SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 número75Presença sensível: a experiência da transferência em Freud, Ferenczi e WinnicottO caso Margaret Little: Winnicott e as bordas da psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.75 São Paulo dez. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Transferência: lugar de impermanência

 

Transference: place of impermanence

 

Transferencia: lugar de instabilidad

 

 

Ludmila Kloczak*

Membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto busca mostrar que o trabalho de recuperar memórias traumáticas por meio da escrita encontra na transferência a condição que possibilita a entrada no campo traumático – seja ele uma cena histórica, individual ou coletiva –, romper as regras que o sustentam e descobrir os sentidos ocultos encobertos pelas representações cristalizadas.

Palavras-chave: Campo transferencial, Trauma histórico, Escrita transferencial, Ucrânia.


ABSTRACT

This essay try to show how the work of reclaim traumatic memories through the writing has in transference the condition and the possibility to go through the traumatic field, let it be a historical, individual or communitarian stage, to disrupt the rules which sustain it and find the hidden meanings covered by the crystallized representations.

Keywords: Transferencial field, Historical trauma, Transferencial writing, Ukraine.


RESUMEN

El texto intenta mostrar que el trabajo de recuperar los recuerdos traumáticos a través de la escrita tiene en la transferencia la condición de posibilidad de penetrar el campo traumático, sea una escena histórica, individual o colectiva, romper las reglas que lo sostiene e descubrir los sentidos ocultos cubiertos por las representaciones cristalizadas.

Palabras clave: Campo transferencial, Trauma histórico, Escrita transferencial, Ucrania.


 

 

É estranha a tarefa de refletir sobre um trabalho realizado pelo próprio autor. Sei que estive mergulhada no campo transferencial da primeira à última linha do que escrevi em minha tese de doutoramento. Teorizar sobre o significado desse processo, procurando extrair dele elementos que permitam dizer o que fiz, me desconcerta.

Creio que, se conseguir aproximar transferência e interpretação ao contexto no qual se deu todo o processo – que tal análise dedicou-se a mirar fatos histórico-políticos presentes numa história pessoal, familiar e, por extensão, de um país –, talvez consiga entender um pouco mais das questões envolvidas numa história traumática e dos avatares envolvidos na sua ressignificação.

Deparamo-nos às vezes com experiências humanas que nos espantam pela sua dimensão catastrófica. Nem conseguimos conceber como é que indivíduos submetidos a tais provações, após sua vigência, retomam suas vidas, incorporam as costumeiras atividades cotidianas, deixando para trás o impacto de uma vivência-limite, um quase nada de sobrevivência.

Exercer a ação analítica, neste caso, escrever tendo em vista o plano da experiência traumática vivida e recalcada, e o plano da construção do que foi esquecido, a partir dos indícios evocados pela rememoração, implica postar-se à espera e à escuta do que escapa ao esquecimento e insiste em retornar.

Escrever é recuperar numa corrente, na linha do tempo, os laços entre os vivos e seus mortos e, ao realizá-lo, restabelecer a dignidade na morte (Green, 2002). Só os filhos, os descendentes, podem se ocupar desta tarefa transgeracional: cabe-lhes a honra e o dever de sepultar os corpos de seus genitores, como destaca Zygouris (1995), ao anotar que, pela ordem natural da vida, podemos perder os pais e vir a ser órfãos, porém a linguagem não contempla um termo que designe pais que perderam seus filhos.

Ao decidir entender a história dos meus pais, cuja matéria parecia tecida de muita tristeza, incompreensão, dor e saudade, não tinha notícia ainda - só a alcanço agora, quando me detenho a examinar as operações que me ajudaram a levar a cabo essa empreitada – de que me transformava numa esteira pela qual se trasladariam fortes vivências acumuladas ao longo do tempo, cujos afetos não me pertenciam na origem, mas incorporaram-se a mim por identificação com a história familiar. Ao escrever, pude perceber e percorrer um longo e elaborado trajeto associativo, que envolveu elementos transgeracionais e históricos, ecoados por esses afetos.

Deparo-me, inicialmente, com um conceito de transferência como algo que é trasladado, que não se realiza em alguma suposta situação originária e busca se realizar de modo substitutivo (Olivé, 1991). Posso considerar que o que me levou a participar desse jogo incessante de deslocamentos associativos, provocados por um simples toque nos elementos que compunham esta complexa história, foi esse não-realizado que me capturara em busca de uma resolução.

O originário-em-mim encontra-se numa longa história, sempre repetida pelos meus pais, cujo centro é o holodomor, que significa a tortura e a morte pela fome, na Ucrânia, entre os anos 1930-33. Correlacionado à coletivização forçada, o objetivo não declarado, mas cruelmente perseguido, seria deixar à míngua a população, com a destruição da força moral nacional ucraniana, representada pelos camponeses.

Por ocasião desses acontecimentos, a Ucrânia era conhecida como o “celeiro da Europa” pela qualidade de suas terras negras, tchornozem, e pela elevada produção de grãos. A implementação forçada das fazendas coletivas traria o controle total das aldeias, pois seria criada uma nova forma administrativa, centralizada no partido comunista. No início, houve protestos, revoltas, visto que nem os camponeses, nem os proprietários rurais pretendiam entregar, de bom grado, seus haveres ao governo e se transformarem em empregados das fazendas coletivas. Não tardou para que estes percebessem que seriam impotentes contra a máquina estatal e seu sistema de comissões e brigadas, lideradas por propagandistas, agitadores e espiões especialmente treinados para garantir que o propósito governamental fosse cumprido, os quais passaram a controlar todas as esferas da vida local. A distribuição de víveres passou a ser controlada; cotas de grãos seriam distribuídas com base em critérios de produção individual, impossíveis de serem atingidos; foi criado um sistema de passaportes para controlar a circulação dos aldeões, de modo que não saíssem de suas aldeias em busca de ajuda, nem invadissem as cidades. Essa estratégia de dominação estendeu-se do início do inverno de 1929 até o inverno de 1932-33, quando o objetivo foi alcançado. Como resultado, a população ficou depauperada; episódios de canibalismo foram registrados; as pessoas aguardavam a morte como libertação, outras se suicidavam. (O sinal de morte iminente era indicado pela concentração de piolhos nas áreas do canto dos olhos e da boca.) Os vivos já não conseguiam sepultar os seus mortos, que se espalhavam pelas casas e pelas ruas. Aqueles que morriam nos bosques eram devorados pelos poucos animais selvagens que ainda restavam. Com o degelo, na primavera de 1933, os sobreviventes se depararam com um problema a mais: os cadáveres descongelados jaziam putrefatos, e ninguém do governo se apressava em sepultá-los.

Quando a fome de 1930 a 1933 acabou, as aldeias ucranianas belas como pêssankas,1 na inspirada imagem do maior poeta ucraniano, Taras Chevtchenko, quedaram vazias: casas abandonadas, vidas destroçadas, a espinha dorsal do campesinato quebrada. Na primavera de 1933, metade da aldeia onde vivia minha mãe, criança de 10 anos, estava vazia: parte da população morrera de fome e outra fora deportada. Daí em diante, o silêncio, a submissão, a impotência ocuparam as mentes.

O vivido pelos meus pais, o holodomor, a coletivização forçada, a desarticulação e destruição da classe camponesa – esteio da cultura ucraniana –, a doutrinação ideológica, de modo a criar a crença de que o horror foi um bem, um ato necessário para a eliminação dos ‘inimigos do povo’ e, mais tarde, a eclosão da Segunda Guerra Mundial, da qual participaram na Ucrânia e na Alemanha, transforma-os em personagens dos eventos mais importantes do século 20, ‘extras’ anônimos na multidão que participara do cenário épico em que se transformara a história.

Na sessão analítica, a transferência surge de uma forte vivência atual centrada na pessoa do analista que está à disposição, à espera da recriação das vivências emocionais de que é portador aquele paciente em particular, para poder adentrar as brechas que essa súbita consciência afetiva deixa à mostra. O que nos lembra que a transferência deve ser pensada como uma ‘falsa’ ligação, na medida em que atualiza na representação do analista afetos que vêm do passado, de representações penosas reprimidas (Mezan, 1991). No trabalho de recuperar memórias e elaborá-las através do ato de analisar por escrito, a ligação estabelecida é a de atualizar e reeditar uma história na escrita, história constituída de memórias que se recusam ao esquecimento. Ao submeter-se a buscar palavras que possibilitem narrar sua história, o sujeito transfere os desejos, as lembranças e as fantasias que constituem um viver sintomático. Assim, a coragem de se referir às humilhações sofridas remete à pesada carga de vergonha de si, vergonha ante a impossibilidade de reagir, mais do que ao próprio fato gerador da humilhação. A sensação de que nada poderia ser feito, ou a auto-acusação de que se foi medroso e covarde têm um efeito abrumador sobre a vida do sujeito. Nessa qualidade da transferência, sustenta-se a condição de possibilidade de reviver experiências traumáticas recalcadas como se estivessem acontecendo pela primeira vez.

Não fosse tal qualidade, o que poderíamos fazer quando, apesar das evidências da ocorrência do evento traumático, apesar da intrusão de imagens e pensamentos nos sonhos ou em momentos particulares da vida de alguém, apesar de certo prazer mórbido em repetir e repetir os acontecimentos vividos, percebe-se que as experiências narradas parecem não fazer parte exatamente da vida daquele sujeito? Não deixa de ser curiosa essa impressão, essa espécie de duplicação da existência. É um relato que não se incorpora na corrente geral da vida. Ao contrário, a intensidade da sua manifestação aparentemente bizarra, por vezes, parece registrar a força de uma experiência que ainda não faz parte da vida do sujeito. Sua manifestação tardia revela uma espécie de possessão do passado (Caruth, 1995, citado por Kloczak, 2002). Estar traumatizado é ser possuído por imagens ou eventos que retornam à revelia da vontade do sujeito o qual habitam. O que chama a atenção é a natureza literal e não simbólica dos sonhos e recordações traumáticas que, aliados à persistência em retornar, constituem o trauma e revelam seu cerne enigmático: o adiamento ou a incompletude em saber, ou mesmo em ver uma ocorrência esmagadora que permanece, em seu insistente retorno absolutamente verdadeira ao evento (Caruth, citado por Kloczak, 2002).

Conforme observações de Donabedian (1998, citado por Kloczak, 2002), às vezes, essa dissociação que parece revelar duas experiências independentes em dois sujeitos distintos, pode ser apresentada numa narrativa descritiva e num tom desafetivo, de modo que os eventos dolorosos e traumáticos são depositados à margem do funcionamento mental. A relação da realidade externa com o sujeito, o eu, se constrói com o intuito de conduzir a vida, evitando os movimentos pulsionais.

O fundamental a reter da noção de trauma está na intrigante definição de Freud quando, ao procurar entender a história do povo judaico e, por extensão, a história humana, introduz uma imagem algo insólita no contexto, mas crucial para esclarecer o vínculo entre a experiência traumática e seus efeitos deslocados no tempo. Utilizando-se do exemplo de um acidente, destaca o ato de deixar o local do sinistro aparentemente incólume, como o traço que submerge, praticamente desaparecendo no inconsciente, e aquele que, após um período de latência, ressurge noutro tempo, noutra circunstância, travestido num disfarce irreconhecível, faz reviver e manter o impacto da experiência original (Freud, 1939/1975b).

Trauma, traço mnemônico, cujo lapso de esquecimento é condição para seu reaparecimento, é a sua verdadeira existência que permite escrever a história. Deixa-se o lugar do evento traumático sem registro cognitivo e os rastros lacunares instigam seu reconhecimento. Em outros termos, cabe lembrar que o trauma é experimentado pelo sujeito como uma radical dissociação entre o registro traumático e sua eventual cognição (Newmark, s.d., citado por Kloczak, 2002). Ou, ainda, seguindo as palavras do mestre, sonhar e recordar imagens traumáticas representa um esforço do aparelho mental em dominar a experiência traumática retrospectivamente, desenvolvendo a ansiedade cuja omissão constitui a causa da neurose traumática. Obedecendo a compulsão à repetição, o sujeito tenta, sem sucesso, conjurar o que foi esquecido e reprimido (Freud, 1920/1976, p. 47).

Essas vivências lacunares – a dissociação entre o registro traumático e sua cognição – apontam para outra característica da transferência fundamental para a realização de um trabalho dessa natureza. Não estamos mais no campo da recordação propriamente dita, mas da repetição: o que não se inscreve no aparelho mental, insiste em se reapresentar. Portanto, a transferência se inscreve numa dialética entre a repetição de fragmentos de um passado, que nunca transitou pela consciência, e a recordação de algo que já foi consciente, porém quedou-se esquecido no passado (Freud, 1914/1975b; Mezan, 1991).

Nessa direção, Dayan (s.d.) (citado por Mezan, 1991, p. 68) afirma que “...a transferência terá pouco a ver com o ‘recordado’ ou com o ‘recordável’, porém muito a ver com o ‘repetível’”. Repete-se o infantil, que é a parte da vida psíquica separada do restante, em virtude da intensidade traumática de que é portadora. Repete-se na transferência uma história de acontecimentos traumáticos transformados de modo a anunciar e a resistir, a manter vivos os traços das impressões que os constituíram. A análise não recuperará os fatos: através da repetição transferencial, buscará os sentidos possíveis naquela história. Não tomo o termo ‘impressão’ no seu sentido sensorial e psicológico, mas, apoiada em Dayan (citado por Mezan, 1991, p. 71), destaco seu estatuto metapsicológico, ao lembrar o sentido gráfico “...de algo que se imprime sobre uma superfície” viva e cujo processo depende da atividade pulsional.

É a essa noção que me refiro ao descortinar impressões perturbadoras no interjogo que se produz da evocação da memória de vivências que só me pertencem por identificação. Eu as ‘vivi’ enquanto testemunha de uma história contada sem fim.

Toda história pode ser banalizada: só não o é o sofrimento dela decorrente. Propor-me a confrontar os diversos ângulos dessa história, do entrechoque deve advir o que faz sofrer. Certa vez, ao deparar-me com alguém na clínica, cuja vivência depressiva entorpecente a levava a sentir que o dia é uma dimensão da vida, que exige esforço para penetrar e lá permanecer, enquanto a noite, a cama e o pesado sono eram o seu mundo, do qual não conseguia sair, fez-me entender que a noite do trauma – por paradoxal que possa parecer – é confortável a quem nela submerge. Oferece algo que permite ao indivíduo saber de si dentro de uma identidade específica, a da ferida que não cura. Ao dia é reservada a estranheza, o não pertencer. Talvez esta seja a melhor descrição para a sobrevivência emocional: ao estado de sono noturno que me faz único com a dor que carrego, sucede-se o dia ao qual não pertenço inteiramente, pois não partilho com os outros seres diurnos a semelhança que os une.

Ao me dispor a falar e a ouvir as diversas versões sobre a história ucraniana – história esta que compartilha com o destino de outros povos, que, na maior parte de sua existência, foram invadidos e dominados –, levei algum tempo para me acordar da minha imprevidência e imprudência em pretender que essa tarefa pudesse me deixar ao largo das emoções que emanam de experiências silenciadas, mas presentes e ativas no fio cristalizado da existência histórica. O trauma não é um objeto cuja expressão horrenda nos coloca de sobreaviso e na defensiva. Não é possível proteger-se dele, pois subjaz escondido na história relatada como uma impressão indelével. Sua emergência traumatiza o leitor ou o ouvinte que pretenda registrar e compreender o que tem lugar nos textos narrados. Só é acessível pela via indireta da leitura e interpretação, e sempre representa um risco para o desavisado leitor que acredita ser incólume aos seus efeitos (Newmark, s.d., citado por Kloczak, 2002).

A matéria da qual se constituía a história das minhas origens era inassimilável a qualquer discurso lógico disponível. Logo me apercebi que não possuía uma teoria a priori que me subsidiasse na interpretação do que via, vivia e ouvia. Aliás, matéria viva que era, interpôs resistência, provocando em mim o efeito do mesmo mal de que pretendia tratar interpretando. Nos inícios da pesquisa, uma quase letargia tomou conta do meu corpo e da minha mente, remetendo-me a um sonho que tivera e que sugeria a morte da língua. Não se tratava de uma dificuldade real, era apenas encobridora de algo mais amplo, de uma impossibilidade de falar. A interlocução era impossível. Não havia um outro a quem me dirigir, não havia em mim o recurso a falar. O trabalho assujeitou-se a mim, que só podia tratar dele silenciando.

Ao escrever, pude perceber que me posicionava num vértice de uma história que me convocava como testemunha e também como personagem. Ou me valia da narrativa, no sentido forte de instrumento de transformação de uma realidade que aprisionava, ou sucumbia à compulsão à repetição e renunciava ao que me pediam meus ancestrais, buscar sentidos ao destino atroz que lhes coubera. Transferência, então, seria a condição de possibilidade de me posicionar dentro desse campo traumático, de tal modo que pudesse fazer circular outros sentidos e, assim, quem sabe, aliviar a carga de afetos e representações de que o mesmo era constituído. A operação que permitiria esta intervenção seria a de situar-me em relação a um campo, como ensina Herrmann (2007). Ou seja, estabelecer uma relação com as representações e com tudo o que poderia ser conhecido, materiais disponíveis – relatos de viagem, depoimentos, leituras teóricas, literárias, históricas –, cujo contato seria intensificado pela disposição em me deixar afetar transferencialmente pelo que emana do campo que é inconsciente e sustentado por regras ocultas que precisam ser rompidas para dar vazão a novas e insuspeitas representações. Herrmann (p. 70) assinala que “...manejando com arte a relação analítica é possível romper a estrutura do campo, do campo emocional de cada situação terapêutica”, o qual pode vir a ser tanto uma cena histórica, individual ou coletiva: “...campos sendo tanto as grandes repartições da alma, quanto os fenômenos microscópicos do dia-a-dia”. Só levando tudo isso em conta, estaria em condições de interpretar.

Narrar interpretando não significa, como já pudemos perceber, explicar as razões da ocorrência dos fatos. O que se espera é uma abertura para o inesperado que em cada ouvinte possa suscitar. O relato é tecido ao gosto e com as intenções do narrador impregnado da vivência transferencial suscitada por determinado campo emocional, de tal modo que esse encontro guarda peculiaridades impossíveis de se repetir em outra situação.

Ao interpretar, procurava realizar uma leitura desconstrutiva do material, buscando, nas reentrâncias e na textura que se anunciava, vias de romper o campo de representações cristalizadas e possibilitar o surgimento de “...certa pluralidade de identificações” (Taffarel, 2007, p. 171).

Minha posição no relato não era aleatória. Aguçava minha escuta para não deixar escapar o que pudesse produzir efeitos disruptivos, provocar estranheza e, ao emergir, desmontar a história contada (Figueiredo, 1998, citado por Kloczak, 2002). Ou, por outra, sustentando-me numa modalidade transferencial própria da situação analítica, poderia descobrir os sentidos ocultos de uma história que só se dava a conhecer pela via indireta. A intensa vivência dos afetos me faz lembrar o que dizia Herrmann (2001, p. 99) a respeito da neurose de transferência: “Que é a neurose de transferência senão o trânsito da história do paciente pelo espaço ficcional que a situação analítica lhe oferece?”.

A aproximação ficcional propicia uma abertura ao passado, revela as ausências e transforma a narrativa numa criação. Dessa fertilidade se nutre a narrativa: não se explica, desperta e envolve o leitor na tarefa de concluir o que jamais se conclui.

Este reencontro ficcional com a história que me pertence por herança, levou-me a reconhecer que Ucrânia é um lugar de impermanência, que me lança para fora e para longe, em busca da oportunidade de refazer o caminho, de retornar a uma casa natal que serviu de invólucro para a gestação de um eu. Auxiliou-me a verificar que esta pertença a dois lugares – brasileira por nascimento, ucraniana por identificação com as lembranças dos meus pais – não me força a separar um do outro, nem a escolher um em detrimento do outro. Posso entender um e outro; não recusar as partes de um e de outro. Representa, enfim, “...um movimento de identificação comigo mesma” (Berry, 1987/1991, citado por Kloczak, 2002).

Para encerrar, gostaria de sugerir uma pequena síntese (ou será nova ruptura de campo?), com uma estrofe do poema Finale. Counterpoint, da poeta ucraniana contemporânea Oksana Zabushko:

Oh, Tango Milonga! Como é triste esta história.
Foi preservado da juventude de nossos pais somente o som,
E o fato de termos sobrevivido é tão acidental
Quanto você despedaçar sua cabeça nas calçadas de Kiev.

 

Referências

Freud, S. (1975a). Moisés e o monoteísmo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 23, pp. 13-161). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1939.)        [ Links ]

Freud, S. (1975b). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 12, pp. 191-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914.)        [ Links ]

Freud, S. (1976). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 28, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920.)        [ Links ]

Green, A. (2002). La diacronia en psicoanálisis [La diachronie en psychanalyse]. Buenos Aires: Amorrortu.        [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Herrmann, F. (2007). Teoria dos Campos: uma pequena história. Jornal de Psicanálise, 40(73), 69-74.        [ Links ]

Kloczak, L. (2002). Ucrânia: tempo de reinscrever lembranças. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

Mezan, R. (1991). A transferência em Freud: apontamentos para um debate. In A. Slavutzky (Org.), Transferências (pp. 47-77). São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Olivé, C. (1991). A transferência: um conceito fundamental. In A. Slavutzky (Org.), Transferências (pp. 79-94). São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Taffarel, M. (2007). Relação entre teoria e prática: a questão da interpretação. Jornal de Psicanálise, 40(73), 169-178.        [ Links ]

Zygouris, R. (1995). Ah! As belas lições! (Caterina Koltai, trad.). São Paulo: Escuta.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ludmila Kloczak
R. Olinda, 325 – Lago Parque
86010-050 Londrina, PR
Tel.: (43) 3324-4800
E-mail: sludmila@sercomtel.com.br

Recebido em: 30/11/2008
Aceito em: 20/12/2008

 

 

* Membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da SBPSP.
1 Ovos pascais decorados. (N. do E.).

Creative Commons License