Isso que o desafia recebe nomes teóricos como superego, inconsciente pulsional, mecanismos de defesa, etc. Na verdade, porém, ele está apenas olhando para si mesmo! Só que noutro tempo. Para a psique humana, não há espelho no presente. Ele só se vê em ∞, ou seja, alguém vê alguém, ele mesmo, de si para consigo, porém situado noutra localização temporal (não digo antes nem depois), noutro ponto de ∞. Assim é para todo mundo, por isso inventou-se a análise, onde se põe em evidência esse fenômeno psíquico essencial, já agora convertido em método. Como no deserto, onde o panorama transforma-se em miragem do desejo, exibindo lagos, fontes e oásis, o sujeito em análise depara-se consigo mesmo, só que com outro sigo, se me perdoam o jogo de palavras.

Ele sempre se lembra mais ou menos das mesmas coisas, pessoas e acontecimentos, um sorriso da mãe, um cenho franzido do pai (ou vice-versa), mesmo depois de uma ruptura de campo, como a da paciente mencionada. Só que não são lembranças suas, do sujeito psíquico, que é um vazio estruturado e é só posição, mas de alguém que ocupa essa posição. Parte dessas lembranças, e percepções, é bom não esquecer, o Homem Psicanalítico toma para si, e se considera um eu, alguém que é si mesmo. É um importante êxito, não só porque, como esperam nossos pais, todos nós queremos chegar a ser alguém na vida, como porque o nascimento do eu – quer dizer, de uma falsa representação do sujeito psíquico – é motivo de comum e legítima celebração: participações de nascimento, aniversário, graduação, promoção no emprego, doutoramento… O homem nasce na mentira. Outra parte das lembranças e percepções é, ao contrário, de um não si mesmo, tão íntimo como alheio. Um alterum se. Todavia, mesmo que os tratados tentem mostrar que a partição se dá na psicologia do sujeito, o que acontece mesmo é que a gente se vê em posições distintas de ∞. “Antes e depois” da ruptura de campo, deixando uma propina ao tempo comum; ou num espelho temporal, que se desloca em ∞, para ser preciso. Em posições irreconciliáveis, em todo caso. No fundo, no fundo, toda a complicação teórica do aparelho psíquico, todas as formações e estruturas, todos os mecanismos e objetos internos, tudo isso é uma tentativa de exprimir a defasagem temporal do sujeito, quando se quer identificar, ser alguém determinado, em vez de ser mero espectador dos sonhos da realidade. Que fazer? O animal é pura ação sem busca reflexiva, o Iluminado, pura reflexão sem ato. O homem foi feito para a ação e para a reflexão em igual medida. Defeito de fábrica, a cultura o fez assim.

Não se pode descrever esta condição do ser fora do seu regime temporal: tudo é relativo ao ∞. Cada alguém que somos, ou que des-somos, caracteriza-se por um solo de memória. As lembranças registram-se, e cada solo, ou campo, dá-lhes sentido. O diálogo entre dois alguéns, entre duas apropriações do sujeito psíquico (situado em posições diferentes com respeito ao ∞, que é o que conta), cria a ilusão de um ser dotado de história, de acontecimentos enfileirados com certa lógica, em suma, de um eu. Eu mesmo. Logo, eu é a dissensão entre uma identidade – um sistema de representações – num ponto de ∞, com ela própria, noutro ponto de ∞.

Outra forma de explicar este fenômeno, no fundo simples, é falar de ego, inconsciente, compulsão à repetição, mecanismos de defesa, instintos, etc. Acho que esta é de intuição mais fácil, embora de manejo clínico muito complicado. A nossa é talvez mais simples, mas exige que vocês abram mão de noções rotineiras arraigadas, como a de eu, de sucessão temporal, de personalidade, de realidade concreta, etc., etc. Já que decidiram ser analistas, vocês necessitam das duas, na clínica. Da complexa teoria do aparelho psíquico e da intolerável simplicidade da Teoria dos Campos.

 

A posição do analista na transferência

Ao lhes propor esta tradução do aparelho psíquico da análise em termos puramente metodológicos, não usando mais que o entrejogo de dois conceitos, o de tempo analítico ∞ e o de posição do sujeito, não pretendo levar em frente a discussão teórica. Seria fascinante discutir como a complexa harmonia das noções freudianas, que fundaram nossa disciplina, poderia ser transposta neste outro registro musical. Entretanto, nós nos afastaríamos demais da intimidade da clínica, talvez a pondo a perder. É preferível garantir o terreno conquistado, fixando de vez as conseqüências paradoxais do encontro do eu consigo próprio, em tempos diferentes. Essa defasagem temporal tem sido expressa por conceitos como regressão, ressignificação (Nachträglichkeit), processo primário, além daqueles que nos atraíram a atenção na última aula. Deixemo-los em paz, por enquanto.

Se alcançarmos uma intuição clara da dimensão temporal ∞, estaremos em boas condições para acompanhar o analista em sua difícil tarefa de conduzir um processo de tratamento que, caprichosamente, se nega ao dar resultado e, por isso, ameaça puni-lo por seu êxito ao interpretar. Ao longo desta aula, tomaremos três exemplos clínicos, registrados em andamentos diversos, curto, médio e longo, para examinar o problema da insegura posição do psicanalista. Antes, porém, permitam-me uma última dilação. Se uma imagem vale por mil palavras, às vezes uma pequena história pode esclarecer melhor que três casos. Para isto existe a ficção, para isolar da realidade um caso modelar, pela via da imaginação.

Há certo tempo, decidi conduzir por conta própria um experimento arriscado, o qual, mirado com os maus olhos e o pior senso de humor que soem ter os detratores, com certeza contribuirá para o descrédito deste vacilante autor. Na ausência de bibliografia capaz de exemplificar com precisão certos conceitos clínicos da Teoria dos Campos, como este, da dimensão temporal da análise, e faltando-me capacidade e tempo de vida para redigir os textos necessários, propus-me a resenhá-los, muito embora não houvessem sido escritos. Nunca fui bom em resenha de textos reais, quem sabe posso sair-me melhor com um imaginário. Esta resenha de um livro não escrito foi inspirada no problema com o qual estamos às voltas no momento. Não creio que os sérios analistas que organizam nossa vida institucional o acolham com favor – se até minha inocente Realidade indistinguível foi rejeitada sem comentários do Congresso de São Francisco. Borges, porém, talvez fosse mais condescendente com o plágio, que a IPA com a originalidade. Afinal, no Prólogo de 1941, declara haver preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios. Vejamos se com vocês funciona.

 

Transferência, autobiografia alheia

No ensaio hoje clássico de Gusmaniov, um cientista, desgostoso de sua vida, projeta algo mais radical que o suicídio, meia-medida inconseqüente, que interrompe, mas não apaga a vida. Ele se recusa haver vivido, senão até os 27 anos, quando sua grande paixão o desiludiu. Pensara, naquela época, que o passar dos anos apagaria a dor da ingratidão, e por assim pensar, ele se considerara um homem maduro. Passado dos 60, contudo, como a dor e o despeito só fizessem crescer, teve de admitir que a idéia madura era tão inocente e tola quanto a idade em que a tivera e que, se não se havia tornado mais sábio com os anos, porém só mais velho, pelo menos passara a confiar unicamente em medidas empíricas, adequadas a um físico como ele. Fora com a psicologia de almanaque! Fora com as vãs conjecturas filosóficas! Vai ao laboratório, cria uma máquina do tempo – “é bem conhecido o poder criativo do ressentimento amoroso”, salienta o autor – e volta ao passado, a seu passado, ao recesso objetivo de sua mágoa. Encontra-se consigo próprio num modesto restaurante, em companhia daquela que ainda não o traíra, ou só talvez em pensamentos, reconhecia, e dispara um tiro certeiro na cabeça do rapaz. Um argumento empírico, irretorquível e irretocável.

Desse enredo vulgar, tira o autor seu argumento para situar a posição do narrador autobiográfico. Pois, como é evidente, se morre o rapaz, deixa de existir seu assassino e o rapaz não morre. Todavia, se ele não morre, então é morto necessariamente pelo senhor em que se transformaria. Logo, quem se suicida retrospectivamente – o que vem a ser “o escopo último de toda e qualquer autobiografia honesta”, segundo o autor &— só pode ser assassinado até morrer. Contar a própria vida é um “assassínio sem morte” – conclui Gusmaniov.

As questões postas pela posição do narrador autobiográfico apenas adquirem plena vigência, é nossa opinião, no contexto analítico. Com efeito, a análise é uma autobiografia alheia. O analista conduz a revisitação autobiográfica de seu paciente, que, ao registrar o próprio passado, altera-o e altera tudo o que vem a seguir, o futuro daquele passado, o tempo condicional ou tempo dos possíveis que constitui o cerne da existência humana. Para tanto, deve emprestar-se ao analisando, para que as premonições de descobertas, os ressentimentos que vai recuperar em breve, as transformações que sofrerão as figuras da infância, etc., sejam vividas antecipatoriamente nele e através dele. Sem esse trânsito pela carne espiritual do analista, o paciente não suportaria a angústia do que está por encontrar em si mesmo, no outro de si, defasado, que persegue cheio de medo e de esperança.

Ademais, se a possibilidade da construção de uma máquina do tempo é discutível, ainda que sob o efeito da maior das desilusões do amor, a psicanálise consiste precisamente nisto: uma máquina do tempo advinda de uma desilusão amorosa. De antes e depois do complexo de Édipo freudiano, sejamos claros. O experimento de reconciliação não se pode furtar dos sonhos de vingança e das auto-recriminações. Quem, senão o analista, pode servir de suporte transferencial provisório das mágoas, das acusações e, não menos perigoso, das idealizações e transportes amorosos dirigidos a um alvo ainda não identificado?

Alterações do passado transferido repercutem de imediato em seu futuro, o qual nada mais é que o presente da sessão. Há casos, por exemplo, em que o analista se mata no passado. Ao interpretar abruptamente certa relação do analisando com alguma figura da infância que sustentava sua posição autobiográfica transferencial, este, o analista, se elimina no presente. Não sua pessoa, irrelevante, mas sua força de intervenção, lastreada no equilíbrio instável que lhe conferia ser representante de alguém ou de algo. Desfeita a relação do paciente com aquela dimensão que o fazia escutar seu analista, ele perde a posição transferencial e, não raro, perde o paciente. A menos que possa valer-se do paradoxo que mantém suspensos assassino e vítima, intérprete transferencial e objeto. Como prescreve sabiamente nosso autor, a justa medida é um assassínio sem morte.

 

Tempo curto

Para o tempo curto, ficaremos na sessão do /So/.3 (vide nota pg. seguinte)

O tempo curto é o tempo da palavra analítica, da sessão enquanto acontecimento em si. O tempo condicional, dos possíveis, condensa-se em cada sessão, concentrando a história do paciente em poucas palavras. Mas, que palavras! Elas têm de dar conta do presente, do analisando em face de seu interlocutor, da situação analítica em curso. Minha paciente falava comigo, isso está fora de dúvida. Mas, simultaneamente, as mesmas palavras contêm desde o início a presença vinda do passado, da carne dobrada, que é ela mesma, noutro tempo.

Isto é, minha paciente fala comigo, como um adulto a outro, emprega os termos adequados para se dirigir a um analista. Sendo eu, no entanto, o seu analista, e há já muito tempo, suas palavras podem e devem transmitir os sentimentos vivos, o desejo de se apossar de meus pensamentos e, ainda mais, da máquina anímica que os fabrica – sem perder a compostura, bem entendido. Uma modulação transmite os anseios, e não aos gritos.

Além disso, a presença ainda irreconhecível da Mulher – o bife e a náusea – colocam-na numa peculiar situação: deve pôr-me em atividade erótico-intelectual, para isso é preciso um pouco de encanto feminino, mas os eflúvios imperceptíveis da representação antecipada parecem condenar a um fracasso, também antecipado, qualquer tentativa nesse sentido. Quem se encantaria com carne crua? Resposta, eu, ela, mas só depois de vencida a náusea. Em todo prato tentador reside um potencial oculto de canibalismo, de atração negada pela carne humana; em toda atração humana combina-se carne e espírito, cheiro e perfume, sangue e poesia. Só a consubstanciação atrai. E o problema está aí. A presença a surgir denota um conflito interior, em que o espírito, a graça, a inteligência, devem estar radicalmente separados da carne e do sangue, residência do nojo. Assim, as palavras da paciente também têm de exprimir o desejo de proximidade afetiva, carne da análise, que logo desperta aflição e distanciamento. Vêm daí seus toques tão leves, como as antenas da borboleta. Ela teme que eu rejeite sua feminilidade, por isso já a apresenta em retirada, como quem entrasse de costas numa festa, em que desconfia não ser bem-vindo. Tudo isso, e mais outros sentimentos que naquela aula enumerei, e mais outros tantos de que nem desconfio, esta é a verdade analítica, lutam por ocupar o espaço da palavra, sobrecarregando-a além da medida. Elas, as palavras, falam pela paciente e falam pela outra, ela mesma noutro tempo analítico de ∞, que disputam palmo a palmo o campo transferencial.

Não é, pois, de admirar que sobrecarregada, tendo de dizer muito mais do que pode, a palavra se dilacere. Cabe ao analista, escutá-la, em seu dilaceramento, cujo sintoma paradigmático é o ato falho. Por isso: ato falho a dois. O So?, escutado como /So/, é o resultado da explosão da palavra, com que é forçoso que o analista esteja sintonizado. Naquele momento, estava.

O risco transferencial de que há pouco lhes falava, valendo-me do mestre Gusmaniov, consiste, no tempo curto, numa espécie de objetivação. Imaginem vocês que, por alguma magia intuitiva, me ficasse evidente a náusea da paciente. Poderia ter-lhe dito, quem sabe: você me mantém à distância, porque teme meu nojo, que é apenas o seu. Ou, caindo das asas da magia para os tamancos da teoria, da teoria da projeção, ou daquela por algum motivo ainda mais popular, a da competição: você fala dessas mulheres em dificuldade, porque na verdade elas são você, mas não quer que eu a veja assim. Vejam bem. Aquilo que sustenta minha posição de analista consentido a meia distância, ou melhor, a proximidade roçada, é ser um tanto carne crua e um tanto espírito superior. Se objetivo a carne crua, ou, pior, se objetivo a mulher em dificuldade, ponho-me numa insuportável superioridade, para os valores daquela que se avizinha, a do nojo da vagina. Suicídio, sem meias-medidas.

O tempo curto, quando as palavras são vencidas, dilaceradas, pela sobrecarga daquilo que se avizinha, só se pode resolver pela submissão ao equívoco, e é melhor aceitá-la de bom grado, para que o ato falho a dois não se converta em ato mais que falho a um. Este, meus caros, é o tempo por excelência da técnica psicanalítica. A técnica não é um desdobramento do setting ou uma receita teórica do que dizer. É a escuta poética, sem melodrama nem alcaçuz. Deixar que surja o sentido, para lá do alcance estreito da significação, tomá-lo em consideração e agüentar as conseqüências. Principalmente, não tomar as palavras pelo dicionário ou pelo manual da interpretação, esperando delas um significado literal que não podem ter nas circunstâncias.

Comparando os andamentos da análise aos gêneros do teatro, coube, ao tempo curto, a comédia. A comédia de erros, na qual se ouve algo, que se entende mal e se replica pior, pois o outro escuta errado o que, erradamente, respondemos. Com isso, como em Aristófanes ou em Molière, acerta-se em cheio, depois de dois enganos. Quando o esquálido herói pergunta pelo mais rápido caminho para descer ao Hades, o camponês estende-lhe uma corda para se enforcar… So, Sou, e um bife dobrado que é também a Mulher – de cuja existência duvidava Lacan, por desacreditar do universal da não-castração, que o amor cavalheiresco sublimou nos cantares trovadorescos, que encontramos nós dois, ela e eu, na esquina de uma palavra extraviada. Se isso não é techné, então, ilustrai-me vós, sábios deste mundo…

 

Tempo médio

Salamô. Foi o que disse minha paciente. Era um sonho, que lhes contarei com imprecisa discrição. Havia a proximidade de minha casa, onde tenho o consultório. Mas era um local de prazeres. A mulher, elegantemente vestida, subia a escadaria formal, à sua frente. Voltando-se, mirou-a de cima para baixo, como competia às posições relativas, dando a entender que sabia o que ela apenas então adivinhava. Era um lugar de prazeres sensuais. Nunca saberemos quais. A cada qual de vocês, sua fantasia.

Ela, porém, usava camisola. Vestido de noite, numa acepção profana. Porém, o sonho acelera-se. Ela se dirige a um ônibus, um coletivo, uma perua, onde se sentam velhos, esperando a partida. Está atrasada. Ao pedir informações, escuta um longo sermão, que não consegue interromper. Argumenta, aflita, vai perder a condução, vai se atrasar para a sessão. O carro sai, a porta prendendo sua camisola. Sabe que não estão vivos os ocupantes. Dirigem-se ao cemitério. Mas a camisola &— estranho &— não rasga.

Digo-lhe: você vai para o cemitério com eles, arrastada.

Pensando em tempo médio, o jogo transferencial é de extremo interesse. A paciente parece enunciar seu desejo de estar comigo na análise, numa relação viva, erótica. O campo transferencial estende seu poder de imantação às proximidades do consultório, a casa do sonho fica nas vizinhanças. A forma intrínseca do desejo, porém, situa nosso problema de maneira muito especial. O convite à vida envolve uma sedução mortal: prazeres proibidos, com o sabor das perversões ritualizadas do século 19 – reparem na cena da escadaria, funciona como uma datação por carbono radiativo –, que imediatamente se traduzem numa decrepitude senil, que se apossa dela. Ela me pede socorro, para que a desperte da depressão, mas, o socorro que lhe posso oferecer é vivido como um sonho erótico proibido, que termina em morte.

Antes, há anos, suplicava a cada sessão para que eu desistisse de ajudá-la, tentava convencer-me de não ser analisável. Era a súplica do sujeito da depressão por um mínimo de compreensão e piedade. Deixe-me morrer em paz? Não, exatamente. Deixe-a morrer em paz, que sua morte é minha sobrevivência.

Hoje, tudo se passa como se ela ocupasse simultaneamente as duas posições, começando a integrar morte e vida. O signo sob o qual se abriga essa hesitante integração tem sido, nessa fase, uma espécie de erotismo mórbido.

São prazeres proibidos, os daquela casa... Não entendi Salamô. Parecia um nome conhecido. Um filme, um romance? Você tem idéia?

Salambô, talvez, de Flaubert? É isso. Não li. Ouvi falar. É mais pelo nome. Tem algo a ver?

Com prazeres sensuais? É uma história oriental…

Conta-me então do embate contra o marido. Ele, como o pai, a castiga – trata-se da paciente do pai severo. Sempre tem razão o marido, pois ela jamais o conseguirá convencer, faltam-lhe argumentos. Ele nunca pára de falar, como o velho do coletivo. Nesta semana, ele queixava-se dos gastos de certa viagem. Você me custa caro, muito caro. Se sou sua mulher – ela contestou – você tem de pagar meus gastos. Se não sou, então tem de pagar a acompanhante, o que é muito mais caro.

Que resposta, meus amigos! Foi a primeira vez que acertou na mosca, segundo parece, mas a mosca foi fulminada com Rodiasol. Morta. Mandada para o cemitério.

Período curioso da análise, este. Ela me acena com a vitória da análise contra a repressão. A memória do pai severo já se temperou, faz tempo, com sua bonomia e alegria de viver. Conta-me de certas aventuras dele, durante a guerra. Dissera à mãe, em meio ao horror nazista: fala pra eles que é minha mulher. Ela não era ainda. Mas, falou. Conseguiram se manter juntos. Casaram-se e acabaram-se salvando.

Concluo eu: portanto, seu pai também foi um herói, não é verdade?

Ela me acena com a vitória da análise. Mas não ma deixa gozar, é claro. Claro? Claro. Enquanto luto por ela, e à sua instância, contra o herdeiro do pai punitivo, o marido, ela se mantém neutra, apostando nos dois. Um delicado equilíbrio. Não posso vencer, mas não me deixa ser derrotado. Uma vela para Deus, outra para o diabo. Mas, quem é quem? Não consigo estar certo. É preciso manter o equilíbrio ainda agora. Se exige do marido, depois se arrepende e é como se torcesse por sua vitória, a vitória dos mortos. Recrimina-me por a estimular. Mas, se surpreende em mim sinais de desânimo, ou se os supõe vagamente, desperta e procura estimular-me. Equilíbrio, no momento.

Salamô. Lembra-lhe Sodoma e Gomorra. Lembra-lhe a Histoire d’O. Narra-me, com alguma delícia, como a mulher se submete aos abusos eróticos, e, ao fim, o homem submete-se, quando vê que a perdeu.

Chegam ao fim as sessões da semana. O trabalho parece ir de vento em popa. Logo, a depressão deve marcar presença. Que me diz? Mais uma semana, e não falei coisa alguma de útil. Ah, mas eu me tinha valido de um truque baixo. Não me envergonho, foi por uma boa causa. De costume, meus pacientes já me fizeram notar diversas vezes, eu me mexo um pouco na poltrona, quando se aproxima o fim da sessão. Dessa vez, de propósito e caso pensado, ou pelo menos sincronizado com a transferência, mexo-me uns cinco minutos antes. Quando ela nega o valor das sessões e se prepara para levantar e deixar-me a ver navios, posso dizer-lhe: ainda não está na hora. O tempo que sobra é o bastante para repassar por alto as sessões e perguntar-lhe: então, não fizemos nada. E ela tem de admitir que sim, que fizemos, que ela encontrou a resposta para o marido, que descobriu algo do pai. E, mais importante, que reproduziu a ida ao cemitério, no fim suposto das sessões. Sua vitória depressiva foi derrotada dessa vez. Transformará a derrota em vitória da derrota? Próximo capítulo…

Em Salamô há de tudo. Anuncia Salambô, menos sambou, salam!; salame e d’O; Sodoma e Gomorra. Gomorra, apud Proust e testemunhos bíblicos, a perversão feminina. L’historie d’O, a vitória da submissão masoquista. Oriente e sensualidade. No futuro das sessões, em tempo médio, que aparecerá?

Como podem ver, o tempo médio é o do drama transferencial. Foi assim que o classifiquei, em contraposição à comédia do tempo curto. Sentimentos delicados, vivências dolorosas. É o tempo em que a dúvida tangencia o sofrimento. É, também, o tempo mais comum dos relatos clínicos, entre nós. Neste caso, a paciente desejosa de viver está empenhada num diálogo complexo com sua depressão, ou, por outra, a paciente depressiva dialoga com aquele eu portador de esperanças e, sejamos justos, de várias e importantes realizações recentes. A síntese provisória são os prazeres sensuais mortíferos. Com certeza, no tempo médio, o analista, embora tendo já tomado seu partido – ela o sabe bem, que dúvida! –, deve manter-se equilibrado entre as tendências que se enfrentam. Dando tempo ao tempo dos sentimentos.

 

Tempo longo

Este é o tempo da neurose e o tempo de sua cura, duas totalidades conjugadas e contraditórias, solidárias e antagônicas, duas encarnações de uma psique em transformação, que naturalmente se vão modificando no transcorrer da análise. No próprio tempo longo, à medida que neurose se converte em cura. A cada período temos um diagnóstico transferencial da análise, que nos orienta no trabalho. O tempo longo também é, pois, o tempo diagnóstico e o das estratégias de longo curso. Não o das táticas, como o pseudo-encerramento prematuro da última sessão da semana, nem o do equívoco saltitante, que constitui a técnica. Não é a comédia clássica nem o drama contemporâneo, mas, a tragédia, o destino. Ou quase. Pois estes não admitem solução humana; digamos que, como gênero psicanalítico, o tempo longo é o dos pequenos e grandes golpes que nós homens tentamos aplicar contra o destino, esse roubo a que se chama história. Entre a tragédia clássica e a história, este é o tempo de um trauma, da neurose e de seu tratamento psicanalítico. Uma tragédia histórica, envolvendo diversos ritmos e tempos particulares, de que se tem valido a narrativa cinematográfica, por exemplo, sobre o fundo de um sentido geral, que se vai descobrindo nos acontecimentos particulares.

(Cena em flashback. Pretérito perfeito.) A menina estava brincando com o irmão, no sofá da sala, quando começou a batalha da tesoura. Rolaram, aos gritos, mas ela se apoderou. Foi quando a mãe entrou às carreiras, para acabar com a gritaria. Cega de raiva, virou a bofetada. (Câmera lenta, agora. Presente inamovível.) A menina cobre o rosto com a mão direita, olhos fechados. A esquerda, que empunha a tesoura, fica esquecida à frente, entre a mão espalmada e o tapa na cara. A grande mão não se detém. Há o grito, a menina abre os olhos. A tesoura atravessara a mão materna, que espirra sangue. (Tempo acelerado. Um passado logo ali, pretérito imperfeito.) Um pano de pratos enrolado, ainda sangrando muito, a mãe corria pelas ruas ao posto de saúde, a menina, correndo ao lado, gaguejando qualquer coisa. A mãe não a olha, nem fala com ela. Não me olhava, não me olhava, não me olhava. (Fotograma estático.) Depois, olha, com ódio; sem uma palavra, não a desculpa. (Documentário. Passado factual, contínuo.) Então, os médicos. Havia lesado um nervo. Os movimentos nunca se recuperaram por completo. Ao escrever, ainda se pode notar o jeito canhestro com que segura o lápis. (Câmera evanescente. Tempo congelado.) Elas jamais chegaram a falar no assunto.

Ora – digo eu sensatamente –, pede desculpas. Já se haviam passado mais de trinta anos; caso contrário, por que haveria de sugerir essa estúpida sensatez?

Ela me escuta, em dúvida. E se… Eu poderia dizer que não queria machucar, que foi sem querer. Tentativamente, gaguejando.

Para descobrir que foi sem querer, aliás, ela teve de perguntar recentemente à irmã, que assistira o feito. Já começou a se descongelar a cena. Ouve-se uma voz maligna, noutro plano – sem querer significa sem desejar? Alguém o disse dentro dela, ela o repetiu para mim. Ela espreme a memória e o coração para saber a verdade. Tenta admitir ódio e culpa inconscientes, numa tentativa auto-acusatória de mitigar a consciência de culpa. Às vezes, ela queria que a mãe morresse, sim, sim. Mas não daquela vez, jura. Ela, a menina retornada à sessão, faz experimentos de admissão de culpa sob autotortura preliminar. Ela, adulta, não acredita muito na mágica, mas empresta-lhe a voz. Aos poucos, descobrimos que essa cena nunca se interrompera. Sempre pediu desculpas a todo mundo, do que fez e do que não fez, menos à mãe. De tudo, menos daquilo. O que está sendo espremido não cede, porém, e não por ser duro, mas por ser vazio. Digam-me vocês: como espremer uma forma geométrica, como amassar uma equação, como achatar um silogismo?

A cena traumática estampou-se em sua vida. A mão direita da mãe contra sua mão esquerda. Sem perceber, ela a esfrega e depois alisa, esfrega e alisa sem parar, durante certa sessão. As chagas de S. Francisco, num quadro que se encontra por toda parte, projetando-se do crucifixo sobre o corpo, plástica impressão das feridas. Imaginem o Seráfico procurando em si culpas de Lady Macbeth – what is done, cannot be undone, eco shakespeareano do provérbio antigo factum fieri infectum non potest.

Tragédia. Tragédia inescapável. A cena trágica parece estar se realizando. Horresco referens, estremeço ao contar, como diz Enéias. Seu horror não é propriamente a condenação materna. Mas a tragédia de uma fusão punitiva. Ela teme transformar-se na mãe. Vão colar-se, corpo contra corpo, até que a impressão palmar invertida, direita sobre esquerda, faça com que a alma desesperançada e ressentida da mãe se cole na sua, para sempre, até a morte.

Foi pelo tema da morte que tudo começou, aliás. Alguém morrera, de suas relações. E descobriu que ela mesma morreria. Não já, claro, mas na sua hora. Na hora certa, ou seja, em hora incerta. Perguntava-me sem parar sobre a eternidade, ou você acha que acabou, acabou. Fez-me jurar a sério que não morreria, ao menos até o fim da análise. A análise de algum trauma começara, parecia óbvio. Até aí eu podia ver, mas como adivinhar qual fosse? Na análise, o processo principia com a pena, para chegar ao julgamento, deste, ao juiz, e, por último, à cena do crime. A pena capital, vocês não ignoram, é a sentença mais comum nos tribunais da mente humana. É preciso não perder a cabeça e esmiuçar a sentença capital. Como, qual o instrumento? Neste caso, o órgão era o coração. Crises de taquicardia, sensação de morte iminente.

Atravessando-as a custo, com muitas crises angustiantes, chegamos ao sentido da visão. Ela não enxergava. Tinha provas de haver lido várias vezes certos textos, pois deixava para si, como lembrete, palavras sublinhadas a lápis ou em tintas de diversas cores. O náufrago põe o bilhete na garrafa, afunda no mar do esquecimento traumático de si, e, quando volta à tona, recebe sua mensagem. De quem? Do trauma, o sujeito da forma psíquica congelada, o sujeito da voz passiva. Foi lido o texto, mas nem do título recorda-se. Cega, ela experimentava mostrar-se, encenar balés e figurações, mas não lhe era permitido olhar-se ao espelho. Se vê que é vista, então perde a pose e a ousadia. Tampouco via bem o resto das coisas. Das pessoas próximas, parece que nunca soube o que faziam, mesmo diante dos próprios olhos, preferia crer no que lhe diziam. De súbito, com a análise, caíram-lhe as escamas dos olhos, como as do velho Tobias, e viu tudo de uma vez. Um horror. Aquele horror.

De vista em vista, cruzando o tempo médio da análise – o da transferência, dos sentimentos, da dor e da consolação, da tangência entre a sensibilidade ao sofrimento e a dúvida entre dois caminhos –, chegou a enxergar o analista. Você, eu olhei mais que todos os outros que já tive. Ao poder me olhar, viu-se, como é natural. Mudou a forma de se vestir, decidiu cuidar da pele e da aparência. A entender o que lia e o que via.

Foi quando descobrimos a cena do crime que não houve. Inconsciente? Sem dúvida, mas conhecida. Na dimensão temporal , porém, ela jamais está onde pode fazer algo a respeito: esta é uma definição de trauma, na Teoria dos Campos. Com efeito, a cena da tesoura nunca lhe saíra da cabeça, já a contara e recontara dezenas de vezes em suas análises. Porém, o inconsciente do trauma não é sua representação ou falta de representação, mas a matriz de estampagem do desenho do desejo. Uma, a mãe, cega de raiva, outra, a filha, de olhos fechados. É importante que vocês notem: olho e olhar são opostos solidários. A pálpebra que se fecha, para proteger o olho do tapa, é a mesma que impede olhar a tesoura em riste. O olho é alvo do objeto, mas o objeto é alvo do olhar. Simétricos, opostos, identificáveis. Permitam-me perguntar-lhes de chofre: onde estão vocês em si? Com toda a probabilidade, a resposta será: bem aqui, por trás dos olhos. Ativamente, estamos no olhar, passivamente, no olho; nós humanos somos olho-olhar. E o outro? O outro é o vermos; acima de tudo, porém, é sermos olhados. Toda a vergonha e a sublime consolação vêm daí. Nós, humanos, somos a olhos vistos.

Uma análise, descrita de algum ponto, em tempo longo, possui a solenidade freudiana do diagnóstico do homem. Sugere frases lapidares e sentenças latinas, como em Freud. Pois uma análise, assim vista, são todas, é o homem em condição de análise. Portanto, está feito o diagnóstico desta análise. Não se enganem. Não falaremos em histeria ou em depressão. O diagnóstico transferencial é toda a descrição que lhes apresentei. Ou, para ser lacônico e lapidar, o diagnóstico é: a olhos vistos.

O tempo longo é também o da teorização, o da prototeoria. Devo acrescentar alguma teoria. Mas, feita sob medida, por favor. Em suma, não há um lugar psíquico para o inconsciente do trauma. Cada psique é seu trauma, por inteiro. A cena da tesoura, elemento por elemento, molda a realidade e a fantasia da minha paciente. Sem dúvida, os sentimentos em jogo na cena histórica poderiam ter vindo de antes, talvez até da primeira infância ou mesmo de gerações anteriores, via transgeracional; bem como poderiam ter vindo de fora, do meio cultural, das relações familiares típicas do lugar de infância, dos enredos afetivos consagrados naquela época e local, ou de outras alheias circunstâncias. Uma vez que o trauma não cria, congela a circunstância.

É possível que vocês compreendam agora o que significa um campo. É tudo. É a única forma de ser… dentro do campo. Sem sombra de dúvida, uma vida humana comporta diversos campos, uns à sombra dos outros. Não obstante, cada campo é a vida toda, dentro daquele campo. Não há meio-campo, nem é possível o trânsito voluntário, antes da ruptura. O campo é o inconsciente, mas são inúmeros os inconscientes simultâneos, inconjugáveis e irredutíveis uns aos outros. Como a hóstia consagrada – é o que ensinam os padres da igreja –, cada parte do campo é o todo, por transferência.

Para criar as duas tópicas, Freud partiu da tópica do trauma. Para completar nossa prototeoria, vamos chamá-la de Tópica 0. O inconsciente da Tópica 0, o inconsciente do trauma, ilustra excelentemente a noção de campo. E, por conseguinte, também a de inconsciente, espécime fundador do gênero campo.

 

O que não precisaria ser dito

Fora da intimidade da clínica, no movimento psicanalítico, a teoria dos três tempos serve também para encaminhar uma questão constrangedora. Os analistas não se entendem. Certa vez, depois do Congresso de Roma, quando tentamos encontrar sem sucesso o common ground da Psicanálise, pensei num encontro clínico para testar a comunicação. Que diabos, se só contarmos casos de análise, não é possível que não nos entendamos. Organizamos o Encontro de Windsor. Fepal e Federação Européia, mesmo número de vagas (poucas), só casos de pacientes. Estava errado, como de hábito, não funcionou.

Isso me sugeriu, naqueles tempos distantes, o germe desta teoria. Serve para explicar, no mínimo. Os freudianos contam casos em tempo longo, os kleinianos e muitos outros, em tempo médio, os lacanianos e, até certo ponto, os bionianos, em tempo curto. Cada qual acredita ser o seu o tempo certo da narrativa. Como se entenderão?

 

 

* (1944-2006). Foi membro da SBPSP. Professor do programa de pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Criador da Teoria dos Campos. Fundador do Cetec (Centro de Estudos da Teoria dos Campos), o qual presidiu até sua morte. (Notas e resumo de Leda Herrmann.)
1 “Os três tempos da análise” compõe o curso Da clínica extensa à alta teoria. Meditações clínicas, ministrado por Fabio, de 2002 a 2006, no Instituto de Psicanálise da SBPSP e na pós-graduação da PUC-SP. Trata-se do item VI da Quarta meditação, “Intimidade da clínica”. Todas as aulas foram escritas com o propósito de publicá-las em livro. Na obra de Fabio, os textos de referência para este artigo são o capítulo 15, “Psicopatologia”, do livro Introdução à Teoria dos Campos, Casa do Psicólogo, 2004, 2ª ed., Capítulo VIII, “A cura no campo psicanalítico”, 3ª parte do livro Andaimes do real: o método da Psicanálise, Casa do Psicólogo, 2001, 3ª ed., e o livro A Psique e o Eu, HePsyché, 1999.
2 Um dos pontos importantes da aula anterior, citada no início do artigo, refere-se às reflexões sobre o regime temporal da análise (∞). Argumenta Fabio que o método interpretativo de ruptura de campo impõe um tempo específico ao efeito psicanalítico, o futuro do pretérito, ou tempo condicional, para o qual usa o símbolo de infinito: ∞. O abalo imposto às estruturas vivenciais do paciente, pela ruptura de campo, não apenas altera as lembranças do paciente, mas “corrige-as”. Modifica-se o solo de memória e o passado passa a ter sido outro. Como conseqüência, e em pequena medida, o presente, ou seja, o futuro de um novo passado, muda e também passa a ter sido sempre aquele que se criou, provocando estranheza no paciente. O símbolo de infinito (∞), a dupla laçada, é usado por Fabio como metáfora desse regime temporal da análise. A laçada da esquerda representa o passado; o ponto em que as duas se cruzam, a ruptura de campo, e a laçada da direita, o novo presente que se modificou como um futuro do passado alterado. Esta é a descrição gramatical do futuro do pretérito, do tempo condicional e, também, do tempo do Homem Psicanalítico. (L.H.)
3 A sessão aqui referida foi analisada no item III, “Intimidade da clínica”, da mesma Quarta meditação, da qual o presente artigo foi retirado. Resumidamente, a paciente fala de vários assuntos, no tema de “mulheres em dificuldade”, esperando que o analista encontre um fio de ligação entre eles. Sem consegui-lo, e como domina o inglês, pergunta: So? O analista repete numa entonação meio inglês e meio português /So/ (sou), e completa com: “Sim, você é.” Espantada ela pergunta: “Sou o quê?” O analista completa: “Mulher. Você não disse sou?” So e /So/ não foram ditos nem em português, nem em inglês, mas em método psicanalítico, cujo lugar é “entre”. No caso, entre o idioma-analista e o idioma-paciente. Quando, por ação do método psicanalítico, o analista suspende o império de correção, imposto pela rotina, surgem os vários sentidos que uma fala contém. No campo transferencial, a pergunta: “Sou o quê?” aponta dois outros sentidos entrelaçados: Que é ser mulher? E O que vem a ser um homem? Possibilidade de sentido diferente do que já se mostrou e foi entendido. O que é uma mulher surge para esta paciente em vórtices representacionais provocados pelo campo rompido, isto é, a associação com o nojo de mexer em carne crua. O toque interpretativo, no espanto do analista: Então, mulher é carne crua?, traz à lembrança uma fantasia antiga e persistente. Para a paciente, o corpo feminino era tido como uma carne dobrada, que sangra às vezes, na menstruação. Motivo de nojo, mas também de fascínio. (L. H.)

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