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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O embrião de um terrorista: exercício de observação dos movimentos de uma sessão durante curso de formação de análise de crianças

 

The embryo of a terrorist: an exercise of observation of the movements in a session as part of child analysis training

 

El embrión de un terrorista: ejercicio de observación de los movimientos de una sesión durante el curso de formación en análisis de niños

 

 

Maria Thereza de Barros França*

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora aborda os principais desenvolvimentos teóricos dos conceitos de transferência e contratransferência, considerando que os movimentos psíquicos de uma sessão, decorrentes do contato entre dois psiquismos, são uma criação conjunta. Em seguida, relata uma sessão de um menino com ansiedades edípicas e dificuldade em lidar com seus impulsos agressivos, descrevendo os movimentos transferenciais, contratransferenciais, o manejo técnico e as bases das interpretações. É ressaltada a representação pelo paciente das angústias: a lúdica construção de prédios em Nova York e sua destruição por ataques aéreos – dois meses antes do real atentado. Sua conclusão é que o exercício realizado no curso de formação de análise infantil, bem como a análise contendo os impulsos destrutivos e fortalecendo as possibilidades reparadoras da criança, são redes sucessivas de construção de significados e favorecedoras de desenvolvimento. E que a idéia de “embrião de um terrorista”, que serviu como continente para a elaboração das dinâmicas envolvidas no caso, representa um desafio para que a psicanálise disponibilize seus recursos a favor da humanidade.

Palavras-chave: Transferência, Contratransferência, Análise de criança, Formação em análise de crianças, Impulsos destrutivos.


ABSTRACT

The author introduces the main theoretical developments of the concepts of transference and countertransference, considering the psychic movements that occur in a session as a result of the contact between two minds as a joint creation. She then presents a session of the analysis of a boy with oedipical anxieties and difficulty in dealing with his aggressive impulses, describing the transferential and countertransferential movements, the technical handling and the bases of the interpretations. It emphasizes the patient’s representation of his anxieties through a playful construction of buildings in New York, and their destruction by aerial terrorist attacks – two months before the actual events took place. She concludes that the exercise carried through in her training on child analysis, as well as the containment in analysis of the destructive impulses and the strengthening of the child’s possibilities of reparation, are networks of progressive representations which favor development. Thus the idea “the embryo of a terrorist” served as a container for the elaboration of the psychic dynamics of the case, and represents an invitation for psychoanalysis to hand out its resources in favor of humanity.

Keywords: Transference, Countertransference, Child analysis, Training in child analysis, Destructive impulses.


RESUMEN

La autora aborda los principales desenvolvimientos teóricos de los conceptos de transferencia y contratransferencia, considerando que los movimientos psíquicos de una sesión, resultantes del contacto entre dos psiquismos, son una creación conjunta. Seguidamente relata una sesión de un niño con ansiedades edípicas y dificultad para manejarse con sus impulsos agresivos, describiendo los movimientos transferenciales, contratransferenciales, el manejo de la técnica y las bases de las interpretaciones realizadas. Se destaca la representación que el paciente presenta de sus angustias: la construcción lúdica de edificios en Nueva York y su destrucción por ataques aéreos – dos meses antes que el atentado real. La autora postula, como conclusión, que tanto el ejercicio realizado dentro del curso de formación en análisis infantil, como al análisis conteniendo los impulsos destructivos – fortaleciendo las posibilidades reparadoras del niño –, son redes sucesivas de construcción de significados y favorecedoras de desenvolvimiento. La idea de “embrión de un terrorista”, que ha servido de continente para la elaboración de las dinámicas envueltas en el caso presentado, representa un desafío para que el psicoanálisis disponga de sus recursos a favor de la humanidad.

Palabras clave: Transferencia, Contratransferencia, Análisis de niños, Formación en análisis de niños, Impulsos destructivos.


 

 

Introdução

Neste artigo, não me proponho a abordar de modo detalhado a questão ampla e polêmica da transferência e da contratransferência em termos teóricos, mas ilustrar uma aplicação na prática clínica com criança. Para isso, considero fundamental uma breve introdução histórica, que situe os conceitos e defina a que me refiro quando utilizo os mesmos. Para quem se interesse em aprofundar o estudo, sugiro o artigo de Orr (1974).

Desde os tempos em que a hipnose era o tratamento utilizado para as neuroses histéricas, podia-se observar que os pacientes desenvolviam uma “paixão magnética” pelo hipnotizador (Gay, 1989).

O atendimento de Anna O. por Breuer chamou a atenção de Freud e, a bem, dizer, inaugurou a psicanálise. A paixão que a paciente desenvolveu por seu terapeuta o pegou de surpresa, provocando turbulências em sua vida pessoal. A transferência também era apontada como assustadora para a paciente, que se via transferindo idéias aflitivas ao médico. Pela primeira vez referindo-se ao termo, Freud (1895/1976a, p. 360) diz que “...a transferência ao médico verifica-se através de uma falsa ligação”, e que o trabalho somente prosseguiria com a remoção de tal obstáculo. Mais adiante, passa a reconhecer que essa aparente dificuldade é na verdade um importante instrumento de trabalho (Freud, 1905). A análise não é responsável por sua criação, e, sim, por sua revelação.

Freud leva em conta o que a sugestão hipnótica não considerava: a resistência e a transferência negativa; é possível também entender porque a melhora dos sintomas com a hipnose era transitória, já que esta incrementava a repressão. Dentro de sua teoria, essa “...classe especial de estruturas mentais, em sua maior parte inconscientes” (Freud, 1905/1976b, p. 113) pode ser entendida como uma das vicissitudes da libido, uma vez que na análise a neurose de transferência seria uma reedição em novos moldes da neurose antiga, escolhendo agora a figura do analista como objeto de satisfação para os desejos libidinais reprimidos. O analista auxilia então o paciente no sentido de retirar a libido dos sintomas e dirigi-la para a transferência, quando, uma vez liberada do objeto, torna-se disponível para o ego (Freud, 1917/1976c). Ou seja, temos um analista que, ao fazer interpretações transferenciais, remove a repressão, torna consciente o inconsciente, preenche lacunas de memória e auxilia o paciente no redirecionamento da libido para seu ego, assim o fortalecendo.

Segundo Racker (1982), na obra de Freud haveria duas tendências aparentemente discrepantes: por um lado, a transferência entendida como resistência (contra tornar consciente o inconsciente); por outro, como resistido (aquilo que se busca ocultar), o que demandaria abordagens técnicas diferentes. O fato é que, assim como em relação aos sonhos consideramos tanto seus conteúdos manifesto e latente, também a transferência pode ser tanto resistência, como resistido, dependendo do ângulo segundo o qual seja considerada.

Para Freud, a análise não seria indicada para crianças nem para os casos de neuroses narcísicas, uma vez que aqui ou a transferência não se desenvolveria ou se daria apenas de forma insatisfatória, ficando a libido bloqueada, impedida de deslocar-se do ego para o objeto. Entretanto, os trabalhos de Abraham, com psicóticos, e de Melanie Klein, com crianças, possibilitaram mudanças teóricas com reflexos na prática analítica, uma vez que a transferência passa a dizer respeito aos objetos internos, ou seja, à transferência de objetos parciais. Klein (1952/1991, p. 78) sugere pensarmos na transferência em termos de “...situações totais transferidas do passado para o presente, bem como em termos de emoções, de defesas e de relações objetais” (grifo meu). Isso evoluiu a ponto de Joseph (1983/1992, pp. 162-163) retomar a proposta de Klein, entendendo que ela sugeria que os relatos da vida cotidiana davam pistas sobre as ansiedades inconscientes estimuladas na situação transferencial. Joseph propõe que “...nossa compreensão e utilização da transferência hoje em dia (...) por definição, deve incluir tudo o que o paciente traz para a relação” (grifo meu).

No que concerne à contratransferência, que, para Freud, dizia respeito a sentimentos inconscientes do analista, mobilizados pelo paciente (como reação à transferência), e que precisariam ser reconhecidos e dominados, os desdobramentos e polêmicas são ainda mais amplos. Levando a um extremo a proposta de Freud, a contratransferência poderia ser encarada até como algo não apenas indesejável, mas quase proibido. Por outro lado, a concepção totalística considera contratransferência a reação emocional total do analista ao paciente e recurso auxiliar para o trabalho analítico.

Paula Heimann (1949/1995) teve importante papel ao defender a proposta de usar o termo contratransferência para designar a totalidade dos sentimentos que o analista vivencia em relação ao seu paciente e utilizá-la como instrumento de trabalho. Como ressalta Grosskurth (1992), embora o artigo de Heimann seja considerado um marco histórico, Winnicott (1947/1978a) apresentara antes dela à Sociedade Britânica seu trabalho sobre a importância de o analista reconhecer sua capacidade de odiar o paciente.

A evolução da psicanálise – com o atendimento de crianças, psicóticos, borderlines, enfim, o contato com pacientes muito comprometidos, a par do estudo dos estados mentais primitivos –, força revisões da técnica e da neutralidade do analista. É inquestionável o fato de que na análise existem dois psiquismos, duas mentes em contato, criando um campo emocional no interior do qual se desenrola o processo psicanalítico. Não se trata de desconsiderar a assimetria existente entre os envolvidos, já que a intimidade não implica pôr abaixo a privacidade do analista.

São inúmeros os desdobramentos a partir da consideração de um campo que se cria no contato emocional entre analista e paciente. Cito alguns autores e suas respectivas proposições.

Winnicott (1951/1978b) – o espaço transicional, que chama a atenção para algo entre os dois.

Ogden (1920/1996) – o terceiro analítico, fruto do encontro analista-paciente.

Bion (1962/1987) – o trabalho com a experiência emocional.

Ferro (2000) – a construção narrativa conjunta, ou seja, os nexos entre narração e a construção a dois da interpretação no interior da sessão.

Entre nós, Herrmann (1991) – o campo transferencial, em lugar de transferência ou contratransferência, já que ele transcende os dois conceitos.

Como diz Botella (2001, p. 257):

La teoría analítica no podrá responder a los nuevos cuestionamientos surgidos de la extensión de la práctica a los casos límite más que por una concepción capaz de atender no sólo al conjunto de los elementos tránsfero-contratransferenciales representacionales y de los conflictos entre instancias, sino también a los procesos, a los movimientos psíquicos que atraviesan de lado a lado los dos psiquismos (grifo meu).

Visto isso, proponho-me a acompanhar os movimentos psíquicos de uma sessão de análise de criança, que apresenta um rico e instigante material. Observaremos os movimentos transferenciais, contratransferenciais, o manejo técnico e as bases das interpretações ocorridas, considerando o campo emocional criado no contato do par analítico.

O exame detalhado dessa sessão consistiu num exercício proposto durante os seminários “Transferência, contratransferência e interpretação na análise de crianças”, dentro do curso de formação de psicanálise de crianças e adolescentes da SBPSP.

 

Apresentação do caso

Gabriel tem 3 anos e 8 meses e apresenta rompantes de agressividade quando contrariado. Depois, ou fica quieto, parecendo entristecido, ou muito aflito. Oscila entre a postura onipotente: “Não tenho medo de nada” e a impotente: “Não sou nada”. É filho único; usa mamadeira e, à noite, freqüentemente passa para a cama dos pais. O pai, por desconforto, se retira. Usa um paninho, seu “boi-boi” (devido à música “Boi da cara preta”), e coloca o dedo na boca para se acalmar.

Meu primeiro contato com ele se deu em 10 de julho de 2001.

Na sala, logo que se dirige aos brinquedos da caixa, pega um avião. Determina que eu seja o mecânico: “Senão o avião cai”. Encaixa peças de montar e ‘constrói prédios em Nova York’ – que meteoros e pedras ‘atiradas’ do avião passam em seguida a atingir e destruir. Nesse momento, pede que eu o ajude a manter de pé os prédios atacados.

A sessão que relato a seguir é a terceira após as de observação e a primeira depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 às Twin Towers, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington. O mundo assistiu perplexo a tais atos de extrema violência. As reações foram as mais diversas: inicialmente, estupefação e desespero; em seguida, indignação, desejos de vingança, de reconstrução. Houve também francas manifestações de júbilo, dos grupos políticos antiimperialistas – ou, mesmo, como pude observar em pessoas com posturas políticas de radicalização, sentimentos confusos, que mesclavam, por um lado, identificação com as vítimas inocentes do atentado e, por outro, regozijo pelo fato de “o opressor” sentir na pele o efeito de atos que já perpetrara.

Não é propósito deste trabalho a análise de evento tão complexo em seus significados. Simplificando, entretanto, podemos dizer que estamos diante de mecanismos sádicos primitivos, tão bem descritos por Melanie Klein: ataques, retaliações, triunfo sádico. O grande problema se dá quando o espaço entre fantasia e realidade é anulado. As possibilidades depressivas mobilizam luto e reparação. Nas pessoas cuja destrutividade é um traço marcante da personalidade, esse aspecto virá embalado em justificativas políticas e discursos, muitas vezes, claros, racionais, com uma cisão evidente de sentimentos amorosos.

Enfim, consternada pelos ataques a Nova York, era vívida em minha lembrança a sessão de observação de Gabriel, dois meses antes do episódio. Penso no símbolo de poder que Manhattan representa; um bom alvo para ataques invejosos... Penso nas Twin Towers, como emblemáticas tanto de crianças rivais, como de dois seios, ou mesmo do casal parental. Era clara a angústia de Gabriel ao se deparar com possíveis danos por ele causados aos seus objetos, tão fragilmente constituídos, por um lado, e, por outro, a idealização da potência de sua destrutividade (uma onipotência destrutiva). A realidade estaria confirmando suas fantasias? Tal meu estado de mente ao esperá-lo naquele dia (certa preocupação, em termos contratransferenciais). Como será que ele estaria?

Gabriel está largado sobre o pai na sala de espera, com um paninho encostado no rosto. Enquanto vamos para a sala, diz que está com muito sono, que não quer conversar e que trouxe seu “boi-boi”; desce, levando o paninho, pelo lado do corrimão mais baixo (próprio para crianças; o do outro lado é mais alto). Na sala, deita-se no divã, esfregando o paninho no rosto e colocando o polegar na boca: a cena é pungente.

Sua postura física, tanto na sala de espera, como ao se deitar no divã, o paninho-objeto transicional, o dedo na boca e sua comunicação verbal sinalizaram que o contato, ao menos naquele momento, se daria em um nível mais regredido: de gratificação oral, de reconstituição apaziguadora de uma unidade com o objeto (separado, iria se sentir desgarrado, desamparado?). A transferência seria então de um objeto que se abandona; contratransferencialmente, me inspira cuidado e certa sensação de peso, de lentidão, de desvitalização.

Diz que depois de amanhã vai para X (a cidade para onde a família deve se mudar), e que lá a casa é muito fedida. Pergunto: “O que será que está fedendo?” Diz que é a cama. Pergunto o que vai fazer lá. “Passear.” Eu: “Que tal?” Ele (de modo pouco convincente): “Bom.” Digo que talvez nem tanto; que deixar o que é conhecido não é fácil. Diz de novo que a cama lá é fedida. Fica mais um pouco deitado. Levanta-se e vai para a cadeira.

Quando me fala do mau cheiro da cidade X, penso no projeto de mudança da família, não revelado a ele; ou seja, uso um dado de história. Tal mudança novamente colocaria seus objetos em risco. Além de ficar evidente que é uma criança para a qual o sensorial é importante (o uso do paninho; a cadeira, que acha macia; a vela da sala de espera, que diz ser cheirosa; meu consultório, que considera para seu tamanho), penso o quanto, já que os pais têm a teoria de não abordar o que é aflitivo, ele tem de ficar “farejando” as coisas. Penso também que talvez cheire mal deitar-se na cama com a mãe. Aqui, na sessão, talvez receie algum “mau cheiro” que possa surgir.

Senta-se, deixando o paninho de lado, sobre a mesa. Pega o avião na caixa: “Você viu o bombardeio?” Digo: “Vi, e você?” Responde: “Eu não...” Eu: “Não?!” Ele: “É, eu esqueci...” Digo que aquilo era melhor mesmo ser esquecido.

Creio que ao desfrutar do aconchego proporcionado pelo divã, pela gratificação oral e pelo meu comentário sobre a dificuldade de separação, sente-se fortalecido para enfrentar o desconhecido daquela sessão. Note-se que, considerando-se um contato em fase inicial, meu comentário foi feito em tom genérico e não pressupondo que para ele aquela situação fosse difícil. Em termos transferenciais, um bom objeto é restabelecido e me sinto mais revigorada.

Gabriel pode então deixar seu paninho de lado, pegar o avião e, apostando que não vou “fugir da raia”, trazer o assunto do bombardeio, algo que necessita elaborar, porém é muito temido, a ponto de dizer que não teria visto, ou teria até esquecido. A transferência é de um objeto ameaçador; quanto a mim, observo uma sintonia, no sentido de que minha preocupação inicial era bem fundada. Acredito que meu comentário de que aquilo era melhor mesmo esquecer, sinaliza para ele a possibilidade de aceitar o medo que suas fantasias destrutivas despertam.

Pergunta pela ovelha, com a qual havia brincado na sessão anterior. Fica satisfeito quando a encontra. Exploramos juntos os animais da caixa, colocando-os sobre a mesa. Diz que a ovelha está com sede, que o cavalo é muito guloso e que a vaca tem muito leite; ela faz tanto xixi que enche o chão de leite. Digo: “Que beleza! Essa vaca tem tanto leite que sai até pelo xixi!”

Quando fica satisfeito por reencontrar a ovelha, o que me ocorre é que pôde resgatar dos escombros o objeto inteiro e com vida. O passo seguinte é dramatizar o triângulo edípico, com a ovelha/filho sedenta/o, o cavalo/pai voraz e a vaca/mãe objeto bom idealizado, fonte inesgotável de alimento para necessidades orais/mentais tão intensas e prementes: não há risco de privação, de exclusão, de frustração, de ira destruidora. Talvez em outro nível, menos idealizado, ele encontra em minha mente um espaço privilegiada, que o contém e que o nutre. Na minha fala, pode ouvir que há leite suficiente para todos. A transferência edípica torna-se possível, uma vez que o objeto foi recuperado; contratransferencialmente, sinto satisfação.

Pega os soldados: eles atiram e espetam os bichos. Detém-se nessa brincadeira por algum tempo. Fala algo sobre ataque terrorista. Começa a soltar gases e diz que quer fazer cocô. Pergunto se quer que eu o acompanhe até o banheiro. Diz que não. Pede para eu abrir a porta. Digo que, se ele não conseguir, eu abrirei. Fica satisfeito de conseguir. Da soleira da porta, olha para seu paninho sobre a mesa, parecendo considerar se precisa levá-lo, ou não; olha para mim e diz: “Cuida bem do meu ‘boi-boi.’” Digo que pode deixar, que vou cuidar bem. Fecha a porta da sala.

Uma vez que aqui estaria garantido o “leite das crianças”, voltemos à pesquisa sobre ataques terroristas: gases venenosos, malcheirosos, fermentam nas suas entranhas (evidências da sua analidade sádica); precisa ir ao banheiro livrar-se deles. Aposto na sua capacidade, quando digo que tente primeiro abrir a porta sozinho, e que o ajudarei, caso não consiga. Pode então subir sem seu paninho, que ficará em boas mãos. Garante que de lá não escaparemos e também estaremos protegidos: o bom objeto fica comigo e o mau é deslocado. Sinto uma trégua.

Quando volta, bate na porta. Digo: “Pode entrar!” Entra e deixa a porta aberta. Peço-lhe que feche; diz que se esqueceu, vai lá e fecha. Vem até à mesa. Deita-se meio largado na cadeira; diz que está frio. Digo que os ataques dão frio na barriga e vontade de fazer cocô. Faz que sim com a cabeça. Coloca-se então ereto na cadeira e retoma a brincadeira com os soldados.

Na volta, ao bater na porta, sugere a noção de um espaço delimitado, de a possibilidade da separação ser vivida não como uma dolorosa ou odienta exclusão. Ao anunciar sua chegada, que é consentida, pode ser bem recebido. Precisa ser lembrado de que ele também pode delimitar espaços protetores. Alquebrado pela intensidade das suas angustiadas vivências terroríficas, comenta comigo sobre sentir frio em sua alma/barriga; nomeio seu medo (de modo indireto) e a vontade de livrar-se dele. Podemos, então, retomar a pesquisa. Ou seja, oscila rapidamente de uma transferência de um objeto separado (tridimensional) para um mais primitivo, não-integrado, desmantelado (próprio da bidimensionalidade; Meltzer, 1975/1984), e, de novo, para outro integrado. Durante a sessão, foi clara minha sensação de oscilamento entre desvitalização/revitalização...

Pega o macaco e diz que o pai brinca de macaco com ele. A brincadeira é a seguinte: os soldados batem tanto no macaco que ele morre. Os soldados fazem buracos no chão. Vai ficando aflito e quer saber se está na hora de ir. Digo que ainda temos tempo. Pega os soldados na mão e o paninho. Pergunta se pode brincar lá – e aponta para o divã. Digo que sim.

Agora, entra em cena o pai/macaco, que acaba trucidado pelo seu batalhão de soldados, ávidos por ter o domínio completo e exclusivo sobre todo o território. Os buracos no chão sugerem que os rivais, os mortos nessa batalha cruenta, são numerosos (talvez também indiscriminados) – e isso o deixa muito inseguro, aflito, culpado, temeroso de retaliação? Precisa atacar para sobreviver? Se estiver na hora, pode ser “salvo pelo gongo”? A transferência se dá nos moldes da posição esquizoparanóide. Porém, podemos também pensar na angústia pela proximidade do final da sessão. Confere se pode retomar a postura que lhe trouxe conforto no início da mesma.

Deita-se, esfregando o paninho no rosto. Diz que os soldados vão mergulhar. Joga-os um a um, fazendo-os escorregar para longe de si, para os pés do divã. Digo que, quando a gente é pequeno, ou dorme ou quando vai lá para o fundo, como os soldados, a gente não faz nada de mal. Depois da hecatombe, recupera o objeto protetor, macio. Desloca seus impulsos agressivos para bem longe do seu alcance, criando uma distância entre fantasia e realidade, ou, como se dá no sonho: as fantasias podem ser expressas, uma vez que protegidas não apenas pela transformação onírica, mas igualmente pela paralisia dos movimentos durante o sono. Penso também que quem é “café pequeno”, ou “café com leite”, não inspira ameaça... Novamente, falo de modo genérico.

Estamos na hora. Ao guardarmos os brinquedos, faz o macaco ressuscitar e subir no avião, que aterrissa dentro da caixa.

Ao final da sessão, parece estar acessível a ele a possibilidade de cuidar do objeto (transferência nos moldes da posição depressiva), concedendo-lhe novamente a vida, já que experimentou um espaço capaz de conter suas angústias. Sinto-me satisfeita com nosso trabalho.

Creio que a maior parte das interpretações que fiz caberia naquilo que Ferro (1995) denomina interpretações fracas. No momento, essa é a possibilidade que a dupla tem para se comunicar: tanto por se tratar de um contato em fase inicial com uma criança pequena, quanto pelo tipo de sentimentos envolvidos (explosivos). Penso tratar-se de algo bastante diverso da teoria dos pais (de que devem “poupá-lo”), o que na verdade acaba gerando insegurança. A meu ver, a tentativa é de ir ao encontro, respeitando as possibilidades e os limites e apostando no desenvolvimento. Gabriel mostra-se receptivo (talvez até sedento) às minhas comunicações: seus movimentos em resposta a elas sinalizam nessa direção.

Achei interessante a proposta que Ferro (1995) faz de um exercício, quase lúdico, de transformar um tipo de comunicação expressiva em outro: uma brincadeira em um sonho, ou um relato em uma brincadeira, e assim por diante.

Disso surgiu a possibilidade de pensar no atentado terrorista a Nova York como uma transformação da sessão de observação de Gabriel, bem como que à sessão aqui detalhada caberia a denominação: the day after. Daí o título que me ocorreu para este trabalho: o embrião de um terrorista.

 

Considerações finais

A forma como esta criança representou suas angústias na sessão de observação, exatos dois meses antes do atentado terrorista a Nova York, com a construção de prédios e destruição dos mesmos por ataques aéreos, foi impactante; poderia ser interpretada, de um ponto de vista mais primitivo, como premonição. Desde um vértice psicanalítico, como pensamentos em busca de um pensador (Bion).

Descrevo sucintamente a sessão que se seguiu ao day after.

Gabriel vem todo lépido quando o chamo. Com o indicador e o polegar quase se tocando, em gesto que sinalizava uma quantia mínima, diz que hoje está só com um pouquinho de sono. Desce pelo lado do corrimão alto: “Eu fiquei com muita saudade de você!” Diz que aqui é bom porque a gente só brinca. Dirige-se à caixa: hoje não quer pegar a “ovelha louca”. Conta que esteve no Parque do Beto Carreiro; fala dos aviões que atacaram o World Trade Center, mas que estão juntando tudo para reconstruir. Há o início de uma guerra entre os soldados e os animais, mas isso logo cessa e dá lugar a uma fila organizada ao longo da mesa, de bichos e soldados, alinhados e intercalados. Diz que hoje não vai fazer cocô nem ver o pai. Pega xícaras, pires e colheres, faz café e pudins; serve-se e me serve. Feliz ao ouvir um passarinho cantando próximo à janela da sala, levanta-se e oferece café também para ele. Ao final da sessão, comenta satisfeito: “Hoje quase não teve violência!”

Ou seja, mostra sua capacidade de estabelecer, introjetar e manter um objeto bom; aumenta sua discriminação entre fantasia e realidade; deixa de lado seu aspecto “louco” (de excluído, pequeno, abandonado, tomado pela ira e pela desorganização interna); organiza-se com o auxílio de um mecanismo obsessivo (prenúncio de latência?); mostra, enfim, como pode fazer bom uso da parceria e que, ao conquistar algo bom, muito significativo, é capaz de mobilizar recursos de reparação, sem precisar se alimentar da força da destrutividade.

O exercício efetuado serviu de continente para a analista, assim como a análise colaborou para conter os impulsos destrutivos e fortalecer as possibilidades reparadoras da criança. Podemos pensar na construção de redes sucessivas de significados e favorecedoras de desenvolvimento.

A idéia de “embrião de um terrorista” serviu como continente para a elaboração das dinâmicas envolvidas no caso apresentado – e a força da sua atualidade é um desafio para a psicanálise no sentido de disponibilizar seus conhecimentos a favor da humanidade.

 

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Endereço para correspondência
Maria Thereza de Barros França
R. Alice Macuco Alves, 141
05453-010 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3022-3319
E-mail: tfranca.tln@terra.com.br

Recebido em: 08/11/2008
Aceito em: 20/12/2008

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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