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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

TRADUÇÕES

 

Do masculino e do feminino como co-construção de casal1

 

On the masculine and feminine as couple co-construction

 

De lo masculino y de lo femenino como co-construcción de la pareja

 

 

Jacqueline Schaeffer*

Membro efetivo em função didática da Société Psychanalytique de Paris
Professora de psicanálise de adultos e de psicodrama no Instituto de Psicanálise de Paris
Responsável pela formação de psicanálise de adultos na Turquia pela Associação Psicanalítica Internacional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao contrário do par fálico-castrado, que reforça a manutenção da organização social e suas relações de poder, a constituição de uma relação de casal masculino-feminino é uma co-criação psíquica, que implica o reconhecimento e o confronto da alteridade na diferença dos sexos. O modo e a qualidade da relação sexual, emocional e social estabelecidos entre um homem e uma mulher dizem respeito a um “trabalho de cultura” (Kulturarbeit).

Palavras-chave: Recusa do feminino, Fálico-castrado, Masculino-feminino, Gozo sexual, Angústia de castração, Masoquismo erógeno feminino.


ABSTRACT

Contrary to the phallic-castrated pairing which reinforces the social organization and its power relationships setting up a masculine-feminine pairing relationship is a psychical co-creation which implies in the recognition and confrontation of the otherness in the difference of sexes. The modality and quality of the sexual, emotional and social relationships that are set up between men and women bear witness to “the work of civilization” (Kulturarbeit).

Keywords: Rejecting the feminine dimension, Phallic-castrated, Masculine-feminine, Sexual ecstasy, Castration anxiety, Feminine erotogenic masochism.


RESUMEN

Al contrario de la constitución del dúo fálico-castrado, que hace hincapié en el mantenimiento de la organización social y sus relaciones de poder, la constitución de una relación de pareja masculino-femenina es una co-creación psíquica que implica el reconocimiento y el enfrentamiento de la alteridad en la diferencia de los sexos. La manera y la calidad de la relación sexual, emocional, y social que se establece entre un hombre y una mujer, se refieren a un “trabajo de la cultura” (kulturarbeit).

Palabras clave: Rechazo de lo femenino, Fálico-castrado, Masculino-femenino, Goce sexual, Angustia de castración, Masoquismo erógeno femenino.


 

 

Há mais de setenta anos, em 1937, Freud lançava em órbita a formulação de um obstáculo, uma pedra sobre a qual se exauriam os esforços da psicanálise. Ele a denominou a “recusa do feminino” nos dois sexos.

Se esse enunciado persiste ao longo do tempo, longe de ter atingido o apogeu de sua trajetória, é em virtude da imensidão de um enigma que não cessou, nem jamais cessará de interrogar os psicanalistas, como os demais mortais: o da diferença dos sexos. Se os extraterrestres nos dessem a honra de um contato de terceiro grau, a surpresa mais incrível, sugeriu Freud, seria descobrir essa diferença.

Trata-se de uma diferença quase tão banal quanto irredutível. Mas uma diferença capaz de impor tamanha exigência de trabalho psíquico, que cada indivíduo &– criança ou adulto, homem ou mulher, filósofo ou cientista, em pares ou na sociedade &– se esforça para aplicar toda a astúcia de uma contraforça da mesma grandeza, para atenuar ou eliminar os efeitos.

“Aquele que permitir à humanidade livrar-se da embaraçosa sujeição sexual, seja qual for a insensatez que escolha dizer, será considerado como um herói”, escrevia Freud a Ernest Jones, em 17 de maio de 1914.

 

A relação do casal

O que acontece quando se trata da questão de diferença de sexos em uma relação de casal? Diria que não é uma evidência, e que o feminino, assim como o masculino, no nível genital, não são adquiridos na puberdade, como afirma Freud, com a realização das primeiras relações sexuais. Com efeito, não são nem as transformações corporais, nem a excitação sexual vividas no momento da puberdade que elaboram a diferença dos sexos masculino-femininos no âmbito do aparelho psíquico.

O que podem sugerir expressões tais como “ser um casal” ou “formar um casal?” Podemos escutá-las como um “espaço de repetição”? “O reencontro de um não re-encontro” (Lacan)? Ou, bem, como um “espaço de criação”?

Ficarei com esta última abertura, arriscando uma proposta: a de que o encontro e a manutenção de uma relação entre um homem e uma mulher, no plano erótico e também no afetivo, são uma criação psíquica real, a qual necessita que a pressão constante da pulsão sexual, tal como a definiu Freud, possa se realizar e prosperar nas representações e nas relações amorosas.

Se, como diz Simone de Beauvoir (1948), “nós não nascemos mulheres, mas nós nos tornamos”, eu diria que o mesmo acontece com o masculino. E que esse fenômeno advém de uma co-criação, de uma conquista incessante, ligada ao constante impulso libidinal. A diferença dos sexos é sempre um sintoma e a identidade sexual exige de cada um de nós uma permanente reelaboração.

Hoje em dia tornou-se moda falar da identidade de gênero. Uma tendência atual, particularmente nos EUA, o movimento gay, por exemplo,2 considera até que o sexo biológico poderia ser deixado de lado, em benefício de uma construção psíquica, de uma escolha de gênero, de um gênero entre muitos gêneros. Seria então possível, de acordo com esse enunciado, declarar-se homem, se tivermos nascido mulher; mulher, se tivermos nascido homem; e declarar-se pertencendo a um ou outro gênero, ou nem a um nem a outro. Toda sorte de configurações são evocadas nessas teses, ideologicamente entrelaçadas, apesar de não se tratar de uma escolha: desde o sexo indeterminado, que chamamos de intersexualismo ou hermafroditismo, até o transexualismo, que repousa sobre a convicção de se ter sido submetido a um erro biológico ou de atribuição sexual, passando pelas homossexualidades. Falamos, portanto, das diferenças dos sexos, enquanto se trata de diferenças de gêneros que escolhemos nos atribuir. Vários debates sociais e políticos animam essas posições, tendendo a situá-las fora do conflito intrapsíquico. O que confirma o ponto de vista que desenvolvo, a saber: aquilo que causa violência pessoal e social, em todas as idades, é o conflito da diferença dos sexos.

Concordo com o que escreveu Michel Schneider, em seu livro A confusão dos sexos (2007, p. 122):

Qualquer que seja nossa sexualidade, isso se refere à diferença entre os sexos, mesmo e, sobretudo, quando ela vise à transgressão (...) Não existe assexuação nem assexualidade (...) A humanidade se divide entre homens e mulheres e não entre homossexuais e heterossexuais (...) Não somos humanos sem sermos homem ou mulher. Não somos humanos se não formos antes homem ou mulher. Não há grau zero na diferença dos sexos (...) O antagonismo dos sexos é uma propriedade da humanidade entre outras, ela é na verdade sua essência (...) O inconsciente é invariável fora do tempo.

 

Os três pares da psicossexualidade

Lembro-me que Freud descreve o desenvolvimento da psicossexualidade por meio de três pares: o par ativo-passivo, de organização anal; o par fálico-castrado, de organização fálica; e, por fim o par masculino-feminino, que ele situa na puberdade, quando do advento da fase “genital”.

O par ativo-passivo designa um par de opostos ou de polaridades; o par fálico-castrado, um funcionamento para o tudo ou nada; somente o par masculino-feminino, no entanto, designa uma verdadeira diferença: a diferença dos sexos. Esses pares permanecem operantes ao longo de toda a vida.

Depois de haver situado a diferença dos sexos masculino-feminino por ocasião da puberdade, Freud, teoricamente, a submete a um questionamento. Em 1937, em seu artigo “A análise terminável e interminável” (Freud, 1937/1985), surge um quarto par: a bissexualidade e a recusa do feminino nos dois sexos.

Essa “recusa do feminino” é tratada por Freud como “uma parte desse grande enigma da sexual idade”, como a “pedra fundamental”, e igualmente como a última rocha, intransponível.

Mas, por que o feminino?

 

A rocha da recusa do feminino

É interessante notar que, tal como o novo par, cada um dos termos desse novo casal, tomados separadamente, remete a uma negação da diferença dos sexos:

- de um lado, a recusa do feminino é a negação daquilo que, na diferença entre os sexos, é o mais difícil de enquadrar, de se encaixar na lógica anal ou fálica. Um sexo feminino invisível, secreto, estranho e portador de todos os perigosos fantasmas. É inquietante para o homem, uma vez que o remete à imagem do sexo castrado, o qual o faz temer por seu próprio sexo, sobretudo porque a abertura do corpo feminino, sua busca pelo gozo sexual e sua capacidade de admitir grandes quantidades de impulso libidinal constante são fonte de angústia, tanto para o homem como para a mulher.

- por outro, tanto a bissexualidade psíquica tem um papel organizador no que se refere a identificações &– particularmente nas identificações cruzadas do conflito edipiano &–, quanto o fantasma da bissexualidade, como a bissexualidade atuante, constituem uma defesa em face da elaboração da diferença dos sexos no que tange à relação sexual genital.

Com o termo “rocha”, Freud induz a um ponto de vista pessimista sobre a sexualidade, e que indica, sem dizê-lo explicitamente, tanto a impotência sexual como a impotência do analista em tentar tratar seu paciente.

Freud acreditava que a mulher ficaria colada à sua inveja do pênis &– o que de todo não é falso, por um lado &–, e o homem à sua angústia homossexual de ser penetrado. Eu diria que, nos dois casos, trata-se de uma defesa pré-genital contra a angústia da penetração genital. A de uma vagina que deve se deixar penetrar ou que se trata de penetrar através de um pênis libidinal. Trata-se, portanto, da diferença dos sexos, no que se refere à relação sexual propriamente dita.

Parece-me, assim, que o acesso à distinção dos sexos não constitui uma plataforma de estabilidade e de segurança &– e proponho, aqui, uma hipótese: que aquilo que Freud denomina como rocha, seja, com efeito, a diferença dos sexos.

 

As três formas de invasão que nutrem3

Em um livro intitulado A recusa do feminino (Schaeffer, 2008), sugeri um trajeto da psicossexualidade que passa por três formas de invasão que nutrem, custe o que custar. Invasões que nutrem o psíquico e que por isso não são traumáticas. São esses os três testes da realidade, que dão lugar a experiências de psiquização no limite do corporal e do psíquico, como aquela que define a pulsão. Trata-se de provas cabais, inevitáveis e estruturantes. E que impõem uma evidência: que o ego não é verdadeiramente “o mestre em sua própria casa”.

A primeira forma de invasão que nutre é o impulso constante da libido. Bem antes do outro, existe um “corpo estranho interno”, que se manifesta na sua própria estranheza nessa pressão constante. Isso se diferencia das pressões periódicas do instinto e da necessidade. O fato de que a libido pressione constantemente, enquanto o ego deve se periodizar, se temporizar, a violenta e impõe sobre ela (a libido), diz Freud, “uma exigência do trabalho”. É dessa maneira que o “ego” se diferencia do “id”, que a excitação torna-se pulsão, que a genitalidade humana se diferencia da sexualidade animal, submetida ao cio e à ovulação, e evolui em psicossexualidade de impulso constante, fato humano maior. Fato este que, evidentemente, tem em conta o contexto relacional no qual essa pressão libidinal age e da resposta que lhe é dada.

A segunda forma de invasão que nutre é a prova da diferença dos sexos e suas exigências de realidade. É o tempo de Copérnico, da organização do complexo de Édipo, que leva à solução fálica, à angústia de castração e à solução identificadora cruzada aos pais na diferença dos sexos e das gerações.

A terceira forma de rompimento que nutre é o amante da relação sexual do gozo: este que revela o “feminino” genital da mulher, preparado pelas duas provas precedentes, e que reelabora, em après-coup, todas as figuras anteriores do estranho, infrator que nutre: pulsional e objetal, e aquela do pai edípico.

É incontestável, escreve Freud, em 1915, que o amor sexual desempenha na vida um papel imenso, constituindo a conjunção, nas alegrias amorosas, de satisfações psíquicas e físicas um dos pontos culminantes desse gozo. Apenas a ciência ainda mantém escrúpulos em confessar esse fato (Freud, 1915/1953, p. 128).

Se há um lugar em que a entrada do impulso constante no ego possa ser percebida, se desdobrar e ser vivida como uma experiência enriquecedora, é na relação sexual de gozo. O ego, em algumas experiências, pode se soltar e admitir a entrada nele de grandes quantidades de libido. Essa solução introjetiva o autoriza a abandonar-se às experiências de possessão, de êxtase, de perda e de diluição dos limites, de passividade e de gozo sexual.

A co-criação do feminino e do masculino adultos e o gozo sexual fazem parte dessas experiências mutativas, que provocam remanejamentos da economia psíquica e enriquecem o ego de representações carregadas de afeto.

Embora nos domínios social, político e econômico a luta pela igualdade entre os sexos seja imperiosa e o cuidado deva ser constante, o combate se tornará nefasto no plano sexual se tender a confundir com a abolição da diferença dos sexos, que deve ser exaltada em seu antagonismo entre o ego e a libido.

Tudo o que é insuportável para o ego é precisamente o que pode contribuir para o gozo sexual: a invasão, o abuso do poder, a perda de controle, o apagamento dos limites, a possessão, a submissão &– ou seja, a “derrota” em toda a polissemia do termo.

O “genital” libidinal adulto é o que há de mais difícil, de mais violento, e o que mobiliza mais fortemente as defesas anais, fecais, fálicas que possam nomear “a recusa do feminino”. Porque ele exige um esforço elaborativo do ego, diante do impulso constante da libido na sexualidade. E é a violência dessa prova que pode fazer frente, que pode se opor à violência da captação regressiva da mãe arcaica, e aquela que é atribuída à pulsão de morte, as duas que levam em direção a uma indiferenciação.

 

Além do fálico: o sexo feminino

Tanto para um como para o outro sexo, a organização fálica é uma passagem obrigatória. Esse superinvestimento narcísico do pênis trabalha a favor de um descolamento da imago pré-genital e da dominação materna. O menino pode conseguir, a partir de sua angústia de castração, simbolizar a parte pelo todo, sustentando-se sobre sua identificação paterna. Mas, e a menina, como pode ela negociar um interior, que é um todo, e como separar o seu do de sua mãe? Uma simbolização, uma psiquização do sexo feminino seria possível?

A grande descoberta da puberdade, para os dois sexos, é a da vagina. Não que as meninas ignorem ter uma fenda, ou que não registrem sinais sensoriais internos, suscitados por emoções edípicas, mas também pelos traços arcaicos do corpo a corpo e da sedução da mãe primitiva. Entretanto, a verdadeira revelação da vagina erótica, a da profunda erotização desse órgão feminino, só poderá ter lugar numa relação sexual de gozo. O outro sexo, seja homem ou mulher, é sempre o sexo feminino. Pois o fálico é, para todos, um só. Grande foi minha surpresa ao constatar, durante certos colóquios, que o masculino continua a ser assimilado ao fálico, sem minimamente se levar em conta que possa ser seu antagonista!

Esse ser fálico narcisista, que só faz par com um ser “castrado”, como poderia ele não se voltar ao medo, ao desprezo ou ao ódio do feminino?

 

Violência pulsional

Façamos uma constatação. Em nossos dias, a força pulsional só é atribuída à destrutividade. Diz-se de tal violador, de tal assassino sexual ou de tal pedófilo que ele teve “pulsões”. Trata-se, dirão os psicanalistas, de moções pulsionais provenientes do id. Mas é preciso, para tanto, negar a essas moções um valor de enriquecimento do psiquismo? Como é possível que soframos tanto para considerar a pulsão sexual, em toda sua dimensão, destruidora, ao mesmo tempo em que nutriz?

A violência não se situa somente do lado do ódio ou da destruição. Uma relação erótica precisa &– a intricação das pulsões obriga! &– tanto de violência, e mesmo de crueldade, quanto de desejo ou de ternura. Erradicar a dimensão de agressão e de transgressão do ato sexual tem consequências nefastas e às vezes catastróficas sobre a sexualidade. Observa-se atualmente uma perda do desejo, um crescimento de recursos às sexualidades regressivas, aditivas ou de atuações, de angústias de desfalicização, uma exacerbação das defesas anais. Minha clínica me confronta com pessoas sofrendo de um pragmatismo sexual, de vaginismo, de ausência de relações sexuais. Ocorre-me levá-los a encontrar ou reencontrar o caminho de uma eclosão libidinal, de uma elaboração neurótica dos sintomas. Temos a tendência de pôr esses fenômenos na conta somente da evolução dos costumes, que trouxe mais autonomia e, mesmo, o poder às mulheres, privando os homens de seus privilégios viris.

No que se transforma a relação erótica, num registro de negociação neurótica, quando o ego aceita uma parte da pulsão e recalca uma outra? É uma sexualidade comprometida. O homem se contenta com uma relação periódica de tensão e descarga, e sua companheira é um objeto que lhe permite atingir o prazer. A conquista é esta, de múltiplas parceiras, de objetos intercambiáveis e renováveis, como o são os produtos da analidade. A angústia de castração acha aí seu foco. A procura é a de orgasmo, de um prazer de órgão &– não a do gozo, que implica a procura e a criação do gozo do outro. O prazer e o orgasmo ficam a serviço da ligação, do retorno ao ego, ao passo que o gozo é desligamento, sair do ego, ek-stasis, perda de limites, além do princípio do prazer do ego.

“Quem é que, em nome do prazer, não amolece desde os primeiros passos em direção ao gozo?”, escreve Jacques Lacan (1966). Eu acrescentaria: em direção ao gozo do outro?

Sustento a ideia de que é um “trabalho do feminino” (Schaeffer, 1997), tanto no homem como na mulher, que assegura o acesso à diferença dos sexos e sua manutenção sempre conflitual, que então contribui para a constituição de uma identidade psicossexual. Esta, entretanto, fica instável, porque se trata de um trabalho constante e constantemente ameaçado de regressão à oposição ativo-passivo, ou ao par fálico-castrado, que poupam todos os dois: o ego em “exigência de trabalho”, diante do impelir constante da pulsão sexual.

Na mulher, o “trabalho do feminino” reside no que excede, sempre a reconquistar, um conflito constitutivo que, ela o negue ou não, da sexualidade feminina. A mulher quer duas coisas antagônicas (Schaeffer, 1999). Seu ego detesta, odeia a derrota, mas seu sexo a pede e, mais ainda, a exige. Ele quer a queda, a derrota, o “masculino” do homem, quer dizer, o antagônico do “fálico”, teoria sexual infantil que só existe para fugir da diferença dos sexos e, portanto, seu “feminino”. O ego quer grande quantidade de libido e de masoquismo erótico. Este é o escândalo do “feminino”.

O amante, sob a condição de que seu ego tenha podido soltar suas defesas fálicas, para submeter-se ele também ao impulso constante libidinal, vai levá-lo ao corpo feminino, para abrir, revelar seu “feminino”. Para isso, ele terá de enfrentar, dentro dele, seu conflito entre sua libido e as resistências de seu ego. O feminino &– este da diferença dos sexos &– é, portanto, o que o amante extrai da mulher, destruindo sua recusa do feminino.

O “trabalho do feminino” no homem implica que ele possa se deslocar, por um tempo, do controle de seu ego e de seu pênis anal, que ele possa sobrepujar os fantasmas de um pênis fálico que tende, sobretudo, a verificar sua solidez na relação sexual e que possa não se aterrorizar por fantasmas ligados ao perigo do corpo da mulher-mãe. É, com efeito, todo um programa e uma “exigência de trabalho”, como diz Freud.

O terror profundo, para os dois sexos, é a proximidade do sexo da mãe de onde eles saíram. Essa avidez do impulso pulsional, sempre insatisfeito, só pode aterrorizar se ela o remete à devoração, ser engolido para dentro do corpo da mãe, objeto de terror e paraíso perdido da fusão-confusão. É, portanto, para afrontar e vencer esses terrores que se cria o gozo sexual. Cito Freud, em 1912/1970, p. 61: “Para estar na vida amorosa verdadeiramente livre e, portanto, feliz, deve se ter superado o respeito pela mulher e se familiarizado com a representação de incesto com a mãe ou a irmã”. Sic! Seria, assim, conseguir se aproximar da alteridade do inconsciente.

O par masculino-feminino se constrói, portanto, em co-criação, na descoberta do sexo feminino, que não pode existir senão através da conquista e da destruição pelo masculino do homem, das defesas anais e fálicas da mulher. O reencontro e a manutenção de uma relação erótica amorosa entre um homem e uma mulher é um trabalho constante e incessante, uma vez que o “feminino”, encontra-se constantemente em movimentos de elaborar e deselaborar a “recusa do feminino”. O feminino deve, portanto, sempre ser reconquistado pelo masculino. É isso que mantém o desejo.

É, em minha opinião, a condição de uma verdadeira emancipação própria para evitar a guerra dos sexos e a dominação de um pelo outro.

 

O masoquismo erótico feminino

Mas por que a violência pulsional? Simplesmente porque o escândalo do feminino é o masoquismo erótico. Ele faz a menina edípica dizer: “Papai me faça mal, me bata, me violente!” (segundo tempo fortemente recalcado da fantasia “Uma criança é espancada”, teorizado por Freud, em 1919). É a mulher amorosa, que diz para seu amante: “Faça de mim o que você quiser, me possua, me vença!”. Tudo isso, insuportável para o ego e para o superego, pode contribuir com o gozo sexual. Ao preço de que o ego de uma mulher, como o de um homem, possa consentir em livrar-se de suas defesas diante da genitalidade.

Me afasto, então, da concepção de um feminino assimilado à “castração” ou ao “infantil” para definir um masoquismo erógeno feminino, genital, que contribua para o gozo de uma relação sexual entre um macho e uma fêmea adultos.

Trata-se de um masoquismo erótico psíquico, nem perverso nem atuador. Ele é inversamente proporcional ao masoquismo moral, frequentemente encontrado nas mulheres (Freud, 1924/1973). No desligamento, ele assegura uma ligação necessária à coesão do ego para que ele possa se desfazer e admitir grandes quantidades de excitação não ligadas, quer dizer, libidinais. Esse masoquismo erótico feminino é o guardião do gozo sexual.

O amante é, para a sexualidade da mulher, o que a pulsão foi para o ego: a exigência de aceitar o estranho, às vezes inquietante e familiar. As mulheres são, a despeito delas mesmas, obrigadas a um “trabalho do feminino”. Nenhuma entre elas pode se deixar penetrar se ela não conseguir transformar suas angústias de intrusão pré-genitais em angústias de penetração genitais. A fantasia do estupro, muito erotizada, vem muitas vezes marcar a passagem de um modo de angústia a outro.

O desejo sexual é sempre violento, tanto para o objeto a quem ele se dirige, como para aquele que o experimenta. As mulheres nas relações sexuais se entregam àqueles que impõem o seu desejo: elas não desejam que se mendigue seu consentimento.

Desde a noite dos tempos, os homens devem arrancar as mulheres da noite das mães, das rainhas da noite.

As mulheres atuais sabem ou sentem que suas “angústias do feminino” não podem se apaziguar nem se resolver de maneira satisfatória através de uma realização de tipo “fálica”. Elas sabem e se ressentem, sobretudo, de que o fato de não serem desejadas ou de não serem mais desejadas por um homem as reenvia a uma dolorosa prova da falta de sexo, ou do sexo feminino negado, e reaviva suas feridas de menina forçada a se organizar sobre um modelo fálico diante da prova da percepção da diferença dos sexos. É lá que se situa sua “angústia de castração”.

 

O escândalo da sexualidade feminina

É no crepúsculo de sua vida, em 1937, depois de expor o Caríbdis do instinto de morte, confrontado com os impulsos de vida e de amor, que Freud se refere à Squila da “recusa do feminino” em ambos os sexos, rocha sobre a qual se exaurem os esforços terapêuticos.4

É perturbador constatar a que ponto a “recusa do feminino” é uma lei geral dos comportamentos humanos e quanto participa da elaboração da sua gênese psíquica. Não por acaso, Freud construiu uma teoria falocêntrica do desenvolvimento psicossexual e Lacan fez do falus o significante central da sexuação, do desejo e do gozo. Tal teoria sexual infantil, esta de um sexo único, o pênis fálico, constituiu uma tática defensiva em face do rompimento da descoberta da diferença dos sexos diante de Édipo.

A dominação do homem, incontestável na organização de todas as sociedades, remete, a partir de um ponto de vista psicanalítico, para a necessária função fálica paterna, simbólica, que estabelece a lei, que permite ao pai separar a criança de sua mãe e fazê-la entrar no mundo social.

O que penso é que o amante do gozo vem também numa posição de terceiro separador, para arrancar a mulher de sua relação arcaica com a mãe.

Mas como compreender que essa “recusa do feminino” tenha uma tal postura e uma tal persistência? Podemos induzir que o que sempre ameaçou a ordem política, social e religiosa é o que toca no poder de procriação das mulheres, mas mais ainda à sua capacidade erótica? E o fato que ousem se interpenetrar a mãe na mulher, e a mulher na mãe? Dito isto, nós sabemos a que ponto a mãe pode trabalhar, para ambos os sexos, para contrainvestir o feminino erótico!

No encontro do casal fálico-castrado, que apoia a manutenção da organização social e de suas relações de poder, o estabelecimento de uma relação do casal masculino-feminino é uma criação psíquica, que implica o reconhecimento e a confrontação da alteridade na diferença dos sexos. A capacidade de transformação de um casal fálico-castrado em um casal masculino-feminino determina o modo e a qualidade da relação sexual, afetiva e social, que se estabelece entre um homem e uma mulher, e testemunha um “trabalho de cultura” (Kulturarbeit).

O status das mulheres é o espelho da estrutura e da história de uma civilização, o pivô e o revelador do que muda em uma sociedade, o sintoma das crises e as questões de poder entre os sexos, o emblema de toda igualdade. Uma igualdade que precisa ser conquistada e mantida no domínio político-socioeconômico, mas sobretudo é muito importante que ela não seja confundida com uma abolição da diferença dos sexos, a qual se beneficia de ser exaltada na sexualidade, do fato do antagonismo entre as defesas do ego e da libido.

A sexualidade do gozo é uma criação psíquica autêntica. Não é só fenomenologia, nem só repetição. Nenhum evento da vida de um adulto é comparável a uma relação de gozo, que é um dos mais poderosos meios de pôr o ser humano também diretamente em contato com as camadas mais profundas da vida psíquica, onde reinam soberanos os processos primários, de exaltar os antagonismos constitutivos do psiquismo e o masoquismo erógeno.

Vamos concluir pela convocação novamente de Squila e Caríbdis. “O psicanalista deve ficar na zona erógena da sociedade”, disse Michel Fain. A neurose e a sexualidade não estão mais no primeiro plano das reflexões do psicanalista atual. Numerosos problemas preocupantes podem justificá-lo. Mas como admitir que a sexualidade adolescente ou adulta efetiva raramente faça também parte de seu campo de exploração teórica? E que continuemos a denunciar, apesar das propostas do meu livro, o silêncio das mulheres sobre seu gozo?

“Se a literatura psicanalítica fervilha, na verdade, de trabalhos sobre a sexualidade infantil ou a vida pulsional, raros são aqueles que se ocupam de marcar o lugar da sexualidade propriamente dita, aquela que entra em ação na “relação” sexual adulta ela mesma. Isso, entretanto, quando não é dissociado do resto da vida psíquica, revela algo de essencial e de fundamental da vida psíquica ela mesma”.5

Podemos inferir formas de resistência relacionadas com a rocha da “recusa do feminino” que dorme em cada um de nós?

Numa sociedade cada vez menos “edípica”, que tende a negar a diferença geracional e a dos sexos, o analista não se sente investido de uma função capital? A de ser fiador de uma sexualidade elaborativa, da co-criação do casal, do gozo sexual ou de suas felizes sublimações, em face de um mundo que nos confronta com a existência de formas mais e mais operatórias ou perversas de sexualidade, de um gozo de destrutiva violência, de uma desumanização e de uma “fecalização” do indivíduo, de uma excrescência das forças de poder e de cerceamento? E as manobras visando a abolir as diferenças &– aquelas dos sexos, particularmente: não seriam elas, como sublinhado por André Green, os últimos nichos do instinto de morte na sua obra de des-diferenciação?

 

Referências

Beauvoir, S. de (1948). Le deuxième sexe. Paris: Gallimard.        [ Links ]

Freud, S. (1985). L’analyse avec fin et l’analyse sans fin. In S. Freud, Résultats, idées, problèmes, 2 (pp. 231-268). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1937.)

Freud S. (1953). Observations sur l’amour de transfert. In S. Freud, La technique psychanalytique (pp. 116-130). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1915.)

Freud S. (1970). Sur le plus général des rabaissements de la vie amoureuse. In S. Freud, Contributions à la psychologie de la vie amoureuse, La vie sexuelle (pp.55-65). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1912.)        [ Links ]

Freud S. (1973). Le problème économique du masochisme. In S. Freud, Névrose, psychose et perversion (pp. 287-298). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1924.)        [ Links ]

Lacan, J. (1966). Propos directifs pour un congrès sur la sexualité féminine. In J. Lacan, Écrits (pp. 725-736). Paris: Seuil.        [ Links ]

Schaeffer, J. (1997). Mal-être dans la sexualité. In J. Cournut, & P. Israel (Dir.), Le mal-être (pp. 89-100). Paris: PUF.        [ Links ]

Schaeffer, J. (2008). Le refus du féminin: la sphinge et son âme en peine. (5° ed.) Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1997.)        [ Links ]

Schaeffer, J. (1999). Que veut la femme? ou le scandale du féminin. In J. Schaeffer, & M. Cournut-Janin (Dir.), Clés pour le féminin (pp. 25-40). Paris: PUF.        [ Links ]

Schneider, M. (2007). La confusion des sexes. Paris: Flammarion.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Jacqueline Schaeffer
13 rue des Petits Champs, 75001 Paris
Fone: 01 4296-5577
E-mail: Jacqueline.schaeffer@orange.fr

Recebido em: 19/05/2009
Aceito em: 10/06/2009

 

 

Tradução de Yeda Saigh e Virginia Figliolini Schreuders
Revisão de Richard Carasso
* Psicanalista. Membro efetivo em função didática da Société Psychanalytique de Paris. Professora de psicanálise de adultos e de psicodrama no Instituto de Psicanálise de Paris. Responsável pela formação de psicanálise de adultos na Turquia pela Associação Psicanalítica Internacional (IPA).
1 Em atenção à solicitação da autora, para sublinhar o conceito, o prefixo co não foi neste trabalho juntado ao segundo elemento, conforme prescreve a reforma ortográfica. (N. do E.).
2 Cf. F. Collin (1999): Le différend des sexes. Paris: Pleins Feux.
3 No original, effracteur nourricier. Effracteur pode ser traduzido por “aquele ou aquilo que invade ou arromba”. Optou-se, aqui, pela primeira acepção. Nourricier foi traduzido por “aquele que nutre, que alimenta”. (N. do T.)
4 Amada por Poseidon, Squila foi transformada por Anfitrite, sua rival, em um monstro que devorava os marinheiros que passavam perto de sua caverna, localizada em frente ao turbilhão de Caríbdis. (N. do T.)
5 Roussillon R. (2008), Postface à la réédition “Quadrige”, de J. Schaeffer, Le refus du féminin, Paris, PUF.

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