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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.75 São Paulo dez. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Transferência na clínica psicanalítica com crianças1

 

Transference in the psychoanalytic with children

 

Transferencia en la clínica psicoanalítica con niños

 

 

Silvia Maria Abu-Jamra Zornig*

Professora e supervisora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Coordenadora do curso de especialização em Psicologia Clínica com Crianças da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle
Diretora-presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto objetiva discutir a noção de transferência na clínica psicanalítica com crianças, baseando-se em dois eixos de reflexão: o primeiro tendo como modelo uma clínica das neuroses – na qual o Édipo e a Castração são os principais referenciais – e o segundo a idéia de vazio e de uma clínica do negativo, como postula A. Green. A partir do relato de um fragmento clínico, analisa-se o lugar a e importância destas concepções teórico-clínicas.

Palavras-chave: Transferência, Isolamento, Não-integração, Psicanálise com crianças.


ABSTRACT

The paper intends to discuss the notion of transference in the clinical practice with children in reference to two major clinical concepts: the first one base on a clinic of the neuroses, where the Oedipus and the Castration Complex appear to be the most important references; and the second one which is based on a clinic of the negative and absence as postulated by A. Green. A clinical vignette is described in order to analyze the two clinical concepts.

Keywords: Transference, Isolation, Non-integration, Psychoanalysis with children.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es discutir la transferencia en la clínica psicoanalítica con niños a partir de dos concepciones teóricas diferentes: una que tiene como modelo la clínica de las neurosis y de las representaciones y la otra que tiene como referencia el trabajo de A. Green acerca del vacío y de la ausencia afectiva del objeto. Para ilustrar estas reflexiones teóricas se presenta un fragmento de un caso clínico.

Palabras clave: Transferencia, Aislamiento, No integración, Psicoanálisis de niños.


 

 

A noção de transferência é tão fundamental quanto abrangente na clínica psicanalítica –mas, apesar da diversidade de interpretações sobre o conceito, mantém este, em seu caráter essencial, a idéia de ser um modo de deslocamento ou repetição de conteúdos recalcados que são revividos na situação analítica. Ou seja, a transferência estaria ligada a protótipos e imagos infantis, em que o analista é inserido numa das séries psíquicas que o paciente já formou.

Se aplicarmos esta idéia à clínica psicanalítica com crianças, podemos compreender melhor o motivo do célebre debate entre Anna Freud e Melanie Klein sobre a possibilidade de uma criança transferir ao analista em função do vínculo afetivo a seus objetos fundamentais, já que subjacente a essa discussão encontrava-se uma determinada concepção sobre a estruturação do psiquismo na infância e as relações objetais precoces. Enquanto Anna Freud propunha uma análise baseada na noção de um aparelho psíquico em constituição, Melanie Klein postulava um psiquismo constituído desde os primórdios, privilegiando a atividade fantasmática da criança.

Avançamos muito desde então, e são poucos os analistas que colocam em questão a capacidade de uma criança usufruir de uma análise nos mesmos moldes de um paciente adulto. No entanto, é importante pensar como a clínica psicanalítica direcionada à infância, principalmente à primeira infância, nos confronta com uma mudança de paradigma: de uma clínica baseada no significante e na linguagem em sua dimensão verbal, para uma clínica voltada para a idéia de construção e de contenção/continente.

Ferenczi é um dos precursores dessa reflexão, ao criticar a técnica clássica de interpretação como sendo insuficiente para se ter acesso a problemáticas mais graves de pacientes limítrofes, com dificuldades de verbalização e elaboração simbólica. Em Análise da criança na análise de adultos (1931/1980), ele sugere que os analistas de adultos poderiam aprender muito com os analistas que atendem crianças, se abandonassem a neutralidade artificial e uma escuta somente do conteúdo verbal, privilegiando uma clínica em que o analista se envolve ativamente na transferência, colocando a situação traumática em ato para permitir sua integração à cadeia simbólica posteriormente.

A clínica direcionada à primeira infância também foi de grande valia para resgatar a idéia de uma clínica baseada na forma, na intensidade, no ritmo e na temporalidade como marcadores essenciais da constituição do psiquismo na infância, enfatizando a necessidade de refletirmos sobre a dimensão do vazio, do negativo e da ausência de investimento afetivo na construção do psiquismo infantil. Aqui, é possível contrapor ou até propor dois eixos de reflexão.

O primeiro tem como modelo uma clínica das neuroses, em que a castração e o Édipo são os principais referenciais, e a noção de conflito intrapsíquico e de uma dialética entre desejo e defesa os principais eixos do sintoma. Dentro dessa perspectiva, surge um aparelho psíquico que se estrutura defensivamente a partir do confronto entre o mundo adulto, marcado por significantes enigmáticos, por serem recalcados (sexualidade infantil), e o universo de dependência da criança. Como indica Laplanche (1992), o trauma decorre dos significantes obscuros e enigmáticos propostos pelo adulto à criança e de sua impossibilidade de responder a eles, gerando uma confusão de línguas e fazendo com que a criança procure responder aos significantes que vêm do campo do adulto através de suas próprias teorias, que trazem a marca da construção fantasmática do sujeito. Assim, o trauma resultante desse confronto é estruturante, na medida em que induz o trabalho psíquico e a elaboração fantasmática.

O segundo eixo tem como base a idéia de vazio e de uma clínica do negativo, como indica Green, através do complexo da mãe morta (1983/1988), postulando a idéia de uma perda ou depressão que tem lugar na presença do objeto, produzindo buracos no psiquismo e se relacionando a falhas na constituição do sujeito. Esta noção está presente nos afetos de intensidade de D. Stern (1985/1992) e na ênfase dada por Winnicott às relações iniciais como sendo a base da estruturação do self e do desenvolvimento do Eu (1963/1990). Ao pensarmos neste segundo modelo, poderíamos dizer que a angústia não se relaciona à castração, mas à aniquilação, já que a disponibilidade afetiva do objeto marca a constituição do sujeito.

Em nosso trabalho, muitas vezes encontramos analisandos que se aproximam mais de um modelo clínico relacionado a uma clínica do negativo e do vazio – a série em branco, proposta por Green – do que de um modelo metapsicológico, que tem como referencial o Édipo e a castração. Nesse tipo de atendimento, o lugar do analista no campo transferencial parece se relacionar a uma função empática, na qual “sentir-com” o analisando (Ferenczi, 1928/1992) é muito importante para propiciar o surgimento de um espaço potencial que respeite e reconheça a necessidade de um isolamento que propicie a comunicação.

“A comunicação se origina do silêncio”, aponta Winnicott (1963/1990), ressaltando a importância da comunicação silenciosa do infante com os objetos subjetivos para o estabelecimento do sentimento de realidade, ao mesmo tempo em que a comunicação ativa com o que é percebido objetivamente é repudiada para preservar o núcleo verdadeiro do self. Assim, de acordo com o autor, é fundamental no trabalho analítico, preservar o núcleo isolado do self do paciente, permitindo-lhe vivenciar o isolamento na presença do analista sem se sentir violado por interpretações que varam suas defesas.

Esta indicação de Winnicott é preciosa, pois resgata o valor positivo da não-comunicação na clínica, evidenciando a necessidade de o analista suportar o silêncio do paciente como uma técnica pessoal para preservar o sentimento de se sentir real. É a partir de sua indicação sobre o isolamento como uma proteção contra a percepção prematura do estado de separação entre self e objeto que gostaria de apresentar o fragmento de um caso clínico.

Luiza, seis anos de idade, me foi indicada por uma colega da área de saúde, em razão de sua timidez, retraimento e, principalmente, de uma situação trágica vivida recentemente: o súbito desaparecimento do pai, dado por morto, sem que se produzissem evidências concretas de sua morte. A mãe ocultara o fato da filha, dizendo que o pai precisara viajar com urgência, mas, diante de sua longa ausência, resolveu dizer à menina o que acontecera, trazendo-a para a análise logo depois dessa comunicação.

Na entrevista inicial, a mãe relata o sofrimento da família diante dessa tragédia que não tem fim, de uma história em aberto, que os impede de sofrer, que os impele a esperar, ora com esperança, ora com desespero, sem descanso possível. Diz, no entanto, que sua filha deveria estar em análise há muito tempo em função de seu retraimento, do “grude” com ela ou com a babá, de chupar o dedo constantemente e não conseguir dormir sozinha. Fala também que tem a impressão que Luiza só se relaciona com ela e, apesar de sofrer a perda do pai, nunca teve uma relação intensa e íntima com ele.

Luiza permaneceu durante cinco anos em análise, marcados por uma lenta construção de um espaço potencial, através do qual emerge do isolamento e do silêncio em direção a uma comunicação que lhe permite começar a testar a externalidade do objeto e sua sobrevivência.

 

Primeiro tempo: isolamento e não-integração

Minha primeira impressão de Luiza é de uma menina bonita, séria e desvitalizada. Apesar de arrumada, parece não ligar para seu corpo, com os cabelos caídos sobre seu rosto, como que se escondendo do olhar do outro. Logo estabelecemos uma forma de comunicação através de desenhos, até que um dia ela me escreve um bilhete dizendo que, dali em diante, ela não falaria mais comigo, só se comunicaria por meio da escrita. Começamos essa forma de trabalho: ela escreve, eu falo. Falo às vezes por nós duas, descrevendo a atmosfera da sessão e como ela me afeta. Luiza não consegue prender a atenção em nenhuma atividade por muito tempo, parecendo desvitalizada e retraída. Ao longo deste primeiro tempo, passa a escolher minha poltrona como o lugar privilegiado de sua encenação: inicialmente, faz alguma atividade, mas logo, deita-se na minha poltrona em posição fetal, polegar à boca, e dorme! Geralmente, sento-me a seu lado, em silêncio, mas atenta a seus gestos e movimentação. Ela oscila entre entregar-se ao sono, ou ficar de olhos fechados, atenta à minha movimentação. Em função da situação do desaparecimento súbito de seu pai e da impossibilidade de vivenciar um luto, penso, inicialmente, nesta situação de regressão e isolamento como uma vivência de desamparo e abandono. No entanto, no decorrer do tratamento, começo a vislumbrar uma perda ainda mais precoce – a perda de uma vivência afetiva com a mãe, que tem muita dificuldade em reconhecer o sofrimento da filha e sua própria dor.

O comportamento regressivo de Luiza – deitada na poltrona da analista – indica um isolamento que tem a marca da comunicação, já que ela só se deita em minha poltrona, que funciona como um espaço de continência onde ela pode experimentar uma não-integração sem angústia de aniquilamento. O uso feito aqui da palavra “encenação” se refere à idéia de corporeidade na clínica (Zornig, 2008), em que o paciente encena e figura em seu corpo aspectos dissociados que ficam fora de seu discurso e de sua narrativa verbal. A encenação se refere a um corpo que expressa o sofrimento de uma forma “psicossomática”, demonstrando, através de seu ato, a tentativa de metabolizar psiquicamente seu sofrimento.

É interessante notar como autores como P. Aulagnier (1975/1979) e J. Laplanche (1992) utilizam vocábulos como metabolização e metábola para definir a atividade de representação primordial do aparelho psíquico do infante. Aulagnier indica que a primeira atividade de representação se refere a um processo de metabolização, no qual o elemento heterogêneo (que vem do campo do outro) é metabolizado pelo aparelho psíquico do infante através da sensorialidade e das representações pictográficas (imagéticas), se inscrevendo no corpo. Assim, o corpo é desde o início um corpo relacional, que traz as marcas do investimento afetivo do adulto e que encena os efeitos das relações iniciais.

Laplanche propõe o conceito de metábola para designar como o inconsciente da criança não é mera internalização do discurso do Outro. Segundo o autor, entre o discurso/desejo significante da mãe, que surge inteiramente carregado de sexualidade, e o inconsciente em vias de constituição da criança, registra-se um processo de metabolismo que implica em decomposição e recomposição das mensagens enigmáticas que vêm do campo do Outro. O inconsciente se forma a partir de uma desqualificação da mensagem em energia, que vai funcionar como base para futuras simbolizações.

Estas duas noções sugerem uma concepção dos primórdios da atividade psíquica como primordialmente corporal, seguindo a indicação freudiana de um ego que evolve como reflexo da superfície do corpo, mas ressaltando principalmente como o corpo é marcado e investido pulsionalmente pelo outro, como demonstrou minha pequena analisanda ao escolher a poltrona da analista como cenário de seu sono e não-integração.

A contribuição de Daniel Stern, ao introduzir a idéia de “afetos de vitalidade” é particularmente relevante para esta discussão, pois ressalta a intensidade e movimento do afeto e não só seu conteúdo formal. Como indica Stern, o bebê inicia seu percurso subjetivo através de modalidades afetivas que se diferenciam dos afetos categóricos (alegria, raiva, medo, tristeza) por pertencerem ao domínio da experiência afetiva em uma perspectiva de ativação e intensidade.

Os afetos de vitalidade permitem ao bebê sentir-com, antes de compreender intelectualmente. Nesse sentido, a linguagem tem início através de trocas não-verbais entre a mãe e o bebê que lhe permitem figurar no corpo a história recente dessa relação. Para o autor, a realidade psíquica do bebê pode ser decomposta em uma sucessão de unidades temporais elementares, que são vivenciadas por ele de forma independente e com uma dinâmica própria. A unificação dessas experiências separadas é realizada através do “envelope protonarrativo”, uma unidade de base que tem a função de integrar diversas vivências e possui uma estrutura próxima à narratividade.

A constelação de elementos invariantes – estados emocionais, percepção, sensações, excitações, ações motoras –constitue o envelope protonarrativo, que representa o início da própria atividade de pensar. Como toda experiência subjetiva se desenvolve no tempo, os elementos invariantes que constituem um envelope protonarrativo se desenrolam em uma cadência temporal e aparecem em uma curva que cresce, decresce, explode, aumenta e diminui de intensidade, demonstrando seu movimento e plasticidade.

Há no sentido de processo em movimento (surgindo, desaparecendo, levantando explosivamente da cadeira) e não de categorias formais, algo que exprime a potência de um afeto e não seu conteúdo. Há também, implícita nesta noção, uma idéia de tempo e espaço que permite uma continuidade de existência ou confronta o bebê com descontinuidades intensas que o colocam sempre em estado de alerta, incapaz de relaxar e se deixar cuidar.

O sono de Luiza na sessão analítica pode ser interpretado não como uma resistência, mas como uma encenação de sua necessidade de se deixar cuidar pelo outro, de vivenciar um isolamento na presença da analista, sem medo de ser invadida ou trespassada. Sua recusa em falar ressalta a importância da comunicação silenciosa entre sujeito e objeto, em que a função da analista se relaciona a valorizar a possibilidade dos afetos surgirem em sua dimensão de potência antes de serem traduzidos em verbalizações. Se retomarmos a indicação de Stern sobre a dimensão não-verbal dos afetos de vitalidade, poderíamos tomar a recusa de Luiza de falar com a analista como uma indicação da necessidade de construir uma relação transferencial que lhe permitisse passar da dissociação ao conflito, da encenação à elaboração.

Cabe aqui uma diferenciação entre dissociação e conflito, pois enquanto no conflito a pessoa sabe, inconsciente ou conscientemente, da existência de dois lados da equação (Khan, 1971/1977), nos estados dissociados ela fica totalmente envolvida com cada aspecto, figurando-os no corpo.

“A encenação exige uma testemunha que a experimente e informe. A atuação procura cúmplices para descarga e satisfação” (Khan, 1971/1977, p. 302).

A função de testemunha me parece fundamental para marcar o lugar do analista na relação transferencial, pois, a partir das encenações de Luiza, começo a vislumbrar a dimensão do vazio afetivo vivenciado por ela em uma relação com uma mãe muito eficiente, mas pouco afetiva, com enorme dificuldade em reconhecer o sofrimento da filha e aceitar sua própria dor e desamparo.

A identificação à sua vivência de abandono e solidão me faz compreender a importância de sustentar a função de testemunha, agora no sentido dado por Ferenczi, de reconhecimento e de autorização de uma dor que não pode ser veiculada. Nesse sentido, seu isolamento não é interpretado como defesa contra a comunicação, mas como uma lenta construção em direção a uma forma de comunicação que se expressa pelos afetos de vitalidade, pequenos gestos e movimentos que sugerem uma dimensão afetiva que passa pela forma, pela musicalidade da língua, pela intensidade dos afetos, sem codificá-los em uma linguagem verbal.

Em uma sessão conjunta, Luiza senta-se perto da mãe no sofá e gradualmente vai caindo, até ficar em posição fetal, ao seu lado. Esta fica muito incomodada, mas incapaz de conter a filha, se queixando de sua postura. Começa a criticar essa forma regressiva de comportamento, mas Luiza permanece imóvel, na mesma posição. Falo que Luiza parece estar precisando de um colo, de um aconchego. A mãe então a abraça e ela se encolhe e se acomoda em seu colo. Esse movimento emociona a mãe, que acaricia seus cabelos suavemente, me dizendo como é difícil para ela lidar com a dependência da filha, que sua mãe nunca foi muito carinhosa, sempre estimulou sua autonomia e ela procura fazer o mesmo para não reforçar a regressão da filha. Ressalto a importância de poderem compartilhar o sofrimento e a situação traumática que ambas vivenciam, sugerindo que falar sobre a ausência do pai, resgatar a lembrança de experiências passadas pode ajudá-las a elaborar a experiência.

Essa sessão teve um grande efeito, pois Luiza pode começar a falar do pai com a mãe, a perguntar sobre seu desaparecimento, a olhar álbuns familiares, de viagens, a construir uma imagem do objeto que, na ausência, começa a ter uma consistência de lembrança e presença afetiva.

 

Segundo tempo: recusa e comunicação

O segundo tempo da análise é marcado por uma recusa a entrar na sala de atendimento sem a presença da babá, que é então convidada a participar de suas sessões. Esta estratégia produz uma cena na qual a analista é colocada na posição de observadora da relação afetuosa entre as duas, ficando no lugar de terceiro excluído. Da observação de uma relação dual, passamos a uma brincadeira a três, em que um dos participantes sempre morre no final. Luiza se diverte muito quando eu “morro” e ela e a babá sobrevivem, podendo, a partir dessa brincadeira, incluir um novo objeto em sua vida sem uma angústia de perda maciça, vivenciada na situação traumática do desaparecimento concreto do terceiro excluído fantasmaticamente (desaparecimento do pai).

Neste segundo tempo, Luiza me diz que, de agora em diante, vai trazer os deveres de casa para fazer na sessão, pois assim tem o que fazer comigo. Não retruco e quando ela começa a trazer seus deveres, me sento a seu lado, de novo, com uma postura atenta, me interessando pela atividade, sem entrar na posição de pedagoga. Interpreto essa inclusão de sua vida escolar no tratamento como um indício da possibilidade de investir libidinalmente em suas relações com o mundo da aprendizagem e das possibilidades e como o esboço de uma curiosidade em saber alguma coisa – de sua história, de sua vida.

A experiência de realizar uma tarefa sem compartilhá-la com a analista produz uma vivência de isolamento que traz a marca da comunicação e demonstra a lenta e gradual construção de um self verdadeiro. Winnicott indica que a não-comunicação é fundamental para a construção subjetiva da criança, pois lhe permite estabelecer uma comunicação silenciosa e criativa com os objetos subjetivos. Ou seja, a recusa é parte do processo de criação do objeto e sinaliza a distinção entre a comunicação onipotente com os objetos subjetivos e o mundo não-eu dos objetos percebidos objetivamente.

O lugar de Luiza diante das pessoas que ela julga importantes é um lugar de passividade e de não-reinvidicação. Em uma sessão, entra com uma amiga, anunciando que as duas participariam. É interessante frisar que ela traz para sua sessão uma amiga autoritária, que quer ditar as regras do jogo e comandar tudo de forma manipuladora. Comento com a amiga como ela é “mandona” e Luiza se diverte muito com a minha fala. Quando retorna, num outro dia, diz que a amiga achou bom vir ao meu consultório, mas que não voltará mais, pois não gostou que eu a chamasse de mandona. Este assunto traz comentários sobre suas relações afetivas com as amigas e aos poucos ela me conta de sua dificuldade em dormir fora de casa, de brincar na casa dos outros, do medo de sentir saudades da mãe ou da babá.

O segundo tempo parece marcar a construção de um espaço transicional e da vivência de uma relação triangular sem a morte ou destruição do objeto. Poder sustentar, com calma e tranqüilidade, sem me sentir excluída, a relação amorosa que ela tem com a babá; ser excluída pelas duas, sem me sentir destruída; abrir o espaço da sala de atendimento para a inclusão de uma amiga que a submete, colocando limites nessa atuação: parece ter isso possibilitado a abertura de um canal de comunicação e dado início a uma relação objetal, na qual a dimensão de alteridade pode ser experimentada sem uma forte angústia de separação.

 

Considerações finais

O final da análise de Luiza é marcado por uma vivência de ódio direcionada à analista que é acolhida como um esboço de separação. Todas as sessões terminam com a frase – eu te odeio, e a minha resposta – te aguardo em tal dia e tal hora “, indicando que ela pode expressar seu ódio sem me destruir, e que eu posso suportar essa vivência sem morrer.

Winnicott (1975) tem uma indicação preciosa sobre a função da agressividade no reconhecimento da externalidade do objeto, sugerindo que somente a vivência de ódio na análise modifica a posição do objeto, no sentido de passar de uma fantasia sobre o analista, enquanto objeto interno que precisa ser protegido da tentativa de destruição, para o uso do analista, enquanto objeto, que é reconhecido em sua exterioridade e, por esse motivo, consegue sobreviver ao ódio.

Se retomarmos os dois eixos de reflexão propostos no início do texto, podemos acompanhar o fragmento clínico relatado como um processo gradual de constituição subjetiva, em que a noção de transferência não se relaciona inicialmente à repetição de conteúdos recalcados, mas a um processo de co-construção do sujeito e do objeto, numa dialética entre estar-em-um e estar separado (Ogden, 1996).

Nessa perspectiva, a postura empática do analista é fundamental para reconhecer o aspecto positivo da experiência de não-integração e isolamento. Se a comunicação se origina do silêncio, como sugere Winnicott, a constituição do psiquismo na infância surge a partir das experiências sensoriais e afetivas que transcorrem entre o bebê e seus objetos primordiais. Assim, a relação transferencial pode ser vivenciada em uma dimensão pulsional de movimento e intensidade, na qual a comunicação se dá através da sustentação, da musicalidade, dos afetos de vitalidade.

Não pretendemos desconsiderar o aspecto primordial da interpretação, mas propor uma ampliação da noção de transferência e interpretação no processo psicanalítico para ressaltar o trabalho de construção de um espaço potencial como a base do sentimento de continuidade de existência e o eixo necessário para a transposição da encenação ao conflito. Ou seja, os dois modelos clínicos propostos não são modelos que se excluem, mas que podem e devem ser pensados em uma relação dialética constante durante um processo analítico.

A análise de Luiza se encerra no momento em que sua demanda de não comparecer mais às sessões parece uma expressão genuína de um self verdadeiro, que talvez necessite de um outro interlocutor mais tarde – mas que ora pode começar a experimentar a vida de uma maneira mais criativa e autoral.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Silvia Maria Abu-Jamra Zornig
R. Sara Vilela, 100 – Jd. Botânico
22460-180 Rio de Janeiro, RJ
E-mail: silvia.zornig@terra.com.br

Recebido em: 20/11/2008
Aceito em: 23/12/2008

 

 

* Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Professora e supervisora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Coordenadora do curso de especialização em Psicologia Clínica com Crianças da PUC-Rio. Membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Diretora-presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê (Abebe).
1 Trabalho apresentado no evento “Transferência e interpretação na clínica psicanalítica com crianças”, realizado no Instituto Sedes Sapiens, em 8 de novembro de 2008.

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