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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

DEBATE

 

Feminilidades/masculinidades: releituras

 

Feminities/masculinities: revisitations

 

Masculino/femenino: una cuestión intrigante

 

 

O Jornal de Psicanálise recebeu, em 18 de agosto de 2009, para debater o tema “Feminilidades/masculinidades: releituras”, os colegas Luiz Tenório Oliveira Lima*, Maria Cecília Andreucci Pereira Gomes e Renata Aleotti. Presentes, representando o corpo editorial, Cândida Sé Holovko, Mirian Malzyner, Eduardo Boralli Rocha, Marina Ramalho Miranda, Silvia Lobo e Richard Carasso. Transcorrida em um clima de muito entusiasmo, a troca de ideias foi regida pela cordialidade entre os interlocutores, ante os pontos de vistas variados e polêmicos suscitados pelo tema.

JP: Em primeiro lugar, agradecemos a presença de vocês três, nossos convidados para um intercâmbio de ideias e reflexões sobre o tema do presente número. Tema que, sabemos, tem merecido sua apreciação cuidadosa e instigante nos últimos anos. Iniciamos com a seguinte questão:

Considerando que a competência teórica do analista e sua própria formação orientarão sua escuta e interpretações, qual a importância que atribuem ao estudo do tema do masculino e do feminino em sua prática clínica?

Tenório: Esse tema tem de fato uma importância muito grande. Freud, de certo modo, foi o primeiro autor vivo que já no século 19 colocou a questão do masculino e do feminino de um ponto de vista absolutamente novo, inaugural. Aspectos masculinos e femininos, tanto no menino quanto na menina, tanto no homem quanto na mulher. A questão do masculino e do feminino em ambos os sexos hoje nos parece trivial. Os avanços nessa questão do conhecimento relativo à sexualidade e à psicologia das pessoas, segundo as diferenças de sexo, ou seja, de gênero, merecem uma revisão.

A questão da diferença de gênero passou a se firmar a partir dos anos 1970-75. Gênero é uma palavra que já existia para diferenciar até gramaticalmente o masculino e o feminino, mas no sentido em que passou a ser utilizado é relativamente recente. Freud não se ateve à problemática de gênero, queria verificar no indivíduo o elemento que ele chamou de bissexualidade, atribuindo essa ideia a Fliess, seu amigo e colega médico em Berlim, com quem teve uma longa amizade e uma correspondência intensa, que está na origem de muitas ideias que contribuíram para a criação do campo psicanalítico entre 1996 e 1900. Freud, em 1906, introduz o conceito de bissexualidade como sendo inerente ao menino e à menina e vinculando-o também à questão das identificações. Dessa ideia inaugural, partiram noções que os analistas desde então passaram a utilizar, atribuindo a comportamentos sexuais ou de gênero significados que se baseiam não apenas na distinção anatômica entre os sexos. Minha primeira resposta é que, de fato, é um tema importante na prática clínica. Segundo ponto, em relação a esse aspecto, acho que faz diferença falar de identidade sexual e orientação sexual. Na prática clínica, é preferível o termo orientação sexual no sentido de orientação da libido. No caso da orientação sexual para um objeto do mesmo sexo do sujeito ou de um sexo diferente nos referimos, então, à heterossexualidade ou homossexualidade, como também heteroerotismo ou autoerotismo da orientação da libido. Portanto, não falamos em identidade sexual ou desvio de identidade sexual.

Renata: Agradeço o convite e adianto que foi interessante refletir sobre esse tema. Acho que o Tenório fez uma apresentação bastante elucidativa a respeito das questões postuladas por Freud sobre o masculino e o feminino. Concordo com ele que identidade sexual e orientação sexual são noções que permeiam a prática clínica. Freud começou a levantar questões que depois foram desenvolvidas por vários autores e autoras. Temos estudado muito sobre isso na Cowap (Comitê Mulheres e Psicanálise da IPA) e considero esse estudo importante para minha formação, porque de alguma forma chama a atenção para problemáticas que aparecem tanto nos pacientes do sexo feminino como do sexo masculino, em relação às questões da masculinidade e da feminilidade. Os diferentes modelos de pensamentos nos ajudam a ampliar o questionamento na clínica, porque essas problemáticas não são fáceis de entender, elas não são dadas, elas não vêm do jeito que a gente imaginaria que poderiam vir na transferência, na prática clínica.

A literatura psicanalítica sobre feminilidade e masculinidade traz elementos para observar e aprofundar as questões humanas sobre as pulsões, o narcisismo, etc., que estão presentes em homens e mulheres, mas que nos cabe analisar no indivíduo que está ali na nossa frente. Determinados modelos de compreensão podem ajudar a pensar a clínica, porque eu acho que é fundamental a informação para a prática clínica, uma vez que estamos o tempo inteiro questionando quem é esse homem que está na minha frente, quem é essa mulher, quais são os elementos femininos, quais são os elementos masculinos? Quando o Tenório fala da identidade de gênero, isso é muito importante, porque a questão de gênero hoje em dia atravessa a clínica o tempo todo. Não podemos pensar que só os conceitos que temos de psicanálise são suficientes, há também os elementos da cultura, elementos que essas teorizações estão levantando e são extremamente significativos para a nossa prática.

JP: Entre os psicanalistas, há os que consideram importante pensar na cultura e nas transformações do mundo como fatores que interessam à clínica; outros preferem abordar o universo mental em seu caráter universal e atemporal. Como vocês se colocam em relação a essa questão e como pensam a constituição do self e da identidade sexual na sua clínica. Vocês também pensam, como a Renata, que a problemática de gênero se apresenta de fato como um tema de reflexão para a psicanálise?

Cecília: Inicio minhas considerações com duas provocações, algo que me veio à mente e estão contidas nessas perguntas. Lembrei-me de um fragmento de sessão de uma candidata, quando ela analisou uma mulher, profissional liberal, solteira, que procurou análise porque queria ter uma produção independente, por inseminação artificial, utilizando-se de um banco de espermas de um hospital. Ela considerara com a analista os riscos emocionais e físicos daquela atitude, ou seja, o de uma mulher tendo um filho, sem pai, somente um número, com algumas características do fenótipo (altura, cor, peso) e algumas informações adicionais (profissão, modo de vida, etc.). Orientada pelo seu médico, decidiu se submeter àquele processo de inseminação. Durante o primeiro mês de gravidez, muito angustiada, disse para a analista: “Às vezes fico pensando sozinha sobre essa situação. Fiz uma marca na parede do meu quarto com a altura do doador e escrevi: ‘Com carinho, do papai e da mamãe’. Posso também, quando ficar aflita e tiver problemas depois que ele nascer, conversar com você. Você vai me ajudar”.

Outra provocação seria uma nota “Nascem bebês geneticamente modificados”, publicada no jornal O Estado de S. Paulo (2001): “Nascem nos Estados Unidos os primeiros bebês com duas mães e um pai. Foi confirmado ontem nos Estados Unidos as primeiras trinta crianças que têm duas mães e um pai. No processo, cientistas implantaram partes de células de uma doadora de óvulos em uma mulher com dificuldade em engravidar e, com isso, os bebês têm no núcleo celular material genético do pai, da mãe e da doadora. A operação é considerada antiética por grupos de cientistas, pois ainda não são conhecidas as consequências”.

Para nós, analistas, as consequências seriam no psiquismo da mãe, do pai, do bebê, ambos na relação com a criança, e desta com eles. A partir das questões propostas pelo jornal e dos dois fragmentos citados, pergunto:

1) Qual a importância das diferenças de gênero e das diferenças geracionais na escuta analítica &– diferenças que contêm desde os mais primitivos estados de mente e relação objetais, até a estruturação da triangularidade e da situação edipiana?

2) Qual a importância das mudanças culturais e sociais no ser humano nas vertiginosas transformações que ocorrem em todas as áreas do conhecimento e seu reflexo na psicanálise e na clínica psicanalítica?

3) Qual a importância da dor gerada pela percepção das diferenças humanas em nós mesmos, analistas, e em nossos pacientes, e a capacidade de tolerá-las, quer sejam diferenças individuais, grupais ou de modelos e correntes teóricas psicanalíticas?

4) Qual seria o ‘alívio’ advindo da negação das diferenças, no atual momento em que vive a psicanálise e o ser humano, em que, pela rapidez das transformações e o desamparo gerado pelas mesmas, os limites tendem a se obscurecer, as diferenças a se anularem, a dor humana a se alastrar em uma pandemia de solidão, que se expressa na clinica psicanalítica da atualidade?

A partir dessas questões que me surgiram, lembrei-me das pesquisas de Arnold Toynbee e Fritjov Capra. Assinalam os mesmos que uma das grandes mudanças que hoje abala e afeta profundamente nosso sistema social, econômico e político é o inevitável declínio do patriarcado, vigente há pelo menos três mil anos na história da humanidade. A desintegração do patriarcado abalou profundamente não só o indivíduo, como as instituições sociais, políticas e religiosas. A mulher ascende em diferentes áreas e pleiteia igualdade de direitos na cultura, no mercado de trabalho, na sociedade. Mudam-se certos preconceitos sobre a sexualidade, mudanças estimuladas pelo controle da natalidade e das técnicas de reprodução. Surgem os movimentos feministas como uma das mais fortes correntes culturais de nossa época. Esses movimentos &– análogos a um patriarcado extremamente dominador &– muitas vezes causam confusão entre as diferentes funções do masculino e do feminino, confusão a respeito da verdadeira feminilidade e da verdadeira masculinidade. A mulher, buscando essa equivalência de valores com um sistema patriarcal radical, pode abalar a si mesma, mulher, confundindo-se com o radicalismo feminista, repúdio das diferenças sexuais e alimento alucinatório em relação ao mito da androginia.

Por outro lado, os rápidos avanços da tecnologia, da ciência, da bioquímica, da genética moderna, das técnicas de reprodução e clonagem, da informática e da globalização geram no homem uma vertiginosa desaceleração em relação às realizações das verdades universais e eternas: seu nascimento, sua vida, sua percepção das diferenças e seu percurso para a morte.

Freud através da psicanálise, esta tremenda evolução cultural, tentando compreender a complexidade do comportamento do ser humano, individual ou grupal, depara-se com a descoberta do inconsciente com suas leis, tão distintas das leis do pensamento lógico-formal.

O homem, na visão de Freud, é ‘habitado’ por essas fantasias inconscientes que em determinados momentos o invadem, o possuem e o dirigem como se fossem espíritos invisíveis. As fantasias, evoluindo em sua forma de simbolização, podem se manifestar em outras formas de expressão, no sonho, na poesia e na arte. Entre esses sonhos de fantasias inconscientes, existem alguns que constituem os sonhos milenares de humanidade, como os mitos, as lendas e os rituais.

Dentre os mitos citados, destaco o mito edípico, como um dos que contém o maior número de fantasias inconscientes já assinaladas por Freud. Quando se refere ao mito edípico, ele é o precursor de outros autores, na ênfase da importância da configuração da situação edipiana (Bion) no psiquismo humano e na constituição de um espaço triangular, uma das pedras fundamentais do desenvolvimento do pensamento. Na constituição desse espaço, a figura do pai, ou o masculino, opera como um ponto de equidistância e equilíbrio entre a criança e a mãe, ou o feminino, obstruindo a fusão e a confusão entre ambos, dando nascimento à percepção das diferenças de gênero e geracionais e à aquisição da capacidade simbólica.

Portanto, não é a questão do gênero a mais significativa, mas o desenvolvimento da capacidade de pensar.

Renata: Freud começou também pensando na cultura e de alguma forma ele trazia elementos dessas reflexões para pensar o universo mental. Você tem que partir do particular para o mais amplo e do mais amplo para o particular, e a cultura, hoje em dia, o social, está conduzindo para dentro da clínica questões que muitas vezes nos fazem sentir estar um passo atrás, na medida em que os pacientes trazem determinadas situações que se apresentam como totalmente novas. Estava pensando no caso de pacientes, tanto homossexuais como heterossexuais, que em certas áreas da personalidade têm um desenvolvimento, um amadurecimento &– agora, quando entra sexualidade, desejo de ter filhos, aparecem restrições, repressões e repetições. Como é que você vai abordar essas questões? Acho importantes esses debates até para pensarmos o papel da psicanálise nesses casos.

JP: Ao colocar a sexualidade presente desde o início da vida, Freud já desvincula a sexualidade da genitalidade. Para se falar com pertinência da sexualidade, da questão de gênero, da questão de identidade sexual, temos que fazer uma diferenciação entre os termos e especificá-los. Em psicanálise, desde o início é a sexualidade. E, então, como encaram a noção de gênero?

Tenório: Essa questão é bastante complexa e ampla; requer uma aproximação em vários planos. Penso inicialmente em Freud &– como sempre um ponto de partida &– e sua teoria da libido, iniciada em 1905. Foi o trabalho que ele mais modificou ao longo da vida. Como é sabido, ele formulou uma teoria dos instintos, das pulsões, como se diz mais recentemente, mas que prefiro dizer teoria dos instintos e do conceito de libido e seu desenvolvimento. Ele atribuiu ao corpo do bebê até a puberdade um elemento fundamental: a relação com o corpo da mãe e com os outros corpos. A superfície corporal engendrando a própria mente, inclusive o próprio eu, sendo o ego resultado do desdobramento dessa superfície com a superfície corporal do ego do outro no mais íntimo. No outro plano, está a questão do comportamento sexual e da orientação dessa libido nos comportamentos dos indivíduos: portanto, dos nossos pacientes. Como disse a Cecília, tanto no plano teórico, como no plano prático, são questões da atualidade para pensarmos.

Vou me ater primeiramente à questão teórica, porque acho que, do ponto de vista da relação com a cultura e com a sociedade, o movimento que Freud iniciou utilizou a psicanálise para investigar a cultura. Há uma tendência contemporânea, da qual sou muito crítico, que consiste em fazer o contrário e aplicar de certo modo as teorias sociológicas com conceitos psicanalíticos para dar conta da cultura, para investigar a cultura. Freud, nos seus trabalhos mais amplos, que tentam refletir sobre a cultura, como em Totem e tabu, Psicologia das massas e Análise do ego, usa o referencial psicanalítico para fazer um diagnóstico. Por exemplo, com Melanie Klein e o conceito de equação simbólica podemos pensar como no desenvolvimento é pelo Édipo, pela triangulação, que se alcança a capacidade simbólica e a percepção das diferenças.

Cecília: Concordo com você em termos, pois penso que o movimento não é só da cultura para o homem, mas do homem para a cultura. Quando Freud buscou um manancial para compreensão do homem, do inconsciente genético do homem na origem dos mitos &– seja em termos de equação simbólica como delírio ou em termos de uma simbolização mais evoluída &–, expressou os resquícios da humanidade primitiva. Atualmente nós estamos chegando talvez em outra galáxia, porém o primitivo nos habita em qualquer circunstância. É a invariante do primitivo. Quando Freud fala em sexualidade, penso que se refere desde os mais primitivos estados sexuais até os níveis oral, anal, fálico-uretral, genital. O ser humano transita em todos os níveis.

Tenório: Meu ponto de vista sobre a questão da relação com a cultura se assemelha ao ponto de vista que tanto Freud quanto os autores, os analistas do período, expressavam. É o inverso do ponto de vista das teorias da cultura produzidas pelos sociólogos e cientistas sociais. Do mesmo modo como ocorre na clínica psicanalítica, cujo ponto de vista é diferente da clínica médica, da clínica psiquiátrica e da clínica psicológica, ou seja é um modo que não se fundamenta na indução. Refiro-me aos métodos indutivos e estatísticos. O que nos leva ao difícil problema da tipologia. Confundimos a questão do comportamento, que é importante para todos nós: por exemplo, o comportamento da juventude é aferido pelos sociólogos, psicólogos clínicos. Para o analista, o comportamento é apenas uma amostra que vai nos remeter para a singularidade daquele paciente &– então, não é indutivo, é dedutivo.

Você citou a questão do particular, a cultura parte justamente do particular para o geral e não ao contrário, do geral para o particular, que é feito pela indução, pela estatística; quer dizer, é uma mescla dos elementos indutivos com elementos estatísticos e que, portanto, perdem a pertinência para o método psicanalítico ou para o próprio psicanalista. O psicanalista parte do singular, que é o seu paciente, sua amostra. Não é uma crítica à pesquisa e ao uso das estatísticas, mas é uma questão metodológica complicada.

Quando Freud, trabalhando com os pacientes histéricos, investiga e constrói uma teoria etiológica causal no sentido médico, clínico, para a histeria, ao fazer essa descoberta ele inverte na verdade a parte pelo todo. O que ele dizia que era a sexualidade dos histéricos é, realmente, a sexualidade de todos nós. A pertinência é essa. Não há para o analista, desse ponto de vista, o tipo: há um indivíduo e sua situação singular. Não sei se estou sendo claro, mas é por isso que nessa segunda pergunta &– “entre os psicanalistas há os que considerem importante pensar na cultura e nas transformações do mundo como fatores” &– eu inverto a questão. A clínica psicanalítica pode propiciar ao sociólogo ou ao psicanalista que queira falar e pensar sobre isso esclarecimentos para a cultura, como Freud fez em O mal-estar na cultura.

Vou dar um exemplo interessante que talvez vocês conheçam e que muitas vezes cito, que é o do Christopher Lasch. Um sociólogo que usou os insights psicanalíticos de Melanie Klein e Freud para explicar a delinquência e os distúrbios comportamentais mais comuns a partir dos anos 80, semelhantes aos que nos defrontamos hoje com a violência, a crueldade, a promiscuidade comportamental. O que ele diz? Vou falar da Cultura do narcisismo e do O mínimo Eu, dois livros que foram editados pela Imago.

Lasch diz que a teoria freudiana baseada na simbolização, nas neuroses de transferências, trata de um superego baseado na identificação com a figura paterna, que por sua vez tem como extensão simbólica a autoridade paterna: patriarcal, política, o monarca, o juiz, o magistrado, o professor. Segundo ele, houve uma erosão entre as duas guerras mundiais e, logo depois da 2ª Guerra, uma erosão desses princípios fundados no patriarcado, que davam suporte a essa teoria do superego. Então, esse superego continente, esmigalhou-se. Talvez eu não esteja sendo justo com Lasch, porque ele expressa isso de uma forma mais dramatizada, mas para nós que estamos acostumados com as duas teorias, tanto a de Freud, do superego, quanto a de Melanie Klein, é interessantíssimo, porque na realidade essa é uma questão que nós vivemos como resultado de uma erosão permanente desses aspectos mais exteriores que liberam os impulsos mais primitivos e invariantes da condição humana. Separo crueldade de violência. A questão da violência contra as mulheres é muito importante, porque as mulheres têm sido objetos da violência, não necessariamente a violência física, nem a crueldade física, mas da violência em obter delas vantagens sem consentimento individual. Por exemplo, o exercício de poder. Isso é violência. É diferente de agressão. Agressão sugere algo físico. A violência é o equivalente do estupro, o modelo da violência é o estupro. É se apropriar do corpo da mulher sem o consentimento dela. Nem precisa ser violento. Nem precisa ser agressivo, aliás. É violento ainda que seja aparentemente consentido. Não é isso? Essa questão da crueldade, da violência, são desdobramentos de alguma coisa que sempre esteve aí, faz parte de todos nós e que vai assim se manifestando de um modo anárquico no grupo social. Esse ponto de vista pode ser útil para o sociólogo pensar e ver se essa teoria é útil ou não para a psicologia social. Para a psicanálise, ela é de grande utilidade porque vai permitir que eu possa vislumbrar os comportamentos que os meus pacientes manifestam ou relatam, e tentar justamente perceber os fundamentos invariantes desses comportamentos. Acho que essa é a questão.

Cecília: O que você falou do indivíduo é muito interessante para a psicanálise porque nós temos as invariantes, mas nós temos em cada relação a singularidade de cada ser. A singularidade de cada mente nunca produzirá as mesmas fantasias, ainda que sejam arquetípicas: o intrincamento pulsional e passional das relações de objetos serão diferentes em cada indivíduo. Acho que esse é o fantástico mistério da psicanálise, o difícil e o angustiante da psicanálise, porque de repente a pessoa quer se apoiar nas teorias para não ver aquela singularidade e especificidade de cada ser.

Tenho uma paciente que está há muitos anos comigo e que no momento em que estava emergindo de uma crise me disse: “Eu trouxe das férias um caleidoscópio para você. Olha como é que eu sou. Espia esse caleidoscópio, vai virando devagarzinho com muita paciência. Quando você vira devagarzinho o caleidoscópio, várias figuras vão se formando. É assim que eu me sinto por dentro”. Penso que esta é a singularidade de cada mente, de cada movimento tão bem expresso por minha paciente. Nós aprendemos muito com determinados pacientes. Fiquei impactada e comovida pela forma como ela transmitiu que a mente dela é singular, que eu tinha que apreender aquela singularidade.

Já na questão do indivíduo para a sociedade concordo com você, mas acho também que é uma via de duas mãos. Nós também sentimos a influência desse impacto. Penso que na contemporaneidade as nossas crianças sentem uma grande invasão da comunicação, da dramaticidade, às vezes na precocidade do seu ser, quando o aparelho mental ainda não consegue, não tem ainda habilidade de digerir estas informações. Não podemos também deixar de ver que as coisas se intercambiam e penso que o inconsciente vai sofrendo mutações através da evolução do tempo e da cultura.

Tenório: No consultório é minha personalidade inteira que sofre o impacto de todos esses elementos, tem que estar em interação com a minha função analítica. A interação é inescapável. Estou plenamente de acordo com isso que a Renata trouxe &– o que eu coloco, por razões epistemológicas, é pensar de alguma maneira essa interação para evitar confusão. A confusão supõe o que do ponto de vista clínico? Supõe o modelo normativo, tudo que Freud fez o possível para escapar. O modelo normativo e impessoal.

Agora, coincidentemente, estou coordenando um seminário sobre narcisismo: estamos refletindo sobre a polêmica de Freud com Jung, justamente a respeito da libido, em que Freud reage de uma forma tão interessante. Não porque ele seja contra ou não concorde com a teoria que Jung propõe, de uma libido universal como sendo a motivação &– não há porque discordar dessa teoria, mas ela não é a minha teoria da libido, ela não é a teoria da libido psicanalítica. É importante ver essa diferença, porque Freud não está dizendo que Jung está errado, pelo contrário, Jung foi uma grande contribuição para outras áreas. A psicanálise, tal como Freud a constituiu, propõe uma teoria do narcisismo, da libido, do objeto, para poder de certo modo se aproximar da questão da psicose, que é o problema do artigo de 1914, do narcisismo. Por quê? Como é que eu, enquanto analista &– minha personalidade como um todo interagindo no mundo social, no grupo, na família, nas ideologias, nos conhecimentos científicos, inclusive na própria psicanálise &–, como é que isso interage com a minha função no trabalho analítico? Minha personalidade pode se identificar ou não com o tipo de comportamento daquela pessoa jovem que vive as tribos, que vive rituais estranhos à minha percepção. Mas nada do que é estranho, do que é humano, como analista, eu posso estranhar.

Posso estranhar como pessoa, mas não como analista. Cabe aqui a conhecida frase de Terêncio, dramaturgo romano do século 1º A.C., que Freud sempre utiliza e que eu gosto de repetir, segundo a qual “nada do que é humano é estranho ao meu coração” ou “não me é estranho nada do que é humano”.1 A questão normativa está imbuída em nossa personalidade, nós precisamos do normativo, é por isso que a função analítica tem de prescindir, colocar em suspense a normatividade própria da personalidade, da minha personalidade enquanto analista. Se isso for possível, é a disciplina, como propôs Bion. A ideia está lá na própria formulação das teorias técnicas relativas à atenção flutuante e essa disposição empática com o que acontece no nosso paciente, por mais terrível e estranho que possa parecer à minha personalidade, mas não à minha condição de analista. Acho central essa diferença, principalmente para as questões de gênero. O travesti Rogéria, em uma entrevista com Hebe Camargo, há muitos anos, quando ele era mais jovem, disse: “Hebe eu sou homem. Meu nome é Astolfo. Agora eu me visto de mulher”. Não se trata aqui de identidade de gênero. Ele é homem e a identidade de gênero dele é masculina. Ele tem a orientação da libido homossexual.

JP: Quando do congresso de São Francisco, uma dessas passeatas GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) estava para acontecer e uma notícia muito interessante saiu num jornal sobre um grupo que estava se ressentindo de não ser acolhido naquela comunidade. Era um grupo significativo, com mais de duzentas pessoas: homens que haviam feito operação para se transformar em mulher e que desejavam um relacionamento com mulheres. Então, que orientação é essa? Nesse caso, o gênero parece ser feminino e a orientação homossexual.

Cecília: Qual o vértice psicanalítico? Nós estamos falando de grupos homossexuais e heterossexuais. O vértice psicanalítico é o vértice de gênero? Então, essa é a questão: qual o mito pessoal? Como se dá a intricada rede de relações objetais dessa pessoa? Qual a visualização do seu mundo mental e do seu mundo de fantasias? Quer dizer, quando você adota essa posição tanto faz se você está com um homem ou com uma mulher.

Tenório: Essa é a nossa vantagem. Aliás, os analistas atualmente ficam se sentindo muito em desvantagem em relação a sociólogos, filósofos. Temos várias desvantagens no que diz respeito a métodos de pesquisas, indutivos, estatísticos, bioquímicos, mas temos uma única vantagem, que é a singularidade. Isso que Cecília acabou de falar tão maravilhosamente bem. Uma pessoa tem distúrbio bipolar, transtorno bipolar, está tomando a medicação, tudo bem &– mas como é que se dá internamente essa relação, o impacto disso nas relações objetais internas desse paciente? Nisso, o analista é absolutamente específico e é o nosso campo de trabalho. Muito bem, acho que você colocou a questão no lugar correto.

Renata: É muito interessante quando Stoller teoriza a questão da identidade de gênero, mostrando o quanto o sexo atribuído à criança muitas vezes impera sobre o sexo biológico. A questão do imaginário, a questão do olhar do outro nas relações e o quanto aquilo vai se configurando internamente e muitas vezes determinando a forma como o indivíduo se vê. Não é mais o sexo biológico, mas como a pessoa se representa. Cecília falou dos mitos pessoais. Na clínica, precisamos observar como aquela pessoa se representa e quais são as suas crenças.

JP: Hoje em dias as mães sabem o sexo do bebê antecipadamente. Para nós, analistas, talvez fosse bom se despoluir de todas essas informações prévias, se o paciente é um travesti, se parece homem, se parece mulher, e poder sonhar como fazíamos com nossos bebês &– quer dizer, o que vier está bem.

Cecília: O psicanalista parte do particular para criar uma generalização, mas esse particular é apreendido a partir de teorias da cultura da qual ele pertence. Ele não cria do nada, o que torna a questão mais sofisticada, mais bonita e mais complexa. Não existe um psicanalista fora da cultura. O erro seria eventualmente usar a cultura, a sociologia para explicar.

JP: Qual seria o papel da cultura e da época histórica na produção das sintomatologias? Os pacientes e os analistas geralmente estão inseridos na mesma cultura, mas às vezes também pertencem a culturas diferentes. Talvez pudéssemos pensar que o impacto das mudanças culturais apareceria mais através da sintomatologia das pessoas e não necessariamente na produção de novas patologias, ou seja, em alguma modificação profunda desses aspectos universais do psiquismo.

Cecília: Nosso colega Chaim Hammer tem um quadro de Ismael Nery que mostra um bebê nascendo. Só que o rosto do bebê é o de um velho. Vemos aí representado como nós trazemos a cultura dentro de nós e ao mesmo tempo o impacto da cultura vinda de fora. A cultura começa nas primeiras relações, mas depois se amplia, vai evoluindo para a triangulação e depois para o meio cultural. É uma via de dupla mão.

Tenório: É uma tradição que vem desde o século 18, procurar ver cientificamente o que seria uma cultura, uma civilização, etc. Quando Freud escreve O mal-estar na cultura ele está se referindo ao conceito de cultura para se aproximar daquele mundo empírico que o conceito de cultura designa, que procura explicitar. Estamos mergulhados na cultura e condenados a ela, não há como escapar. A psicanálise constituiu-se como uma disciplina e tem certas especificidades. Seu exercício requer certos splintings: em relação à nossa vida familiar, nossos valores, nossa vida de cidadão, nossa vida pedagógica, nossa vida normativa, nossa vida cultural, certo? É nesse sentido que se faz o splitting. Se estou com um problema familiar quando entro no consultório para atender meu paciente, não posso colocar esse problema no primeiro plano na minha vida mental. Tenho certos pontos de vista políticos, ideológicos, mas não vou discutir política com o paciente. Supõe-se que eu seja capaz; isso é dificílimo e nunca conseguimos um treino suficiente para fazer o que eu chamo de splitting. E aí já estou aplicando uma teoria psicanalítica a mim mesmo, na medida do possível, deixo fora da sala tudo aquilo que interfere, para poder cada vez mais me aproximar do vértice psicanalítico.

Mesmo a nossa cultura psicanalítica pode ser um obstáculo terrível para minha intuição, para minha capacidade de escuta e observação do paciente. Preciso me despojar, mas isso é um artifício que nunca é completo. Há uma tensão, há um conflito interior no analista entre a função analítica e todos esses avatares, todas essas sobrevivências desses elementos. Sem falar no outro aspecto &– este sim analiticamente mais relevante &–, que são as nossas angústias primitivas, aquilo que nos é mobilizado, seja pelas identificações projetivas, seja pelos estímulos e motivações que o paciente, principalmente o paciente mais perturbado, mais psicótico, mobiliza. Nós ficamos entre dois fogos, o primitivo da nossa própria personalidade e o cultural mais refinado. Quando comecei a minha formação, existia um livro do Hacker, manual de técnica. E eu dizia: não vou conseguir ser um analista, ficava desesperado. Acho que tenho conseguido. Mais ou menos, depois de uns trinta anos. Espero.

Cecília: Penso que a experiência de ‘vir a ser um analista’ evolui na própria análise pessoal. Depende muito também das condições de personalidade do analista. Você só consegue lidar com essa experiência emocional se puder tolerar separações internas e externas, tolerar diferenças e sentir compaixão, porque então você trabalha com o vínculo “amor” mais “conhecimento”. Para você poder tolerar esse estado mental em você mesmo, você tem que lidar com essas condições de personalidade

JP: Vários autores fazem menção ao medo quase ancestral ao feminino. Do ponto de vista de vocês, ao que esse medo estaria ligado?

Tenório: Eu não sei se existe esse medo ancestral do feminino. Pode ser também o medo do masculino, a inveja do pênis...

Renata: Penso que essa questão está relacionada com a outra que vocês enviaram sobre homossexualidade. Será que poderia fazê-la agora, para que eu possa responder as duas juntas?

JP: Ao preparar este número do Jornal de Psicanálise, tomamos contato com trabalhos publicados por analistas que se apresentam como homossexuais e pertencem aos quadros da IPA. São fatos novos, que fazem pensar em mudanças na clínica e na instituição psicanalítica.

Renata: Nós estávamos falando da questão do gênero do paciente e do gênero do analista. Fico pensando no meu atendimento de pacientes homens, de pacientes mulheres, as dinâmicas que observo na relação, no vínculo: percebo que muitas vezes tem diferença, sim. Essas duas questões sobre o medo ancestral do feminino, como é que se configuram as fantasias do paciente, eu também não sei, como o Tenório, se realmente procede esse medo ancestral do feminino, ou medo do masculino, a questão da inveja do pênis, da maternidade. Fico pensando: será que na época de Freud isso era muito forte? Hoje em dia, as dinâmicas podem se configurar de maneira diferente, quer dizer, inveja e medo são do ser humano.

Nós acreditamos na questão edípica, na triangulação. Então, nesse sentido, na homossexualidade haveria uma recusa em entrar em contato com alguns aspectos, o que seria danoso. Mas nós, como analistas, temos as nossas patologias e às vezes podemos ajudar um paciente porque ele passa ao largo da nossa patologia. Mas quando chega um paciente que casa com a nossa patologia, eu não vou poder ajudar.

JP: Você está então colocando a homossexualidade dentro de uma concepção psicopatológica?

Renata: Muitas vezes eu vejo homossexualismo em pacientes heterossexuais, no sentido de não aceitar diferença, de se unir na igualdade, de fazer relações simbióticas. A relação só com o igual para mim seria uma patologia, e aí eu não estou discutindo a questão sexual, mas eu estou discutindo a questão mental.

JP: Gostaríamos de saber como vocês (Tenório e Cecília) se posicionam a respeito desse assunto?

Cecília: Gostaria de responder a essas duas questões usando outra linguagem. Opto por outro viés, a linguagem mítica. Esse medo ancestral do feminino pertence à história da humanidade. Adoro ler sobre mitos, e destaco Campbell quando diz que “os mitos são sonhos do mundo”. Por exemplo, se você se remeter ao mito do jardim do Éden, da unidade temporal, onde tempo e eternidade se unem, esse mito é representado pela serpente, a árvore e a mulher. A serpente é equivalente a mulher e equivalente a árvore da vida. A quem é atribuída a queda do jardim do Éden, o ingresso no mundo da temporalidade, o ingresso no mundo da sexualidade, das diferenças, etc.? À mulher. A questão da ancestralidade da mulher está em todos nós, a mulher primitiva, a mulher arcaica, a mulher da filogênese. No mito, a mulher, a serpente e a árvore se equivalem, pois a serpente morre e renasce mudando a pele, e a mulher tem o dom de dar a vida, de fazer renascer. A primeira deusa que existia em Canaã era mulher. Nos selos sumerianos existe uma inscrição da árvore, da mulher e da serpente, oferecendo o fruto ao visitante. Os hebreus impuseram aos antigos habitantes de Canaã o deus masculino.

Há um livro, muito interessante, que faz uma revisão da situação edípica, O renascimento de Édipo, de Maurício Abadi. Ele analisa o mito edípico e estuda a questão do feminino e do masculino. Para Abadi, o homem oscila entre dois medos ancestrais: o medo em relação à mulher, o medo mais profundo e primitivo, que seria o medo do claustro, de ficar fechado; e o medo gerado pelo trauma do nascimento, que seria a angústia da separação, da perda de limites. Ele faz uma analogia entre Jocasta, a Esfinge e Édipo. Estuda as relações pré-edípicas através da relação de Jocasta, Édipo, e o homossexualismo de Laio. Quando a Esfinge propõe a Édipo desvendar o segredo, em profundidade, o segredo equivale ao feto no ventre. Édipo tem a função do pai-parteiro, de separar o bebê da mãe, como também de se libertar ele mesmo do claustro materno. O autor aborda o terror que ocorre na vivência de separação no momento do nascimento. O ser humano nasce desamparado, nasce muito frágil. Quando Édipo questiona a Esfinge, ele questiona a mãe matricida que o gerou, sabendo que ele seria morto, quando o entregou a Laio. A Esfinge é a figura devoradora, fálica, a mulher representada pela figura combinada de Klein ou o objeto bizarro de Bion. Essa é a mulher arcaica, que aparece nas brincadeiras e sonhos infantis e no mundo infantil do adulto, seja homossexual, heterossexual. Quando Laio foi exilado de Tebas, apaixonou-se por Crísipos. A homossexualidade de Laio desencadeou a fúria de Hera, que achou uma afronta à mulher, à feminilidade, castigando-o com a infertilidade. Freud fala da inveja do pênis e do continente negro. Penso que o continente negro que o homem jamais pisou é o ventre da mulher, a capacidade de gerar um bebê.

O homem procura durante toda a vida, através das atuações, das lendas, dos mitos, dos rituais, ou através da arte e da poesia, recuperar esse desejo profundo e impossível de gerar um bebê. Esse desejo, para o autor, encobre o desejo de se perpetuar, poder nascer novamente, pois o homem está lidando com o medo da morte.

JP: Vocês consideram que para determinados pacientes faz diferença o analista ser um homem ou uma mulher?

Cecília: Não sei se vocês lembram quando Meltzer esteve aqui. Ele enfatizou que preferia encaminhar para analistas mulheres determinados pacientes, sobretudo crianças autistas e psicóticas

Tenório: Eu próprio, quando faço um encaminhamento, pergunto se a pessoa tem alguma preferência. Eu não saberia como demonstrar, mas na minha experiência clínica o fato do analista ser homem ou mulher pode influenciar no rumo da análise. É uma questão a ser examinada.

Achei bonita a exposição da Cecília, usando o mito, como matriz no trabalho clínico. Desde que lembrando sempre a especificidade de cada situação. Penso que a questão do medo do feminino é um mito, da mesma forma que o mito do eterno feminino a que Freud se referia. Não estou desqualificando o uso dos mitos. Estou olhando do ponto de vista da história da cultura. Todas essas construções têm o seu fundamento, mas são figurações. Significa que não é algo que encontra sempre uma correspondência empírica, factual na experiência.

O medo do feminino é um medo mítico, como também o medo do gigante, o medo da caverna, o medo do escuro. Tanto a claustrofobia como a ausência de limites foram enfocadas por Klein, com a questão da identificação projetiva. O medo do escuro, o medo de ser aprisionado dentro do ventre da mãe e da violência que isso envolve. Ela fez suas observações a partir da experiência analítica com as crianças. Klein usou esse referencial com essa terminologia, com esse vocabulário. Poderia ter usado outro vocabulário para a mesma apreensão, mas ela usou o vocabulário analítico, o vocabulário de Freud dos Três ensaios. Então, eu responderia assim: o medo do feminino corresponde a certas figurações e certas apreensões como tantos outros medos. No meu ponto de vista, não é um medo específico. Do mesmo modo, Freud menciona a questão do continente negro, mas a teoria psicanalítica que ele construiu não dava conta do feminino. Não porque o feminino fosse mais obscuro do que o masculino. Eu, de fato, não acho. Meus amigos &– e às vezes os pacientes &– dizem que a mulher é a coisa mais difícil. Para uma mulher, pode ser o contrário. Na verdade, ambos são problemáticos. Freud desenvolveu uma teoria centrada no masculino. A partir de 1923, 1925, esses eram os problemas que ele queria resolver: o problema da psicose e o problema da mulher. Em dado momento, ele diz que para ele era um continente obscuro, embora ele próprio tivesse um bom conhecimento e uma boa relação com as mulheres. Freud tinha uma compreensão romântica das mulheres e as valorizava muito, mas a teoria era masculina, muito masculina. Às vezes, até com razão, há um deslizamento de significados, uma semantização dessa expressão “o que quer uma mulher?”. Como se a mulher quisesse alguma coisa além do que aquilo que os seres humanos de qualquer natureza, homens, mulheres ou GLS querem. O desejo é absolutamente enigmático. Ele não “se sabe”, é dominante e enigmático. Existe uma diferença entre o masculino e o feminino. É uma diferença pertinente dentro de cada um, homem ou mulher, e conforme essa diferença é vivida as identificações podem ser melhores ou piores. Há mulheres que têm uma boa identificação com a figura masculina interna, com a sua masculinidade. Então podem interagir muito bem com um analista mais masculino, mais firme. Outras podem ficar assustadas.

A meu ver, a homossexualidade dos analistas não tem importância. E, se tiver, isso é para ser trabalhado como qualquer outra questão. Sempre defendi a participação de colegas declaradamente homossexuais. A questão é mais ligada à integração. A homossexualidade propriamente, declarada ou não, não é um empecilho para o exercício da função de analista. Eu não vejo que seja. Acho até que o declarado é mais saudável. Não que a pessoa precise publicar o que é, mas se estiver tranquila com sua escolha, com sua orientação libidinal, erótica, tenho impressão que isso é mais saudável do que a situação da tensão. Isso vale para qualquer coisa: não podemos ter “esqueletos no armário”. Se os tiver, você está aprisionado, e logo vai aparecer o paciente intuitivo que vai captar esses elementos. Então, quanto mais o analista estiver realmente firme com suas identificações, mais confortável estará, incluindo aqui homoerotismo, homossexualidade, etc. Esta é a minha resposta.

JP: Na sua resposta está incluída a ideia de que existem homossexualidades e não homossexualidade, no singular. Cremos que esta é uma maneira mais abrangente de abordar esse tópico que leva em conta a existência de várias possibilidades de configurações psíquicas em orientações homossexuais, com diferentes integrações, inclusive edípicas.

Tenório: Quando nós dizemos homossexualidades, supõe-se que suas formas sejam infinitas. Falamos em homossexualidades e deveríamos também dizer heterossexualidades.

Renata: Estou pensando na questão colocada em relação à cultura e sua influência na clínica. Quando atendemos crianças é muito interessante assistir desenhos animados. Trazem referências à cultura, não estão trazendo a cultura em si, mas estão trazendo representações para os impulsos internos. É importante conhecermos as imagens, de onde elas estão vindo, já que podemos achar que é patológico o que não é. Aquilo está circulando no imaginário e está de alguma forma sendo pinçado para poder representar alguma coisa. Hoje estávamos conversando sobre uma revista que veicula uma publicidade com Juliana Paes e Cléo Pires: na foto, as duas estão numa piscina, em atitudes homossexuais. Meninas estão olhando isso, tendo contato &– e fico pensando como isso circula no imaginário? Algumas meninas que começam a se relacionar e criar vínculos podem usar essas mensagens como uma forma possível de relação. Penso que, às vezes, não é patológico aquilo que pode parecer que é.

JP: Colocar como patológico não nos parece psicanalítico. Para a psicanálise, a homossexualidade não é um diagnóstico, mas pode revelar em algumas situações uma dificuldade de lidar com as diferenças. A teoria psicanalítica envolve exatamente todo o trabalho que o ser humano tem para reconhecer o outro como “não eu”, de perceber a discriminação entre o eu e o objeto.

Tenório: É preciso coragem para despir-se dos preconceitos pessoais ou das observações pessoais sem negá-las. A teoria psicanalítica envolve exatamente todo trabalho que o ser humano tem para reconhecer o outro como “não eu”, de perceber a discriminação entre o eu e o objeto. Os médicos foram mais rápidos do que os analistas nessa questão das classificações, tanto em relação à homossexualidade como também em relação às parafilias em geral, os modos parafílicos.

Precisamos considerar como a personalidade do paciente sofre o impacto dos diferentes desdobramentos na vida em questões que envolvem homossexualidade latente, que se torna uma pressão manifesta, ou, por exemplo, também impulso para furto, ou uma dramaticidade excessiva, ou transtornos obsessivos, controle de espaço, etc. Freud foi progressivamente se descolando das classificações e patologias, mas ele não alcançou os desdobramentos posteriores à 2ª Guerra Mundial.

Por exemplo, TOC é um grande diagnóstico: Transtorno Obsessivo Compulsivo. Se um psiquiatra competente fizer esse diagnóstico, o paciente tem de ser tratado com medicação, porque as formas mais graves são imobilizadoras. Um analista não tem o que dizer, mas pode muito bem analisar. O paciente com TOC, medicado, ainda vive o impacto na personalidade dos aspectos obsessivos. A análise ocupa-se das questões emocionais relacionadas com isso. Como também no paciente com transtorno bipolar de certa gravidade e que é acessível à análise. Tenho um paciente que está fazendo simultaneamente terapia cognitiva, medicação e análise.

Agora, se num dado momento da análise o paciente tem um comportamento homoerótico, vou verificar com ele o impacto disso na personalidade dele. Ele pode viver isso como algo patológico e vamos ver se isso é representado dessa forma ou se isso corresponde a uma atividade compulsiva. O sujeito que sai na noite e têm 30, 40 relações nas saunas é desesperado e desesperador. O problema não é a homossexualidade.

Tenho uma formação psiquiátrica que foi muito boa, fui professor de psicopatologia por muitos anos e eu nunca tive hostilidade com a psiquiatria. Procurei, na minha formação analítica, me separar para não misturar as bolas, para me tornar um analista não psiquiatra. Procurei estudar essas questões epistemológicas que separam uma coisa da outra e cheguei na questão do normativo.

No TOC, o sujeito pode ter uma personalidade obsessiva com traços obsessivos. Ele sofre e sabe que tem o TOC, mas a personalidade pode utilizar o TOC para expressar muitas coisas. Eu preciso junto com ele verificar isso. Do mesmo modo, na melancolia. Tenho tido pacientes identificados com a doença melancólica, que vivem na cultura da doença. Tomam medicação, não saem de casa, nem querem saber de análise. E eu tenho pacientes graves, com transtorno bipolar grave, que tomam medicação e não se confundem, identificam as crises e têm vida absolutamente produtiva e comum. Foi aí que eu fui percebendo o problema do diagnóstico psiquiátrico contemporâneo. Muitos pacientes trazem um sofrimento e uma limitação enorme.

Quando a personalidade está preservada, apesar do surto, há material para análise. Em relação ao comportamento homoerótico, alguns realmente são homossexuais desde a infância, casados que têm comportamento impulsivo e sofrem muito com isso.

Cecília: Acho importante destacar que você, penso, está se referindo e trabalhando com a parte psicótica e não psicótica da personalidade de Bion. Às vezes, a parte não psicótica da personalidade é um auxiliar incrível.

JP: Pensamos que o fato de uma pessoa apresentar uma orientação homossexual não significa necessariamente que ela não está lidando com diferenças. O próprio Freud nos apresenta varias dinâmicas contidas nesse tipo de orientação sexual. Não podemos esquecer que o Édipo invertido faz parte da travessia edípica e de suas vicissitudes.

Tenório: Na minha cidade &– que não chegava a ser inteiramente no sertão &–, no interior da Bahia, era comum se achar que os homens ativos nos relacionamentos com os gays não eram homossexuais. Eram homens, eram pessoas casadas, que transavam com os gays da cidade. Toda cidade tinha quatro, cinco homossexuais, um era cabeleireiro, outro era cozinheiro: eu me lembro de muitos deles, que passavam lá na rua, todo mundo ria quando eles requebravam. E os parceiros desses homossexuais eram justamente os coronéis, os homens da cidade.

Cecília: Desde a idade da pedra, o homem ia caçar, lutar, era penetrante, agressivo, provedor, guerreiro e seu papel estava muito definido. Ser homem hoje em dia é completamente diferente. Ele pode ser cálido, pode ser acolhedor: atributos que antigamente por preconceito eram do gênero feminino. Essas questões estão se modificando e, de alguma forma, trazendo o homem e a mulher para outro lugar. Ou iluminando o casal interno, inerente à bissexualidade humana.

JP: Sabemos que a homossexualidade dentro da psiquiatria já foi retirada do campo da psicopatologia, mas verificamos que entre os psicanalistas há os que se dividem em relação a essa questão. Foi exatamente por isso que resolvemos incluí-la neste debate, favorecendo a reflexão e o contato com pontos de vistas diferentes.

Outra discussão polêmica que emergiu reflete controvérsias que constatamos também em nosso meio, ligadas à importância ou não das teorias de gênero para o psicanalista, e às determinações socioculturais e históricas interferindo na produção de novas psicopatologias.

Pensamos que as nossas diferenças nos estimulam a exercer uma das mais caras qualidades do nosso método psicanalítico, que é o apreço pela contínua investigação dessa sempre fugidia alma humana.

Agradecemos muito a presença de todos os que participaram deste debate. Especialmente os nossos três convidados, Luiz Tenório, Maria Cecília e Renata, que trouxeram ricas contribuições. Tivemos um encontro muito vibrante, que abriu mais questões para continuarmos refletindo.

 

 

* Luiz Tenório Oliveira Lima (Membro efetivo da SBPSP e Professor do Instituto de Psicanálise da SBPSP), Maria Cecília Andreucci Pereira Gomes (Analista didata da SBPSP e Professora do Instituto da SBPSP), Renata Aleotti (Membro filiado do Instituto de Psicanálise da SBPSP).
1 No original, segundo o Dicionário de sentenças latinas e gregas, de Renzo Tosi (Martins Fontes; tradução de Ivone Castilho Benedetti), “Homo sum: nihil humani a me alienum puto”, cuja tradução seria “Sou homem: nada do que é humano considero alheio a mim”. (N. do E.)

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