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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Sobre transferências e transformações1

 

About transferences and transformations

 

Sobre transferencias y transformaciones

 

 

Elsa Vera Kunze Post Susemihl*

Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de uma preocupação com certo esgarçamento conceitual observado no campo psicanalítico, a autora faz um rastreamento resumido da origem e do desenvolvimento do conceito da transferência em Freud, Klein e Bion, com especial destaque para os diferentes campos clínicos no qual o conceito brotou e foi sendo modificado pelos autores referidos. São sublinhadas algumas diferenças e semelhanças nesse percurso, bem como é sustentada a idéia de que deve haver um rigor na nomeação de conceitos e fenômenos, no sentido de contribuir para uma troca científica e um desenvolvimento da psicanálise.

Palavras-chave: Transferência, Situação transferencial, Transformações, Narrativa.


ABSTRACT

Starting from a concern about a certain conceptual stretching observed in the field of psychoanalysis, the author traces back the origins and the development of the concept of transference in Freud, Klein and Bion, with emphasis on the different clinical fields in which the concept was brought upon and modified by the authors above. Some similarities and differences are highlighted in this route, and the idea is put forward that there should be rigor in the naming of concepts and phenomena, in a way to contribute to scientific exchange and the development of psychoanalysis.

Keywords: Transference, Transferential situation, Transformations, Narratives.


RESUMEN

Partiendo de la preocupación con una cierta ruptura conceptual vista en el campo de la psicoanálisis, la autora efectúa un rastreamiento del origen y desenvolvimiento del concepto de la transferencia en Freud, Klein y Bion, con especial destaque para los diferentes campos clínicos de donde surgió el concepto y que fue modificado por dichos autores. Algunas diferencias y semejanzas son subrayadas en este trabajo, bien como es colocada la idea de que debe haber un rigor en la denominación de conceptos y fenómenos, en el sentido de contribuir para el intercambio científico y el desenvolvimiento de la psicoanálisis.

Palabras clave: Transferencia, Situación transferencial, Transformaciones, Narrativa.


 

 

1. Introdução

A, moça de 28 anos relata que está muito decepcionada, já não sabe mais o que fazer, não sente que alguém a compreenda, sente-se só no mundo, nunca vai conseguir estabelecer uma relação de confiança com alguém...

Ao abrir a porta da minha sala de atendimento para receber B, a menina de 6 anos está escondida atrás de seu gibi, que pretende estar lendo de maneira muito compenetrada. Mesmo sendo chamada por mim, repetidas vezes, sequer move os olhos para acusar que tenha tomado consciência ou notícia da minha presença.

Situações do dia-a-dia no nosso ofício de psicanalista: o que elas têm a ver com transferência? Conceito centenário e inaugural da psicanálise, nos seus primórdios claramente definido e circunscrito em uma clínica que se debruçava, na época, sobre as neuroses. Desde então, este conceito sofreu inúmeros desenvolvimentos, decorrentes inclusive dos desenvolvimentos teóricos e técnicos, que mutuamente se influenciaram, levando a tal esgarçamento na atualidade, que a perda da sua especificidade acabou por comprometer a utilidade e a comunicação a respeito do próprio conceito.

Pretendo rastrear aqui a origem do conceito de transferência em Freud e seu posterior desenvolvimento em Klein e Bion, tentando esclarecer as mudanças que foram acontecendo na sua definição a partir dos novos campos de trabalho da psicanálise, primeiro as crianças e depois o psicótico. Será um percurso resumido e limitado pelo recorte que faço e pela limitação de espaço deste texto. Os autores escolhidos a meu ver trazem contribuições fundamentais na discussão deste tema, mas tenho consciência que outros certamente poderiam ser mencionados. Menciono ainda as contribuições de Ferro, ao final, por me parecerem interessantes no sentido de um amplo aproveitamento na clínica dos diferentes aportes. Ao longo do texto, intercalo vinhetas clínicas ilustrativas, que, espero, sejam auto-explicativas e sinalizem a procedência e a razão de toda a nossa teoria.

A questão que me levou ao presente texto e que sempre me acompanha ao longo das discussões científicas psicanalíticas das quais participo é a idéia que, de alguma forma, nos encontramos em uma encruzilhada conceitual em função dos avanços e desenvolvimentos práticos e teóricos da psicanálise. Isto se dá com o conceito da transferência, assim como com vários outros conceitos psicanalíticos, dando margem ao campo de pesquisa conceitual (Dreher, 2008). A encruzilhada a que me refiro aponta, por um lado, para uma direção que seria a expansão, o alargamento até um esgarçamento de um determinado conceito. Com relação à transferência, isto poderia ser uma situação, na qual qualquer relação terapêutica ou, às vezes, inclusive uma relação estabelecida fora da sala de análise, se daria sob o vértice da transferência, perdendo-se de vista a qualquer especificidade do termo. Já a procura de uma especificidade constituiria justamente a outra via apontada nesta encruzilhada, e seria a busca das origens do conceito e a firme manutenção de sua delimitação dentro de um campo específico. Neste caso, as contribuições posteriores que viriam complementar ou ampliar o conceito eventualmente abarcariam o campo deste, mas não se confundiriam com ele. Pessoalmente, a segunda opção é aquela que, penso, ser a mais útil e frutífera, e, nesse sentido, pretendo a partir deste texto examinar e esclarecer de forma resumida a origem do conceito em Freud e seu desenvolvimento a partir das contribuições de Klein e Bion.

Mas voltemos ao princípio de tudo, quando Freud descobriu que ocorria na sua relação com o paciente algo muito peculiar – a reedição e recriação de desejos e fantasias inconscientes pertencentes a outro tempo e lugar, agora na relação com o analista. O campo é o da neurose e do recalque, e a transferência uma alucinação do paciente de que estaria reencontrando no analista figuras do passado, o pai ou a mãe. Já em sua obra e diante dos seus desenvolvimentos teóricos, Freud reposiciona sua idéia sobre a transferência, a partir de novas descobertas a respeito do narcisismo, da pulsão de morte, da compulsão à repetição.

 

2. A origem – Freud

Abro a porta para C, que se encontra recostado na parede e me lança um olhar maroto de menino travesso pego no flagrante pela mãe, e que assim se diverte com essa situação, nada que combine com o homem de 35 anos que se encontra à minha frente.

D, 30 anos, está muito brava e se queixa muito da dificuldade em fazer análise, não se acostuma com essa maneira de conversar e se relacionar, chora e se debate, por que não a consolo, não a trato como a outra terapeuta a tratava e seus pais também ainda a tratam, que a abraçam e a compreendem na sua dor e nos seus sofrimentos, dizendo-lhe palavras confortantes e levantando sua auto-estima...?

O conceito de transferência foi tomando forma na teoria psicanalítica muito cedo, tanto quando Freud estudou a histeria quanto quando se dedicou aos sonhos. Já na época em que ele ainda se utilizava da sugestão no seu trabalho, descreveu um fenômeno psíquico, no qual um afeto do passado aparece na consciência em função de uma falsa conexão estabelecida agora no presente, em relação ao analista (Freud, 1895/1973c, pp. 307-310). Assim, também no sonho a idéia de transferência surge para compreender o efeito que uma representação inconsciente pode ter, ou seja, que ela só é capaz de surtir um efeito quando se liga a uma representação pré-consciente, já existente e inócua, e lhe transfere a sua intensidade, vindo assim a coincidir com ela (Freud, 1900/1973d, p. 568).

No caso Dora, alguns anos mais tarde, Freud volta a observar a transferência, mas ainda não é capaz de um manejo técnico da mesma. Atribui, nesse momento, a interrupção prematura de Dora do seu trabalho analítico a essa sua falha em interpretar a transferência atuante na análise. Mas Freud deixa registrado, no apêndice deste trabalho, talvez sua primeira definição a respeito da transferência:

O que são as transferências? São reedições e recriações de moções e fantasias, que devem ser despertadas e tornadas conscientes ao longo do avanço de uma análise, com a característica que lhes é própria •a substituição da pessoa do médico por uma pessoa do passado. Para dizê-lo de outra forma: uma série de vivências psíquicas antigas são reavivadas, não como pertencentes ao passado, mas na relação atual com a pessoa do médico (Freud, 1905/1973a, pp. 279-280).2

Em 1912, Freud expõe e discute de forma sistematizada sua idéia sobre a transferência de afetos inconscientes ligados ao complexo de Édipo e sendo atualizados na relação analítica: “...o médico será inserido numa das ‘séries’ psíquicas que o paciente já formou” (Freud, 1912/1973e, p. 365). A relação do paciente com as figuras originais, isto é, com os primeiros objetos encontrados na vida, mãe e pai, é revivida na relação com o analista, em todos os seus coloridos e suas nuances emocionais, basicamente expressando os impulsos amorosos e hostis não satisfeitos e recalcados. Nesse sentido, a transferência passa a ser um processo fundamental a ser observado e elaborado no contexto de uma análise, pois se encontra imbricado nas formulações básicas teóricas e técnicas. A transferência é uma maneira de acessar o conteúdo recalcado, outra que a rememoração perseguida por Freud, mas uma via pela qual o material recalcado se apresenta. Ela assim passa a ser uma ferramenta de trabalho e oferece uma via de acesso ao inconsciente e ao conflito do paciente. A transferência é aqui discutida na sua dupla face, como positiva ou negativa em relação ao tipo de sentimento e pulsão pela qual está sendo movida (amor ou ódio) ou ainda no seu duplo aspecto de resistência ao trabalho ou de ajuda na revelação dos conteúdos recalcados.

A idéia de transferência é tão presente na análise, que se passa a falar no estabelecimento de uma neurose de transferência como parte essencial do trabalho analítico (Freud, 1914/1973b).

Mas o mais importante, dominar a compulsão à repetição do paciente, reside no manuseio da transferência. Tornamos a compulsão inócua ou, melhor ainda, tornamo-la útil na medida em que lhe damos a possibilidade de se expressar em um determinado campo. Para tal, oferecemos a transferência como um espaço no qual a compulsão possa se esbaldar, onde lhe é permitido se manifestar em total liberdade e onde ela deve nos apresentar tudo o que se encontra oculto na vida psíquica do analisando com relação a pulsões patológicas. Se o paciente apresentar uma colaboração mínima de respeito às condições necessárias para que o tratamento possa ocorrer, somos então em geral bem-sucedidos em dar a todos os sintomas da doença um novo sentido transferencial e substituir sua neurose geral por uma neurose de transferência, da qual ele pode se curar através do trabalho terapêutico. A transferência propicia desta forma um reino intermediário entre a doença e a vida, através do qual se dá a passagem da primeira para a segunda. A nova situação adquire todas as características da doença, mas trata-se de uma doença artificial e que está sujeita às nossas intervenções. É ao mesmo tempo uma parte da vivência real, possível em função de condições bastante favoráveis, e é provisória por natureza. Através das reações de repetição que se manifestam na transferência, caminhos conhecidos levam então para o despertar de lembranças, que assim ocorrem sem esforço após a superação da resistência (pp. 134-35).

Observa-se ao longo da obra de Freud e das sucessivas modificações na sua teoria (narcisismo, pulsão de morte, compulsão à repetição, reformulação da teoria do aparelho psíquico e da teoria da angústia) como a noção de transferência foi sendo redefinida em função destas modificações. No entanto, ela permaneceu ao longo de todo esse percurso um ponto nodal e central na teoria e na técnica psicanalítica. Ela se encontra especialmente imbricada com aquilo a que chamamos de infantil em psicanálise, ou seja, temas como a sexualidade infantil, o complexo de Édipo e a atemporalidade do inconsciente. As relações significativas emocionalmente do passado infantil com os primeiros objetos de ódio-amor, isto é, o triângulo edípico nas suas diferentes configurações ao longo do desenvolvimento, as marcas ou precipitados que se sedimentam no inconsciente a partir do recalque formando o infantil •esta é a matéria-prima que se apresentará na análise em forma de neurose de transferência. Nota-se que estamos falando aqui de transferência de relações do passado com pai e mãe, sempre lembrando que as relações em jogo não se pretendem objetivas ou realistas, mas se referem à maneira subjetiva pela qual o indivíduo as viveu, ou seja, pertencem à realidade psíquica do paciente. Ou, dito de outra forma, o que é de fato transferido é a realidade psíquica do analisando.

Outro aspecto observado por Freud e característico da transferência é o seu caráter alucinatório – ao transferir para o analista relações do passado para o presente, ao tratar o analista como seu pai do passado, vivo em sua realidade psíquica. Por exemplo, podemos supor que o paciente esteja alucinando, na medida em que vê alguém, o pai, onde ele não se encontra, ou melhor, onde existe outro, no caso o analista, que desta forma não pode ser reconhecido. Esta situação pode ser útil em uma análise, pois indica ou revela algo do passado do paciente, algo de sua relação com seu pai ou mãe no passado; por outro lado, ela é bastante inútil também, pois priva o paciente da experiência de se haver com seu analista presente.

Ainda mais um aspecto a ser sublinhado com relação à transferência, nesta concepção inaugural de Freud, é que ela brota no campo clínico e teórico das neuroses, isto é, estamos lidando com uma idéia de aparelho psíquico que está dividido em consciente e inconsciente e onde existe um recalque em andamento. Ou, ainda, podemos falar de um aparelho mental estruturado em instâncias psíquicas com id, ego e superego. Neste campo, os processos transferenciais se opõem a uma simbolização, ou seja, existe algo que se encontra recalcado no inconsciente, que, a partir desta condição, pode ser transferido para o analista através da compulsão à repetição e por meio de uma ação, ainda antes de poder ser lembrado por meio de um pensamento ou uma idéia. A transferência, por um lado, está ligada a processos que não têm acesso direto ao pré-consciente por estarem recalcados, por outro, conta com um aparelho mental dividido em consciente e inconsciente através do recalque, e que por esta condição possibilita a passagem ao ato, ao sintoma, à transferência, assim como ao sonho e, finalmente, à lembrança. A impossibilidade de analisar um paciente psicótico é, então, uma conseqüência coerente neste campo de pesquisa e atuação psicanalítica, e Freud tinha bastante clareza a respeito desta limitação teórica e técnica.

Resumindo, até aqui temos:

· a transferência entendida como uma repetição do passado – da relação com os objetos primários “, que foi recalcado e não pode ser lembrado;

· agir e atuar versus simbolizar – há algo que existe no inconsciente, há um aparelho psíquico estruturado em instâncias psíquicas, há recalque que possibilita que algo pode ser transferido e assim rememorado. Esta situação a princípio difere daquilo que Freud reconhece como o campo da psicose;

· a questão da atemporalidade do inconsciente, passado/presente – o infantil;

· o caráter alucinatório da transferência.

 

3. A ampliação – Klein

Quando recebo E, 2 anos e meio, pela primeira vez com sua mãe, ele mal me dá tempo pra me apresentar, tão rapidamente adentra curioso a sala de atendimento, indo direto para os brinquedos, olha, vai examiná-los com liberdade, enquanto conversa com a mãe e comigo.

F chega à sua sessão aos berros, no colo de sua mãe, que me conta que a filha de 3 anos está com muito medo de um animalzinho que existe na sua caixa lúdica... Lembro-me então do tratamento sádico que ela havia dispensado na sessão anterior àquele animal, e a mim, durante o seu jogo.

G vinha faltando e atrasando com freqüência, fato para o qual o descuido e abandono que vivia em sua família não ajudavam, não tinha quem o lembrasse das suas sessões e brincava com a fantasia de se tornar um menino de rua. No final da sessão, depois de um encontro, durante o qual havia desenvolvido uma conversa e um convívio agradável com a analista, ele comunica que não virá mais. Quando nota o impacto que a comunicação, pela maneira que foi feita, causa na analista – pois, por segundos, esta acreditou que de fato ele não mais voltaria”, ele ri e diz que tinha sido só uma brincadeira...

Ao se dedicar à clínica com crianças, Klein precisou se confrontar com a questão da transferência. Como esta se daria com a criança que ainda permanece de fato ligada aos seus objetos primários, aos seus pais reais? Como, nestas condições, poderia se dar a transferência ou a neurose de transferência? Ao longo da sua experiência analítica e dos debates mais ou menos acalorados que se deram em torno desta questão, inclusive com Anna Freud,3 Klein sustenta com firmeza que a transferência também ocorre no trabalho analítico com crianças e pode ser aqui um instrumento de trabalho útil. Vale observar que a sua compreensão a respeito dos fenômenos transferenciais sofre certa ampliação em relação à definição de Freud, que tentarei descrever a seguir.

Nos seus atendimentos das pequenas crianças, Klein faz novas descobertas, por exemplo, a de que pode ser observado muito cedo nelas um superego primitivo e severo que, em geral, está em contradição com os verdadeiros objetos de amor da criança, ou seja, seus pais. Este superego precoce antecede e está na origem daquele descrito por Freud. Da mesma forma, também observa muito precocemente formações triangulares atuantes na mente das crianças, que, em forma de um complexo de Édipo precoce, antecedem as situações edípicas mais desenvolvidas descritas por Freud. Klein ainda descobre um mundo interno na criança (e no adulto também) povoado de objetos internos, que são o resultado da introjeção das relações emocionais que a criança tem com seus objetos externos reais. Nota-se que a introjeção é da relação emocional, isto é, da relação carregada de afetos, tanto de amor quanto de ódio, nas suas mais diferentes misturas e tonalidades. Tais relações com os objetos do mundo externo vão se colorindo com base nestes afetos e vão sendo introjetadas, permanecendo no mundo interno como objetos internos com diferentes significações emocionais e afetivas. São estes os objetos bons e maus que compõem o mundo interno, e que são resultado daquilo que existe no mundo externo, amalgamado com as projeções feitas nesse mundo externo e que voltaram para dentro. É também a partir destas observações e descrições iniciais que mais tarde Klein formulará a idéia de duas configurações mentais específicas que compõem a vida mental, a saber, a posição esquizoparanóide e a posição depressiva.

O quadro que o paciente faz em sua mente a respeito dos pais foi distorcido em graus variados pelos processos infantis de projeção e idealização, e muitas vezes retém muito de sua natureza fantasiosa. Em resumo, na mente jovem da criança toda experiência externa está entrelaçada com suas fantasias e, por outro lado, toda fantasia contém elementos da experiência real, e é somente através da análise da situação transferencial em profundidade que nos tornamos aptos a descobrir o passado tanto nos seus aspectos realistas quanto nos fantasiosos (Klein, 1952/1993b, p. 54).4

Em Klein, então, é esse mundo interno que vai ser de fato transferido na relação analítica, ou seja, a criança projeta e transfere as suas diferentes relações objetais internas, atualizando-as na sessão externamente com o analista. Notamos, aqui, claramente, a ampliação imprimida por Klein na noção de transferência, quando não mais a entende como uma transposição de uma relação emocional com um objeto, isto é, com uma pessoa no passado para o presente e para a pessoa do analista como o vimos em Freud, mas, ao contrário, refere-se agora à transferência do mundo interno para o mundo externo – à transferência da relação com os diferentes objetos internos, bons e maus, parciais ou totais, para toda a experiência atual no mundo externo, que naturalmente inclui o analista como um dos seus principais focos. É neste sentido que encontramos em Klein a menção a uma situação transferencial ao invés de uma neurose de transferência, destacando neste nome esta característica acentuada por ela. Durante a análise e através da interpretação desta situação transferencial, o sentido emocional destas relações internas será elucidado e discriminado, possibilitando a discriminação entre amor e ódio e dentro e fora. Dessa forma também, através do contato da criança com seu inconsciente, o seu ego poderá se desenvolver e aferir melhor sua relação com a realidade.

Uma maneira particular pela qual a transferência pode se expressar no trabalho com crianças foi cedo descrita por Klein e se dá no seu brincar. Klein (1929/1992b) mostra como entende a transferência do mundo interno da criança durante seu brincar, quando esta transfere para os personagens que inventa no seu jogo, por meio dos mecanismos psíquicos de divisão e projeção, as diferentes relações entre seus objetos internos, aspectos das instâncias psíquicas id, ego e superego, bem como todo um mundo de emoções como agressividade, ataques hostis, voracidade, inveja, amor, culpa e gratidão. Klein, neste texto, descreve a formação do superego a partir de várias camadas de identificações, que tendem a se sintetizar ao longo do desenvolvimento. Estas identificações, muitas vezes opostas entre si e ambivalentes, podem se decompor e suas diferentes partes podem ser projetadas em personagens durante o brincar através da personificação.

Cheguei à conclusão que esse splitting do superego em suas identificações primárias, introjetadas nos diferentes estágios do desenvolvimento, é um mecanismo análogo e intimamente ligado à projeção. Creio que estes mecanismos (de splitting-up e projeção) constituem o principal fator na tendência à personificação no brincar. Por meio destes mecanismos, a síntese do superego, que só é capaz de ser mantida com certo esforço, pode ser abandonada momentaneamente e, ainda, a tensão de ter que manter a trégua entre o superego como um todo e o id também diminui. Desta forma, o conflito intrapsíquico se torna menos violento e pode então ser deslocado para o mundo externo (Klein, 1929/1992b, p. 205).

Klein, a seguir, assinala que este mecanismo de personificação é a base da transferência – é através deste mecanismo que podemos observar a transferência na análise de crianças.

Notamos, então, que o enfraquecimento do conflito ou o seu deslocamento para o mundo externo por meio de mecanismos de splitting-up e projeção é um dos principais estímulos para a transferência e uma força propulsora no trabalho analítico (Klein, 1929/1992b, p. 208).

Observamos também neste texto como algumas características básicas da idéia de transferência em Klein já são destacadas, a saber, que ela está relacionada com as introjeções dos objetos e das imagos precoces, que são, a seguir, dissociadas ou decompostas e projetadas e que têm suas partes transferidas para os diferentes personagens do jogo infantil ou da situação analítica como um todo. Klein encerra o texto sublinhando o papel ou a função do analista:

Em outras palavras: um dos principais objetivos da análise – a modificação gradual da excessiva severidade do superego – é obtido quando o analista assume os papéis que a ele são atribuídos na situação analítica. Esta afirmação simplesmente exprime o que conhecemos como uma demanda na análise de adultos, ou seja, que o analista deve ser simplesmente um meio em relação ao qual as diferentes imagos podem ser ativadas e as fantasias podem ser experimentadas para que possam ser analisadas (Klein, 1929/1992b, pp. 208-209).

Klein desenvolve estas idéias ao longo dos seus inúmeros textos, sendo que em 1946 fará uma síntese teórica, formulando a partir da personificação o mecanismo de identificação projetiva. As descrições da identificação projetiva e das duas posições psíquicas, a esquizoparanóide e a depressiva, iluminam profundamente o trabalho analítico, abrindo um novo e amplo campo de desenvolvimentos teóricos e técnicos.

É importante notar que todas as contribuições de Klein nos aproximam de uma situação interna psíquica bem mais arcaica e primitiva do que aquela descrita por Freud, e que traz em si uma semelhança acentuada com o mundo apresentado pelo psicótico. As formulações apresentadas em 1946 vêm agora contribuir para a melhor compreensão de mecanismos e processos mentais em andamento nesta situação mental primitiva.

Podemos dizer então que a partir destas contribuições, a análise e a transferência adentram o campo dos fenômenos psicóticos. Nesse momento, a transferência está muito longe da sua concepção original, pois o campo se compõe de um aparelho mental cindido, de partes do self fragmentadas, de objetos parciais projetados e reintrojetados, da utilização excessiva de mecanismos de defesa como renegação, idealização, onipotência, cisão e identificação projetiva.

Minha concepção de que a transferência tem suas origens nos estágios mais iniciais do desenvolvimento e nas camadas profundas do inconsciente é bem mais ampla [do que entendê-la em termos de referências diretas ao analista no material do paciente] e contém uma técnica, na qual os elementos inconscientes da transferência são deduzidos a partir da totalidade do material apresentado (Klein, 1952/1992b, p. 55).

Klein apresenta, aqui, claramente, sua idéia a respeito dos fenômenos transferenciais e sua origem, sublinhando, ao mesmo tempo, que a atenção do analista se volta à totalidade das comunicações do paciente na sessão, pois a transferência do seu mundo interno está presente em toda a situação do encontro. Da mesma maneira, também estas comunicações do paciente sobre sua vida diária e suas relações:

...não oferecem somente um insight sobre o funcionamento do ego, mas revelam também – quando exploramos o seu conteúdo inconsciente – as defesas contra as ansiedades que foram atiçadas na situação transferencial. Pois o paciente está fadado a lidar com as ansiedades revividas em relação ao analista pelos mesmos métodos pelos quais lidou com elas no passado (1952/1993b, p. 55).

Klein, neste texto da maturidade, retoma mais uma vez a transferência à luz das relações objetais primitivas, mostrando que aquilo que observamos como transferência na sessão tem sua origem e suas raízes nas primeiras relações objetais, sendo necessário ter em mente que o nosso campo de interesse cobre toda a extensão que vai desde estas primeiras relações objetais até as atuais que estão baseadas nelas e, ainda, que para que ocorra um desenvolvimento psíquico durante a análise é necessário que se faça muitas e, muitas vezes, as conexões entre estes dois momentos – é somente através da investigação desse interjogo que o passado e o presente podem se aproximar na mente do paciente. É interessante ressaltar que neste texto tardio notamos ainda sua grande proximidade com Freud quando, no último parágrafo, ela menciona que a compulsão à repetição se dá por conta da pressão exercida pelas primeiras situações de ansiedade, acrescentando que, quando as ansiedades persecutórias e depressivas e a culpa diminuem, diminui também a pressão para repetir sempre experiências fundamentais, e desta forma padrões primitivos e modos de sentir são mantidos com menos tenacidade (Klein, 1952/199b, p. 56).

Destaco como pontos importantes no desenvolvimento do conceito de transferência em Klein:

· o movimento da transferência para a situação transferencial, que abarca a transferência do mundo interno atual do analisando para toda a situação analítica, compreendendo a totalidade dos eventos emocionais em jogo no encontro com o analista;

· o mecanismo de personificação presente no brincar como base da transferência na análise com crianças;

· a descrição detalhada daquilo que o mundo interno contém, ou seja, os objetos internos parciais, cindidos, as fantasias, as defesas, as instâncias psíquicas, sendo que as relações atuais do mundo interno sempre estão baseadas nas primeiras;

· relações objetais e são dominadas pelas fantasias;

· a investigação de camadas muito arcaicas da mente e do funcionamento mental;

· a ampliação do campo da transferência, abarcando agora os fenômenos da psicose.

 

4. A expansão e a delimitação – Bion

Ao abrir a porta do meu consultório, ouço o cumprimento de H: “Oi, Elsa, tudo bem?”, antes mesmo de ter tido tempo de abrir a porta o suficiente para que seu olhar pudesse captar minha presença e meu olhar, para que uma comunicação pudesse ser efetuada.

I passa sessão após sessão perdida em lembranças traumáticas do seu passado, relativas à morte e doença de entes queridos, trazendo inúmeros detalhes desses momentos de horror que viveu há muitos anos. Não se trata exatamente de lembranças, pois enquanto conta, vive e revive estes acontecimentos, presentificando-os novamente na sala de análise, ficando imersa na sua descrição minuciosa dos eventos, levando-me a notar que por meio de uma compulsão à repetição presentifica seu passado traumático de uma forma peculiar – uma parte cindida de sua mente se faz presente sob forma alucinatória.

J, menino de 6 anos, novamente senta em sua mesinha e pega seu ‘controle’ feito de argila, o qual vai mexendo como se mexe um controle de videogame, enquanto olha para a parede e faz a locução do jogo de videogame que vê acontecer na tela “ uma parede branca.

Bion se dedicou por alguns anos ao trabalho psicanalítico com psicóticos e, de maneira análoga ao que ocorrera com Klein em relação às crianças, ele também pôde descobrir e aprofundar o seu conhecimento a respeito dos mecanismos presentes na relação analista-analisando a partir de uma dedicação profunda, de uma séria reflexão e da utilização rigorosa do método psicanalítico ao novo campo de trabalho da psicose.

Bion se utilizou da observação da identificação projetiva e do seu potencial de comunicação na relação analítica. Contendo em sua mente conteúdos provocados pelo paciente a partir da identificação projetiva, o analista tem um acesso ao mundo emocional do paciente. Na medida em que o analista vem a conhecer dentro de si algo dos climas emocionais provocados pelo paciente, o analista pode devolvê-los de forma ‘digerida’ ao paciente, ajudando-o a entrar em contato e integrar alguns aspectos cindidos de seu self. Esse uso extenso da possibilidade comunicativa da identificação projetiva lançou o foco sobre a relação que se estabelece em uma análise entre analista e analisando. A sessão analítica é assim compreendida como um encontro entre duas pessoas, uma relação que se estabelece entre duas pessoas e produz um grande impacto em ambas, desencadeando um processo de comunicação.

A partir desta sua experiência e da dificuldade em que se viu ao trabalhar com a personalidade psicótica (Bion, 1967), ele formula a idéia de um distúrbio do pensar que consiste na falta de uma função denominada alfa, responsável pela aprendizagem emocional e pelo desenvolvimento emocional. Apoiado na idéia de trabalho onírico apresentada extensamente em Interpretação dos sonhos (1900/1973d) por Freud, Bion notou a importância de pensar em elementos como continente/contido e função alfa, esta uma função da mente atuante na personalidade neurótica e que transforma elementos básicos, ‘crus’ de uma experiência emocional em elementos ‘digeridos’, que podem ser armazenados e depois reutilizados pela mente (Bion, 1962). Não deixa de ser um modelo bastante útil para observar os processos envolvidos naquilo que costumamos muitas vezes chamar genericamente de simbolização ou representação, ou da atividade de simbolizar ou fantasiar da mente.

Estamos lidando aqui, então, com uma situação particular, na qual não podemos contar com um aparelho mental apto a pensar, isto é, apto a associar e a compreender interpretações simbólicas e transferenciais. Aquém desta situação, faz-se necessário se deter não somente no conteúdo do pensamento, mas também no próprio aparelho mental para pensar e no seu desenvolvimento. A relação analítica passa assim a ter um novo sentido, ou seja, a possibilidade que o par analista-analisando tem para construir e sustentar uma relação que contenha e dê sentido às experiências emocionais que vão se desenrolar durante a sessão e ao longo dos encontros. Essa experiência possibilitará o desenvolvimento da função alfa e a construção do aparelho para pensar. Dessa forma, os elementos das diferentes experiências emocionais podem ser vividos e ao final ser esquecidos, ou seja, podem vir a ser também recalcados e assim se tornarem inconscientes.

Neste campo, a idéia de transferência, como Freud a definiu e, mesmo, como Klein a ampliou, não me parece mais poder ser aplicada. Estamos diante de uma situação onde não existe um objeto total, nem objetos parciais, mas eventualmente fragmentos dispersos de partes de objetos amalgamados com partes de ego e superego, sendo que estas partes não são projetadas dentro do analista, mas são atiradas no espaço, no infinito. Penso que a única coisa que une uma experiência desta àquela descrita por Freud é que estamos diante de algo que ocorre na sessão e que, provavelmente, é muito similar ao que o paciente faz também em outros lugares.

Somente poucos anos mais tarde, Bion (1965) faz uma nova formulação que tem como objetivo ser um instrumento para a observação dos fenômenos psíquicos, basicamente aqueles que se dão em uma sala de análise no encontro entre analista e analisando. Enfatizando não pretender apresentar uma nova teoria psicanalítica, mas tão-somente discutir teorias sobre a prática da observação psicanalítica (p. 16) – ‘sugerindo um método de aproximação crítica da prática psicanalítica’ (p. 6) – ele estuda os processos de transformação que ocorrem na mente do analista e do analisando na sessão de análise. A experiência original (O) que vai ser transformada e representada por palavras (associações pelo paciente e interpretações pelo analista) é a experiência emocional que tem lugar quando ambos, analista e analisando, se encontram para análise. Define a seguir algumas modalidades de transformação que podem ser observadas no analisando durante a sessão analítica. Dentre as possíveis transformações que o analisando pode fazer desta experiência inicial e nova, a transferência tal como foi descrita por Freud constitui um caso particular. O paciente, então, transforma a situação atual com o analista transferindo em bloco para ela a experiência com uma pessoa do passado. O movimento de sentimentos e idéias de uma esfera de aplicabilidade para outra (passado/presente), leva Bion a denominar esta transformação de transformação em movimento rígido, destacando que há ali pouca deformação entre a experiência original e a resultante (p. 18). Contrastando com a transformação em movimento rígido, Bion observa a transformação projetiva, quando o paciente faz um uso acentuado dos mecanismos de identificação projetiva e splitting, conforme Klein os descreveu. Neste tipo de transformação, eventos muito distantes do relacionamento atual com o analista são considerados pelo analisando como aspectos da personalidade do analista (p. 30). A experiência inicial (O), nesse sentido, não coincide para ambos, pois o analisando já incluiu nela características que antecedem a experiência comum a ambos na sessão analítica. A deformação neste caso é bem mais intensa exigindo do analista a atenção e “...compreensão do processo de representação que vai ajudar a compreender a representação e o que está sendo representado a partir desta transformação” (p. 34). Ainda outra categoria de transformação é descrita sob o nome de transformação em alucinose, quando Bion aponta para uma transformação feita pelo paciente, do encontro com o analista, na qual está em andamento um processo de alucinose que pode ser sutil e eventualmente passar despercebido pelo analista. Sem comprometer uma conversa aparentemente coerente ou um diálogo aparentemente colaborativo, o paciente se esquiva do contato por meio de pequenas alucinações. Vale notar, porém, que todas as transformações aqui descritas se dão em um meio de alucinose, inclusive a de movimento rígido, como, aliás, Freud também já havia observado. As últimas duas transformações seriam mais próprias de um funcionamento psicótico, o que no entanto não significa serem próprias exclusivamente do paciente psicótico, pelo contrário, encontram-se atuantes também nas personalidades neuróticas.

A questão subjacente às transformações observadas e descritas assim por Bion é a possibilidade de apreender e estar em contato com a realidade psíquica, o que é dado pela condição maior ou menor de suportar a dor envolvida nesse contato. Aqui, mais uma vez Bion se baseia nas idéias de Freud formuladas nos Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911/2004), ou seja, a evitação da dor (princípio do prazer-desprazer) e o desenvolvimento do aparelho mental (para pensar) que para tanto precisa suportar também a dor (princípio da realidade). Freud retoma essa questão alguns anos mais tarde nos seus textos sobre Neurose e psicose (1924/2007), agora a partir da sua segunda teoria do aparelho mental, na qual formula o modelo das instâncias psíquicas id, ego e superego: “...a neurose seria o resultado de um conflito entre o Eu e o Id, ao passo que a psicose seria o resultado de uma perturbação nas relações que Eu mantém com o mundo externo” (p. 95). Tratará agora a questão da apreensão e aproximação da realidade psíquica e da realidade material através do conflito entre estas instâncias internas. A meu ver, tanto aqui como em Bion, a questão básica é qual a condição que temos e como podemos nos haver com a nossa realidade psíquica interna e com a realidade externa material que nos cerca? Como podemos apreendê-las e suportar as dores, angústias e renúncias decorrentes? Quais os compromissos possíveis e qual o preço que pagamos? As reflexões de Freud se dão em torno do seu modelo estrutural e econômico, do conflito e da primazia de uma instância sobre a outra. Já em Bion podemos pensar nesta questão a partir dos diferentes graus e tipos de transformações que a mente é capaz de produzir alucinadamente para se distanciar daquilo que para ela parece ser insuportável, a realidade psíquica. Ou, ainda, quando por diferentes fatores em jogo a mente não pode ter um desenvolvimento adequado para se constituir em um aparelho de pensar e, dessa maneira, está fadada a distorções e transformações perenemente. Penso que estas contribuições iluminam e ajudam muito a pensar a questão proposta por este trabalho. É uma abertura para descrever e nomear uma série de experiências analíticas que, a meu ver, não cabem mais no conceito clássico de transferência.

Resumo, então, alguns pontos básicos acrescentados ao nosso tema por Bion:

· observação minuciosa do funcionamento da personalidade psicótica, trazendo grandes contribuições para a psicanálise neste campo;

· uso amplo da função de comunicação da identificação projetiva;

· foco na construção do aparelho para pensar, além do conteúdo dos pensamentos;

· transferência como um caso particular de transformação – a transformação em movimento rígido;

· transformação projetiva, transformação em alucinose;

· inclusão do analista no campo de observação, oscilando de uma atividade interpretativa para uma operação de transformação das identificações projetivas pela mente do analista.

 

5. Certo manejo clínico – Ferro

Faço agora uma breve menção a Ferro que, baseado nestas idéias de Bion e não abrindo mão das contribuições de Freud e Klein, desenvolveu uma maneira bastante interessante de trabalhar.

A partir dos desenvolvimentos de Bion, Ferro (1997/1998) se detém principalmente na investigação dos processos mentais atuantes na dupla durante o seu encontro, no momento vivo da análise, tendo como foco os movimentos de aproximação e afastamento da dupla diante daquilo que a experiência emocional atual propõe. Para tanto, o material e as comunicações do paciente são basicamente compreendidos como referências ao campo relacional, expressando a maneira particular em que ele percebe estes movimentos de aproximação e afastamento do analista. Para Ferro, o que importa na análise, então, é antes de tudo a operação afetivo-emocional que se realiza entre analista e analisando, pois é a relação mesmo que trará a possibilidade de se pensar os pensamentos, de se construir a narrativa necessária. O foco não está no conteúdo das associações a ser compreendido e interpretado, mas antes de tudo na possibilidade de criar um campo, uma relação que abrigue pensamentos e possibilite associações.

Ferro tem uma postura que me parece interessante, pois apresenta sua maneira de trabalhar como um vértice possível, apoiado nas contribuições de Bion, e que se complementa e está em relação com o vértice da História (Freud) e do Mundo Interno (Klein). Existe para Ferro uma oscilação entre as noções de transferência, conforme entendida pelo vértice da História (Freud) ou do Mundo Interno (Klein), com o da reescrita dos fatos emocionais, feita pelas duas mentes, conforme ocorre no vértice da Relação. Na medida em que a narrativa é tecida pelo par analista-analisando, e que através dela a experiência emocional em andamento produz elementos alfa e sentidos, ela contribuirá para a formação do aparelho para pensar. Assim, esta narrativa estará relacionada com o mundo interno e com a história, e os aspectos correspondentes a estes vértices também serão tocados, mesmo que não diretamente nem explicitamente. O analista deve deixar-se envolver e capturar pelas forças do campo para, depois, em um segundo momento, recuperar ‘uma tercialidade’ através da interpretação e daquele ‘segundo olhar’ que permitirá olhar com distância o processo para cuja constituição o analista contribui, mas cuja especificidade ele deve ser capaz de captar e descrever (Ferro, 1997/1998, p. 85). Neste sentido, a decodificação de significados, tanto relativa à história pregressa quanto ao mundo interno, cede lugar à construção de sentidos e de novas histórias que vão se apresentando ao par para serem pensadas e contadas, e que depois de elaboradas e transformadas podem voltar a se depositar na História e fazer sentido no Mundo Interno. “Trabalhar no aqui e agora não significa certamente fazer contínuas interpretações sobre o que está acontecendo no hoje; significa simplesmente que o processo de simbolização acontece dentro da sessão e que o que o paciente ‘traz’ deve encontrar um acolhimento para uma transformação narrativa no hoje” (Ferro, 1997/1998, p. 77). Aqui se dilui a concepção de uma transferência do paciente incidindo em um analista, que se coloca em uma posição exterior à relação como mero observador dos processos inconscientes do paciente.

Ferro faz uma observação interessante quando define como lugar de conhecimento a realidade do Mundo Interno e da História, e como lugar de transformações a realidade emocional da Relação no Campo (Ferro, 1997/1998, p. 105). Ressalta, aqui, a prioridade da relação emocional viva sobre qualquer outro tipo de comunicação. “A verdade relacional é o único lugar possível das transformações, sendo as outras duas realidades o lugar do conhecimento. Mesmo que conhecimento e transformação estejam em necessária oscilação entre si” (Ferro, 1997/1998, p. 80).

Merece menção, ainda, apesar de sair de escopo daquilo a que me proponho neste texto, o estudo desenvolvido nas últimas décadas sobre o autismo. Naturalmente, estamos neste campo muito distante de algum tipo de experiência próxima à transferência. Mas resta a questão de como podemos definir o que se dá no encontro da criança autista com o analista? Qual a natureza dos processos mentais neste tipo relação? Cito entre outros Meltzer,5 Tustin,6 Alvarez7 como pioneiros neste campo e que com novas elaborações teóricas ajudaram a abrir o campo para reflexão sobre este tema, trazendo idéias e concepções muito ricas. Infelizmente, porém, a complexidade deste novo campo não poderá mais ser abordada aqui, ficando para ser desenvolvida na oportunidade de um outro trabalho.

 

6. Conclusão

Como breve conclusão deste texto, ressalto a importância de utilizar os conceitos no campo próprio a eles e ter em mente sua origem e sua história. Penso que, desta forma, eventualmente podemos estar mais próximos de uma linguagem conceitual compartilhável, necessária para as trocas científicas e os avanços teóricos e técnicos da nossa disciplina.

Agradeço a Ester Hadassa Sandler
a cuidadosa leitura e comentários
que me ajudaram na maior
precisão do texto.

 

Referências

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Bion, W. R. (1965). Transformations: Change from learning to growth. London: Heinemann Medical Books.        [ Links ]

Bion, W. R. (1967). Second thoughts. London: Heinemann Medical Books.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Elsa Vera Kunze Post Susemihl
R. Gomes de Carvalho, 892/111
04547-003 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3044-6763
E-mail: esusemihl@gmail.com

Recebido em: 03/11/2008
Aceito em: 20/12/2008

 

 

* Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae.
1 Este trabalho está baseado e foi escrito em certa continuidade ao texto “A mudança paradigmática da interpretação na escola inglesa a partir de Klein”, em Gueller, A. de & Lopes, A. (Orgs.), Psicanálise com crianças: Perspectivas teórico-clínicas (cap. XII). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. Sugiro ver para este tema também os caps. IX e X do
mesmo livro, com trabalhos sobre Transferência de autoria de Audrey Lopes e Bernardo Tanis.
2 Tradução livre do texto em alemão pela autora.
3 Petot (1991, p. 102) esclarece que Klein utiliza a expressão neurose de transferência somente uma vez em 1927, em resposta a uma crítica de Anna Freud. Destaca que Klein apresenta uma concepção específica de transferência, referindo-se geralmente a uma situação transferencial, com o que quer designar a projeção no mundo externo e no analista dos objetos internos e do mundo interno. Essa situação já se dá muito precocemente na criança e influencia também a relação da criança pequena com seus pais e outros adultos: “A transferência observada na psicanálise de crianças não é, portanto, um deslocamento da relação com os pais reais para a relação com o analista, mas sim uma aplicação a um novo objeto do mesmo tipo de relação mantida com os pais, a transferência para objetos reais de sentimentos dirigidos aos objetos internos” (p. 105). A diferença desta visão em relação à de Anna Freud é que esta não trabalha com a idéia de imago ou objeto interno, ao contrário, a relação da criança é compreendida a partir dos pais reais; esta relação vai ser estendida ao analista, que, no entanto, não vai substituir os pais e, desta forma, não pode ser considerada como transferência.
4 Tradução livre do inglês pela autora.

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