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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O caso Margaret Little: Winnicott e as bordas da psicanálise1

 

The case of Margaret Little: Winnicott and the borders of psychoanalysis

 

El caso de Margaret Little: Winnicott y los bordes del psicoanálisis

 

 

Alfredo Naffah Neto*

Professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no programa de estudos pós-graduados em Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta e discute a análise de Margaret Little com Donald Winnicott, tal qual ela a descreveu, bem como um resumo de suas duas análises anteriores, ambas malsucedidas. A partir dos procedimentos clínicos adotados por Winnicott, o autor reflete sobre mudanças na técnica psicanalítica clássica no tratamento de pacientes psicóticos e borderlines.

Palavras-chave: Little, Winnicott, Técnica psicanalítica clássica, Psicoses.


ABSTRACT

This article presents and discusses the analysis of Margaret Little with D. Winnicott, as she describes it. It also presents a resume of Little’s two previous analysis, both of them unsuccessful. Then, based on the clinical procedures adopted by Winnicott, it reflects on the changes of psychoanalytical classic technic in the treatment of psychotic and borderline patients.

Keywords: Little, Winnicott, Psychoanalytical classic technic, Psychosis.


RESUMEN

Este artículo presenta y discute el análisis de Margaret Little con D. Winnicott, tal cual ella la describe. También presenta un resumen de las sus dos análisis anteriores, una y otra sin suceso. Entonces, basado en los procedimientos clínicos adoptados por Winnicott, refleja sobre las mudanzas de la técnica psicoanalítica clásica en el tratamiento de pacientes psicóticos y borderlines.

Palabras clave: Little, Winnicott, Técnica psicoanalítica clásica, Psicosis.


 

 

Margaret I. Little ficou conhecida internacionalmente não só como eminente psicanalista da Sociedade Britânica de Psicanálise, mas principalmente pelo livro Psychotic Anxieties and Containment – A Personal Record of an Analysis with Winnicott (Little, 1990), que, tal qual sugere o título, relata, em minúcias, o seu processo psicanalítico com Donald Winnicott, precedido de um resumo de suas duas malsucedidas análises anteriores: a primeira com um analista junguiano, que ela denominou de “Mister X”, e a segunda com a psicanalista Ella Freeman Sharpe.2

Baseado nesse relato, irei aqui desenvolver meu percurso reflexivo, examinando e discutindo as características próprias que a psicanálise winnicottiana assume quando trata pacientes de tipo borderline, como foi Margaret Little.3 Ou, noutros termos, como funciona esse tipo de psicanálise que tem de operar nas bordas do seu método – o que quer dizer, na maior parte das vezes, transgredindo os procedimentos da assim designada técnica-padrão.

Começo por lembrar que a palavra borderline é usada pela autora para se autodenominar no livro em questão. Na página 48, aparece: “Isso era um retrato verdadeiro do meu estado borderline”. Mais adiante, na página 83, ela diz que a Parte I “...foi escrita do ponto de vista de uma paciente, uma psicótica borderline”. Convém, assim, explicitar o sentido do termo tal qual usado pela autora e que é o mesmo que mantenho.

A palavra inglesa borderline é um vocábulo composto por dois outros: border, que significa borda, limite, margem, e line, que significa linha. Borderline significa, pois, etimologicamente falando, uma linha que demarca uma borda, uma margem, um limite, aquele que distingue os indivíduos sãos dos doentes ou, melhor dizendo, os indivíduos normais dos psicóticos. Nesse sentido, quando se diz que o indivíduo é borderline, de modo geral, queremos dizer que seu estado psíquico se define no interior de um espaço e de uma dinâmica que bordejam essa linha demarcatória, exibindo características de ambos os lados. Traduzindo melhor: ele aparenta características de uma pessoa normal, ou, quando muito, neurótica, mas isso se dá à custa de um equilíbrio bastante precário que, quando rompido, faz eclodir um funcionamento tipicamente psicótico. Daí a segunda autodenominação de Little, “psicótica borderline”. É esse sentido amplo do termo, utilizado pela autora, que manterei aqui.4

 

Primeiros sinais de um quadro borderline

Que Little era uma paciente tipicamente borderline já aparecem evidências na sua primeira análise, quando Mr. X pressentia que ela “não era ela mesma” e que vivia se desculpando pela sua própria existência, como se não tivesse direito a ela. Na última sessão, disse-lhe: “Pelo amor de Deus, seja você mesma” (Little, 1990, p. 27). O grande erro dele foi pressupor que bastava lhe dar essas sugestões e massagear sua barriga, para acalmar sua angústia paralisante, que tudo se resolveria magicamente.

É que ela possuía um falso self razoavelmente bem adaptado, capaz de enganar analistas menos experientes como Mister X e, mesmo, analistas mais experientes como Ella Sharpe. Segundo a descrição de Little, seu currículo não evidenciava incapacitações de tipo psicótico, já que incluía: ter freqüentado escola e passado nos exames sem problemas, e até ganhado bolsa de estudo; ter se tornado médica e desenvolvido uma prática bem-sucedida como clínica geral, que a levou, mais adiante, à formação de psicanalista (p. 49). Entretanto, esse falso self – formado por hipertrofia da função intelectual – era cindido do restante da personalidade e, de quando em quando, sofria desintegrações, deixando, então, eclodir sintomas esquizofrênicos.

O Dr. X permaneceu bastante distante desse tipo de diagnóstico, tomando-a como uma pessoa neurótica, quase normal e, após dois anos de análise, com três sessões por semana, a dispensou.

A segunda analista, Ella Sharpe, de modo similar, considerou Little uma neurótica histérica, deixando-se enganar pelo falso self da paciente e aferrando-se às interpretações de tipo edipiano. E lá se foram mais sete anos de análise, praticamente perdidos. Entretanto, em que pese a escuta deficiente de Sharpe, desenvolveu-se, desde o início dessa segunda análise, o que poderíamos denominar uma psicose de transferência.5

Já no primeiro contato, Little viu a analista sob a forma quase alucinada de uma aranha na sua teia (representada pelo seu cabelo grisalho) e, na primeira sessão, seu terror de aniquilação era tão intenso que começou a gritar. Recebeu, como retorno, uma interpretação de tipo sexual/edipiana. Ao relatar suas vivências desse período, Little nos diz: “Eu não sabia quem era ‘eu mesma’; a sexualidade (mesmo se conhecida) era totalmente irrelevante, a não ser que a existência e a sobrevivência pudessem ser garantidas e a identidade pessoal estabelecida” (p. 33). Sharpe, porém – gentil, cálida, generosa, e absolutamente incapaz de perceber as necessidades primárias de Little –, encarnava, sem se dar conta, as próprias características da mãe da paciente. Little tornou-se, então, dependente e submissa a ela, como era, originalmente, da mãe. E conta-nos: “Meus sonhos, nessa época, de luta, confusão e fragmentação, eram interpretados como fantasias de coito violento e desejos recalcados de ter relação com meu pai e destruir a minha mãe” (p. 34). Dependente e submissa, mas consciente de não estar recebendo da analista o que precisaria, desenvolveu nessa época o desejo de ela própria tornar-se analista: era o seu falso self tentando mimetizar a figura ambiental para poder substituir Sharpe como analista de si própria. Corroboram essa interpretação alguns medos dessa época: “O que eu verdadeiramente temia era descobrir a mim mesma como uma ‘cópia barata, de segunda mão’ de minha mãe ou dela (o que dava no mesmo)...” (p. 34). Sharpe, sem compreender o que acontecia, encorajava Little nas suas aspirações à formação psicanalítica.

Além de mal interpretar a realidade psíquica de sua analisanda, nenhum dado de realidade era levado em conta por ela, já que os eventos reais, presentes no relato da paciente, eram sempre considerados como refúgios das fantasias edipianas (pp. 34-35). Assim, a necessidade de Little de elaborar dois lutos reais, um pela morte do pai, outro pela morte de uma tia muito querida, passaram totalmente em branco na análise, sendo reduzidos a temas edipianos. Finalmente, logo após anunciar o fim de uma análise nunca realmente iniciada, Sharpe morreu de ataque cardíaco – aliás, como fora previsto por Little que, como boa clínica geral, notara os sinais adiantados da doença e alertara sua analista, sem ser ouvida.

Bastante desesperançada, Little chegou a Winnicott. Com ele, desenvolveu uma análise que durou seis anos, na sua primeira etapa, dedicada à saída da psicose, e mais um ano e meio na segunda, dedicada à elaboração do complexo de Édipo.

 

Uma esquizóide, com sintomas depressivos

Foi ao longo da análise com Winnicott que o quadro borderline de Little pôde revelar uma formação que classifico como uma esquizoidia com sintomas depressivos. Mais preciso, esse diagnóstico não foi formulado por Little, tampouco por Winnicott. Entretanto, os sintomas e a dinâmica psíquica descritos pela primeira apontam todos nessa direção. Vou, assim, tentar corroborar esta minha hipótese passo a passo. Cito Little:


A primeira sessão trouxe a repetição do terror. Eu permaneci curvada fortemente, completamente escondida sob o cobertor, incapaz de me mover ou de falar. D. W. ficou silencioso até o final da hora, quando disse somente: “Eu não sei, mas tenho um sentimento de que você está me trancando para fora por alguma razão”. Isso trouxe alívio, pois ele pôde admitir que não sabia e permitir uma contestação, se ela viesse. Mais tarde, percebi que estivera me trancando por dentro, assumindo a menor quantidade de espaço possível e sendo tão reservada quanto eu podia, escondendo-me no útero, mas sem segurança mesmo aí (1990, pp. 42-43).

A impressão é que Winnicott, em princípio, sem perceber o recolhimento de Little como um sintoma esquizóide, interpreta-o como resistência à análise e à presença do analista – tendo a humildade de dizer que, de fato, não sabe o que acontece, e que relata apenas um sentimento. Isso traz alívio à paciente, mas não o suficiente para aliviar seu terror.

Nas sessões seguintes, ao não se sentir novamente compreendida por Winnicott, Little entra em desespero: pensa em se jogar pela janela, mas imagina que ele vai impedi-la. Finalmente, apanha um vaso cheio de lilases brancos, atira-o no chão e o esmaga com o pé. Winnicott, contrafeito, retira-se da sala, só retornando quase no final da hora. Ao ver Little desobstruindo o chão da sujeira, comenta: “Eu poderia esperar que você fizesse isso, mas mais tarde”.

A interpretação de Winnicott pode ser traduzida, em termos técnicos: “Eu poderia esperar um desejo reparatório vindo de você mais tarde, quando pudesse ter entrado no estágio do concernimento, mas não agora, quando ainda está revivendo traumas muito primitivos”.6 Isso evidencia que a atuação de Little provocou então em Winnicott – após um recolhimento necessário para se recompor do ódio gerado pelo ato destrutivo da paciente – a compreensão de que se encontrava diante de uma paciente borderline.

É evidente que Winnicott correu riscos nessa sua saída de cena, já que o desejo de se jogar pela janela poderia ter voltado, levando a paciente a cometer suicídio. Entretanto, como agir analiticamente quando somos tomados por um ódio no meio de uma sessão, pelo fato de o paciente ter destruído um objeto de que gostamos muito? São escolhas difíceis... O fato é que Winnicott voltou à sessão, não retaliou o ato destrutivo de Little e, mais do que isso, repôs na sala, nas sessões seguintes, um vaso idêntico àquele quebrado, com os mesmos lilases brancos. Como um bom ego-auxiliar, ele completou o ato reparatório que sua paciente por si só não teria condições de realizar, mas que havia iniciado quando limpara o chão dos dejetos. É como se dissesse a ela: “Eu posso resistir intacto aos seus impulsos destrutivos e, assim, permanecer sendo seu analista”.

Poderíamos, no entanto, tomar a atitude de Little de limpar a sala como oriunda de um desejo reparatório?

É difícil, de imediato, sustentar nesse circuito total – o ato de quebrar o vaso, seguido do desejo de limpar os detritos e restaurar a ordem na sala – algo da dinâmica característica do estágio do concernimento, como se fosse um primeiro exercício de instauração do círculo benigno.7 Isso porque nosso pensamento seqüencial nos leva a pensar que, nesse início de análise, Little ainda se encontrava revivendo traumas muito primários, ligados ao período de dependência total. Pareceria mais plausível, pois, ver naquele gesto destrutivo apenas um grito para se fazer notar e, no ato de limpar a sala, uma mera regra de boa educação incorporada por seu falso self. Entretanto, as coisas nem sempre são tão simples quanto parecem ser.

Lembro, aqui, de uma paciente minha de dinâmica borderline, um caso bastante grave já citado em outros textos (Naffah Neto, 2004, 2007), que passou os três primeiros meses de análise atacando-me violentamente; nesse período, eu sentia que o mais importante era sustentar seus ataques, sem tentar interpretar muito e sem retaliar. É inegável que a dinâmica me remetia, o tempo todo, à etapa do uso do objeto, descrita por Winnicott,8 apesar de essa paciente estar igualmente fixada em traumas muito primitivos, da fase de dependência total. O curioso, também, é que, de quando em quando, esses ataques eram seguidos de “embriões” de atos reparatórios do gênero: “Tenho medo de estar destruindo as minhas possibilidades de análise” (Naffah Neto, 2004, p. 60). Após esse período, a transferência negativa cedeu lugar a uma positiva e esses impulsos agressivos/destrutivos desapareceram de cena quase totalmente. Reapareceram somente no oitavo ano de análise, num período em que a minha sustentação daquela destrutividade poderia, então, ajudar na gradativa apropriação da mesma pelo seu self, a partir de movimentos reparatórios mais responsavelmente assumidos. Isso devido ao fato que, em tal estágio, seu self já se encontrava mais integrado e fortalecido, portanto, em melhores condições para realizar essa tarefa. Assim, se nessa análise a primeira emergência da destrutividade e dos “embriões” reparatórios do objeto podem ser considerados prematuros, fora de tempo, de uma perspectiva seqüencial de processo, sua segunda aparição veio, sem dúvida, na hora certa, no tempo correto. É inegável, entretanto, que as duas emergências cumpriram funções diferentes no processo analítico.

A pergunta que me faço, desde então, é se podemos pensar no processo transferencial psicanalítico, ainda que se trate de uma psicose de transferência, de forma tão linear e seqüencial. Não podemos conjeturar que episódios como esses, os ataques destrutivos da minha paciente – ou o a quebra do vaso, descrito por Little –, ambos ocorridos em início de análise, possam funcionar como uma espécie de teste do analista? Ou seja, que a destrutividade, lançada assim de cara na relação transferencial, tenha por função testar a capacidade do analista de sustentar, sem retaliar, os impulsos mais primitivos do paciente – quer dizer, evidenciar sua possibilidade real de não repetir a falha ambiental original? E que os “embriões” de atos reparatórios, ainda que imaturos e pouco consistentes, possam assinalar conquistas fragmentárias e incipientes, mas, ainda assim, conquistas?9 E que, nesse sentido, frações de diferentes períodos de vida possam emergir transferencialmente de forma pouco linear e até um tanto caótica, em função das metas inconscientes que orientam a análise, em cada período? A atemporalidade do inconsciente não nos obriga a pensar dessa forma, abrindo mão de certo preconceito seqüencial do processo?

Esta é uma questão que não tenho condições de explorar melhor aqui, já que fugiria ao tema ao qual me propus. Voltemos, pois, às cenas da análise de Little com Winnicott.

Nas sessões seguintes, a dinâmica esquizóide da paciente se tornaria cada vez mais clara:

Ele (Winnicott) percebeu logo que, na primeira metade de cada sessão, nada acontecia. Eu não podia falar até encontrar um estado “assentado”, não perturbado por qualquer impingidela do tipo: ser indagada sobre o que estava pensando, etc. Era como se eu tivesse de trazer para dentro de mim o silêncio e a tranqüilidade que ele proporcionava. Isso fazia tal contrataste com os distúrbios da infância, com o estado de minha mãe movido a ansiedade e a hostilidade geral da qual eu sempre tive necessidade de me retrair para buscar quietude. A partir daí, ele estendeu a duração das sessões para uma hora e meia, pelo mesmo preço, até quase o final da análise (Little, 1990, p. 44).

Foi a necessidade de se proteger desse ambiente caótico e imprevisível de sua infância que produziu essa retração esquizóide e, ao mesmo tempo, a formação de um falso self cindido, que passou a funcionar como um escudo protetor do seu self verdadeiro. Corroboram essa hipótese vários relatos no livro.

Winnicott disse-lhe, com todas as letras e de uma forma muito precisa: “Sua mãe é imprevisível, caótica e ela organiza o caos ao redor dela” (p. 49). Ou seja, a mãe de Little comportava um paradoxo: era totalmente caótica, imprevisível e, ao mesmo tempo, controladora, como forma de organizar o caos que disseminava. Assim, quando bebê, Little era rigidamente atada num xale, de tal forma que nenhum membro pudesse se mover; e o furo do bico da mamadeira era tão pequeno que o ato de mamar exigia esforços exaustivos de sua parte. Qualquer gesto espontâneo era reprimido por um controle rígido.10 Mais tarde, de forma análoga, não permitiria que a filha escolhesse o brinquedo ou a brincadeira, impondo-lhe aleatoriamente o que ela, mãe, achasse “adequado”. Sempre que encontrava um dos filhos de boca aberta, fechava-a imediatamente e removia o dedo que estava sendo sugado; se o encontrava deitado de costas ou do lado esquerdo, fazia-o virar do lado direito, dizendo que era “para prevenir pressão no coração” (p. 97). Os orifícios dos corpos eram constantemente investigados e lavagens intestinais noturnas ministradas, bem como sessões de espremer cravos e espinhas, na época da adolescência. Suas interferências, de forma geral, alternavam-se entre descaso e atenção excessiva, chegando à total omissão. “O que importava num minuto era totalmente sem importância no outro, e o que era importante para mim, tinha de ser posto de lado”, nos conta Little. Tudo leva a crer que a mãe de Little via a filha como um prolongamento seu, e que o controle exercido sobre a mesma era uma tentativa de controlar o caos de seu mundo interno, projetado nela. Diz Little: “...eu somente conseguia me defender disso, retraindo-me, sustentando a mim mesma (...) ou me identificando e partilhando essa ilusão de formar uma só unidade com ela” (1990, p. 97-98).

Além do mais, temos de considerar o fato de que essa mãe via o ato sexual como “um dever desagradável da esposa para com o marido” (p. 50) e tinha horror à gravidez e ao parto; portanto, é possível imaginar que, já durante a gravidez de Little, o feto fosse objeto de afetos bastante ambivalentes, nos quais o ódio poderia facilmente predominar. Para controlar esse caos interno, seu controle já incidia sobre seu próprio corpo grávido, que era acolchoado, para que ninguém notasse seu estado e, além disso, já próxima do parto, procurava evitar contato com as dores, “não pensando nelas” até que isso fosse inevitável (p. 50). Como uma mulher com essas condições emocionais poderia ter alguma identificação primária com seu bebê?

Entretanto, essa mesma mãe invasiva e controladora cantava para a filha, na hora do banho, com uma bela voz de soprano. Tinha também bom humor e um gosto saudável pela jardinagem; essas características, aliadas à estabilidade do pai, foram os fatores que, segundo Little, impediram que ela se tornasse totalmente insana.

Sintomas depressivos, bastante sérios e sem motivo aparente, apareceram três vezes, durante a análise com Winnicott. Duraram cerca de dez dias, com intervalos aproximados de três meses. Além disso, houve duas depressões “incapacitantes” (Little, 1990, p. 52), que se seguiram a perdas. Houve, ainda, uma outra crise depressiva maior, que durou cerca de três meses, associada a uma gastroenterite, durante a qual ela permaneceu acamada, levando Winnicott a atendê-la em casa, cinco, seis ou até sete vezes por semana, em sessões de 90 minutos, durante todo esse período. Esses sintomas depressivos, ao que tudo indica, formaram-se devido à quase total impossibilidade de Little integrar e se apropriar dos seus impulsos eróticos/agressivos, dado que seu self verdadeiro, retraído e desintegrado, característico do estado esquizóide, não tinha qualquer capacidade para realizar tal tarefa. Esses impulsos viviam, em grande parte, cindidos de sua personalidade, mantidos à parte pelo falso self, só a tomando de quando em quando, de forma impulsiva e desordenada. Isso gerava, na maior parte do tempo, um baixo tônus vital de colorido depressivo, que se agravava cada vez que Little sofria alguma perda e, pelas mesmas condições precárias, a impedia de elaborar os lutos necessários. O que era um colorido depressivo transformava-se, então, numa crise depressiva.

 

Winnicott e as bordas da psicanálise

Winnicott disse em vários dos seus escritos que, sempre que possível, utilizava-se da técnica psicanalítica padrão, de interpretação da transferência. Com pacientes não neuróticos, com os quais isso era impossível, usava outros recursos: com a ampla gama dos depressivos, combinava a interpretação com o manejo transferencial dos ataques destrutivos do paciente – quando estes emergiam em análise –, sustentando-os sem retaliar e sem desaparecer de cena; com os borderlines e psicóticos, preconizava a regressão transferencial a estados de dependência. Em todos os casos, o holding sempre foi a sua ferramenta maior, aliada ao espírito lúdico: sempre que possível, procurava realizar a análise na sobreposição entre o seu espaço potencial e o do paciente.

O processo de Little seguiu o mesmo padrão: no primeiro período de análise, dedicado à saída da psicose, o holding e a regressão foram os principais recursos utilizados. No segundo período, dedicado à elaboração do complexo de Édipo, a interpretação da transferência foi a ferramenta-mor.

Aqui, interessa-me, sobretudo, analisar os recursos do primeiro período, aqueles que se situam, por assim dizer, nas bordas da técnica-padrão; manejos nos quais Winnicott se revelou ousado, criativo e de grande competência terapêutica, ampliando os recursos psicanalíticos por territórios até então pouco explorados.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que Little estabeleceu com Winnicott – tal como com Ella Sharpe, antes dele – uma psicose de transferência, assim descrita por ela:

Para mim, D. W. não representava minha mãe. Na minha ilusão transferencial, ele era minha mãe (...) e, como há uma continuidade real entre mãe e feto, genética e corporalmente (por meio das membranas e da placenta), assim, para mim, suas mãos eram o cordão umbilical, seu divã a placenta, os cobertores as membranas, muito aquém de qualquer nível consciente, até um estágio bem posterior (Little, 1990, p. 98).

Por essa razão, o holding psicanalítico, nesse caso, teve necessariamente de incluir contatos corporais indispensáveis, em períodos de grande terror. Little nos conta:

Literalmente, ao longo de muitas longas horas, ele segurava minhas duas mãos crispadas entre as dele, quase como um cordão umbilical, enquanto eu permanecia – sempre escondida embaixo do cobertor – silenciosa, inerte, recolhida, em pânico, raivosa, em lágrimas, adormecida, por vezes sonhando. Algumas vezes, ele ficava sonolento, caia no sono e acordava em sobressalto, ao qual eu reagia com raiva, aterrorizada e sentindo-me como se tivesse sido golpeada (p. 44).

Entretanto, saber usar os recursos necessários na hora certa não significava, em nenhum momento, condescendência para com a analisanda. Little nos diz que “...ele era compassivo, mas consistentemente firme, a ponto de se tornar impiedoso, quando sentisse que era necessário à segurança do paciente” (p. 45). Ele poderia, nessa direção – como fez com Little –, esconder as chaves do carro, se sentisse que o paciente estava à mercê dos seus impulsos destrutivos, devolvendo-as somente quando a dinâmica emocional tivesse mudado.

O holding incluía, ainda, a busca de egos-auxiliares que pudessem substituí-lo em férias e períodos de descanso. Aí, contatava amigos de Little, sem ela saber e, quando isso não era possível, utilizava-se da internação hospitalar, em condições especiais, determinadas por ele que, nesse caso, mantinha-se em contato o tempo todo.

Ele também costumava responder diretamente às perguntas de Little, somente depois pesquisando os motivos inconscientes das mesmas. Durante todo esse processo, deu muito poucas interpretações a ela, e somente aquelas relacionadas a assuntos que já poderiam se tornar conscientes. Também as formulava sempre de forma aproximativa, do tipo: “Penso talvez que...”, ou “Me pergunto se...”, ou “Parece que...”. E nunca interpretava algo fora do alcance de sua função simbólica (Little, 1990, p. 48). Uma das interpretações mais importantes, lembradas por Little, foi quando ele lhe disse que o medo de aniquilação que ela sentia pertencia ao passado, ou seja, já tinha acontecido. Eu a cito: “Ele me disse (...) que eu tinha sido psiquicamente aniquilada, mas tinha sobrevivido corporalmente e estava agora revivendo a experiência passada” (p. 62).

Durante o transcorrer das sessões, mantinha o silêncio e a quietude imprescindíveis ao recolhimento esquizóide da paciente, criando assim condições para que o falso self dela fosse se tornando desnecessário como defesa e pudesse ir baixando suas guardas, para que pudesse emergir, gradativamente, o seu gesto espontâneo.

Um momento importante da análise foi quando Little, pela primeira vez, pôde enfrentar sua mãe diretamente, dizendo-lhe tudo o que tivera vontade durante toda a vida e nunca tivera coragem. Mas, logo em seguida, sentindo-se inconscientemente culpada, quebrou o tornozelo, durante uma viagem de férias. Eram seus impulsos agressivos/destrutivos, que faziam a sua aparição de forma descontrolada, já que, até então, tinham tido uma existência marginal na sua vida.

O período mais demorado de regressão a estados de dependência foi se anunciando durante um período determinado do processo psicanalítico. Little nos conta: “Meu estado mental era tal que eu permanecia profundamente regredida em cada sessão e somente voltava a estar junto posteriormente, de forma muito vagarosa” (Little, 1990, p. 101). Então, dada a proximidade das férias, Winnicott propôs a ela uma internação voluntária num hospital, sob sua supervisão – sugestão que ela aceitou, tendo antes estabelecido que não levaria eletrochoques, que poderia se desinternar se e quando resolvesse, e que ele a levaria e a traria de volta. E, obviamente, que eles manteriam contato o tempo todo. Foi nesse ambiente hospitalar protegido, no qual permaneceu internada por cinco semanas, que Little pôde viver a sua regressão mais profunda.

De início, sentiu-se esquecida e abandonada por Winnicott, mas após dez dias, para sua surpresa, começou a escrever poesia. Entretanto, uma internação hospitalar, por mais especial e controlada, dificilmente transcorre sem problemas. Como no dia em que pediu para ser deixada absolutamente sozinha: pedido fundamental para poder baixar as defesas esquizóides e deixar emergir seu gesto espontâneo, mas muito dificilmente compreendido e atendido na rotina de um hospital. A situação rendeu uma grande confusão: entraram oito pessoas em seu quarto; ela ficou furiosa e bateu no traseiro de uma empregada. Foi, então, ameaçada pelo superintendente do hospital, que lhe disse que havia “...outras formas de tratamento das doenças mentais, paralelas à psicanálise, que eram às vezes necessárias” (Little, 1990, p. 58). Ela teve de lhe lembrar do acordo firmado de que não tomaria eletrochoques; mas, logo depois, entrou num estado de fúria e quebrou tudo o que encontrou pela frente. Levada para outro quarto, passou toda a noite em total paranóia, vendo enfermeiras que lhe pareciam “diabos”. No interior dessa confusão, contou com a ajuda de dois objetos transicionais: um lenço, que Winnicott havia lhe dado, e um cachecol de lã azul, de que gostava muito.

No dia seguinte, recebeu um banho e voltou ao seu quarto, tendo permanecido nele durante todo o restante do período. Muito provavelmente, por exigência de Winnicott, que controlava tudo à distância, o hospital, a partir daí, passou a interferir minimamente; proporcionava todo o necessário à sua permanência, sem nenhuma exigência. Ela passava os dias dormindo, lendo e pintando, às vezes até nas paredes do seu quarto. Passeava pelos jardins do hospital e, ocasionalmente, andava pelas ruas mais próximas. Quando chovia, uma das Irmãs mandava alguém buscá-la com um guarda-chuva.

Na pintura, sentia-se utilizando forças destrutivas e construtivas no ato criativo. Diz ela: “Não se pode pintar um quadro sem destruir uma tela branca e tubos de tinta...” (Little, 1990, p. 61). Essa foi uma das atividades importantes que auxiliaram no processo de apropriação gradativa, pelo seu self, dos impulsos erótico-destrutivos, antes cindidos. Nesse contexto, o quarto hospitalar funcionava como uma extensão da sala de análise de Winnicott e, via transferência, tornara-se seu “quarto de criança” (p. 61). O bom humor logo tomou conta de suas atividades lúdicas. Conta-nos o episódio de um quadro que pintou – uma paisagem marítima, na qual adicionara um monstro marinho –, que o terapeuta ocupacional ficou fitando longamente. Jocosamente, ela lhe disse: “Uma bela peça de arte esquizofrênica, não é?” Desorientado ou, talvez, chocado, ele saiu da sala e, logo em seguida, a Irmã entrou perguntando: “O que você fez para o pobre Mr. Y? Ele parecia ter o diabo atrás dele?” (p. 61). E ambas riram muito.

Entretanto, após algum tempo de internação, começou a se sentir deprimida; certo dia, vendo uma corda no jardim, pensou em suicídio, tendo afastado imediatamente a idéia, como um ato louco. Nunca mais, após esse episódio, pensou em se matar e, pouco a pouco, foi emergindo da regressão rumo à desinternação e à vida normal.

Próxima agora do fim, sua análise recomeçou a partir de conversas sobre os poemas e pinturas que realizara no período regressivo. Nessa época, ela já conseguira certa autonomia de Winnicott, posto que os comentários dele sobre suas criações não a afetavam de forma contundente: “Eu percebi que ele não gostar de um quadro não significava que eu deveria destruí-lo. Ele tinha um valor simplesmente como uma criação, tanto para ele quanto para mim” (p. 62).

A última fase desse primeiro período de análise envolveu uma outra dinâmica: “O caráter das sessões era diferente; elas agora lidavam verbalmente com ansiedades depressivas e, posteriormente, edipianas” (p. 102). Já mais perto do final, a duração e a freqüência das sessões foram sendo diminuídas, até o processo finalmente se encerrar.

Assim Little descreve o seu processo de cura analítica, e a importância crucial da internação hospitalar no processo regressivo:

Foi-me permitido viver uma infância e uma meninice próprias, o que era distinto de viver e reviver as da minha mãe, para ela. Tendo podido atingir os níveis mais primitivos da, assim algumas vezes denominada, ‘posição esquizo-paranóide’, num ambiente consistentemente controlado, seguro, não retaliatório e razoável, pude chegar a um novo ponto de começo, do qual pude me desenvolver para o ‘estágio do concernimento’ e, posteriormente, para a situação edipiana – eventualmente para a minha maturidade cronológica. Minhas áreas psicóticas e não psicóticas foram firmemente unidas conjuntamente (Little, 1990, p. 102).

O segundo período de análise de Little com Winnicott, iniciado dois anos após o término do primeiro, durou cerca de dezoito meses, com a freqüência de uma sessão por semana. Foi inteiramente dedicado à análise dos conflitos edipianos, que ainda dificultavam as suas relações amorosas. Não é que no primeiro período de análise não tivessem aparecido angústias edipianas: Little nos conta que, por ocasião da separação de Winnicott da primeira esposa, sentiu-se “...muito enciumada, e algum material edipiano pôde ser trabalhado, embora tenha permanecido como um pedaço isolado, que somente pôde ser juntado ao resto mais tarde” (p. 55). Ou seja, nessa primeira etapa, seu self, dado seu estado de desintegração, não tinha condições de se apropriar desse tipo de material, sob a forma de uma elaboração consistente.11

Segundo sua avaliação, esse segundo período de análise também foi uma experiência bastante bem-sucedida.

Como comentário final deste percurso, gostaria apenas de dizer que sem esses primeiros psicanalistas desbravadores – nos quais, além de Winnicott, incluo Ferenczi, como uma espécie de pioneiro –, a psicanálise até hoje estaria restrita a pacientes neuróticos ou, no máximo, tentando tratar psicóticos com a técnica clássica calcada no modelo das neuroses (já que os kleinianos, embora precursores nesse terreno das psicoses, permaneceram – pelo menos, nos primeiros tempos – bastante presos ao modelo psicanalítico tradicional, fundado na interpretação da transferência). Foi preciso ousadia e determinação para desmontar a técnica clássica e colocá-la em experimentação, buscando novas soluções para o tratamento de borderlines e psicóticos: implicou a coragem de trilhar caminhos desconhecidos, sabendo que a própria vida dos pacientes estaria em jogo.

E nunca é demais lembrar isso nesses tempos atuais, em que a psicanálise perde cada vez mais terreno para as terapias cognitivo/comportamentais, sendo injustamente acusada de charlatanismo. Depoimentos, como o de Margaret Little, servem como testemunho eloqüente de que sua eficácia terapêutica continua mais viva do que nunca e que, dentre os mestres que nos podem ensinar essa arte curativa, Donald Winnicott ocupa um lugar realmente privilegiado.

 

Referências

Graña, R. B. (2007). Origens de Winnicott: Ascendentes psicanalíticos e filosóficos de um pensamento original. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Little, M. I. (1990). Psychotic anxieties and containment: A personal record of an analysis with Winnicott [Ansiedades psicóticas e prevenção: Registro pessoal de uma análise com Winnicott]. Northvale, N. J.: Jason Aronson.        [ Links ]

Naffah Neto, A. (2004). A escuta musical como paradigma possível para a escuta psicanalítica. Percurso, 17(33), 53-60.        [ Links ]

Naffah Neto, A. (2007). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline: Revisitando Winnicott. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(4), 77-88.        [ Links ]

Winnicott, D. (1992). Clinical varieties of transference. In D. W. Winnicott, Through paediatrics to psychoanalysis (pp. 295-299). London: Karnac.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alfredo Naffah Neto
R. Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309/7 – Vila Olímpia
04544-000 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3045-3082
E-mail: naffahneto@gmail.com

Recebido em: 20/06/2008
Aceito em: 12/09/2008

 

 

* Psicanalista. Mestre em Filosofia pela USP. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor titular da PUC-SP no programa de estudos pós-graduados em Psicologia Clínica. Autor de vários artigos e livros sobre psicanálise e música, sobretudo operística.
1 Este artigo é uma revisão da conferência realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 31 de maio de 2008, e também no XIII Colóquio Winnicott: os casos clínicos de Winnicott, ocorrido na PUC-SP, entre 29 e 31 de maio de 2008. Agradeço a leitura da primeira versão do texto e as sugestões de Luís Claudio Figueiredo, Ignácio Gerber e Daniel Kupermann.
2 Este livro teve uma péssima tradução realizada pela Editora Imago, em 1992, a cargo de Jayme Salomão, na mesma linha, aliás, das suas equivocadas traduções das obras de Freud. Aqui, até o título do livro foi adulterado para Ansiedades Psicóticas e Prevenção – Registro Pessoal de uma Análise com Winnicott, quando a tradução mais literal seria: “Ansiedades Psicóticas e Contenção” e a mais apropriada: “Ansiedades Psicóticas e Sustentação”.
3 Opto por não traduzir o termo borderline pelo equivalente fronteiriço, em razão de a tradição psiquiátrica e psicanalítica do uso da palavra inglesa ter uma grande difusão, o que não acontece com o vocábulo português correspondente.
4 Assinalo isso porque vários autores utilizam o termo borderline para referir-se a uma modalidade específica de estado-limite, e não como o termo genérico capaz de designar o conjunto dessas patologias.
5 Winnicott nos diz: “Enquanto que, na neurose de transferência, o passado vem para o consultório, nesse tipo de trabalho é mais verdadeiro se dizer que é o presente que volta ao passado. Então, o analista vê-se confrontado com os processos primários do paciente no ambiente em que foram primeiramente validados” (Winnicott, 1992, p. 298).
6 Elsa Oliveira Dias propôs o neologismo estágio do concernimento como tradução para o conceito winnicottiano stage of concern, embora a tradução mais literal de concern para o português seja concernência. Outra tradução possível para o termo, esta proposta por Roberto B. Graña, é estágio da consideração (p. 108, nota 6). De qualquer forma, concern é um termo de difícil tradução, sendo ambas as propostas apenas aproximativas.
7 O círculo benigno, segundo Winnicott, forma-se por meio das inúmeras e repetidas vezes em que o bebê, ao se perceber atacando vorazmente o corpo materno, passa por um sentimento de culpa (não consciente) pelas conseqüências de sua destrutividade e realiza atos reparatórios, que são recebidos pela mãe. É esse acolhimento materno – tanto da destrutividade, quanto dos atos reparatórios do bebê – que gera nele a confiança na sua capacidade construtiva e lhe permite ir se apropriando, cada vez mais, de seus impulsos destrutivos de forma produtiva à vida, num processo cíclico que Winnicott denominou círculo benigno.
8 A etapa de uso do objeto foi descrita por Winnicott já mais tardiamente na sua obra (1968), como antecedendo justamente a entrada no estágio do concernimento. Designa o processo por meio do qual o bebê cria a externalidade do objeto, diferenciando objeto subjetivo (fantasia) de objeto objetivo (realidade). Ao dirigir seus impulsos destrutivos à mãe (através de uma oralidade de tipo incorporativo), e perceber que ela resiste à sua destruição e não retalia (ou seja, não se mistura à sua dinâmica destrutiva), o bebê vai paulatinamente discriminando mundo interno e mundo externo.
9 É preciso lembrar que um paciente adulto, embora possa ter tido seu desenvolvimento congelado em fases de dependência absoluta, não deixou de atravessar, ainda que de forma deficiente, o estágio de concernimento e, mesmo, a triangulação edipiana, e que dessas travessias difíceis e incompletas sobram pequenas conquistas fragmentárias, que só poderão se integrar ao restante da personalidade quando o self verdadeiro puder conquistar desenvolvimento e integração mais completos.
10 Little viu isso se repetir com os irmãos menores, apesar de toda a orientação contrária dada à sua mãe pelo pediatra, que lhe dissera para fazer um furo grande, de modo que o bebê pudesse mamar à vontade.
11 O que corrobora minhas observações na nota 8 deste texto.

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