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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.76 São Paulo June 2009

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O feminino: um corpo a corpo tão delicado

 

The feminine: a very delicate mother-baby interaction

 

El femenino: un cuerpo a cuerpo tan delicado

 

 

Eliana Rache*

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro associado da Asociación Psicoanalítica Argentina
Doutoranda em Psicologia &– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho percorre caminhos das primeiras relações mãe-bebê e de como elas se apresentam em sessão: algumas emoções sutis no uso do tempo e espaço. Se captássemos tais alterações, procurando seu sentido, aprofundaríamos nosso conhecimento psicanalítico? O dado comum a essas vivências é que são não verbais, referem-se aos sentidos. Ferenczi, Winnicott e Roussillon são autores que fundamentam o percurso deste trabalho. Ferenczi aporta a noção de mimetismo; Winnicott apresenta a noção do feminino puro. A vinheta clínica apresenta uma paciente, de 5 anos, num movimento defensivo para não ser atingida em seu eu “partido” contra o reviver do traumatismo primário do qual fora vítima. Representa um exemplo da falta dos momentos primordiais da relação mãe-bebê, inspirado tanto na tradição ferencziana como nas contribuições atuais trazidas por Roussillon &– patologias narcísico-identitárias &–, cujas dificuldades advêm desse período, assim chamado por Winnicott, de feminino puro.

Palavras-chave: Corpo, Memória sensorial, Feminino puro, Estágios sensoriais primitivos do eu sentido, Patologia narcísico-identitária.


ABSTRACT

In this work we follow the early paths of mother-baby relationship and show how they come to light during psychoanalytic sessions: tenuous emotions that appear in the use of time and space. If we capture these tenuous experienced modifications and look for their meaning, can we enlarge our psychoanalytic knowledge? The common ground of these experiences is that they are all non-verbal and refer to senses. Ferenczi, Winnicott and Roussillon are the authors that support our discussion in this work. Ferenczi with the notion of mimicry, Winnicott with the notion of pure feminine, and Roussillon´s understanding of narcissistic-identitary pathology. The clinical case of a five year-old patient and the very early trauma she lived is used to illustrate these primitive processes related to mother-baby relationship.

Keywords: Body, Sensorial memory, Pure feminine, Primitive sensory stages of the sensitive self.


RESUMEN

Este trabajo recorre las primeras relaciones de madre-bebé y cómo se presentan en sesión: algunas emociones sutiles en el uso del tiempo y del espacio. ¿Si captáramos esos cambios buscando darles sentido sería posible profundizar nuestro conocimiento psicoanalítico? Lo común a esas experiencias es que no son verbales, se refieren a los sentidos. Ferenczi, Winnicott y Roussillon son los autores que apoyan el curso de este trabajo. Ferenczi trae la noción de mimetismo; Winnicott presenta la noción de femenino puro. La viñeta clínica presenta a una paciente de cinco años en un movimiento defensivo contra el revivir del traumatismo primario de lo cual fuera víctima. Es un ejemplo de la falta primordial de relaciones de madre-bebé inspirado tanto en la tradición ferencziana como en las contribuciones actuales aportadas por Roussillon &– patologías narcísico-identitarias &– período llamado por Winnicott de femenino puro.

Palabras clave: Cuerpo, Memoria sensorial, Femenino puro, Etapas sensoriales del yo sensitive.


 

 

Este trabalho teve origem na minha curiosidade a respeito de vivências experimentadas como analista no campo transfero-contratransferencial de algumas emoções e intuições que não eram passíveis de serem colocadas em palavras &– ou seja, o dado comum a todas essas vivências é que não eram verbais. Apresentavam-se isoladas dentro de um determinado contexto e referiam-se aos sentidos, emprestando certo peso do sensório em suas expressões. Tais expressões emocionais levaram-me a ter vivências sensoriais, em meu próprio corpo, que se manifestavam de diferentes maneiras.

Nesse sentido, a noção de corpo do analista em sessão passa a ser o tema central deste trabalho, já que ele (corpo) é o protagonista, veículo por excelência dessas experiências e sensações dentro do campo transfero-contratransferencial.

Num abrir e fechar de olhos, vejo uma situação que se repetiu diversas vezes na sessão de Carol, como chamei a minha paciente. Ela enchia alguns copos de água e fixava sua atenção na queda do líquido de um copo para outro. Tinha-se a impressão de ser apenas uma atividade motora, em que ela era uma desastrada em seu desempenho final. Do maior recipiente, ela entornava a água para o menor, e o resultado era sempre o mesmo: a água escorria pelas bordas do copo, daí para a mesa e, finalmente, se espraiava pelo chão. Surgiam, então, algumas expressões de vida no rostinho cadavérico, pálido, daquela criaturinha de 5 anos, assim como uma concentração pouco frequente.

Carol era sobrevivente de um parto prematuro: fora expulsa para nascer, aos sete meses de gestação; passados apenas três dias, sua mãe morreu.

Tão logo a mãe de Carol engravidara, diagnosticaram-lhe um câncer dos mais violentos. Durante os meses de gestação, o bebê crescia ao mesmo tempo em que crescia o câncer, parecendo, ao final, que o mesmo sopro de vida dado a Carol levara sua mãe para sempre.

A família adotiva de Carol via nela uma menina opositora, que só fazia o que queria e, provocativamente, recusava-se a aprender, procurando permanecer um bebezinho. Cheguei a pensar nessa hipótese, mas esse olhar da família me parecia bastante viciado.

Acompanhei o movimento de Carol durante as sessões: uma agitação significativa, interferindo em qualquer atividade que pudesse ser desenvolvida. Carol não brincava: pegava e largava os mais diferentes materiais espalhados pela sala. Da mesma forma, eram largados aqueles de seu armário individual. Essa agitação, que não continha nenhuma conotação exploratória, era uma descarga que seu psiquismo usava para diminuir as grandes quantidades de excitação, já que não dispunha de recursos intrapsíquicos que funcionassem com essa finalidade. Logo, o alívio contra a dor psíquica era obtido de maneira rápida e eficaz por meio de descargas em “atos”, pela via intersubjetiva.

Numa rápida digressão, convido-os a rever a noção de “ato” &– aqui psicanaliticamente implicada &– que pode nos abrir uma compreensão de dois tipos diferentes de “ato” presentes no tratamento de Carol. Em geral, as atuações infiltram-se na situação analítica e podem muitas vezes trazer dificuldades em seu andamento se não puderem ser reconhecidas, manejadas e entendidas como portadoras de uma intenção. O conceito de ato não pertence à metapsicologia freudiana, entretanto, se faz presente, acompanhando-se de verbos, como em “passar ao ato” (agieren em Freud ou acting-out/in), ou como na expressão de “uma forma transitiva que designa um processo em via de se efetuar, uma tendência do funcionamento psíquico, não um estado” (Roussillon, 2006, p.198).

A transferência é um colocar em ato, uma repetição dos impulsos recalcados submetidos à compulsão à repetição, um modo de atualização do passado que se reproduz por deslocamento no lugar e no tempo da rememoração. Assim, a colocação em ato é condição inerente ao processo analítico, contanto que sejam mantidos os limites propostos pelo enquadre para a atuação se tornar transferência. Freud não parece ter pensado em acting-out agindo fora dos limites da situação analítica como uma forma de comunicação. Por isso mesmo, os actings eram vistos como ameaça, resistência ao tratamento. Do ponto de vista econômico, Freud supunha que o processo do pensar requeria, para seu funcionamento, um investimento e deslocamento de pequenas energias, uma descarga necessária para os processos de ligação/desligamento das representações, enquanto o ato implicava uma descarga de grande quantidade de energia. Do ato até o pensamento, haveria um processo de redução das quantidades de excitação que tornaria o pensamento um ato interno mínimo, um ato simulado.

Green (1970) desenvolve a noção do funcionamento de um processo que vai do ato ao pensamento e que é formado por uma cadeia de elementos psíquicos, um trajeto realizado por meio da mentalização para advir ao processo de pensamento. Essa cadeia vai designar os diferentes modos simbólicos que podem dar forma às forças emocionais.

Assim sendo:

Soma a pulsão a afeto (representante psíquico da pulsão) a representação coisa a representação de palavra a pensamento reflexivo.

Nesse trajeto, cada elemento da cadeia conserva o elemento precedente, transformando-o, de maneira a formar um circuito. A constituição dessa cadeia representa um modelo do trabalho psíquico e do trabalho analítico. Desse ponto de vista, o acting “‘curto-circuitaria’ a cadeia num ponto ou no outro do seu desenrolar, opondo-se ao trabalho analítico” (Roussillon, 2006, p. 199). O acting mobiliza a contratransferência concreta e é sentido como uma ameaça, uma agressão ao trabalho do psicanalista, pois interrompe o processo evolutivo dos modos simbólicos. Os elementos que se perdem pela interferência do acting vão se alojar nos mais diferentes lugares do campo analítico formado pela transferência-contratransferência.

Em frente à passagem ao ato, o analista é levado a tentar restabelecer a cadeia associativa e o processo de simbolização. Esse movimento psíquico do analista não pode ter lugar, a menos que exista em seu próprio funcionamento mental uma teoria que confira um sentido aos acting e fantasias e que venha suprir a carência de representações da rede psíquica.

A inquietação de Carol se aproximava daquilo que Roussillon chamou de atuação/transferência-descarga, um ato no qual não há tela projetiva, não há esperança &– é o circuito da desesperança ou da dor. Segundo essa concepção de acting, é produzida uma descarga direta de grandes quantidades de excitação que são, dessa maneira, radicalmente retiradas da cadeia do processo de pensamento e do trajeto da mentalização. Tais modos de descarga podem se apresentar de diferentes formas: pela motricidade, pelo psíquico (via alucinatória) e pela via somática (psicossomático). O que se percebe aqui é uma intensa negatividade e, frequentemente, um ódio em relação a qualquer possibilidade de trabalho de introjeção.

Em Carol, esse tipo de acting expressava-se tanto na motricidade como na somatização, pois tivera algumas convulsões sem aviso prévio, que haviam colocado a família em estado de constante alerta. Para evitar as convulsões, tomava forte medicação e a família localizava nos ataques sua doença. A característica de Carol, rotulada de oposição, podia de fato se assemelhar ao que ela mostrava ao ser “do contra”, pois a negatividade estava sempre presente, mas como uma substituição da capacidade de negação. Ela não se opunha a algo &– ela se opunha a tudo, com destrutividade, com fúria, separando qualquer ligação mental que pudesse trazer algum fio de compreensão.

Num segundo momento, a teorização sobre os estados narcísico-identitários trabalhada por Roussillon se ofereceu a mim como um acompanhante, um caminho aberto ao diálogo neste trabalho desvinculante com Carol.

Para trabalhar essa clínica de pacientes com falhas identitárias, Roussillon lança uma hipótese: para as formas de “ligações negativas”, corresponderá um tipo de transferência chamada por ele de “transferência paradoxal” (termo cunhado por D. Anzieu), cuja mola fundamental repousa na dificuldade do processo de diferenciação eu/outro. Portanto, na contratransferência, eu era convocada a ser “o espelho das ligações negativas” de Carol, a fim de sentir e experimentar aquilo que ela tinha repudiado de si mesma para não ter de sucumbir. A lógica que rege tal funcionamento psíquico não é uma lógica de perda; é, antes, uma lógica sobre aquilo que não teve inscrição psíquica, um lugar no psíquico, que se apresenta, agora, em análise, como o que não pôde ser devidamente refletido em espelho na história passada significativa do sujeito. À medida que pude avançar nas defesas e arranjos de Carol em suas atuações sem esperança, que tão bem caracterizavam a dança da “transferência paradoxal”, pareceu que fui me aproximando de sua zona de traumatismo primário, revivendo o contexto que a levou a se cortar de si mesma.

As sessões seguiam, sem que eu pudesse ligar “lé com cré”. Enquanto a molhação de água continuava na sala de ludoterapia, eu permanecia em silêncio, deixando a água jorrar. Observei-lhe que eu via o que ela estava fazendo, passando do copo maior para o menor, e que a água não cabia, e que o resto ia sempre para fora. Ela não me olhou, não fez contato, mas disse, mecanicamente: “É para molhar”.

A posteriori, essa cena que Carol desempenhava fez-me pensar numa peça de teatro sem ator e autor, sendo possível identificar sua atuação como uma atuação-signo (ato à procura da tela-limite). Diferentemente das atuações-descargas, descritas nos momentos agitados, aquele ato era destinado a fazer “sentir”, “fazer viver” ao analista o que o sujeito não pôde figurar ou representar. Carol fazia uma transformação potencial das excitações desqualificadas em um afeto e/ou representação de coisa, o que permitia uma primeira organização pulsional.

Não me parecia que Carol queria ser um bebezinho. Ela estava aquém disso: completamente imersa em si mesma, cumprindo uma tarefa importante, mal começada, buscando, “no coração do ser”, a falta que ali estava implantada. Reportando-me a Roussillon: “Uma falta de ser, de poder ser, mais que falta no ser, falta do objeto” (2004, p. 24).

Depois de repetir algumas vezes essa atividade, a intensidade da força do que inicialmente eu não tinha captado foi aumentando: meu corpo sentia-se inundado de água e era como se eu fosse impelida a dar contorno, conter aquela aguaceira. Era uma vivência corporal. Faltaram limites, continente, no nascimento de Carol: as águas placentárias ficaram espalhadas sem sustentação da mãe. Parecia que era o que eu sentia em meu corpo, com aquela molhação indiscriminada. Era uma experiência a ser compreendida.

Não pôde haver uma fusão mãe-bebê que, ao permitir o mimetismo, pudesse facilitar a formação do si mesmo de Carol. Ferenczi, em seu Diário Clínico, conceitua uma nova fase, a qual chama de período de mimetismo puro. Essa noção é semelhante à noção de identificação primária de Freud, acrescida de um dado importante que não tinha sido devidamente considerado. Ferenczi refere-se à maleabilidade do psiquismo durante essa fase, o que corresponderia à ideia de um estado ainda em semidissolução da personalidade infantil.

A riqueza dessa ideia, de uma fase de mimetismo, mostra um processo muito precoce que aponta para a influência da ação do ambiente, já que nessa semidissolução, o psiquismo vai tender a se moldar, a conciliar, a mimetizar sobre o outro. O exemplo mais expressivo da biologia &– que se vale desse processo mimético &– encontra-se na possibilidade de mudança de cor do camaleão, que se iguala ao meio, confundindo-se com ele, assim se protegendo do inimigo. Se a ação do meio ambiente não contrariar o princípio do prazer (tendência à afirmação), o corpo semifluido será favorecido na sua solidificação ou na sua própria individuação. Se, por outro lado, o meio contrariar o princípio do prazer, o psiquismo tenderá à liquefação, estado de fusão-confusão com o outro e o todo.

A ideia de um psiquismo maleável, no qual predominam tendências miméticas em situações adversas, mostra como a ação do meio sobre o psiquismo pode ser profunda, até mesmo a ponto de poder ser facilmente confundida com os próprios impulsos do sujeito.

As ideias de Ferenczi fundamentaram minhas primeiras colocações teóricas. Na mesma esteira, lancei mão de outros dois autores, Winnicott e Roussillon, que balizaram minhas tentativas de compreensão dessas relações primordiais mãe-bebê e da construção do sujeito em tempos primevos, quando Carol marcava seu território ainda mal delimitado.

Faço referência a um deles, Winnicott, pela sua importância no estudo dessa fase &– que ele denominou de feminino puro &– em que o cuidado materno baseia-se na empatia da mãe, mais do que em qualquer compreensão do que é e do que poderia ser verbalmente expresso. Winnicott descreve a ocorrência de uma comunicação especial, direta e silenciosa, feita na base “da anatomia e fisiologia de corpos vivos”, que inclui “as evidências cruas” da vida &– os movimentos da respiração, os batimentos cardíacos, o suor e o calor da pele (citado por Cunha, 2001).

Num corpo a corpo tão delicado, o feminino vai se enlaçando pelas fibrilações do coração da mãe e da criança, dos corpos alinhavados pelo sopro das emoções, criando o despontar da vida.

Vejo no feminino uma qualidade, uma forma adjetivada, um atributo do ser humano que tanto pode servir a mulheres como a homens, emprestando-lhes características de sensibilidade, sutileza, intuição...

É sobre este tema: elemento feminino puro &– ser, contato inicial mãe-bebê &– que procuro adicionar minha compreensão pessoal, atribuindo qualidades estéticas aos elementos femininos puros. Na vinheta clínica, fica claro como se comporta o psiquismo de Carol ao faltarem esses elementos do sentido e um outro “duplo” para refletir o seu ser.

O bebê está lá para viver. Já vivia, embora dentro, sem qualquer limitação, num acompanhamento rítmico de paredes elásticas. Nós &– observadores de fora &– sabemos que o bebê está dentro do útero da mãe, e de lá irá sair. Mas ele vai sentindo, crescendo com o suporte de seu contorno e do contorno da mãe. Na verdade, o mesmo contorno, segundo seu ponto de vista.

Daí será fácil visualizar o próximo quadro. O bebê está fora e precisa obter a continuação do ambiente anterior para que não haja mudanças bruscas, impossíveis de serem acompanhadas. Então, são os braços arredondados da mãe que, ao oferecê-los como sustentação, seguem dando algo de semelhante à forma que o sustentava antes. Na medida em que a mãe vai usando sua sensibilidade, coloca em marcha o potencial de sensações do bebê. Lança, assim, as raízes do psiquismo, ao trazer o viver do sensório, base para transformações futuras das sensações, em sentidos, em simbolizações. Todos os bebês recebem da fonte sensorial materna a estimulação de seus sentidos. Portanto, pensar como estéticos os elementos femininos puros &– já que se referem à noção de senso-percepção &–, vai contribuir para compreendermos melhor as vivências de um tempo e um espaço no qual a memória é apenas corporal.

Os bebês precisam de cuidado porque são frágeis e dependentes, mas &– nesses tempos primordiais &– é o afeto e o contato que se oferecem para desenvolver sua autoconfiança e confiança no mundo que os rodeia.

Como diz Cyrulnik,

...se uma cultura pode modelar os comportamentos de uma criança, é porque cria um campo sensorial em torno desta. Esta biologia periférica constituída de odores, de calor, de toques, de estímulos visuais e sonoros de ritmos, de sono, de limpeza e de alimento, dá forma aos intercâmbios entre mãe e bebê (...) a ontogênese dos comportamentos sexuais é biologicamente modelada pela criação deste campo sensorial composto de gestos, mímicas e posturas que dão forma ao intercâmbio de afetos (1993, p. 78).

Esse tempo das sensações, tempo perdido nas profundezas das histórias de cada indivíduo, não traduzível, porque sem palavras, é o tempo do tecer fio por fio, ponto por ponto, os primeiros tecidos que envolvem a alma. Carol não tinha recebido o alinhavo primordial de sua alma. Ficara submersa ainda na fusão-confusão do seu ser, que ainda parecia liquefeito diante das adversidades do meio. Não tinha havido uma mãe para envolvê-la corpo a corpo e promover os fios para encorparem aquele pequeno ser.

Volto à sala de ludoterapia, ao campo analítico transfero-contratransferencial. Ao captar a agonia de Carol, em seus transbordamentos de água na sessão, dou-me conta de que não cabia analisar, muito menos, interpretar. Fiz apenas, com minha presença, um “compartilhamento afetivo”, a fim de tornar a situação tolerável para ela e suportável para minha impotência. Vinha à minha cabeça a história do seu nascimento suturado: onde estavam os cuidadores? Onde estavam os envoltórios de seu ser? Essa forma de eu estar presente na sessão e, ao mesmo tempo, lançada em outro tempo e cena, foram me aquietando. Engoli algo que estava entalado em minha garganta; percebi que Carol parecia menos agitada. Então, pude pensar: afinal, não era eu a cuidadora de Carol naquele momento? E não era sua história que eu representava e reconstruía em seu contexto de emergência, agora na sessão?

Os trabalhos de Roussillon sobre a clínica das patologias narcísico-identitárias fizeram eco no meu percurso elaborativo com os “atos” de Carol, ao me oferecerem os delineamentos teórico-clínicos de apoio na reconstrução que ele faz de um:

...modelo do trauma primário que afeta a construção primordial da ligação com o objeto e do contrato narcísico de vínculo. Especifica o estado de desamparo pelo fracasso dos recursos internos, diferenciando-os dos estados psíquicos que resultam também do fracasso dos recursos externos que envolvem o objeto (Roussillon, 2006, p.13).

Roussillon sugere que esse tipo de trabalho psicanalítico encontra-se plasmado em modalidades transferenciais de problemáticas narcísicas, que afetam o sentimento de identidade do sujeito e se colocam como tal frontalmente na transferência. Diz respeito a problemas de diferenciação eu/outro. O dado interessante aponta para a maneira pela qual foi produzida a ligação eu/outro, chamada por Anzieu “ligação em negativo”, o que concorrerá para uma dificuldade no feitio desse centro narcísico identitário, quanto à sua diferenciação eu/outro. Nunca o trabalho da intensificação do investimento contratransferencial do analista em sessão foi tão necessário como nessas situações de quebra identitária, o que gera uma série de particularidades no trabalho da contratransferência do analista em sessão, bem diferente do que é trabalhado em uma análise clássica com aspectos neuróticos de pacientes. Diz Roussillon:

Observei que alguns aspectos da transferência por retorno não podiam ser percebidos e analisados se o investimento do analista não fosse além de certo limiar (...) a dificuldade é manter um investimento suficiente e suficientemente constante ao longo da cura e do processo de apego/desprendimento que ela reproduz (2006, p. 281).

O que da contratransferência é habitualmente regulado do ponto de vista econômico pelo enquadre, agora deve depender da elaboração interna do analista. Tal uma mãe em estado de “preocupação materna primária”: segundo Winnicott, o analista também está com esses pacientes, nesse lugar de uma tecelã de almas.

Tecer é uma imagem arquetípica da própria vida, uma trama feita de muitos fios, experiências, sentimentos e acontecimentos diferentes.

Cada um de nós tem uma história singular, que começamos a tecer no nascimento e concluímos na morte.

A metáfora do tecer, trabalho artesanal, delicado e único, presta-se como a melhor expressão da mãe ao cuidar de seu bebê recém-nascido.

Um cuidado feito por toques, calor, cheiros, sons: um berço de sensorialidade desvelados pela mãe, que desperta no novo humano a sensibilidade, primeiro envoltório de tecido mental, formando-se, modificando-se ao longo da vida. Uma empreitada que os gregos chamaram de destino, figurado nas Moiras &– três irmãs tecelãs que acompanham o fio da vida de cada ser humano: Átropos fia, Clotó enrola e Láquesis corta o fio na chegada da morte.

Se pudéssemos pensar nas sensações como carne da memória, as coisas ganhariam significado quando chegássemos às sensações subjacentes. Reencontrar esse tempo, seria fazê-lo advir; seria extrair a sensação de sua câmara escura, arrancá-la do indizível, dar signo, sentido e objeto ao que não tinha. Resgatar a memória dessas vivências sensoriais seria um trabalho de criação, que ofereceria palavras, figurações e novos pensamentos.

Não seria este um novo projeto da psicanálise?

 

Referências

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Endereço para correspondência
Eliana Rache
R. Cap. Francisco Padilha, 31 &– Jd. Europa
01448-070 São Paulo, SP
Fones: 3081-9366/9317
E-mail: rache@terra.com.br

Recebido em: 08/06/2009
Aceito em: 08/07/2009

 

 

* Membro efetivo da SBPSP. Membro associado da Asociación Psicoanalítica Argentina. Mestre em Filosofia e Doutoranda em Psicologia &– PUC-SP.

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