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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

RESENHA

 

 

Raquel Elisabeth Pires*

Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Secretária de seleção do Instituto de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Cartas (fictícias) na mesa

Madame Freud, Nicolle Rosen
(Verus Editora, 2008; tradução de Marisa Rosseto; 210 páginas)

De autoria da psicanalista francesa Nicolle Rosen, Madame Freud apresenta uma história envolvente da pessoa de Martha, bem como de facetas interessantes da personalidade de Freud. Apesar de romanceada, muitos fatos se assemelham aos descritos na biografia de Freud de autoria de Jones.

Subintitulado Um relato íntimo e revelador do pai da psicanálise pelo olhar de sua esposa, este livro, escrito na forma de uma extensa correspondência entre Martha e uma jornalista americana (Mary), nasce de forma curiosa. Durante o enterro de Freud, Mary capta a dor de Martha e dela se aproxima, manifestando um interesse genuíno por sua pessoa. Percebe sua solidão e comenta com ela como “é duro estar só, não existir aos olhos dos outros” (p. 11). Apesar de breve, é um encontro intenso, que toca Martha profundamente. Na realidade, acredito que foi significativo para ambas, gerando frutos após sete anos, quando Mary a convida para falar de sua vida. Martha, que até o momento vivia à sombra de Freud, ousa empreender essa tarefa. Ser reconhecida em sua individualidade, existir perante o olhar do outro a encoraja para se expor e questionar os cinquenta e três anos de convivência ao lado de Freud. Curiosamente, é nesse momento que consegue se desfazer da cama de Freud, que ainda permanecia em seu quarto. As duas decisões: falar de si e se desprender da cama do marido falecido, constituem um marco decisivo no desabrochar de Martha, possibilitando o emergir de sua subjetividade, que estava aprisionada na relação fusional com Freud.

É um livro de fácil leitura, que nos envolve com o drama de uma mulher que não pôde ser reconhecida em sua singularidade e que renunciara à sua própria identidade para viver em razão da família, exercendo as funções de mãe, esposa e dona de casa exemplar. “Sempre obedeci às regras e às convenções impostas pela minha família e pelo meu ambiente” (p. 13).

Martha sempre foi vista como uma figura apagada, que viveu à sombra de Freud e em torno do qual sua vida gravitava. São poucas as referências a ela nas biografias de Freud e, quando presentes, restringem-se aos quatro anos de noivado &– particularmente, à paixão que despertou em Freud e às quase mil cartas que trocaram durante esse período. As palavras de Winnicott, transcritas a seguir, acenam para uma possibilidade de compreensão dessa imagem de Martha: “Existem condições ambientais que destroem o sentimento de liberdade, mesmo naqueles que poderiam gozá-lo” (1969/1999, p. 242).

Ao longo do livro, no lugar da figura pouco expressiva, entramos em contato com uma mulher bastante viva e sensível.

Renúncias, vivências de solidão e exclusão marcam a vida de Martha durante seu casamento com Freud. Penso que o diálogo com Mary permitiu a Martha se aproximar dessas vivências, uma vez que contou com a presença de um continente sensível para acolhê-las. É possível supor que essa relação possibilitou a emergência de seu verdadeiro self. Expressa com dor e ressentimento as várias renúncias a que se submeteu durante a convivência com Freud: abdica de suas práticas religiosas; do convívio mais próximo com sua mãe; afasta-se do contato com o irmão Eli; e, por fim, a partir dos 35 anos, renuncia à vida sexual.

As referências à sua solidão e às perdas são constantes ao longo da narrativa. O nascimento de Anna é um acontecimento marcante em sua vida, sendo vivido com angústia e sofrimento. É nesse momento que Freud deixa de manter vida sexual com ela e Minna, sua irmã mais nova, passa a conviver com o casal. Sentia que não era vista por Freud. Suas palavras expressam a intensidade de sua dor: “Me tornara para ele um objeto da casa. De primeira necessidade, é verdade, mas um objeto entre outros (...) Por vezes tinha a impressão de não existir para ninguém” (p. 63).

Penso que a chegada de Anna constituiu um divisor de águas na vida de Martha, aumentando o distanciamento do casal e seu sentimento de vazio. Não só deixa de ser sua amante, como se vê forçada a dividir com Minna a direção da casa e o próprio marido. Referindo-se à relação de Freud com Minna, diz: “Eu continuava sendo Martha, a doce, Martha: a mãe, aquela que lhe facilitava a vida. E com Minna jogava e falava de seu trabalho” (p. 40). Chama a atenção as inúmeras perdas que viveu num curto espaço de tempo, entre tantas outras no decorrer da vida.

A autora escreve de forma coloquial, criando um clima de intimidade com o leitor. Através do texto, surge uma mulher sofrida, observadora e perspicaz que, além de nos surpreender com revelações desconhecidas e instigantes, nos estimula a pensar nas questões do feminino.

Madame Freud constitui uma experiência criativa não só para Martha, como também para o leitor, uma vez que mobiliza indagações, novas descobertas e o desenvolvimento de potencialidades.

 

Referências

Winnicott, D. W. (1999) A liberdade. In D. W. Winnicott, Tudo começa em casa (pp. 237-247). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969.)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Raquel Elisabeth Pires
R. Sampaio Viana, 253/43 &– Paraíso
04004-000 São Paulo, SP
Fone: 3884-9635
E-mail: raquelepires@yahoo.com.br

Recebido em: 05/05/2009
Aceito em: 02/07/2009

 

* Membro titular da SBPSP. Secretária de seleção do Instituto de Psicanálise de São Paulo.

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