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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.75 São Paulo Dec. 2008

 

TRABALHOS NÃO TEMÁTICOS

 

Os heróis, as princesa e o imaginário infantil

 

Heroes, princess and children’s imaginary

 

Héroes, princesas e imaginario infantil

 

 

Fernanda Mara Colucci Fonoff I, * ; Regina de Baptista Colucci II, **

I Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
II Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As autoras propõem-se a explorar as vicissitudes do complexo edípico nos meninos e nas meninas, a partir da análise das diferenças estruturais nas estórias infantis. Baseando-se na percepção de que as princesas, nos contos de fada, são órfãs de mãe e que os super-heróis são órfãos do casal parental, este texto examina como a presença dos mitos compartilhados ajuda a formar os mitos pessoais de cada criança dentro do universo das relações objetais pré-genitais e objetais genitais e conflitos edípicos. Feita sob quatro enfoques – Édipo-herói; Super-heróis; Princesas; e uma estória atual diferenciada, que apresenta a trama edípica sendo vivida por toda uma família –, a análise é concluída com o desenvolvimento de considerações teóricas.

Palavras-chave: Contos de fada, Herói, Mito pessoal, Conflito edípico, Relação de objeto, Relação de objeto pré-genital.


ABSTRACT

The authors propose an exploration of the vicissitudes of Oedipus complex in boys and girls through the analysis of the structural differences in children’s stories. From the perceptions of princesses that in fairy tales are motherless and of superheroes that are bereaved of both parents, this paper aims to explore how the presence of the shared myths contributes for the development of personal myths of each child inside of the universe of the pregenital object relations, genital object relations and Oedipus conflicts. Thus, this study will be divided in 4 parts: the first will be of Oedipus-hero; the second, of the superheroes; the third, of the princesses; and the forth will analyze a current story that is different because it presents an Oedipus plot that is lived by all family. Finally, the authors conclude with the development of the theoretical considerations.

Keywords: Fairy tale, Hero, Personal myth, Oedipus conflict, Object relation, Pregenital object relation.


RESUMEN

Las autoras proponen una exploración de las vicisitudes del complejo de Edipo en niños y niñas, analizando las diferencias estructurales en las historias infantiles. A partir de las percepciones de las princesas que, en los cuentos de hadas, son huérfanas de madre y de superhéroes, que son huérfanos de madre y padre, este trabajo tiene el objetivo de explorar como la presencia de los mitos compartidos contribuyen para el desarrollo de los mitos personales en cada niño dentro del universo de las relaciones de objeto pregenitales, relaciones de objeto genitales y los conflictos de Edipo. Así, ese estudio será dividido en 4 partes: la primera será del Edipo-héroe; la segunda, la de los superhéroes; la tercera, la de las princesas; y la cuarta analizará la historia actual que es diferente porque presenta una trama de Edipo que es vivida por toda familia. Y, por fin, se concluye el estudio con las consideraciones teóricas.

Palabras clave: Cuentos de hada, Mito personal, Conflicto de Edipo, Relación de objeto, Relación de objeto pregenital.


 

 

O imaginário infantil nos contos de fadas e outras estórias

No início do século 19, a comunidade científica direcionou sua atenção aos contos de fadas, fábulas, cantigas de roda, provérbios, lendas, entre outros materiais de tradição oral. Isso se deveu à necessidade de registrar a cultura popular após a descoberta de que a língua possui uma raiz comum, aproximando o sânscrito e as línguas indo-européias (Coelho, 1991). Foi então que os irmãos Grimm recolheram narrativas da memória popular na Alemanha e Andersen na cultura nórdica. Anteriormente a esse movimento científico, Perrault, no século 17, compilara contos populares na França. (O curioso é que algumas estórias francesas foram encontradas levemente modificadas na Alemanha, apesar do intervalo de quase dois séculos entre as diferentes edições.)

O cenário se modifica nos meados do século 20, com o advento do cinema americano e a adaptação de alguns contos de fada por Walt Disney para o público infantil. As estórias perdem o registro da tradição oral – embora preservadas pelo registro escrito, as estórias eram normalmente lidas ou contadas – e passam a ser criadas imaginativamente, num registro visual. Somando-se a essa transformação, as pulsões do mundo interno provocam uma mescla entre o que é ouvido, o que é imaginado e o mundo interno das crianças. O registro visual, por via tecnológica, interfere na criação da vida imaginativa, com risco de empobrecê-la. Além disso, deixando seu peculiar caráter sombrio e lúgubre, as estórias adquirem com Disney uma configuração romântica-fantasiosa, como forma de disfarçar a verdade das emoções. Com essas variações, entramos na era das imagens virtuais. Para Kehl, o mundo imaginário das fantasias inconscientes “sobrevive à aparente transparência da era das comunicações com seu imperativo de tudo mostrar, tudo dizer, tudo existir” (Kehl, 2006, p. 17). As estórias infantis incrementam fantasias e auxiliam na elaboração de conflitos internos.

...de toda a gama de ameaças e perigos que assolam e fascinam o mundo infantil, é importante destacar o desamparo das crianças diante das fantasias inconscientes dos pais, às quais estão particularmente expostas pelo fato de serem, para elas, perigos irrepresentáveis (Kehl, 2006, p. 18).

Vemos aqui a necessidade de as crianças instituírem defesas diante do advento e do imperativo de lidar com vivências de inclusão de um terceiro na relação idílica ou da própria exclusão da relação sexual parental, a isso se acrescentando as pressões de uma sexualidade nascente.

É certo que embora as personagens sejam super-heróis ou garotas adolescentes, as estórias se dirigem a um público infantil, ou seja, muito antes da entrada na exuberância dos conflitos mostrados pelos contos. As crianças pequenas sofrem os conflitos de forma inconsciente, enquanto as maiores ou pré-adolescentes, como os retratados nos contos e estórias, já possuem alguma capacidade de lidar com eles numa linguagem próxima à poética. Assim, o contato das crianças com a narrativa das estórias (tanto nos contos de fada quanto nas estórias em quadrinho) desperta o incremento da vida imaginativa, que vai se ligar por identificação às vivências próprias.

Inicialmente, notamos que nas estórias infantis os super-heróis foram criados em lares adotivos, sendo órfãos do casal parental; as princesas, de seu lado, são órfãs de mãe. Registramos também a condição de filho único desses personagens, que não podem se perceber como fruto da união fecunda de pais sexualizados. Os irmãos negados tornam-se não existentes. Em contrapartida, temos que considerar a dificuldade dos pais em se mostrarem sexualizados, impedindo a elaboração edípica do filho. No poema “O guardador de rebanhos”, Alberto Caieiro – visto como o mestre de todos os heterônimos de Fernando Pessoa –, ao ter “um sonho como uma fotografia”, evoca esse impasse na figura de Jesus Cristo, “fugido do céu” e “tornado outra vez menino”:

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro
E que não era pai dele,
E o outro era uma pomba estúpida
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo, nem era pomba
E sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera de mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça.

Pretendemos explorar as vicissitudes do complexo edípico, levando em conta que o arranjo defensivo presente nos meninos os leva a fantasiar a morte de ambos os pais, enquanto as meninas eliminam as rivais femininas, preservando a figura paterna.

Iniciamos com perguntas e considerações que nos ocorreram ao pensar tais questões. A literatura infantil favorece ou posterga a necessidade de lidar a criança com a sexualidade do casal parental através das fantasias de rivalidade e morte? A questão revela um conflito genital ou pré-genital?

Os pais, mortos ou não existentes, suscitam fantasias de justiça e de reparação, revelando, assim, a presença do desejo pela morte dos pais. Para Bion,

...cuando el niño está rabioso tiene deseos de muerte contra el objeto, y si desea que el objeto esté muerto, dado que el deseo es omnipotente, el objeto estará muerto (...) los objetos muertos, no existentes, son producto del odio destructivo; la culpa los inviste de atributos afines a la consciencia, la omnipotencia, la omnisciência, pero no de las cualidades necesarias para la utilización como pensamientos-del-sueño (Bion, 1996, pp. 149-151).

Será que a diferença dos destinos masculinos e femininos – os heróis impedidos de exercer a sexualidade e as meninas buscando um grande amor idealizado – tem relação com a orfandade materna feminina e com a dupla orfandade masculina? Será que os meninos, para expiar a culpa de haver produzido simbolicamente a morte dos pais, estão condenados a fazer eternas reparações maníacas? Será que as meninas, ao preservar o pai, puderam em parte reparar a culpa ao, aparentemente, encontrar um parceiro?

A entrada na adolescência exige dos jovens a capacidade para ressignificar os conflitos edípicos, obrigando-os a atualizar tais conflitos nessa nova etapa do desenvolvimento emocional. Ressaltamos que arranjos feitos em época precoce, para não lidar com a sexualidade do casal parental, determinam o fracasso da elaboração posterior. A solução maníaca da morte dos pais, tanto como castigo quanto como resolução, afasta a possibilidade de contato emocional com o conflito, através de sua recorrente projeção: os pais por estarem mortos não ameaçam a imagem idealizada da criança.

 

Édipo herói

O desejo dos deuses e do Oráculo são transformações míticas de pulsões inconscientes.

Beatriz Priel

Na tragédia e mito grego Édipo Rei, Édipo nasce/vive sob a égide de um crime cometido por seu pai, fato que lhe custa a sombra de uma maldição – matar o pai e se casar com a mãe. Édipo escapa à tentativa de assassinato por parte dos pais biológicos, sendo adotado por um casal real, que lhe proporciona um lar amoroso e acolhedor. Porém, ao fugir de seus pais adotivos, pensando protegê-los da maldição que sobre ele pesa, Édipo vai ao encontro de seu pré-destino: cumpre a profecia do oráculo.

Beatriz Priel (2004) destaca uma “herança de emoções” inconscientes – Édipo como herdeiro da culpa paterna – e considera a leitura do mito conforme os princípios básicos da análise dos sonhos – conteúdos recalcados da tragédia: violência parental, transgressão e o silêncio transgeracional da verdade. Ela postula a importância do papel desempenhado pelas mensagens enigmáticas dos adultos na estruturação dos processos inconscientes, derrubando, assim, o modelo binário da fantasia versus realidade material.

Priel (2004) e Steiner (1990/1991) referem-se à presença de um número considerável de ambigüidades no mito de Édipo, originando duplicidades de entendimentos que precisam ser interpretadas. Essas ambigüidades criam um estado de conhecimento, que se caracteriza por ter a fugacidade de uma sombra, que obscurece a lembrança dos objetos perdidos, deixando impressões de algo ao mesmo tempo conhecido e desconhecido. Tal estado produz um recorrente reconhecimento e negação dos fatos, criando a necessidade de interpretá-los, e a consciência da lacuna existente entre o dito e o compreendido.

Para Priel (2004), Édipo se declara culpado – embora fosse possível explorar aqui mais algumas das contradições presentes no mito –, sendo que a antecipação da culpa se justifica pela presença de fantasias inconscientes e pelo desejo de Édipo pela morte do pai. Fantasias e desejos se mesclam com os fatos, obscurecendo o julgamento e a instituição da verdade, por transformar culpabilidade em culpa real e incontrolável. A cegueira afetiva de Édipo, anterior à sua cegueira real, era o resultado de uma completa incapacidade de se dar conta de sua própria falta.

A disputa pela posse da mãe e o desejo pela morte do pai fazem parte de uma herança transgeracional inconsciente, mas outro aspecto importante do mito edípico é que, já conhecedor da verdade, Édipo:

...pede uma espada com a intenção de ameaçar Jocasta e inclusive matá-la, e restam poucas dúvidas de que ele já está cheio de ódio por ela, provavelmente porque se dá conta, graças à evidência do pastor, de que ela foi cúmplice no intento de matá-lo, quando ele era bebê (Steiner, 1990/1991, p. 39).

À desilusão do idílio amoroso com a mãe, por ela estar em conluio com o pai, acrescenta-se o fato de que Jocasta sabia que Édipo era seu filho e seu marido. Ao se suicidar, mais uma vez ela o abandona à própria sorte, negando-se a enfrentar e repartir as conseqüências do ato que em conjunto haviam praticado. Isso o enche ainda mais de ódio, por vê-la três vezes traidora: entregou-o para ser morto; casou-se com ele, sabendo-o seu filho; deixou-o sozinho, ao se suicidar.

Por outro lado, Édipo vive seus próprios desejos e fantasias inconscientes. Danielle Quinodoz (2001), em seu artigo “O complexo de Édipo revisitado”, aprofunda a idéia da dupla imagem parental, levantando a

...hipótese de que, se o mito deu a Édipo dois casais de pais foi para expressar uma tendência universal inconsciente de dicotomizar as imagos parentais e os afetos correspondentes, a fim de evitar inconscientemente a ansiedade de castração e, de modo geral, a ansiedade gerada pelo conflito de ambivalência edipiana, e também para escapar ao sentimento de solidão em frente ao casal parental (2001, p. 21).

Também Bollas (2000) mostra essa duplicação: “A criança se torna subitamente ciente de duas mães, dois pais e dois selves desde o tenro início pré-genital e genital” (p. 28).

Édipo mostra com toda grandeza as conseqüências de se viver os conflitos edípicos, a natureza das fantasias, temor pelo próprio destino e o destino dos pais – nem todos porém enfrentam os perigos edípicos, e aqui entram em cena os heróis.

 

O herói masculino

Em princípios do século 20, surge uma nova categoria de herói – o super-herói das estórias em quadrinho. Elas não fazem parte da tradição oral e aparecem com forte apelo visual, tanto pelo texto como pela representação em imagens. Seu público inicial foram os garotos pré-adolescentes. Nos quadrinhos, encontramos super-heróis como Superman, Batman, Spiderman, entre outros. Personagens masculinas que buscam, acima de tudo, vigiar os perigos da noite, combater o crime e aplicar a justiça – mesmo ideal de Édipo.

Uma característica comum aos super-heróis é a de ter os pais mortos em circunstâncias pouco claras ou fantasiosas, condição favorável para se pensar que a morte dos pais (edípicos) é conseqüência de fantasias destrutivas do filho, a eles dirigidas. A fim de evitar a sensação de abandono e exclusão, sentimento resultante da percepção da união sexual dos pais, a presença de objetos substitutos é instituída: um casal de tios, ou um casal adotante, que têm a característica de serem idosos e bondosos, de tal forma que não chegam a incitar a emergência de fantasias agressivas e sexuais.

Fato comum a todos é que possuem uma roupa especial que os torna invencíveis e semideuses, uma vez que com ela adquirirem poderes extra-humanos. Essa roupa, que funciona como uma segunda pele e denuncia a onipotência, esconde a real condição do super-herói: um ser aparentemente normal.

Outra característica dos heróis é que a fantasia envolvendo a morte dos pais é dirigida ao casal e não às pessoas de pai e mãe, já que eles morrem sempre juntos.

Dos heróis, apenas Batman não aparece em lares adotivos, mas preserva sua casa sob os cuidados do fiel mordomo Alfred. A estória de Batman narra as aventuras de Bruce Wayne – filho único de um casal amável e de alto nível socioeconômico-cultural. Quando criança, Bruce presenciou a morte violenta dos pais, durante um assalto, tendo sido o único sobrevivente do atentado.

Ao optar por ficar só, em vez de encontrar pais adotivos, Bruce foi incapaz de restaurar a imagem da figura materna, já que o mordomo substituiu a figura paterna, sem representar nenhum tipo de ameaça à sexualidade do pequeno herói. Bruce não teve, assim, que se haver com a rivalidade entre pai e filho, nem que se sentir excluído da dupla pai/mãe. Seu conflito maior se dará fora de casa e não no seio familiar.

Batman surge da sede de justiça de Bruce Wayne que, dessa forma, se protege contra a possibilidade de tomar consciência do estado de seus objetos – destruídos em fantasia – mediante uma negação maníaca, com a qual se identifica com figuras internas onipotentes (Steiner, 1990/1991).

No subterrâneo de sua mansão, Batman constrói um arsenal tecnológico de computadores, rádios e satélites, por não possuir superpoderes como os demais super-heróis. Nomeia esse espaço de Batcaverna e sua convivência com os primeiros moradores da caverna – os morcegos – é pacífica. Podemos pensar que as referências diretas aos morcegos e à caverna são alusões ao colo parental perdido, e não apenas ao útero materno. A Batcaverna nos remete ao derramamento de sangue dos pais, como um útero vampiro.

Coringa, Charada, Duas Caras, Pingüim, os maiores rivais de Batman, são figuras que transitam entre o trágico e o cômico, incitando-o: “Decifra-me ou te devoro”. Seria uma alusão à Esfinge ou ao desejo de Bruce pela morte dos pais?

Os heróis masculinos vivem em função da justiça, o que denota a presença de uma rigidez superegóica – mas, paradoxalmente, ficam à margem da justiça oficial, mostrando que se debatem num conflito pessoal. Por serem tratados como marginais da lei, pode-se pensar que são tão criminosos quanto os criminosos que perseguem. A onipotência em salvar vidas esconde na verdade um colapso de desmantelamento do próprio self.

A onipotência, colocada no lugar da potência, anula os conflitos da sexualidade que não pode ser vivida. Os heróis têm a sexualidade inibida, aparentemente para proteger o segredo de uma segunda identidade, ou denunciar tal qual o sintoma onde está o conflito e a culpa.

 

A heroína feminina

Numa visão ampliada, sem a pretensão de abarcar uma totalidade, vê-se que nos contos de fadas a protagonista feminina é retratada e contextualizada num período anterior à sua entrada na adolescência, apresentando certa ingenuidade em relação à sexualidade. A mãe desaparece imediatamente após seu nascimento e o pai – muitas vezes apresentado como rei – é descrito como viúvo, velho, bondoso e ausente. A trama se desenvolve com a garota sob a guarda e as garras da mãe-má, representada como madrasta ou bruxa. Assim é com Branca de Neve, Cinderela, Bela e a Fera, Pequena Sereia e outras.

Aparecem como garotas solitárias obrigadas a se expor aos perigos da entrada na adolescência, sem a necessária continência dos pais, e almejam a liberdade e a felicidade nos braços do príncipe – ainda que encantado –, sob forte idealização do par perfeito.

Focaremos, aqui, a estória de Branca de Neve. O primeiro registro desta estória deve-se aos irmãos Grimm, em Contos de fadas. A estória ganha corpo no imaginário infantil a partir de 1937, ao ser apresentada como o primeiro desenho longa-metragem dos estúdios Disney.

A trama tem início com o desejo da rainha-mãe em ter uma filha. Num dia de inverno, quando bordava, a rainha furou o dedo e algumas gotas de seu sangue caíram na neve que estava no caixilho da janela de ébano. Naquele momento, a rainha desejou: Quem me dera ter uma filha branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o caixilho da janela.

A filha assim concebida pela idealização de aspectos narcísicos, evidenciado pela paixão narrativa da mãe, denuncia a dificuldade dela em se sexualizar e, portanto, em sexualizar a filha. A falta do desejo materno pelo corpo sexual da criança (Bollas, 2000, p. 22), traz como conseqüência “...a suspensão do idioma do self, a fim de realizar o desejo do objeto primário, estratégia baseada nas ações complementares de identificação e representação”. À filha, resta idealizar características narcísicas de beleza.

Realizado o desejo da rainha, nasce Branca de Neve, sob a égide da idealização e da ambivalência, presente na alusão ao sangue que aponta a presença da morte.

O início da estória é marcado pelo aspecto idílico, próprio dos contos de fadas: uma linda criança nasce numa linda família, cercada de amor, com todas suas necessidades atendidas. Porém, logo após o nascimento da filha, a rainha-mãe-boa deixa a cena, e aparece a mãe-madrasta-má.

Corso, D. L. & Corso, M. (2006) apontam:

Essa rainha aparece apenas para ser quem faz a encomenda. Mãe boa, como todas as de conto de fada, que, por ter desejado tanto a criança, ficaria isenta de sentimentos hostis, abandona a cena rapidamente, para deixar surgir em seu lugar a madrasta num novo casamento do pai. Sempre claramente diferenciada da genitora, a mãe sobrevivente essa madrastra em cuja relação com a enteada não há o amor materno para amortecer o ciúme e a inveja (p. 78).

Toda a trama se desenvolve com uma explícita rivalidade entre a madrasta-mãe-má e Branca de Neve, que assume a posição de inocente ingenuidade. A rivalidade entre elas se dá em razão da beleza, já que entre elas não havia um pai edípico. Aqui, claramente aparece, como o sintoma denuncia, a história da relação: a mãe idealiza a beleza da filha sem dar suporte aos seus conflitos edípicos, e entre elas aparece a competição pela beleza, ou seja, Branca de Neve vence a beleza da mãe no lugar de vencê-la nos embates que a levariam à sexualidade. Aparentemente, Branca de Neve sai vitoriosa do confronto com a madrasta, mas o final feliz é o retorno ao início feliz: um jovem casal em busca de constituir uma família idealizada, sugerindo um padrão de narrativa cíclica, eternamente recomeçado pelo bordão: “Felizes para sempre”. Tal como nos alerta Joana, personagem de Clarice Lispector, com sua sempre inquieta pergunta: “Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?” (Lispector, 1944/1995, p. 38).

O príncipe, que é visto de longe, se apresenta como uma figura ideal, cavalgando seu cavalo branco e cantando baixinho. Sugere uma figura estéril, já que é idealizada. Esse arranjo de um idílio imaginado, em contraste com o enfrentamento da realidade – o conflito edípico, propriamente dito, ou a busca da sexualidade extramuros –, mostra que a divagação da heroína não passa de sonho, sem ter o caráter de envolvimento real com a resolução edípica.

 

Resolução edípica

Para este quarto tempo do trabalho, abordaremos uma estória atual. Criada no século 21, com todo aparato tecnológico da era digital, tendo como alvo o público infantil, é lançado o filme Os Incríveis.

A narrativa constrói um novo estilo ao produzir uma intersecção entre a trama dos contos de fadas com as estórias de super-heróis. Traz aspectos do conflito familiar, que se estabelece entre o casal e entre pais e filhos. Há, ainda, a relação do Sr. Incrível com o vilão, que inicialmente desejava formar com ele uma dupla pai/filho adotado.

Ressaltamos aqui o papel de uma família, que, ao ser impedida de exercer seus superpoderes, tem de assumir sua identidade civil e se adaptar a uma vida rotineira, monótona e empobrecida.

Quando o Sr. Incrível se rebela contra a proibição social e reassume sua potência, permite e estimula que todos assumam as suas. Ele se embrenha em uma missão secreta e seus familiares acorrem em sua defesa, deflagrando uma reestruturação familiar. Em nosso entendimento, enquanto os pais não se sexualizam, ninguém pode dar prosseguimento aos seus conflitos edípicos.

Ogden (1989) chama de relação edípica a esse processo que envolve a família, por entender que a experiência edípica não é vivida isoladamente por um dos membros, mas acontece no encontro do desejo de todos.

Heróis atuais, como Pokémon, não exibem de forma clara a diferenciação sexual. São masculinos, mas usam vestimentas assexuadas. Os heróis ou os vilões possuem várias vidas, o que lhes evita o contato com a morte ou com o luto. Permanecem crianças, sem relação com os conflitos, já que tudo se passa numa ficção robotizada. Os conflitos são apenas tangenciados – a elaboração fica prejudicada por estimular apenas o sensorial: luz intensa, efeitos especiais, campo magnético que protege o herói. Não há morte: tanto o herói como o vilão reaparecem na ação seguinte. Dessa forma, a estória não desperta a angústia, que favoreceria a elaboração, o sofrimento, o luto, as repressões e/ou a sexualidade dos próprios heróis e dos seus pais.

 

Considerações finais

Pretendemos, neste trabalho, teorizar as vicissitudes pelas quais passam as crianças ao se depararem com a dupla necessidade imposta por suas pulsões sexuais: assumir sua identidade, diferenciando-se dos pais, e se manter no conflito edípico, sem a busca de defesas que falseiem uma resolução que, de fato, pode não ser alcançada, trazendo prejuízo para a vida adulta.

Para Britton,

A capacidade de visualizar uma relação parental benigna influencia o desenvolvimento de um espaço fora do self capaz de ser observado e pensado, que fornece a base para uma crença num mundo seguro e estável. O triângulo familiar originário fornece à criança dois elos, conectando-a separadamente com cada um dos pais, e a confronta com a ligação entre eles que a exclui. Inicialmente, esta ligação parental é concebida em termos de objetos parciais primitivos e nas formas assumidas por seus próprios desejos orais, anais e genitais. Se a ligação entre os pais percebida no amor e no ódio puder ser tolerada na mente da criança ela lhe proporciona o protótipo de uma relação de objeto de um terceiro tipo, no qual ela é testemunha e não um participante (Britton 1992, p. 73).

A chegada disruptiva da sexualidade em-si-mesma, guiada pelo biológico, pressiona a criança a lidar com o novo e o inesperado, pois até aquele momento estivera protegida de suas próprias pulsões, por ainda não se viver como um sujeito histórico (Ogden, 1989). Por outro lado,

...os pais sempre estiveram engajados em uma intensa sedução, provocando-a, a partir do casulo auto-erótico desta em direção ao amor sexual apaixonado do outro. A cena da sedução é uma verdadeira encruzilhada entre a pulsão sexual do self e a sedução do outro (Bollas, 2000, p. 28).

Esse momento significa a passagem do auto-erotismo para o alo-erotismo, do pré-genital para o genital, dos pais como objetos subjetivos para pais externos. Para Ogden (1994), tal processo de desilusão é saudável, desde que seja bem dosado, trazendo como resultado um desinvestimento nas relações objetais onipotentes, substituindo-as pelo investimento em objetos externos, que estão fora do controle da criança.

Los pacientes que han alcanzado la posición depresiva de forma poco estable recurren con frecuencia a una forma concreta de defensa a la que Klein denomina proceso maníaco o defensa maníaca. Esta defensa (en que hay que pensar más exactamente como un grupo de defensas) es un fenómeno intermedio, que toma elementos de la organización psíquica tanto de la posición esquizoparanoide como de la depresiva. Es una defensa contra la ansiedad depresiva (el temor a la perdida de un objeto vivenciado como total y separado), pero emplea modos de defensa que son característicos de la posición esquizoparanoide (como la escisión, el rechazo, la proyección, la introyección, la idealización, la identificación proyectiva y el pensamiento omnipotente). El proceso maníaco conlleva la regresión a un estado de ser en el que la subjetividad, la historicidad, la vivencia de la realidad psíquica y la capacidad para la formación de símbolos maduros quedan grandemente comprometidas (Ogden, p. 73).

A representação dos desejos, em lugar de ser esclarecida e objetivada, pode tornar-se mais e mais subjetiva, imaginativa e deformada.

...surge una nueva forma de defensa, que conserva la continuidad de la historia de la relación objetal al mismo tiempo que evita tomar de conciencia de uno de los aspectos de la relación. La nueva defensa, la represión, se basa en la creencia inconsciente de que ‘lo que no sé no me hará daño, e el olvidar no hará daño a lo olvidado’ (ni cambiará su identidad) (Ogden, 1994, p. 78).

Porém, a fuga da verdade traz como conseqüência o refúgio na onipotência.

A dificuldade em visualizar a sexualidade e a fecundidade do casal parental, leva à utilização de defesas tais como a fantasia de ser filho único e órfão, através da dicotomização do casal de pais, separando-os em dois grupos: um casal parental real, que se encontra inexistente, aparecendo em seu lugar um casal pacífico, idoso e assexuado. A presença das figuras reais, diante das quais a vivência dos conflitos edípicos remete a se viver impulsos de morte e destruição do rival, levando a se fantasiar a morte dos pais e a instituir em seu lugar a presença de pais pacíficos e assexuados. Esse arranjo busca neutralizar os impulsos destrutivos e seu funcionamento equilibra as forças de destruição e as de preservação.

A natureza do conflito com relação aos heróis e às princesas pode ser caracterizada como uma organização da fase pré-edípica, quando se leva em conta essa dicotomização das imagos parentais em dois casais. Acreditamos que, na fase pré-edípica, os pais são sentidos como cuidadores, que não despertam conflitos por estarem desinvestidos de sexualidade ou agressividade. Na fase edípica, os pais são mantidos e diante deles é vivida toda a exuberância dos conflitos com a obrigatória admissão da sexualidade.

Uma configuração edipiana ilusória é formada como uma organização defensiva, de forma a negar a realidade psíquica da relação parental. Enfatizo que é uma defesa contra a realidade psíquica porque estas fantasias defensivas são organizadas de modo a evitar a emergência de fatos já conhecidos e fantasias já existentes. O relacionamento parental foi registrado, mas é agora negado, defendendo-se contra o mesmo através do que denomino uma ilusão edipiana (Britton, 1992, p. 72).

De fato, Bollas (2000) justifica que o ódio pela mãe sexualizada ocorre em função da perda da mãe que cuida, e de que essa nova mãe não é só dele, pois a mãe o tira do auto-erotismo oferecendo-se como objeto erótico e depois o trai, abandonando-o e preferindo o pai.

A pergunta que deu início às nossas reflexões foi: o fato dos heróis serem órfãos de ambas as figuras parentais, enquanto as princesas preservam o pai e são órfãs de mãe tem a ver com a especificidade do complexo de Édipo na menina e no menino?

Concluímos que a não existência de uma ou ambas as figuras parentais tem a ver com o teor das fantasias edípicas inconscientes que envolvem os pais e denunciam qual ou quais figuras se tornaram odiadas por causa de dificuldades na relação edípica. Para Steiner (1990/1991), a mãe é a quem a criança odeia mais intensamente pela maneira como esta estimula seu desejo e a trai preferindo seu pai. As meninas conservam o pai por, convenientemente, julgá-lo tão traído quanto elas próprias, enquanto os meninos investem seu ódio primeiro ao pai, a quem deseja matar – herança filogenética – e depois à mãe pelas suas traições. Assim, justifica-se que as meninas preservam o pai, fantasiando a morte da mãe, enquanto os meninos dirigem seu ódio a ambos os pais, vivendo-os como mortos.

O destino das figuras que foram substituídas aponta a direção do ódio e da patologia resultante do conflito. Branca de Neve e Cinderela têm a mãe-má como rivais ativas contra sua sexualidade. No conto A Bela e a Fera, não existe referência à mãe de Bela e também não existe uma mãe má. A inexistência de uma rival – indicativo de continência da agressividade – associado ao fato de Bela não ser uma princesa – convivendo, assim, com pessoas da cidade – e a presença de um pai afetivo a ajudam a prosseguir em direção à resolução edipiana. A dificuldade se estabelece não entre a Princesa e a Madrasta, mas entre o casal Bela e Fera, que também aqui são diferentes dos príncipes encantados: ela entra em contato com todos os aspectos ferozes e imaturos do parceiro e a humanização deles acontece na convivência e não na idealização.

Batman restaura o pai, mas a figura materna desaparece. Seu universo é masculino e suas aproximações com a figura feminina são fugazes. Por outro lado, tanto o Spiderman como o Superman, preservando ambos os pais – mesmo que mortos – conservam uma incipiente sexualidade.

Para finalizar, relatamos o sonho de um garoto de 3 anos:

Eu dormi um pouquinho só com a minha mãe e depois ela foi dormir com o meu pai. Eu sonhei que tinha um monstro. Eu vi as orelhas dele – era um morcego. Eu pensei que fosse uma sombra, mas depois eu vi que era o Batman. O Batman é meu amigo, ele protege.

Este sonho mostra um garoto iniciando contato com elementos de angústia edipiana que evoluía para monstros, vampiros, escuridão, cujo receio das conseqüências terroríficas determinou sua substituição pela percepção do Batman – figura que transita do morcego-monstro até o protetor-super-herói. O monstro, simbolicamente representado, enquanto ameaça exterior, é na verdade um perigo essencial, que reside na psique e mostra como Batman condensa uma figura protetora/ameaçadora e como está relacionado com os aspectos edípicos vividos na infância. Batman transita do terror à proteção, usando uma só e mesma personagem, que tem a característica de ter Duas Caras, ser Coringa ou uma Charada. Não seriam eles mensageiros da verdade ou representantes dos aspectos recalcados que Batman – tal qual Édipo – se empenha em não enxergar?

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fernanda Mara Colucci Fonoff
R. Itacolomi 601/24 – Higienópolis
01239-020 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3237-2031
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Regina de Baptista Colucci
R. Caiçara, 49
17502-274 Marília, SP
Tel.: (14) 3413-9343
E-mail: rcolucci@terra.com.br

Recebido em: 10/04/2008
Aceito em: 12/09/2008

 

 

* Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
** Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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