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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Construções da transferência

 

Constructions of the transference

 

Construcciones de la transferencia

 

 

Talya Candi*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo desconstruir a noção de transferência e explorar a dimensão processual do conceito a partir das formulações freudianas, destacando seus aspectos econômicos e dinâmicos. Em seguida, a autora procura refletir sobre a problemática encontrada nos pacientes resistentes ao dispositivo psicanalítico e propõe a necessidade de construir com eles uma relação transferencial, que dependa da possibilidade de o analista instaurar um vínculo de confiança básica com o paciente. Para finalizar, é apresentado um breve relato clínico.

Palavras-chave: Transferência, Processos psíquicos, Confiança básica.


ABSTRACT

In this article the author seeks to analyze the nature and the function of Freudian theory of transference and explore the procedural dimension of this concept. Afterwards the author makes some considerations about patients who resist to the analytical classical setting and sustain the necessity to built with type patient a trusting relationship which will allow the construction of a solid transference for the devolvement of a psychoanalytical process.

Keywords: Transference, Trust, Libidinal investment, Psychoanalytic process.


RESUMEN

Este artículo busca analizar, a partir de las primeras formulaciones freudianas, la naturaleza e la función de la teoría de la transferencia e investigar la dimensión procesal de este concepto. Enseguida, el autor hace una reflexión sobre los pacientes resistentes al encuadre psicoanalítico clásico e sostiene la necesidad de construir junto a estés pacientes una relación transferencial que depende de la posibilidad de establecer un vinculo de confianza entre el analista e su paciente. El artículo concluye con un curto ejemplo clínico.

Palabras clave: Transferencia, Procesamiento psíquico, Confianza básica, Proceso psicoanalítico.


 

 

1. Introdução

Segundo o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1967/1996, p. 492), o termo transferência designa “...o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre alguns objetos no enquadre da relação analítica tendo como modelo um tipo de relacionamento preestabelecido. Trata-se de uma repetição de protótipo infantil vivida com um sentimento marcado de atualidade”. A transferência é um processo pelo qual o infantil se presentifica no encontro com o analista através de um investimento da repetição, que deve possibilitar a rememoração dos conflitos e permitir a elaboração das pulsões narcísicas e objetais. A transferência coloca em ação, no coração do tratamento analítico, o infantil com todo seu potencial traumático de desejos, expectativas e frustrações.

Nosso objetivo, neste artigo, é explorar a dimensão processual desse conceito a partir das primeiras formulações freudianas, destacando eus aspectos econômicos e dinâmicos. Pensamos que a possibilidade de construir um trabalho analítico, em situações por vezes muito pouco auspiciosas, depende da capacidade de o analista sustentar uma tonalidade processual na relação analítica, o que implica a criação de uma atmosfera que sustenta tempos e espaços. Tal como Freud propôs no final da sua obra, em Construções em análise (1937/1969a), procuramos refletir sobre a necessidade de o analista construir com muita paciência uma relação transferencial: processo em que os desejos infantis e as expectativas se reatualizam no encontro com o analista. Tal construção pode exigir um trabalho árduo, pois está atrelada à instauração de um vínculo de confiança básica (Figueiredo, 2008) que, em alguns pacientes, se encontra muito danificada. Nossa experiência nos tem mostrado que na clínica atual, constituída de pacientes particularmente resistentes ao enquadre clássico – “personalidades esquizóides” (Fairbairn, 1940/1974), “falsos-selves” (Winnicott, 1954/1987), “pacientes com defeitos fundamentais” (Balint, 1968/1971) e “borderlines” (Green, 1975/1990a) –, as transferências são pouco analisáveis e qualquer interpretação de transferência provoca muita resistência e uma quebra na comunicação intersubjetiva. Assim, mais do que interpretações e desconstruções, o tratamento exige num primeiro momento a instalação do clima de confiança recíproca entre paciente e analista, o que demanda, por um lado, tempo (alguns anos, às vezes) e, por outro, a possibilidade de pôr em funcionamento um setting adequado, que estabeleça uma distância justa e uma atmosfera não-persecutória entre paciente e analista.

Para nos guiar nas veredas do processo analítico, consideraremos as fases descritas por Meltzer (1967) e destacaremos em particular a primeira fase, na qual acontece, segundo este autor, o reagrupamento e o aprofundamento da transferência. É a condensação das transferências infantis, numa relação significativa e única com o analista, que dá densidade e potência à situação analítica. Esse reagrupamento depende, num primeiro momento, da instalação da “confiança básica” em relação ao objeto externo, que permitirá a reedição de uma relação de dependência. A confiança no analista vai sedimentar as bases para atrair as pulsões, os desejos e as expectativas, narcísicas e objetais, e reagrupar as transferências infantis, estabelecendo assim um campo analítico continente (Baranger, M. & Baranger, W., 1960/1961-1962), em que posteriormente poderá ser observada e interpretada a dinâmica da interação do funcionamento psíquico do analista e do paciente. A noção de processo deve também alertar o analista contra qualquer movimento brusco ou precipitado, considerando sempre que, tal como nos ensina Ferro (2006), uma comunicação de conteúdo excessivo pode provocar a qualquer momento uma fragmentação dos campos intrapsíquico e intersubjetivo, provocando atuações violentas – interrupções da análise, surtos psicóticos ou paranóicos e doenças psicossomáticas – no decorrer do tratamento.

 

2. Transferências e contratransferências: breve revisão subjetiva

Como Freud percebeu rapidamente, transferência implica uma dinâmica e, portanto, um movimento inerente às formações psíquicas. Segundo Laplanche e Pontalis (1967/1996), Freud, em 1900, na Interpretação dos sonhos, utiliza o termo “transferência” para designar os deslocamentos dos investimentos libidinais, o que implica uma mobilidade dos investimentos, tanto no nível intrapsíquico como no nível intersubjetivo, do somático ao psíquico e de um objeto para outro.

A idéia de movimento psíquico é retomada nas pesquisas metapsicológicas – contudo, talvez seja no artigo “A dinâmica da transferência”, de 1912, que Freud consegue reunir com mais clareza a noção de transferência com a idéia de movimento de forças e tensões que constituem os processos psíquicos. Nesse artigo, Freud introduz o conceito de transferência, dizendo:

“Cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir a sua vida erótica – isto é, nas pré-condições para enamorar-se que estabelece nos instintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela” (Freud, 1912/1969b, p. 133).

As transferências são uma expressão da estrutura pulsional do sujeito, que foi moldada tanto pela predisposição inata como pelas suas primeiras experiências com objetos primários. Essas marcas vão, por um lado, constituir o psiquismo e, por outro, estabelecer um modelo futuro para todos os relacionamentos intersubjetivos.

Ora, continua Freud:

Nossas observações demonstraram que somente uma parte daqueles impulsos que determinam o curso da vida erótica passou por todo o processo do desenvolvimento psíquico. Esta parte está dirigida para a realidade, acha-se à disposição da personalidade consciente e faz parte dela. Outra parte dos impulsos libidinais foi retida no curso do desenvolvimento (p. 134).

A transferência é uma predisposição de todos os neuróticos a transportar para os objetos externos parte das expectativas e desejos. Ela é constituída por um conjunto de impulsos à procura de uma ligação com um objeto capaz de promover o que Freud denominou, em 1912, de “processo de desenvolvimento psíquico”.

A vida pulsional que passou pelo processamento psíquico encontra-se submetida, protegida pelo recalcamento e pode produzir adoecimentos neuróticos. Esta parte dos impulsos libidinais retidos se encontra disponível para os investimentos do sujeito, tanto narcísicos quanto objetais. A outra parte dos impulsos, que não passou pelo processamento psíquico, é muito mais cega e menos protegida pelo recalque; estes impulsos desligados encontram-se muito mais dispersos e procuram uma descarga por vias curtas.

A transferência na relação com o médico é um caso particular de uma contínua demanda pulsional de objetos que possam, por um lado, encaixar-se na constelação objetal já estabelecida na infância e, por outro, promover o desenvolvimento pulsional retido. Na situação analítica, os impulsos à espera de satisfação e os conflitos serão dirigidos para a pessoa do médico.

No começo do terceiro parágrafo, Freud nos remete à situação analítica, dizendo: “Assim, é perfeitamente normal e inteligível que a catexia que se acha pronta por antecipação dirija-se também para a figura do médico” (Freud, 1912/1969b, p. 134). Em 1905, no caso Dora, Freud havia percebido que as transferências não são uma característica específica do tratamento analítico. A transferência analítica seria uma condensação das demandas infantis espelhadas na vida afetiva do paciente. A situação analítica e a postura receptiva do analista – objeto externo que sustenta o lugar parental do suposto saber –, teriam idealmente a capacidade de atrair e promover uma precipitação das forças ligadas a esses desejos infantis insatisfeitos e reatualizá-los na relação com o analista. É esta condensação explosiva das demandas e expectativas infantis que transforma a situação analítica num laboratório das paixões, que permite trazer à luz as fantasias e os conflitos afetivos para eventualmente transformá-los.

A transferência surge na relação analítica para convocar e mobilizar as moções pulsionais e não para realizá-las. Diz Freud, no último parágrafo do texto de 1912:

...tal como acontece nos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real. O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração intelectual e compreendê-los à luz de seu valor psíquico (Freud, 1969b/1912, p. 143).

O dispositivo acorda as forças pulsionais à procura de satisfação através da realização de uma ação específica. O campo de forças, que o enquadre permite expressar verbalmente, mas não atuar, aponta para a capacidade representativa do sujeito e para a sua possibilidade de elaborar os impulsos e os afetos por via da verbalização. Contudo, quando as capacidades intrapsíquicas de contenção e elaboração das forças (que Freud chamou de submissão ao valor psíquico) transbordam a capacidade representativa, estas forças provocam uma pressão no aparelho psíquico do analista, manifestando-se na contratransferência. Nestes casos, a reedição do infantil provoca atuações diversas, que exigem a realização de operações mentais por parte do analista e manejos do setting.

A evolução pós-freudiana da psicanálise foi profundamente marcada pela emergência e pela ampliação do conceito de contratransferência. A partir de Construção em psicanálise, a tônica da situação analítica se desloca do funcionamento psíquico do paciente para este trabalho psíquico do analista, que se torna o pólo ressonante que revela e elabora as potencialidades psíquicas do encontro. Paula Heimann (1950) prolonga a noção freudiana da contratransferência, instaurando-a como o instrumento principal do psicanalista. Posteriormente, Green (1975/1990a) radicaliza essa posição, incluindo na contratransferência todo o funcionamento mental do analista. Na sessão, o aparelho psíquico do analista torna-se o instrumento privilegiado para formular sua interpretação. Ao longo das décadas, foi surgindo também um consenso no tocante à constatação de que as informações que o analista recebe no seu próprio psiquismo, trabalhando em duplo (retomando a feliz expressão dos Botella [2001]), em relação ao funcionamento do psiquismo do paciente, podem tomar formas que não são representativas, mas perceptivas – alucinatórias ou psicossomáticas (Botella, 2001; Ogden, 2001; Ferro, 2002). Essa extensão da contratransferência modifica o paradigma da psicanálise clássica das psiconeuroses, em que dominam as lembranças recalcadas e os conflitos inconscientes, e abre espaço para uma tópica na qual predominam as zonas traumáticas não simbolizadas e, portanto, incomunicáveis no encontro analítico. Já não se trata de desvelar e interpretar os conflitos inconscientes, mas de construir uma rede de representações e, eventualmente, criar conflitos psíquicos. O trabalho de contratransferência deve, contudo, ter como único objetivo a criação de um material psíquico que possa alimentar a relação e a construção de um campo transferencial positivo sólido, que consiga sustentar ao longo do tempo as peripécias do desenvolvimento do processo psicanalítico.

 

3. O processo psicanalítico e a construção da confiança básica

A análise procede a partir da evolução e, portanto, dos movimentos (avanços e retrocessos) da transferência. O deslocamento e a condensação das forças ligadas aos investimentos das moções pulsionais é que permitem a expressão da transferência. No entanto, para haver alguma elaboração de tais impulsos – o que fará idealmente evoluir a transferência –, essas forças devem se manter num nível de excitação tolerável para a produção das representações. Nesse contexto, Green (2000) define a transferência como o resultado de uma posição de excitação da pulsão em relação a um objeto externo que se oferece e se coloca como suporte e receptáculo das projeções e das esperas. Tal objeto externo, imerso num contexto apropriado, exercerá algumas funções que favorecem os processos do desenvolvimento psíquico.

Quando em circunstâncias desfavoráveis as experiências infantis não permitiram a elaboração de uma relação, em que a pulsionalidade e os conflitos podiam ser contidos e elaborados, quando o ambiente e os objetos primários não foram suficientemente bons para exercer as funções que permitem a introjeção das qualidades psíquicas do objeto (a fantasia, o sonho, a criatividade), caberá ao analista o delicado trabalho de construir um vínculo no qual a excitação pulsional ligada às angústias e aos desejos possa se manifestar e procurar a satisfação, de maneira a reinstalar um movimento nos processos psíquicos paralisados e submeter estes impulsos, como diz Freud, a seu valor psíquico. A. Green (1979/1990b) denomina de “lógica da desesperança” uma lógica que impera no sujeito quando não foi possível instaurar um núcleo psíquico, uma reserva pessoal de esperança e prazer, que possa elaborar o movimento das pulsões e sustentar no tempo a esperança de encontrar um objeto que alimente a vida psíquica. Nesses casos, tal como desenvolvido por Figueiredo (2008), toda a capacidade de o sujeito de confiar nos objetos externos amorosos que se propõem a ajudar se encontra danificada. A esperança de encontrar um objeto bom e confiável e a própria capacidade de transferir terão de ser retomadas pelo processo analítico.

A expressão “processo analítico” não figura na obra freudiana, devendo-se a Donald Meltzer (1967) sua introdução no vocabulário psicanalítico contemporâneo. Para Meltzer, existe uma evolução natural do processo analítico comparável a um rio, que segue seu curso da fonte ao estuário e, após uma longa caminhada, desemboca no mar. O processo analítico teria, assim, uma história própria, que consistiria numa seqüência de fases que podem ser acompanhadas através da evolução da transferência. Na visão de Meltzer, caberia ao analista colocar o processo analítico em movimento, criando um enquadre estável e regular, no qual a transferência possa achar expressão e acompanhar a evolução da transferência e da resistência com as interpretações. Para que essa evolução da transferência possa acontecer através da elaboração representacional e verbal, o enquadre deve ter algumas qualidades específicas que possibilitem a modulação da ansiedade da dupla.

Meltzer nos propõe dividir o processo psicanalítico numa seqüência de cinco fases, que são discriminadas segundo a própria evolução da transferência. A seqüência das fases coincide com o desenvolvimento afetivo na relação com o objeto primário, em que o sujeito evolui da dependência à autonomia relativa. A reedição de uma relação de dependência com um objeto externo deve permitir exercitar de novo certas funções primordiais, que não puderam ser desempenhadas na infância por causa do excesso de ansiedade do sujeito ou pela falta de continência dos objetos primários. A reedição da dependência infantil torna-se uma questão muito delicada, que exige tato e sensibilidade por parte do analista, e que será lentamente conquistada quando o objeto/analista se apresentar como podendo resistir pacientemente aos ataques exercidos pela lógica da desesperança, que se recusa entregar-se a um objeto amoroso.

A confiança consiste justamente na capacidade de entregar-se livremente ao objeto amoroso e, portanto, de depender dele. A confiança, segundo Figueiredo (2008), nasce de uma sucessão de momentos de entrega, perda e recuperação do objeto primário de dependência. Entre a excitação ligada à entrega, o susto da possível perda definitiva e o intenso conforto recuperado após o retorno do objeto, como afirma Figueiredo, instala-se um jogo:

Este jogo entre intensidades afetivas e conforto final é a essência do thrill1 e a base experimental necessária para a instalação da confiança primária. É mais do que o ‘ir e vir’, ‘sair e voltar’, ‘Fort-Da’ do objeto, pois no caso do thrill os distanciamentos e aproximações implicam naquelas intensidades elevadas – prazer excitado e medo –, seguidas do momento de conforto e segurança (…) Na experiência do thrill, o vôo livre é tão essencial quanto o abraço seguro, inclusive porque ele contrapõe-se a um outro motivo de desconfiança: a de que o abraço seja um claustro, uma prisão, um engolfamento mortífero” (Figueiredo, 2008, p. 75).

Cada sessão analítica repercute nesse infinito processo de separação e de reencontro do sujeito pulsional com o objeto primário da dependência, através do qual se constitui a confiança básica que possibilita entregar-se a um objeto amoroso disponível para produzir elaborações psíquicas. Esta idéia é desenvolvida por André Green (2002b), que diz que toda sessão de análise é vivida como repetindo um processo de reunião-separação, e, portanto, que todo final de sessão pode ser considerado, aos olhos do paciente, como repetindo uma rejeição por parte do objeto primordial. Essa separação pode desembocar na esperança de um novo recomeço, representada pelo próximo encontro analítico, ou ser vivida como um abandono traumático. Neste último caso, não teremos somente o desespero criado pela falta de antecipação do próximo encontro, mas também um apagamento de todos os ganhos anteriores. A relação entre o analista e seu paciente deverá, nesses casos, ser reconstruída a cada encontro.

O setting analítico, a regularidade das separações e dos reencontros, será o principal meio de modular as ansiedades e dosar as ausências e presenças permitindo a evolução da transferência. Cada final de sessão, cada separação reatualiza o medo e a angústia da perda e da ausência do objeto de dependência, e cada reencontro permite ao sujeito se reapropriar de um pedaço de si mesmo, ligado ao medo da perda do objeto e aos desejos, freqüentemente ambivalentes, provocados pela separação e pela impossibilidade de controle do objeto externo. No interior desse processo, feito de encontros e separações, irá se desenvolver, em torno da presença e da ausência da figura do analista, a associação livre, uma atividade representativa, na qual se misturam presente, passado e futuro. Em alguns casos, o ódio pela falta de controle do objeto, o medo da perda absoluta do objeto de dependência pode se tornar intolerável e traumático, transbordando a capacidade de contenção e provocando interrupções do processo ou atuações. Se o analista conseguir dosar a angústia excessiva, contiver as intensidades afetivas do paciente e acreditar num lento desenrolar do processo, a confiança num objeto suficientemente bom poderá ser reconstruída.

 

4. Breve relato clínico

Há alguns anos, acompanho em análise uma mulher de meia-idade, pessoa muito assustada, controladora e imensamente desconfiada. Essa jovem mulher me procurou, encaminhada pelo seu ginecologista, após surtos de ansiedade particularmente agudos. Nas primeiras entrevistas, Júlia relatava uma constante sensação de medo de que “alguma coisa muito grave” pudesse acontecer com seus filhos gêmeos de 1 ano e meio ou com seu marido, que viajava com freqüência. Júlia se queixava dolorosamente do fato de não poder estar sempre com os meninos, que estavam inevitavelmente crescendo e se preparavam, por insistência do pai, para entrar numa escola maternal. Desconfiada de qualquer babá ou empregada e também da escola, ela gostava de cuidar pessoalmente de todos os detalhes da vida dos gêmeos e não conseguia imaginar a possibilidade de ter que se afastar deles. Seus medos, que ela descrevia muito detalhadamente, surgiam ligados ao relato de um acidente de carro, acontecido recentemente com seu pai, e ao fato de São Paulo estar se tornando cada dia mais perigosa em termos de acidentes, assaltos e roubos. Ela não sabia como seus filhos poderiam crescer numa cidade com tantos desastres de trânsito e desejava mudar-se para um país mais seguro.

Mesmo precisando muito “conversar com alguém” sobre suas angústias, como ela gostava de dizer, tinha muita dúvida em relação aos possíveis benefícios do tratamento, pois sentia uma enorme dificuldade de sair de casa, sabendo que estava deixando de cuidar das crianças. Por outro lado, sua parte mais saudável queria, tal como a sua melhor amiga, conseguir voltar a trabalhar e percebia que podia sufocar as crianças com suas preocupações excessivas. Júlia costumava dormir muito mal e era freqüentemente acordada por choros às vezes inexistentes que a assustavam profundamente. No meio da noite, sempre se levantava para ver se estava tudo bem com as crianças.

Rapidamente, percebi que seria muito difícil impor um setting fixo e decidimos, em comum acordo, fazer um experimento em relação a uma terapia. Disse-lhe que achava estar ela me pedindo ajuda para vencer seu medo de sair de casa, mas que seria uma tarefa sem dúvida árdua.

Neste caso, intui que qualquer interpretação ligada à resistência seria prejudicial e resolvi ser prudente e fortalecer seu desejo e sua esperança de encontrar alguém que pudesse ajudá-la. Durante mais de um ano, nos encontramos uma ou duas vezes por semana. Júlia me ligava com freqüência, marcando e desmarcando sessões: sempre queria tanto poder ir me ver, mas estava sempre muito ocupada com as crianças e com seus deveres de casa. Contudo, quando conseguia chegar até o consultório, mostrava-se profundamente envolvida com nosso trabalho, e a separação que surgia nos finais dos nossos encontros se mostrava particularmente difícil e dolorosa.

De minha parte, sentia cada separação como definitiva e cada reencontro como uma volta que acontecia após uma longa e perigosa separação. Paradoxalmente, à medida que Júlia sentia os benefícios concretos do trabalho e nossa relação se estreitava, minha sensação de perda se tornava maior. Minhas intervenções comunicavam a ela esse impasse.

Após dois anos de infinita paciência da minha parte, e de constante manipulação por parte dela, conseguimos fixar um horário regular para nosso trabalho. Júlia começou a usar de vez em quando o divã e a associar um pouco mais livremente. Falava muito do sentimento de insegurança e de seu desejo de poder dormir e sonhar. À medida que as angústias persecutórias começaram a ser elaboradas, Júlia conseguiu perceber que o iminente desastre que ela pressentia acontecer era de ordem interna.

Mesmo assim, minha relação com ela se mantinha frágil e nos finais de sessão eu continuava pressentindo o perigo de uma possível interrupção, o que me fazia ser muito cautelosa em relação às interpretações que pudessem despertar ansiedades excessivas. A ambivalência e o intenso medo da dependência de um objeto pouco confiável e vivido freqüentemente como frio e metódico dificultavam a possibilidade de aprofundar-se no processo. Após as férias de verão, Júlia pôde falar do medo da dependência de um objeto que não estava sempre disponível e da dor da nossa separação.

Durante esses momentos, a idéia de processo analítico (separações e reencontros) e da necessidade de construir um material psíquico ligada à confiança básica foi muito útil para aprofundar lentamente um vínculo transferencial positivo, que possibilitasse a elaboração das angústias inomináveis de Júlia e viabilizasse um trabalho psíquico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Talya Candi
R. Pedroso de Alvarenga, 565/9 – Itaim Bibi
04531-011 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3079-0070
E-mail: talya@candide.com.br

Recebido em: 18/11/2008
Aceito em: 20/12/2008

 

 

* Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, do Instituto da SBPSP.
1 O thrill é um jogo descrito por Balint no livro Thrills and regression (1959), em que o bebê é lançado para cima e recolhido nos braços da mãe ou do pai. É na intensidade da excitação de prazer e do medo, sucedido pela segurança do abraço que segura firmemente, que vai instalar-se, progressivamente, a confiança.

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