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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Presença sensível: a experiência da transferência em Freud, Ferenczi e Winnicott

 

Sensitive presence: the experience of transference in Freud, Ferenczi and Winnicott

 

Presencia sensible: la experiencia de la transferencia en Freud, Ferenczi y Winnicott

 

 

Daniel Kupermann*

Professor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Membro da Formação Freudiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Através de uma análise histórico-crítica das concepções de transferência apresentadas nas obras de S. Freud, S. Ferenczi e D. W. Winnicott, pretende-se demonstrar que o estilo clínico desenvolvido por esses autores não pode ser dissociado do contexto no qual exercem a psicanálise, especialmente das formas de sofrimento psíquico nele predominantes. Tendo a neurose como matriz clínica privilegiada, Freud concebe a transferência como atualização dos complexos inconscientes infantis dos analisandos, seu manejo estando regulado pelo princípio da abstinência e pela interpretação da resistência e do recalcado. Por seu turno, Sándor Ferenczi e D. W. Winnicott lidaram com pacientes severamente traumatizados e comprometidos em seus processos de subjetivação e, baseando seu estilo clínico na regressão à dependência e no brincar compartilhado, indicaram que é a qualidade do encontro afetivo que se estabelece entre analista e analisando o que pode conduzir à produção de sentidos na experiência psicanalítica.

Palavras-chave: Psicanálise, Transferência, Sigmund Freud, Sándor Ferenczi, D. W. Winnicott.


ABSTRACT

Through a historico-critical analysis of the conceptions of transference presented in the writings of S. Freud, S. Ferenczi and D. W. Winnicott, we intend to show that the clinical style developed by these authors cannot be dissociated from the context in which they practice psychoanalysis, especially in regard to the forms of psychic suffering which are predominant in it. Taking neurosis as the predominant clinical structure, Freud conceives transference as the up-dating of childish unconscious complexes of the patients, their handling to be ruled by the principle of abstinence and the interpretation of the resistance and the repressed. Sándor Ferenczi and D. W. Winnicott, on the other hand, treated traumatized patients whose subjectivity was severely damaged, basing their clinical style on regression to the dependence and on playing together. They thus established that it is the quality of the affectionate encounter between the analyst and the patient which leads to sense in the psychoanalytical experience.

Keywords: Psychoanalysis, Transference, Sigmund Freud, Sándor Ferenczi, D. W. Winnicott.


RESUMEN

A través de un análisis histórico-crítico de las concepciones de transferencia presentada en la obra de S. Freud, S. Ferenczi y D. Winnicott, se intenta demostrar que el estilo clínico desarrollado por esos autores no puede ser disociado del contexto en el cual ejercen el psicoanálisis, especialmente de las formas de sufrimiento psíquico que en él predomina. Considerando la neurosis como matriz clínica privilegiada, Freud concibe a la transferencia como actualización de los complejos inconscientes infantiles de los analizandos, siendo que su manejo está regulado por el principio de abstinencia y por la interpretación de la resistencia y de lo recalcado. Por su vez, Sándor Ferenczi y D. W. Winnicott trabajaron con pacientes severamente comprometidos en lo que a sus procesos de subjetivación se refiere y, basando su estilo clínico en la regresión a la dependencia y en el juego compartido, indicarán que merced a la calidad del encuentro afectivo que se establece entre analista y analizando, esto puede conducir a la producción de sentidos en la experiencia psicoanalítica.

Palabras clave: Psicoanálisis, Transferencia, Sigmund Freud, Sándor Ferenczi, D. W. Winnicott.


 

 

Para Chaim Samuel Katz

 

Introdução

Desde os primórdios do emprego do método da associação livre, Freud situa na relação analista-analisando o plano decisivo em que ocorrem os acontecimentos que definirão os rumos de uma análise. Em “Sobre o início do tratamento” (1913/1980m), ensaio que compõe seus artigos sobre a técnica, Freud compara o percurso psicanalítico a um jogo de xadrez, do qual só se pode transmitir sistematicamente a abertura e o término, ficando o intermédio sujeito às variáveis mais inusitadas e indeterminadas. Posteriormente, Jacques Lacan explicita que a abertura e o término do xadrez psicanalítico estão referidos à instalação e aos destinos dados à transferência (Lacan, 1968/2003). Assim, o curso de uma análise pode ser definido como o espaço e o tempo do manejo da transferência; isto é, o processo psicanalítico está intimamente relacionado às vicissitudes da afetividade que circula entre analista e analisando.

Porém, como é comum se observar, apesar de o conceito de transferência ser um dos mais empregados na literatura psicanalítica, é também aquele do qual, provavelmente, menos se encontra uma univocidade de sentido (Plon & Roudinesco, 1998). Isso se deve ao fato de que a transferência – sua instalação, manejo e destino –, sendo considerada o modus operandi da clínica, e estando referida ao plano de afetação que se estabelece no setting, não nos deixa esquecer que o processo analítico não pode ser reduzido à mera aplicação de uma técnica ou à aquisição inteligível de um saber sobre o passado e seus efeitos no psiquismo do sujeito, o que impõe uma série de dificuldades de definição e de entendimento dos modos como efetivamente opera, segundo a especificidade de cada análise. Nesse sentido, a teorização acerca da transferência está intimamente vinculada à qualidade da experiência afetiva estabelecida no curso de uma análise, o que implica considerar o contexto no qual um autor pratica a psicanálise – sobretudo as formas de sofrimento psíquico nele predominantes – na composição de seu estilo de psicanalisar. O propósito deste ensaio é, justamente, indicar de que maneira a transferência aponta para a dimensão estética da clínica, sendo a qualidade do encontro afetivo o que pode conduzir à criação de sentidos na experiência psicanalítica e a emergência de concepções distintas da transferência em momentos cruciais da história da psicanálise.

 

A atualização do inconsciente: a transferência em Freud

O conceito de transferência emerge cedo na obra freudiana, ainda no século 19, no último dos ensaios que compõem a coletânea “Estudos sobre a histeria” (escrita em parceria com Joseph Breuer), no qual as duas principais noções referentes à clínica são apresentadas: resistência e transferência (Freud, 1893-1895/1980d e 1980e).

Freud atribui a descoberta da transferência, ainda que indiretamente, ao “fato inconveniente” que lhe foi revelado por Breuer acerca do caso da Fräulein Anna O., atendida segundo os princípios do método catártico (Freud, 1914/1980g). A escuta ofertada por Breuer aos sofrimentos e paixões de Anna O. dera origem ao enamoramento da paciente pelo seu médico, conduzindo a um dramático desfecho em que Anna O. “simula” um parto anunciando a chegada do filho do Dr. Breuer, levando-o a interromper definitivamente o tratamento.1 A lição extraída do episódio por Freud, que já dispunha de uma concepção psicodinâmica do funcionamento do aparelho mental – da qual o conflito e a noção de defesa através do recalque eram as pedras fundamentais –, foi a de que a contrapartida da oferta de escuta sensível para a histérica e da circulação da palavra que dela derivava é o advento de uma modalidade específica de apaixonamento por parte da paciente, dirigida ao terapeuta. O passo seguinte foi associar a recém-descoberta resistência ao tratamento a esse mesmo apaixonamento, considerando que na sua gênese estava uma transferência dos afetos – originalmente dirigidos às imagos parentais e convertidos no sintoma histérico por força do recalque para a figura do analista. Teríamos, assim, uma “falsa-ligação” nessa transferência (Uberträgung) de afetos, que deveria ser acolhida como parte do tratamento na forma de uma resistência ao mesmo (Freud, 1893-1895/1980e).

Apenas a partir da análise de Dora, com o amadurecimento da teorização do complexo de Édipo na constituição da subjetividade, Freud (Freud, 1893-1895/1980e) disporia de elementos para conceber a transferência ao analista como uma forma de reedição ou de atualização das imagos parentais no “aqui e agora” da sessão analítica. Apesar de confessadamente equivocado em relação à compreensão da bissexualidade de Dora, ao identificar sua posição na transferência à figura paterna, Freud fazia avançar sua concepção de transferência na direção do conceito de repetição, como se lê em “A dinâmica da transferência”, de 1912.

Nesse ensaio, a transferência já se encontra assimilada à teoria da clínica psicanalítica, não mais como um mero inconveniente – resistência – que acidentalmente pode ocorrer nas análises, mas como uma repetição necessária ao trabalho de acesso às fantasias recalcadas infantis e ao complexo de Édipo. Tratar-se-ia, então, da reedição dos clichês estereotípicos impressos na constituição do psiquismo do sujeito na primeira infância e sua manifestação configuraria, na situação clínica, a atualização do inconsciente necessária ao processo psicanalítico. Afinal, “...é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie” (Freud, 1912/1980c, p. 143).

A transferência poderá se apresentar nas versões positiva ou negativa. A transferência positiva terna é considerada por Freud a maior aliada do tratamento. Através dela, o analista pode reconhecer o investimento do analisando no doloroso processo terapêutico, bem como adquirir a influência necessária para a efetividade das suas intervenções. Já a transferência positiva erótica, bem como a transferência negativa, composta pelos impulsos agressivos e hostis, são consideradas formas de resistência ao trabalho analítico, constituindo os maiores obstáculos ao tratamento. Assim, se a transferência é, efetivamente, o modus operandi do processo analítico, sendo no campo transferencial que a “vitória” tem de ser conquistada, é também indiscutível que “...controlar os fenômenos da transferência representa para o analista as maiores dificuldades” (idem).

Pode-se desde já perceber que, no percurso freudiano, apesar de a transferência ter sido assimilada ao processo analítico, tendo seu manejo se tornado o principal desafio, as dificuldades em apreender os sentidos das intensidades afetivas que invadem o espaço analítico conduziram Freud a confundi-la ora com a repetição dos complexos infantis edipianos, ora com a sugestão – pelo uso por parte do analista da sua forma positiva terna –, ora com a resistência à análise,2 nas suas manifestações eróticas e negativas, o que culminou nos impasses de “Observações sobre o amor transferencial” (Freud, 1915/1980j).

De fato, se por um lado Freud reconhecera o primado da afetividade nas análises, por outro esbarrara nos limites impostos pela sua teoria da clínica. A situação paradigmática, que tem como referência a clínica da histeria, é a do enamoramento de uma analisanda por seu analista – característica da época.3 Postulando que essa situação crítica demanda um manejo específico, não devendo a demanda de amor ser atendida, tampouco radicalmente recusada, Freud adverte que as intensidades afetivas são arriscadas: “Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido (...) portanto, não devemos abandonar a neutralidade (...) que adquirimos por manter controlada a contratransferência (...) o tratamento deve ser levado a cabo na abstinência” (Freud, 1915/1980j, p. 214).

Os termos empregados – controle, neutralidade, abstinência – remetem inequivocamente a uma concepção segundo a qual o psicanalista precisa se proteger das intensidades afetivas suscitadas pela transferência. Além disso, outra figura crucial referente à relação analista-analisando é retomada, apesar de pouco explorada por Freud: a da contratransferência. Noção surgida alguns anos antes, em “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” (1910/1980k), em que fora considerada uma falha humana possível de ocorrer como contrapartida ao impacto dos afetos dirigidos ao analista, a contratransferência – seu controle, melhor dizendo – passa a ser considerada decisiva para o sucesso do empreendimento psicoterapêutico.

No ensaio de 1910, escrito por ocasião da fundação da IPA (International Psychoanalitical Association), Freud indicara que uma análise só avança até o ponto em que avançou a análise pessoal do psicanalista, destacando o problema da qualidade do encontro afetivo nas análises e o questionamento acerca das faculdades adquiridas pelo analista para o exercício da disponibilidade sensível que lhe é exigida pela clínica. Porém, poucos anos depois, em “Observações sobre o amor transferencial”, a questão privilegiada passa a ser a do controle, por parte do analista, dos seus afetos e da sua reação aos afetos do analisando. Assim, a exigência de análise para aquele que quisesse se tornar psicanalista, que, a partir dos anos 20, seria oferecida e regulada pela associação internacional recém-criada, foi instituída obedecendo a duas motivações principais: para que o candidato a psicanalista reconhecesse e experimentasse na carne os efeitos do inconsciente, convencendo-se assim da sua efetividade, o que as curtas análises desse período pouco proporcionavam; e, sobretudo, para que pudesse lidar com seus pontos cegos e controlar sua contratransferência.

Nesse sentido, uma noção ganharia o estatuto de princípio ordenador da técnica freudiana: a abstinência. Se a análise tem apenas uma regra fundamental, a associação livre, a liberdade associativa precisaria de limites, em virtude dos constrangimentos impostos pela intensa afetividade que inunda o espaço analítico. É verdade que o estatuto da abstinência na clínica tem uma referência ética. Afinal, há uma tendência, visível na clínica da histeria, de comprometer o trabalho psíquico e o luto exigido pelo processo de elaboração, tornando a situação transferencial uma situação de gozo pulsional; o amor transferencial servindo, efetivamente, a uma paixão pela ignorância. Mas não se pode esquecer, também, que há outro fator em jogo nessa problemática: a constatação de que as principais formulações técnicas freudianas foram constituídas antes da chamada “virada dos anos 20”, na qual a pulsão de morte e, posteriormente, a segunda tópica, seriam concebidas. O modelo clínico de Freud, ao menos o que é apresentado em seus ensaios principais sobre a transferência, é ainda devedor da primeira tópica e da primazia do recalcado na estruturação subjetiva. Assim, a tarefa principal de uma análise seria promover a recordação do material recalcado, ainda que para isso fosse preciso lidar com as vicissitudes da repetição, cujo palco é o campo transferencial.

O princípio de abstinência foi formulado, e fez a sua fama, justamente nesse contexto, no qual o trabalho privilegiado nas análises era o do recordar, e para o qual o psicanalista contribui através do seu instrumento maior, a interpretação, ainda que, para formulá-la seja preciso assistir às repetições e às atuações (acting-out) nas análises. Portanto, a técnica freudiana apresentada entre os anos 1910 e 1920 (e é apenas em relação a essa concepção que as críticas e os desenvolvimentos de outros autores deve ser considerada) tem como balizas a regra fundamental da associação livre, o princípio de abstinência regulando e controlando o campo transferencial, e a interpretação como instrumento privilegiado do qual dispõe o psicanalista para remeter as repetições coloridas pela afetividade às recordações, ou seja, ao conteúdo recalcado e à elaboração que lhe é sucedânea, como se pode encontrar em “Recordar, repetir e elaborar” (Freud, 1914/1980n).

No entanto, no terceiro capítulo de Além do princípio do prazer (1920/1980a), encontramos uma confissão que abre espaço para contribuições futuras, através da qual Freud reconhece que a prática psicanalítica, originalmente uma “arte interpretativa”, em frente ao fenômeno da compulsão à repetição, passaria a privilegiar, lado a lado com a interpretação, os afetos vividos na relação transferencial. A experiência analítica ficaria, assim, menos referida ao seu registro inteligível, e mais atenta ao campo do sensível e do que nele se pode produzir como sentido. Veremos, primeiramente acompanhando o percurso clínico de Sándor Ferenczi, contemporâneo de Freud e seu principal interlocutor e colaborador ao longo de quase trinta anos, e depois em alguns desenvolvimentos promovidos por D. W. Winnicott, de que maneira a concepção do que é a relação transferencial foi sofrendo transformações e redescrições, na esteira dos desafios clínicos impostos pela segunda tópica e pela emergência de quadros de sofrimento psíquico diferenciados das neuroses que mereceram os cuidados do criador da psicanálise.

 

A produção de sentido: a transferência em Ferenczi e em Winnicott

O sentido do percurso teórico-clínico de Sándor Ferenczi está condensado no primeiro parágrafo do seu Diário clínico, escrito ao longo do ano de 1932 – Ferenczi morreria no ano seguinte –, e publicado apenas em 1985, na França, por óbvias razões políticas, dado o seu caráter perturbador em razão do questionamento da técnica psicanalítica clássica. A nota de 7/1/32 refere-se à insensibilidade do psicanalista: “...maneira afetada de cumprimentar, exigência formal de ‘contar tudo’, a atenção flutuante que, afinal não o é e certamente não é a apropriada para as comunicações dos analisandos, impregnadas que estão de sentimentos e freqüentemente trazidas com grandes dificuldades” (Ferenczi, 1932/1990, p. 31). Para Ferenczi, essa “insensibilidade” – que acabou se configurando a contrapartida do princípio de abstinência – nada mais era do que uma defesa (obsessiva, quando não esquizóide ou perversa) dos analistas, uma forma de “hipocrisia” e de recusa dos modos pelos quais o analista é afetado e afeta seu analisando no encontro clínico.

Na fase inicial dos seus experimentos clínicos, marcada pelo emprego da técnica ativa que mereceu os elogios de Freud, Ferenczi tentara resolver os problemas causados pela adesividade transferencial e pela conseqüente estagnação das análises nos pacientes mais comprometidos através do uso de injunções e proibições, ou seja, da promoção de atos – suscitados pela palavra de ordem emitida pelo analista – que incidiam sobre o corpo e sobre o circuito pulsional dos analisandos (Freud, 1919/1980i). Sua idéia fora a de produzir, com a radicalização até o absurdo do princípio de abstinência, um incremento da angústia que obrigaria o analisando a “trabalhar”, isto é, livre associar e, finalmente, recordar (Ferenczi, 1919/1993). Buscando ser mais freudiano do que o próprio Freud, Ferenczi rapidamente percebera que, desse modo, produzia apenas maior submissão nos analisandos, que logo se adaptavam aos sacrifícios da técnica ativa (Ferenczi, 1926/1993a).

É verdade que os quadros clínicos graves aos quais atendia não configuravam, na sua percepção diagnóstica, neuroses clássicas, o que tendia a comprometer a eficácia da regra fundamental da associação livre. A inspiração para o emprego da técnica ativa adveio da experiência de Freud com o “Homem dos lobos”, na qual Freud estipulara uma data para o término da análise acreditando, assim, produzir um atalho para certas recordações – no caso, a cena primitiva (Freud, 1919/1980h). De fato, em uma conferência pronunciada (não por acaso) no Congresso Psicanalítico Internacional de Budapeste, sob o título “Linhas de progresso na terapia psicanalítica”, Freud (1919/1980i) reconhecera que, diante de certos quadros – notadamente fobias e obsessões graves –, seria necessário uma outra “atividade” por parte do psicanalista, o que preparava o solo político no campo psicanalítico para as inovações que seriam apresentadas por Ferenczi. Mas a experiência se revelou contra-indicada, já que, com o recrudescimento da abstinência e o excesso de interpretações que lhe sucedia, a técnica ativa produzia mais efeitos iatrogênicos do que terapêuticos.

Revendo esse posicionamento em um ensaio posterior, que pode ser considerado um verdadeiro divisor de águas no campo psicanalítico, “Elasticidade da técnica psicanalítica” (1928/1992d), Ferenczi retoma uma formulação importantíssima de Freud, até então não devidamente valorizada: a de que uma interpretação cometida sem tato é não apenas inócua, mas efetivamente patogênica (Freud, 1910/1980l). Justamente, essa categoria sutil – o tato – é resgatada para a criação de um estilo clínico diferenciado. Ferenczi remete o tato, cujo sentido Freud não chegou a aprofundar, à faculdade da empatia (Einfühlung), até então explorada apenas no terreno da investigação estética, e cuja tradução literal seria “sentir dentro”. Mas o fundamental de “Elasticidade da técnica...”, ao contrário do que se poderia precipitadamente inferir, não é a proposta de uma identificação do analista com o analisando, ou mesmo, e mais grave, de uma projeção sobre este de conteúdos psíquicos do próprio psicanalista. O aspecto decisivo apreendido no curso das formulações de Ferenczi, que reside no recurso a essa categoria empregada pelos estetas do século 19 e início do século 20 (cf. Pigman, 1997), é a compreensão do campo transferencial como um plano de compartilhamento afetivo que, através do encontro lúdico, favorece a produção de sentidos para as experiências de cada um dos parceiros da análise. Porém, para se apreender o que está em jogo no estilo clínico assim proposto, é preciso avançar mais lentamente.

Na experiência ferencziana, na medida em que a fixidez da técnica tornava-se mais elástica, os analisados passavam a encontrar condições de expressão afetiva inusitadas, sobretudo pelas manifestações de hostilidade (transferência negativa) agora favorecidas. Segundo Ferenczi (1928/1992d), se o analista se dispuser a ser usado como um “joão-teimoso”,4 e se oferecer como suporte das mais intensas manifestações afetivas previstas pela transferência, será recompensado com o ultrapassamento de muitas das “resistências objetivas” impostas pelo tratamento-padrão.5 Assim, a “inovação” de Ferenczi, segundo sua própria avaliação, foi resgatar, da regra fundamental, a dimensão de liberdade – perdida em grande parte ao longo do processo de institucionalização da psicanálise.

Acompanhando os ensaios clínicos de Ferenczi, a surpresa revelada a partir do emprego da sua “técnica elástica” foi a de que seus analisandos passaram a se permitir sofrer processos regressivos intensos, nos quais as formas de expressão apresentadas se aproximavam das de crianças, tanto em sua dimensão lúdica, quanto em sua dimensão de dor traumática. Pode-se contrapor, claro, que as regressões eram provocadas, e não espontâneas, crítica merecida, posteriormente, também por Winnicott. Mesmo o termo utilizado por Ferenczi para nomear o que ocorria em sua clínica, “neocatarse”, é fértil para provocar equívocos (Ferenczi, 1930/1992e).

No entanto, é preciso contextualizar essas experiências com o que se fazia em nome da psicanálise na década de 20: interpretação do complexo de Édipo, basicamente. A referência de Ferenczi à catarse dos primórdios da psicanálise detém seu sentido maior no resgate da palavra encarnada e encorpada proferida pelas histéricas de então. Se o campo psicanalítico havia erigido, sob o álibi técnico da abstinência e da regularidade do enquadre, uma série de defesas obsessivas para o controle das intensidades na relação transferencial, era preciso re-histericizar a palavra ou, na terminologia de Ferenczi (1933/1992c), “soltar as línguas” novamente no campo psicanalítico. Mas, para isso, o analista precisaria evitar comparecer com seu saber excessivo e traumatizante, ficar quieto novamente, como pedia Frau Emmy Von N. a Freud (Freud, 1893-1895/1980d), e promover um “laissez-faire” ou um relaxamento que pudesse favorecer o encontro através do qual a experiência do inconsciente tem a oportunidade de acontecer (Ferenczi, 1930/1992e). A interpretação excessiva, através do privilégio atribuído ao campo do inteligível, inibia certas manifestações mais regressivas. Coube a Ferenczi o mérito de formular a necessidade do acolhimento do infantil em análise, de maneira que novos sentidos pudessem ser criados pelos analisandos para suas existências severamente comprometidas, sobretudo se considerarmos a configuração subjetiva dos pacientes traumatizados com os quais lidava.

Em “Análises de crianças com adultos”, de 1931, encontra-se uma formulação que revela o principal objetivo do estilo clínico ferencziano: em vez de falar da criança que habita o analisando através do instrumento interpretativo, seria preciso voltar a falar com a criança que se expressa em cada paciente em análise. Mas, para falar com ela, era crucial encontrar uma modalidade clínica para essa comunicação específica, nascendo assim a “análise através do jogo”, inspirada na incipiente psicanálise de crianças que vinha sendo desenvolvida por von Hug-Hellmuth, Melanie Klein e Anna Freud. Além disso, era também necessário que o psicanalista pudesse produzir enunciados adequados ao encontro lúdico que assim se estabelecia nas análises, adotando uma modalidade linguageira própria do infantil, a “linguagem da ternura”, bastante distinta da dos enunciados interpretativos de outrora (Ferenczi, 1933/1992c).

No estilo clínico que assim se constituía, as balizas passavam a ser não mais associação livre, princípio de abstinência e interpretação, porém associação livre, regressão e jogo (ou brincar – Spielen em alemão; to play, no inglês de Winnicott), indicando que a aposta principal do trabalho analítico recaía agora na qualidade do encontro afetivo que se estabelecia na transferência.6 O problema é que, ao se definir o modus operandi da clínica através do encontro sensível entre analista e analisando, passava-se a exigir uma enorme disponibilidade afetiva do psicanalista, bem como uma ampliação dos limites estabelecidos para o campo transferencial. Ferenczi (1928/1992d) formula, então, a “segunda regra fundamental” da psicanálise: a análise do analista, que não se confunde com análise didática institucionalizada.7 Ainda nesse sentido, propõe, no Diário clínico (1932/1990), a expressão da “contratransferência real” – e não de uma “pseudo-contratransferência profissional” asséptica – por parte do analista. Dessa maneira, o psicanalista deixaria de se defender da sua implicação afetiva no espaço analítico – seja controlando de maneira hipócrita “a contratransferência”, seja buscando dela se apropriar imaginariamente para construir uma interpretação –, sem, contudo, abandonar a reserva necessária ao seu ofício (Figueiredo, 2000).

 

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A obra de D. W. Winnicott, construída ao longo das décadas que se sucederam ao desaparecimento de Ferenczi, em 1933, desenvolve e mesmo esclarece muitos aspectos do estilo clínico ferencziano. Suas contribuições mais originais estão, a nosso ver, justamente nos sentidos dados à regressão e ao jogo ao lado da associação livre – como balizas da experiência psicanalítica.

Em relação à regressão, Winnicott enfatiza que, sobretudo no caso dos pacientes severamente traumatizados, a possibilidade de regressão ao estado de dependência característico da relação primordial entre a mãe e o bebê, é condição sine qua non para a instauração de um processo psicanalítico. Essa formulação, que só pode ser compreendida em referência às suas concepções acerca do desenvolvimento emocional primitivo é, no entanto, objeto de sucessivos mal-entendidos, o principal deles o que confunde a direção da clínica por ele praticada e teorizada com uma suposta maternagem benevolente e complacente, na qual a agonística e o ódio não teriam qualquer participação.

Em “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão” (1954/2000a), encontram-se duas importantes indicações que correspondem à ampliação, já visível na época, do espectro de atuação dos psicanalistas, da qual a clínica com crianças era apenas uma vertente (bastante importante, certamente, a ponto de atrair jovens pediatras como Winnicott para a formação psicanalítica): a de que o “processo” psicanalítico não pode ser reduzido a uma técnica-padrão, cabendo a cada analisando, segundo sua singularidade, indicar o “ritmo” e os “rumos” a serem seguidos; e a de que, para cada “categoria” de sofrimento psíquico, o psicanalista é convocado de modo diferenciado.

Assim, se para os analisandos que apresentam uma constituição narcísica integrada, cujas dificuldades residem na gestão dos relacionamentos interpessoais, os princípios estabelecidos por Freud para a prática psicanalítica persistiam adequados; para os analisandos cujo sofrimento se refere especialmente ao “estágio do concernimento” e à aquisição da posição depressiva (recordemos a influência de Melanie Klein sobre a psicanálise da época), o laço transferencial se mostra bem mais delicado, sendo a “sobrevivência do psicanalista” à hostilidade do analisando o elemento privilegiado. Já para a terceira e última categoria descrita por Winnicott – certamente a mais relevante para suas elaborações teórico-clínicas –, a dos analisandos severamente traumatizados, cuja integração egóica se encontra comprometida, a análise deverá lidar com os estágios iniciais do desenvolvimento emocional primitivo, e a ênfase recairá sobre o “manejo”, o “trabalho analítico normal deixado de lado por longos períodos”, entendendo-se por trabalho “normal” aquele fundado no princípio de abstinência e na interpretação do recalcado (idem). Tratar-se-ia, nesses casos, de criar as condições de confiabilidade para que a regressão à dependência seja possibilitada. O “manejo” winnicottiano não equivale, portanto, à concepção freudiana de manejo na neurose de transferência, através do qual o analista busca dosar o quantum ótimo de frustração de maneira a dar prosseguimento à associação livre. Refere-se, ao contrário, à possibilidade de o analista adaptar-se suficientemente bem aos modos de subjetivação do analisando, criando um “contexto analítico” adequado.

É interessante constatar que a teorização da adaptação ativa do ambiente à criança – inaugurada no campo psicanalítico por Ferenczi (1928/1992a), tornando-se a pedra angular da concepção winnicottiana do desenvolvimento emocional primitivo – tem como contrapartida a adaptação do psicanalista ao ritmo e aos rumos do processo de subjetivação do analisando, bem como a adaptação da própria psicanálise às formas de sofrimento psíquico e às demandas de intervenção clínica impostas pelo contexto cultural – como no caso da psicanálise de crianças, e do tratamento de pacientes traumatizados, borderlines e psicóticos, matrizes clínicas que cunharam o pensamento de Ferenczi e de Winnicott. As maiores resistências à análise se encontrariam, nessa leitura, do lado do psicanalista incapaz de se adaptar ao analisando, acolhendo as vicissitudes do seu processo terapêutico.

Na teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 1945/2000), a ênfase recai sobre a importância primordial da adaptação do ambiente às necessidades e ao gesto criativo do bebê, condição para a continuidade da sua existência e a sua conseqüente expansão psíquica. Nesse momento do desenvolvimento humano, há uma efetiva dependência absoluta do bebê à mãe que, através das competências “técnicas” adquiridas pelo estado de sensibilidade exacerbada característico do puerpério, nomeado “preocupação materna primária”, possibilita os cuidados necessários aos processos de integração do ego e de personalização – a experiência psíquica de habitar um corpo unitário. Posteriormente, no momento próximo do desmame, a desadaptação gradual da mãe possibilitará o processo de realização, referente à aquisição do sentido de realidade e da dependência relativa, rumo à independência, que será também sempre relativa.

A modalidade de funcionamento psíquico do período da dependência absoluta caracteriza-se pela “ilusão de onipotência”, isto é, não havendo ainda um efetivo destacamento entre o eu e a alteridade, o bebê teria a experiência de criar o seu próprio ambiente cuidador. O objeto que desse modo se constitui é nomeado por Winnicott “objeto subjetivo” e se encontra sob o controle mágico do bebê. Para fins ilustrativos, o seio da mãe seria, em um primeiro momento, uma criação onipotente do bebê, parte de si mesmo, e não um objeto autônomo. Para Winnicott (1951/2000e), a experiência de onipotência é a base da integração do self, sobre a qual poderão ocorrer as futuras experiências da desilusão – gradualmente proporcionadas pela mãe, segundo o ritmo do bebê –, do desmame e da aquisição do sentido de realidade.

A desilusão da onipotência não implica o fim das experiências de ilusão. O bebê que teve a oportunidade de viver a ilusão de onipotência pode, doravante, constituir nas relações com o mundo um espaço de ilusão através do qual a experiência da criatividade terá continuidade. Com o início da distinção entre o eu e a alteridade, preserva-se uma terceira área da experiência – nem mundo interno, nem mundo externo –, o espaço transicional, no qual a experiência do viver criativo poderá ser exercida, seja na forma do brincar solitário e do brincar compartilhado, seja na forma da experiência cultural propriamente dita – arte, religião, invenção...

Uma falha desastrosa do ambiente no momento da dependência absoluta provocada pelo abandono ou pela intrusão perturbadora do gesto espontâneo, caracteriza uma ruptura na continuidade do ser e a incidência do trauma, ao qual o bebê reage defensivamente. A reação defensiva – ao contrário das reações espontâneas às falhas ambientais suportáveis nas formas da queixa ou mesmo da raiva – está na origem de toda a psicopatologia winnicottiana – neurose, psicose ou dissociação egóica –, e expressa o assujeitamento aos imperativos de um ambiente precário ou hostil (Winnicott, 1952/2000f). O bebê que precisa estar atento demais ao ambiente termina, em busca de controle, mimetizando os adultos à sua volta e constituindo um falso self protetor com base na submissão – o que Ferenczi (1933/1992c), por sua vez, nomeara “progressão traumática” –, comprometendo seu viver criativo e acarretando o sentimento de “inutilidade” ou de “irrealidade” sobre o qual a clínica quer intervir.

Nesse sentido, a regressão em análise seria justamente a contrapartida clínica de uma progressão traumática defensiva. Seria preciso promover um retorno à “situação bem-sucedida original do narcisismo primário”, permitindo o “descongelamento” dos pontos do desenvolvimento emocional, nos quais o analisando ficou fixado em função da falha do ambiente, dando origem a um “novo início”, agora afinado ao seu gesto criativo, bem como à sua agressividade primária, incapaz de expressão na ocasião do trauma (Winnicott, 1954/2000a, p. 384). Finalmente, com a retomada do desenvolvimento emocional e da sua constituição egóica, o analisando pode experimentar, muitas vezes pela primeira vez, tanto a alegria do viver criativo, quanto o ódio e a raiva referente à situação da falha na adaptação ambiental originária. Para Winnicott, a expressão da raiva é fundamental para a continuidade do amadurecimento do analisando em direção à sua independência do analista (Winnicott, 1954/2000a; 1955-1956/2000c).

Em Formas clínicas da transferência, Winnicott aponta alguns problemas suscitados pela clínica com pacientes traumatizados referentes à concepção freudiana de neurose de transferência. Se a neurose de transferência se caracteriza pela atualização do inconsciente, isto é, “o passado vem ao consultório”, na situação de regressão à dependência seria mais adequado dizer que “o presente retorna ao passado, e é o passado” (1955-1956, p. 396). A qualidade do encontro promovido pela constituição do contexto ambiente-indivíduo remete, efetivamente, à dupla dependência do par amamentante. Justamente por isso, nesses casos, a experiência da raiva do analisando seria “objetiva”, dirigida às falhas do analista, não podendo ser caracterizada como a transferência negativa da análise dos neuróticos, na maior parte das vezes associada por Freud às resistências à análise.

Dessa maneira, a concepção de regressão à dependência deve ser entendida como a possibilidade de o analisando vivenciar, no seu encontro com o psicanalista hospitaleiro, experiências afetivas compartilhadas que despertem ou promovam impulsos de vitalidade, livrando-o da compulsão a reagir defensivamente e da submissão aos imperativos ditados pela tirania do outro.8 Porém, esse plano de afetação é habitado não apenas por uma dimensão primeva do amor incondicional maternal, mas também pela possibilidade de expressão do ódio, condição para a constituição da sua singularidade e para o amor do concernimento. Para Winnicott (assim como para Ferenczi, como vimos), a autenticidade do encontro clínico é determinada pela qualidade da presença sensível do psicanalista, sendo que o analisando não poderá confiar em alguém incapaz de discernir e admitir a sua própria ambivalência e o ódio na contratransferência. “Quando o paciente está à procura de um ódio legítimo, objetivo, ele deve ter a possibilidade de encontrá-lo, caso contrário não se sentirá capaz de alcançar o amor objetivo”, escreve Winnicott (1947/2000d, p. 283).

Em seu processo de realização e gradual aquisição de independência, o bebê precisa “destruir” seus objetos subjetivos, de modo a colocá-los fora do seu controle onipotente, adquirindo, assim, a capacidade de “uso” dos objetos no espaço da realidade compartilhada. Porém, a destruição do objeto subjetivo por parte do bebê tem como condições necessárias a capacidade de sobrevivência da mãe, sem retaliação. A negação do ódio por parte do adulto denota uma inibição do seu próprio gesto espontâneo, quando não a instauração de um masoquismo empobrecedor do seu viver criativo, o que compromete sua capacidade de sobrevivência aos ataques da criança. Nesse sentido, Winnicott (1947/2000d p. 287) afirma categoricamente que o “sentimentalismo” não tem nenhuma utilidade para os pais, já que consiste em uma recusa afetiva, sendo prejudicial para a criança, que se encontra incapaz, em um ambiente sentimental, de admitir a intensidade do seu ódio. Do mesmo modo, o analisando só pode tolerar o ódio pelo analista se a sua sensibilidade indicar que o analista suporta odiá-lo e sobrevive aos seus ataques, sem a necessidade de retaliação.9

Assim, no capítulo de O brincar e a realidade, intitulado “O uso de um objeto e relacionamento através de identificações” (Winnicott, 1971/1975), encontra-se a idéia de que, no curso do processo analítico, o psicanalista comparece tanto como presença sensível quanto como alteridade radical, a experiência transferencial configurando um espaço de compartilhamento afetivo no qual a criação é possibilitada. Primeiramente, deve-se proporcionar ao analisando traumatizado a regressão à dependência e a relação de objeto, esta última equivalente à concepção tradicional de relação transferencial – projeção dos afetos do analisando atualizados sobre a figura do analista. Porém, com o ganho de independência do analisando e a percepção de que o psicanalista se encontra fora da área do seu controle onipotente, há uma passagem da capacidade de relacionar-se com o objeto para a capacidade de uso de um objeto com o qual se pode brincar e, brincando, produzir sentidos compartilhados inéditos para a experiência de si e do campo de objetalidade. Lemos em Winnicott (1971/1975, p. 123): “...o objeto, se é que tem que ser usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada, e não um feixe de projeções”.

A experiência da transferência em Winnicott configura, assim, um arriscado desafio, sem dúvida, no qual é preciso poder odiar e se deixar odiar/destruir, sobrevivendo a esse movimento emancipatório do analisando, sem abandono nem retaliação. O desafio consiste em poder desapegar-se dos sentidos de si já constituídos para habitar junto com o analisando a “terceira área da experimentação” que faz, do encontro afetivo, criação (Winnicott, 1951/2000e). Não se trata, portanto, como se poderia supor, somente de ocupar, na relação transferencial, um lugar específico segundo as imagos inconscientes atualizadas do analisando – no caso, de assumir privilegiadamente uma postura materna, em oposição ao que seria uma suposta postura paterna freudiana –, mas de poder fazer contato com a criança que habita também o psicanalista, promovendo o encontro lúdico e criativo inerente à concepção da análise através do brincar.10 “Dessa maneira”, descreve Winnicott (1971/1975, p.131), “...cria-se um mundo de realidade compartilhada que o sujeito pode usar e que pode retroalimentar a substância diferente-de-mim dentro do sujeito”.

É justamente o encontro com a alteridade que está no horizonte do enigma que cerca os destinos da transferência no final da análise. De fato, na concepção winnicottiana, a dupla dependência do par mãe-bebê não tem como destino uma suposta independência absoluta – que poderia sugerir uma cultura de narcisos suficientes e isolados, para os quais o outro não é mais objeto de concernimento. Ao contrário, o que se coloca em jogo na aventura psicanalítica é a dissolução da ambição de um ego autônomo e bem-acabado – o mito individual do neurótico –, para dar lugar ao self capaz da experiência da não-integração criadora e da capacidade para ficar só na presença do outro, condição para a amizade e matriz da própria experiência cultural (Winnicott, 1958/1983a).

Há, na concepção winnicottiana da constituição subjetiva, a formulação de um núcleo do self ou self central – considerado o self verdadeiro – que é essencialmente secreto e incomunicável, ao qual o sujeito recorre permanentemente, sobretudo nos estados de relaxamento e de não-integração, de modo a preservar a autenticidade do seu gesto no curso do árduo trabalho imposto pelo contato com a alteridade (Winnicott, 1963/1983b). O trânsito com o núcleo do self é facilitado, no desenvolvimento psíquico do bebê, pela aquisição da capacidade de ficar só, promovida pela presença de um outro acolhedor e não intrusivo. O retraimento defensivo ou a constituição de graus extremados de falso self revelam, por seu turno, tentativas de proteger o núcleo do self, evitando a comunicação com o que é não-eu. Na experiência transferencial, são muito valorizados, portanto, os momentos silenciosos de comunicação indireta (não-verbal) ou mesmo de não-comunicação, nos quais o analisando, podendo livrar-se do retraimento, tem a oportunidade de estar em contato com seu verdadeiro self na presença sensível do analista.11

Curioso paradoxo: assim como “...não é possível a um bebê existir sozinho” (Winnicott, 1945/2000b), não é possível a um analisando criar no isolamento defensivo que constitui a fonte do seu sofrimento; entretanto, o percurso analítico indica que, no horizonte do encontro afetivo que ocorre entre analista e analisando está a possibilidade de experimentação da solidão compartilhada, fonte do gesto criador. É a aquisição da capacidade para estar só que permitirá ao analisando se manter vivo, bem e desperto: objetivos do processo psicanalítico (Winnicott, 1962/1983c).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniel Kupermann
R. Carlos Millan, 22/51
01456-030 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3034-4986
E-mail: dkupermann@usp.br

Recebido em: 03/08/2008
Aceito em: 12/09/2008

 

 

* Professor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista membro da Formação Freudiana. Autor dos livros Transferências cruzadas. Uma história da psicanálise e suas instituições (Revan) e Ousar rir. Humor, criação e psicanálise (Civilização Brasileira).
1 A versão oficiosa desse episódio nos conta que Breuer teria fugido dessa atribuição de paternidade, agendando uma segunda lua-de-mel com a esposa. Nessa viagem, teria concebido sua filha Dora (Forrester, 1990, p. 50).
2 Remeto o leitor ao artigo de Jacques-Alain Miller, “A transferência de Freud a Lacan” (Miller, 2002). Apesar de não acompanharmos o argumento do autor – que pretende que as dificuldades de definição da transferência terminaram desde a formulação, por Lacan, do “sujeito suposto saber” como transfenômeno ou pivô em torno do qual os fenômenos da transferência girariam –, contrário aos objetivos do nosso ensaio, suas indicações são valiosas para acompanharmos algumas das dificuldades encontradas por Freud, expostas a seguir.
3 Atualmente, nem as analisandas parecem ser tão histéricas, nem os analistas são, em sua maioria, homens.
4 Ou “joão-bobo”, o boneco que oscila de um lado ao outro ao ser empurrado, mas que, pelo fato de não perder o eixo, não tomba definitivamente, retornando sempre à posição vertical.
5 Convém notar, mesmo sem desenvolver a questão no espaço deste ensaio, que essas contribuições são herdeiras de uma polêmica entre Freud e Ferenczi acerca da transferência negativa que data do período em que Ferenczi foi analisado por Freud, nos anos de 1914 e 1916. Em uma carta tardia, Ferenczi acusara Freud de não ter dado a devida atenção à sua transferência negativa, ao que Freud respondeu em Análise terminável e interminável (1937/1980b), argumentando que na época da análise não havia sinais dessa transferência negativa... (Kupermann, 2003, cap. 5).
6 Tendência presente em sua obra, ainda que em estado latente, desde o pioneiro “Transferência e introjeção” (Ferenczi, 1909/1991).
7 Problemática herdada por Jacques Lacan (1968/2003), que a tornou o principal desafio ético da sua Escola, nos anos 60: responder acerca dos destinos da transferência no final da análise dos próprios psicanalistas – tarefa que constituiu o procedimento nomeado como “passe”.
8 No belo ensaio “O anjo necessário: a idealização como um desenvolvimento”, Anne Alvarez (1994) ilustra através do relato de um caso clínico o modo pelo qual a regressão à dependência e a experiência da ilusão de onipotência na transferência pode favorecer a constituição das instâncias narcísicas ideais em um analisando traumatizado.
9 Ao longo da história da psicanálise, encontramos inúmeros exemplos nos quais essa situação deixa de se configurar, especialmente no que concerne ao par transferência-contratransferência nas análises didáticas, institucionalizadas ou não (Kupermann, 1996).
10 Sándor Ferenczi, em seu Diário clínico, já havia indicado que em muitas ocasiões se tem a impressão de que o espaço analítico é habitado por duas crianças – o analisando e seu analista – que compartilham o mesmo estado de desamparo, ligam-se entre si e estabelecem vínculos de amizade. Sua indagação: “Deve a análise acabar sob o signo de tal amizade?” (Ferenczi, 1932/1990, p. 91).
11 Na clínica com adolescentes, em especial, o analista é convocado em sua sensibilidade para a necessidade de não-comunicação ou de comunicação indireta (Winnicott, 1963/1983b). Sobre a solidão positiva, ver também Chaim Samuel Katz (1996).

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