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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.76 São Paulo June 2009

 

TRABALHOS NÃO-TEMÁTICOS

 

Pesar e afeto unem-se neste espaço que o Jornal de Psicanálise, representando o Instituto de Psicanálise da SBPSP, abre para homenagear um ilustre colega: Isaías Melsohn, um dos mais respeitados pioneiros da Psicanálise brasileira.

Plinio Montagna, Marilsa Taffarel, Mario Lúcio Alves Baptista, Leda Herrmann, Maria Olympia França, Cássia Barreto Bruno e Marina Melsohn Lisbona falam em nome de todos aqueles que o conheceram e o admiraram, usufruíram da seriedade de seu compromisso, do seu entusiasmo pela Psicanálise e do seu cuidado com a nossa Instituição, como analista, professor e amigo.

Esperamos que esta pequena homenagem possa estimular a retomada de seu pensamento psicanalítico, marcado pela importância por ele atribuída à expressão das emoções e à experiência, o que muito influenciou sua abordagem original do Inconsciente.

A Isaías, o nosso reconhecimento e a nossa profunda saudade. 

 

Isaías Melsohn (1921-2009)

 

Plinio Montagna

Omnia mea mecum porto. “Levo comigo todos os meus bens”: citado por Cícero (e atribuído a Bias, um dos sete sábios da Grécia) este dito foi proposto por Isaías para o quadro de formatura de sua turma, no Ginásio do Estado, em 1937, onde conheceu Hinda, esposa de toda a sua vida. Enunciou-o muitas vezes, inclusive na conferência plenária do Congresso Brasileiro de Psicanálise, de 1999, no Rio de Janeiro, quando foi aplaudido de pé, por mais de cinco minutos, pela audiência de setecentos psicanalistas, impactados por uma fala erudita, humana, livre, cheia de sabedoria, de psicanálise, de vida &– e, sobretudo, bela.

Além do humor e da generosidade intelectual, tais eram suas qualidades naturais. James Grotstein, coparticipante da mesa, sentenciou: “Brilhante!”. A par disso, muito querido por seus amigos e por todos os que com ele aprenderam. Analisandos, alunos e, claro, pela família, que o adorava.

Nascido em Lublin, Polônia, chegou com os pais ao Brasil com 5 anos. Cidadão brasileiro, em 1945. Grande interesse pela cultura, sólida formação pessoal. Participou dos movimentos libertários da esquerda de então; música e arte foram fundamentais em sua vida. Médico pela Faculdade de Medicina da USP, em 1946; psiquiatra do Hospital do Juqueri, em 1947.

Analisou-se com Adelheid Koch, de 1945 a 1950; já era membro quando, em 1951, a SBPSP oficializou-se na IPA. Membro visitante da Sociedade Britânica; período de análise com Hanna Segal. Pensador original, emblema da psicanálise brasileira, democrático (nem todos sabem que lutou para o estudo da obra de Bion em nossa Sociedade). 

Na apresentação do livro Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida, de Bela Sister e Marilsa Taffarel, diz Fabio Herrmann: “Isaías pensa em teia. Tudo se refere a tudo, e ele aspira a abarcar em cada tema, por mínimo que seja, o conjunto inteiro do conhecimento humano. Cada problema leva-o às fontes gregas de nossa cultura, atravessa a cultura, reposiciona a psicanálise”.

Isaías nos legou exemplos dignificantes. Deixou a esposa, Hinda; a filha, Marina, psicanalista da SBPSP; o filho, Breno, genro, netas e uma bisneta.

 

O perguntador

 

Marilsa Taffarel

Isaías era a nossa reserva de sabedoria, nele podíamos encontrar respostas bem-fundadas para nossas dúvidas sobre a psicanálise e o amplo espectro de saberes que foram seu fermento e constituem seu entorno. Mais do que responder, no entanto, Isaías ensinou a perguntar.

Isaías, o perguntador. Assim o chamavam os colegas do Juqueri. Recuperava sempre uma distância em relação ao que era postulado, proposto ou posto. Da disposição das cadeiras em um restaurante, que costumava alterar para que todos pudessem conversar melhor, até uma concepção filosófica ou psicanalítica consagrada. Esse recuo sinalizava uma fidelidade para com seu desejo e seu espírito. Isaías fez-se um pensador marcado pelo iluminismo.

Imaginária religiosa, obras pictóricas de renomados artistas, tapetes antigos; os grandes compositores, poesia, ciência. Cercou-se Isaías de tudo o que alimenta a alma e que o reabilitava diante do sofrimento humano. Não apenas cercou-se: jogou-se com paixão na busca das obras que compõem sua coleção, em que cada tapete, cada quadro e cada imagem mostram seu olhar sobre a arte, notadamente a brasileira.

Seu amor pela música fez dele, como dizia, um audiófilo. Com grande esmero e alegria, seu grupo de música, que perdurou por décadas, preparava as audições, elaborava e imprimia os programas. Dos compositores que o deslumbravam, conhecia cada acorde e regia imaginariamente a orquestra, sem perder uma nota do naipe de instrumentos.

Ir com ele tanto a um concerto como a um restaurante, quanto andar pelas ruas em uma viagem era sempre algo absolutamente incomum. Não havia espaço para a contemplação passiva.

Assim também o perguntador perseguiu e teceu, com o zelo e a pertinácia de quem tece uma obra, suas respostas. Não todas. Ficaram perguntas sem resposta. Sempre o entristecia pensar que certa linha de descobertas dos pensadores que investigam o homem pudessem se perder, serem abafadas pelo pensamento dominante na filosofia ou na psicanálise. Lutou para preservá-las e fazer uso delas na construção de seu pensamento teórico que reverberava e refletia sua clínica.

Isaías teve o dom da vida provecta. Viveu o bastante para ser reconhecido. E comemorou isto com um sonho que lhe veio depois da publicação de uma resenha de Bento Prado sobre Psicanálise em nova chave, título de seu livro que homenageia Susanne Langer, filósofa que com seu livro Filosofia em nova chave o levou a Cassirer. Bento Prado Júnior, cuja morte também deixa um vazio impreenchível, construiu em torno do livro de Isaías um dos mais brilhantes ensaios que marcaram sua trajetória. Isaías sabia palavra por palavra, de cor (de coração) o texto de Bento e gostava de repeti-lo ao telefone ou pessoalmente.

Isaías, no sonho de reconhecimento, subia a encosta de uma montanha. (Ele adorava as paisagens de montanha.) A cidade vai se mostrando, abaixo. Chega então a um belvedere. Lá havia a paisagem que o encantava, a presença feminina e alguns petiscos saborosos. O céu de Isaías.

Ele entendeu o sonho como, no essencial, lhe dizendo que já podia morrer. A serenidade do reconhecimento, de ser verdadeiramente escutado. Mas Isaías ainda viveu muitos anos.

Morreu um dia antes de, através da iniciativa de nossa colega Maria Olympia de Azevedo Ferreira França, proferir mais uma conferência proposta pela Sociedade e que tinha por título: “Tudo que tenho trago comigo”. Lema este por ele escolhido para o quadro de formatura no Ginásio do Estado. Omnia mea mecum porto. Título do segundo capítulo de suas memórias.

Assim ele contou para Bela e para mim esta pregnante passagem de sua vida.

Mais de uma vez ouvimos do professor de latim, ou talvez de português, a história do sábio que está num navio, em meio aos mercadores. Vem uma tempestade, o navio vai naufragar, todos correm a fim de salvar suas riquezas, e o homem permanece tranquilamente sentado. ‘Você não quer salvar suas riquezas?’, perguntam a ele. ‘Omnia mea mecum porto.’ ‘Tudo que tenho trago comigo’, responde ele. Propus este lema para nosso quadro de formatura. Isso talvez sugira a importância que os valores intelectuais iam assumindo para mim. Também pedi que a valsa de formatura fosse de Tchaikóvski, da serenata opus 48.

Afirmou Peter Gay que Freud foi uma antologia de seu tempo. Isaías, na sua busca dos fundamentos da psicanálise freudiana, costumava dizer que esta, como as serpentes da cabeça da Medusa, não saiu da cabeça de Freud. Freud absorveu o fermento cultural de sua época e criou a psicanálise. É isto que Peter Gay quer significar com sua frase. Isaías fez o mesmo e trouxe-nos uma contribuição original e importante. Nós todos que convivemos com seu humor maravilhoso, com sua inteligência brilhante, com o prazer que sentia pelas coisas do mundo humano o temos conosco de alguma forma.

Ficam seus escritos, suas falas registradas, nossas memórias. Ele marcou mais de uma geração na psicanálise e instituiu um paradigma e uma tradição de paixão pela busca, pela autoria com solidez, pela conduta pautada por princípios democráticos e pela razoabilidade. Tal o fundamento vital que trazia consigo &– e que jamais perdeu nas tempestades da vida.

 

Meus três Isaías

 

Leda Herrmann

O amigo leal e sensível para o sofrimento e as carências dos amigos que cativava e que, por cativar, cuidava.

O mestre de muitos de nós. E mestre no sentido mais completo do termo: o que ensinava, mas ao mesmo tempo nos olhava com o olhar de respeito para o fruto do que em nós semeava. Sempre me senti escutada por Isaías. Como mestre, permitia a troca.

O psicanalista pensador.

Na apresentação que abre o livro Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida, de Bela Sister e Marilsa Taffarel, Fabio Herrmann escreve que concentram-se ali “vida e obra num entrelaçamento indissolúvel”, testemunho que aquele livro passou a ser do pensamento psicanalítico de Isaías.

Isaías foi um autor que optou pela transmissão oral, e não pela transmissão escrita. Escreveu pouco, mas formou mais de uma geração de importantes psicanalistas brasileiros, como o próprio Fabio, que também já nos deixou.

Postulo que a Psicanálise brasileira, como produção científica de pensamentos psicanalíticos inicia-se com Isaías Melsohn.

Da resenha que escrevi para a Revista Brasileira de Psicanálise desse livro de Bela e Marilsa sobre nosso querido Isaías, quero citar um trecho. Minha homenagem ao mestre.

Ao narrar a vida e a produção intelectual de Isaías, ‘um dos mais originais e criativos analistas brasileiros’, no dizer de Fabio Herrmann, na Apresentação, o livro inaugura uma outra história, a da psicanálise brasileira de autoria. Esta sim carente de criação, não porque não exista, mas por necessitar de crédito ou tradição. O problema é levantado na citada Apresentação de Fabio Herrmann que, ao constatar a ausência do ensino de autores nacionais nos Institutos brasileiros, por causa de uma alegada falta de tradição, escreve: ‘…tradição é aquilo que possui quem acredita que tem tradição. Nem mais, nem menos. Falta-nos, na verdade, a tradição de crer que temos tradição, na psicanálise como em outras áreas do conhecimento. É raro que se reconheça &– ou pelo menos que se cite &– um autor nacional, e este é um desestímulo evidente à produção original’ (p. 10).

Pensando um pouco mais a questão, podemos dizer que é o anonimato que caracteriza a psicanálise brasileira. Nossos autores ocultam-se, geralmente, na citação. Se é o estrangeiro o autor que tem história, a autoria estrangeira, via citação, permite a todos &– de cá e de alhures &– serem equivalentes.

Ora, Isaías rompe com isso. A sua é uma psicanálise pessoal. Embora sem uma produção escrita volumosa, sua produção psicanalítica é de autoria, ele é dono de um pensamento psicanalítico.

E esse pensamento permanecerá vivo entre nós.

 

Psicanalista. Mestre. Amigo

 

Mário Lúcio Alves Baptista

Desfrutei o convívio sempre agradável com Isaías como paciente, como aluno e como amigo. Foi um convívio de quase quarenta anos. Durante esse tempo, sempre me encantaram sua inteligência, sua cultura psicanalítica, sua cultura filosófica e sua cultura geral.

Passeava com liberdade e profundidade por todos esses campos e fazia questão de nos levar junto pelos caminhos que já traçara, buscando sempre dividir conosco seu conhecimento e também suas dúvidas, pois as tinha. E muitas.

No campo psicanalítico, seu pensamento vivo e ágil levou-o a ampliação de nosso conhecimento, aprofundando e radicalizando sua crítica ao conceito positivista do inconsciente, ajudando-nos a encontrar nas “Formas de expressão da emoção” &– baseado no seu profundo conhecimento da Filosofia das formas simbólicas, de Ernst Cassirer &– um caminho mais eficaz e mais profundo de compreender a mente ao deslocar a profundidade do eixo vertical da consciência para o inconsciente, para o eixo horizontal de conteúdo e forma, com o que a mente pode passar a ser vista como um amplo mosaico em que, na maneira como os temas nos eram apresentados por nossos pacientes, se juntavam afetos, desejos, emoções, aspirações...

Não lidávamos com uma mente tripartite na qual procurávamos, como um escavador, emoções escondidas, uma vez que elas estavam todas ali, ao nosso alcance, se pudéssemos aprender a identificar as várias formas como se expressavam. Assim, se a Psicanálise já leva consigo um alto grau de persecutoriedade, pois sempre tememos descobertas que, por serem desconhecidas, poderiam trazer dor e sofrimento, isto fica muito pior se lidamos com coisas escondidas de nós mesmos, que serão reveladas como oriundas de uma instância à qual nunca teremos acesso por nós mesmos e nos serão reveladas por um terceiro. À sua maneira, não lidávamos com revelações, mas com descortinamentos, e aliviavam-se as sensações persecutórias de que seríamos traídos por revelações que não sabíamos bem de onde vinham, já que estavam todas reveladas na fala, nos gestos, nas ações. Na vida, enfim.

Como amigo, era sempre afável, cuidadoso, generoso. Preocupava-se com cada detalhe de nossas vidas, sempre disposto a ajudar, apoiar, cuidar. Depois de longas horas de trabalho, nas fases iniciais do que viria ser seu livro Psicanálise em nova chave, costumávamos nos fins de tarde ou princípios de noite prolongar nossas conversas diante de um bauru, de um cachorro-quente ou de qualquer outro desses primores da baixa gastronomia. Frequentemente, no Ponto Chic &– tão antigo, que fazia parte da juventude de ambos. A presença era tal que, em um dos aniversários do local, fomos objeto de uma reportagem feita pelo ornal da Tarde sobre os velhos fregueses do Ponto. Com direito a foto na primeira página.

Ali, conversávamos sobre tudo. Do trabalho que tínhamos acabado de fazer, a filmes, peças de teatro, livros. E a conversa ia longe. Frequentemente, até a madrugada, enquanto Hinda e Penha esperavam, pacientemente.

Enfim, perdi um Psicanalista, um Mestre e um Amigo. Grande nas três formas de convívio.

 

Um encontro marcado

 

Maria Olympia

&– Alô, Isaías?

&– Quem está falando?

&– Quero te fazer um convite.

&– Convite? Pra quê? Vocês não me chamaram mais...

&– Isaías, é para você contar de sua experiência, dentro do grupo, sobre a ética do analista clinicando. É um grupo informal.

&– Da Sociedade?... Sim, eu aceito. Mas quero levar um capítulo do meu livro sobre o acolhimento do analista a seu paciente.

Rapidamente me indica não somente o capitulo, como os números das páginas.

&–Quando vai ser? Hum... Bem, mês que vem... Acho que vai dar...

&– Ah, Isaías, deixa disso...

&– E você, como vai?

Continuamos a conversa &– que ele em meio interrompe:

&– Você tomou nota sobre o livro?

Sua voz era forte. Ciente de si e de seu trabalho; ficou feliz com o convite. Perguntei-lhe mais: se o encontro poderia chamar-se “Tudo que tenho trago comigo”? Deu uma risada: “Você leu, hem!”.

Na sexta-feira anterior à sua morte, Ignácio Gerber telefonou-lhe para combinar a ida. Isaías pediu para que deixassem por via das dúvidas preparada uma cadeira de rodas, pois ele iria de qualquer jeito. Ele amava a Sociedade e lutava para que ela correspondesse ao seu empenho de desenvolvê-la. Foi sem dúvida um desbravador incansável, abrindo para a SBPSP novos territórios de saber e de ser.

O encontro com o Isaías, amigo, afetuoso, de inteligência viva e brilhante, fala espirituosa, generoso e provocador de vida, continua marcado em todos nós.

 

É preciso amar

 

Cássia Bruno
(Pela diretoria cientifica da SBPSP)

A autenticidade, qualidade que diferencia o mestre que leva sua palavra a quem amorosamente se dispuser a ouvi-la, foi uma importante característica do pensador Isaías, de Lublin, Polônia.

Falou do fundo do coração sempre, de modo que o interlocutor era o único naquele momento.

Suas ideias, oriundas da produção de um intelecto diferenciado, que atingia profundidades inquietantes, eram oferecidas da maneira mais generosa, expressas com a simplicidade de quem está em estado de verdade e de sintonia com suas convicções.

Sua fala, ao mesmo tempo em que nos transportava para um clima de absoluta proximidade afetiva, denotava desafios intelectuais que se sabia intransponíveis, sem o elaborado trabalho artesanal de desfiar cada frase, cada palavra, de refazer o percurso por ele proposto. Fala colocada de modo amoroso e respeitoso. Você não se sentia humilhado com sua sabedoria, e, sim, desafiado. Assim é o mestre.

Pensador brasileiro mais importante na área da Psicanálise, suas contribuições denotam outra característica: a coragem. Foi fiel a si próprio e lutou por suas ideias, que circulavam em ambiente inóspito. Incompreensíveis para a época, exigiram muitos anos de estudo para que se atingisse uma compreensão razoável do dizer da sua fala.

A SBPSP tem Isaías como exemplo de pensador independente, enérgico, estudioso, profundo, consequente, ético. Sua lição mais pulsante para mim encontra-se na frase que, certo dia, de forma irreverente e bem-humorada, disse numa supervisão:

&– É preciso amar, puxa! Amar o paciente, o estudo, o entorno, a arte.

 

...E cinco da tarde

 

Marina Melsohn

Este era um dos poemas favoritos de Isaías, meu pai. Ele o mencionava sempre nas aulas e seminários, para enfatizar a dor e a emoção, tão magnificamente expressas na repetição da última estrofe de cada verso. Esta é a minha homenagem a ele.

Isaías faleceu no dia 25/05, às 14h05. Malditas duas e cinco da tarde.

 

La cogida y la muerte

Federico García Lorca

 

A las cinco de la tarde. / Eran las cinco en punto de la tarde. /Un niño trajo la blanca sábana / a las cinco de la tarde. / Una espuerta de cal ya prevenida / a las cinco de la tarde. / Lo demás era muerte y sólo muerte / a las cinco de la tarde. / El viento se llevó los algodones / a las cinco de la tarde. / Y el óxido sembró cristal y níquel / a las cinco de la tarde. / Ya luchan la paloma y el leopardo / a las cinco de la tarde. / Y un muslo con un asta desolada / a las cinco de la tarde. / Comenzaron los sones del bordón / a las cinco de la tarde. / Las campanas de arsénico y el humo / a las cinco de la tarde. / En las esquinas grupos de silencio / a las cinco de la tarde. / ¡Y el toro, solo corazón arriba! / a las cinco de la tarde. / Cuando el sudor de nieve fue llegando / a las cinco de la tarde, / cuando la plaza se cubrió de yodo / a las cinco de la tarde, / la muerte puso huevos en la herida / a las cinco de la tarde. / A las cinco de la tarde. / A las cinco en punto de la tarde. / Un ataúd con ruedas es la cama / a las cinco de la tarde. / Huesos y flautas suenan en su oído / a las cinco de la tarde. / El toro ya mugía por su frente / a las cinco de la tarde. / El cuarto se irisaba de agonía / a las cinco de la ta rde. / A lo lejos ya viene la gangrena / a las cinco de la tarde. / Trompa de lirio por las verdes ingles / a las cinco de la tarde. / Las heridas quemaban como soles / a las cinco de la tarde, / y el gentío rompía las ventanas / a las cinco de la tarde. / A las cinco de la tarde. / ¡Ay qué terribles cinco de la tarde! / ¡Eran las cinco en todos los relojes! / ¡Eran las cinco en sombra de la tarde!

A captura e a morte Às cinco horas da tarde. / Eram cinco da tarde em ponto. / Um menino trouxe o lençol branco / às cinco horas da tarde. / Um cesto de cal já prevenida / às cinco horas da tarde. / O mais era morte e apenas morte / às cinco horas da tarde. / O vento arrebatou os algodões / às cinco horas da tarde. / E o óxido semeou cristal e níquel / às cinco horas da tarde. / Já pelejam a pomba e o leopardo / às cinco horas da tarde. / E uma coxa por um chifre destruída / às cinco horas da tarde. / Os sons já começaram do bordão / às cinco horas da tarde. / As campanas de arsênico e a fumaça / às cinco horas da tarde. / Pelas esquinas grupos de silêncio / às cinco horas da tarde. / E o touro todo coração ao alto / às cinco horas da tarde. / Quando o suor de neve foi chegando / às cinco horas da tarde, / quando de iodo se cobriu a praça / às cinco horas da tarde, / a morte botou ovos na ferida / às cinco horas da tarde. / Às cinco horas da tarde. / Às cinco em ponto da tarde. / Um ataúde com rodas é a cama / às cinco horas da tarde. / Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido / às cinco horas da tarde. / Por sua frente o touro já mugia / às cinco horas da tarde. / O quarto se irisava de agonia / às cinco horas da tarde. / A gangrena de longe já se acerca / às cinco horas da tarde. / Trompa de lis pelas virilhas verdes / às cinco horas da tarde. / As feridas queimavam como sóis / às cinco horas da tarde, / e as pessoas quebravam as janelas / às cinco horas da tarde. / Ai que terríveis cinco horas da tarde! / Eram as cinco em todos os relógios! / Eram cinco horas da tarde em sombra!

 

 

(Romanceiro gitano e outros poemas.
Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.)

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