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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.76 São Paulo June 2009

 

EDITORIAL

 

Ao inaugurar a escrita psicanalítica, Freud nos legou um patrimônio inestimável, que cada publicação visa expandir, ampliar, questionar. A expressão bioniana public-action (separada por um hífen, a palavra tem seu sentido de uma ação de alcance público acentuado) compreende não somente o momento do processo interpretativo &– quando um fenômeno mental torna-se uma ação compartilhada &–, mas de igual modo um importante compromisso de todo psicanalista com seu grupo analítico de pertinência.

Tal o desafio que ora &– juntamente com alegria e entusiasmo &– assumimos ao ocupar a editoria do Jornal de Psicanálise, órgão que vem desempenhando ao longo de vários anos importante papel na divulgação da nossa produção no seio da comunidade científica mais ampla e no aprofundamento dos temas relacionados ao ensino da Psicanálise e à formação de psicanalistas. Agradecemos o convite e a confiança em nós depositada pelo diretor do Instituto, Dr. João Baptista N. F. França, da nova diretoria da SBPSP. Reafirmamos o compromisso de seguir os passos dos nossos competentes predecessores, que sempre visaram uma publicação de excelência, aberta à multiplicidade de abordagens teórico-clínicas em psicanálise, sintonizada com as lacunas teóricas, com as brechas na formação, com a reflexão incessante dos pontos de luz e sombra que encontramos nesse nosso contínuo percurso de vir a ser psicanalista.

Temos hoje vários modelos teóricos em psicanálise e colocar esses modelos em diálogo criativo pode ser a forma de não ficarmos à deriva ao lidar com os desafios e impasses que nos apresentam a clínica contemporânea.

Escolhemos para o presente número o tema Feminilidades/Masculinidades: Releituras, acreditando ser esta uma proposição que toca em áreas fundantes do psiquismo. A constatação das diferenças das gerações e das diferenças entre os sexos são estruturantes e necessárias para o estabelecimento do sujeito psíquico. Masculinidade e feminilidade ligam-se inexoravelmente às condições que produzem a subjetividade e as significações imaginárias, relembrando que toda diferença perturba os sujeitos em seu narcisismo, e exige sempre um trabalho psíquico sobre os impactos provocados por essas diferenças.

O assunto propicia uma multiplicidade de abordagens em psicanálise, destacamos aqui alguns temas e questões emergentes a que masculino/feminino nos remetem: funções e posições psíquicas; atravessamento de fantasmática masculina ou feminina, independentemente do sexo anatômico; desejo; ser homem ou mulher; questões de identidade masculina e feminina; orientações sexuais homoeróticas ou heterossexuais; feminino arcaico; conceitos de identidade de gênero; de transferência e contratransferência de gênero; influências socioculturais e ideológicas de época. Tal abrangência de abordagens nos conduziu a continuar no próximo número explorando outros vértices desse mesmo universo.

Sabemos que os fatores que intervêm na conformação da masculinidade e da feminilidade humanas são multifocais: anatômicos, intrapsíquicos, intersubjetivos, socioculturais, históricos. Particularmente verdadeiro no que tange às conceituações sobre feminino, emergiram, a partir da teorização de Freud, diferentes vertentes teóricas que apresentam as maiores controvérsias e impasses. Ainda encontramos psicanalistas que se dividem entre o “grupo de Viena”, de inspiração freudiana, que tomam por base a sexualidade masculina, o complexo de castração e a negação de uma feminilidade de base na descrição da psicossexualidade feminina, e os do “grupo de Londres” (Klein, Jones, Winnicott), que descrevem uma feminilidade primária desde os primórdios do psiquismo tanto para meninos como para meninas.

Como veremos, a riqueza das ideias freudianas, com suas afirmações paradoxais sobre a psicossexualidade humana &– veja-se a conhecida controvérsia “natureza versus cultura” &–, continuam nutrindo e reverberando no campo psicanalítico.

(Freud afirma que a anatomia é o destino e diz, ao mesmo tempo, que ninguém nasce homem ou mulher. Essas categorias, da psicossexualidade feminina e masculina, seriam construídas em um longo caminho que vai da infância à adolescência, dependendo das vicissitudes das relações pré-edípicas e edipianas.)

Sabemos que inúmeras são as combinações das posições masculinas e femininas em ambos os sexos, e que a predominância de uma ou outra está na dependência do contexto vivencial. Cada posição se desenhando e se apresentando uma em função da outra, expressando a impossibilidade de ser mulher ou homem sem uma referência ao lugar do outro. Nesse sentido, o tema deste número, Feminilidades/Masculinidades, no plural, expressa a nossa convicção de que quando se trata do humano, paradoxalmente, é na variedade e no múltiplo que mais precisamente encontraremos o que delineia o peculiar, o maravilhosamente único e genuíno de nossa humanidade.

Perguntamos, com Schaeffer, J., “Numa Sociedade cada vez menos ‘edípica’, que tende a negar a diferença geracional e dos sexos, o analista não se sente investido de uma função capital? A de ser fiador de uma sexualidade elaborativa, da co-criação do casal, do gozo sexual ou de felizes sublimações, em face de um mundo que nos confronta com a existência de formas mais e mais operatórias, ou perversas de interação”.

Ressaltamos, com Jacques André (em seu livro As origens femininas da sexualidade), que “a dimensão psicossexual da sexualidade humana, a bissexualidade psíquica, a pluralidade das identificações, tudo isso constitui ao mesmo tempo as descobertas da psicanálise e as condições de possibilidade de seu exercício. É isso que permite um homem ser diferente de uma mulher (...) os corpos serem permanentemente reinterpretados e ressignificados por nossa vida fantasmática e pelas determinações de época (...) A diversidade humana não cabe em uma simples definição de masculino e feminino”.

Uma rica entrevista com Sonia Curvo Azambuja abre o presente número. Ao discorrer sobre as “presenças e ausências” que marcaram sua vida como psicanalista, pensadora, mãe, mulher e cidadã, Sonia nos expõe a autonomia e a originalidade de seu pensamento a respeito da psicanálise e da cultura, a par de suas concepções longamente maturadas desses “dois sistemas estelares” (masculino e feminino), que buscam incessantemente uma comunicação possível.

No debate, encontramos uma conversa aberta e vibrante entre nossos convidados e o corpo editorial, com considerações sobre o feminino em Freud, controvérsias sobre homossexualidades, discordâncias sobre o caráter atemporal da vida psíquica, sobre o medo ancestral ao feminino e sobre as determinações históricas e culturais nas formações psicopatológicas, entre outras.

Encerrando este volume, deixamos registrado no Tributo a Isaías Melsohn, a homenagem do Jornal de Psicanálise e de vários colegas a esse pensador apaixonado e comunicador que, como ninguém, “empunhava a taça com o néctar da intersubjetividade”. Sonharemos com Isaías pela continuidade de uma psicanálise, como ele tanto desejava, cuja técnica estará mais a serviço da expressividade afetiva do par analítico.

Seguindo sua inspiração, desejamos oferecer ao leitor uma escrita, semelhante à proposta pelo poeta e crítico Yves Bonnefoy, que na busca contínua da escrita plena não teme entrar no interior de sua noite, enfrentar a própria finitude e encontrar a liberdade de expressão. “A escrita” &– diz ele &– “é esta liberdade consentida às palavras de atravessar e reatravessar sem cessar a fronteira, se existe uma, entre a memória daquilo que é, na realidade empírica, e a memória que elas têm do que nós somos na nossa noite interior.”

O leitor encontrará também, nos artigos a seguir, o exercício reflexivo dos autores, nas suas diferentes linhas de pensamento: esperamos que possam usufruir desses excelentes textos que aguardam, tal como nos aconselha Umberto Eco em Seis passeios pelo bosque da ficção, um trabalho de consideração atenta daquele que os lê.

“Afinal, todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça a parte de seu trabalho. Que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender... não terminaria nunca.”

 

 

Cândida Sé Holovko
Editora

Mirian Malzyner
Coeditora

Corpo editorial
Ana Maria Vieira Rosenzvaig
Eduardo Boralli Rocha
Marina Ramalho Miranda
Marta Úrsula Lambrecht
Richard Carasso
Silvia Lobo
Yeda Alcide Saigh

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