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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.77 São Paulo Dec. 2009

 

ENTREVISTAS

 

Entrevista com Florence Guignard: processos identificatórios do masculino e do feminino

 

Masculine and feminine identificatory processes

 

Procesos identificatorios de lo masculino y femenino

 

 

Florence Guignard*

Cocap (Comitê de Psicanálise de Crianças e Adolescentes) da International Psychoanalytical Association (IPA)

 

 

Em agosto de 1999, Florence Guignard, em conferência proferida na SBPSP, expôs suas ideias sobre os processos identificatórios do “materno primário” e do “feminino primário”. Considerando essa teorização uma importante contribuição às proposições do feminino e masculino no campo psicanalítico, solicitamos no mês de maio passado que ela nos respondesse por e-mail algumas questões sobre o tema do presente volume do Jornal de Psicanálise.

Antes de passarmos às respostas gentilmente enviadas, seguimos sua sugestão, de nos reportamos ao texto da referida conferência, em que ela postula:

Nos dois sexos, os processos identificatórios do “materno primário” contêm o germe da descoberta da alteridade e da diferença de gerações, ao passo que os processos identificatórios do “feminino primário” contêm a descoberta inicial da diferença dos sexos. É contra essa dupla diferença que os desejos edipianos irão posteriormente organizar suas defesas e dar lugar a toda a tragédia edipiana fundadora do humano (Guignard, 1999, p. 6).

...a infans-menina parece seguir o mesmo destino do infans-menino no que se refere à constituição de seus primeiros espaços psíquicos em relação identificatória com a capacidade materna de pensar, no espaço do “materno primário”, e com o desejo da mãe pelo terceiro paterno, no espaço do “feminino primário”. Além da alegria da descoberta, no espelho, do si-mesmo-fora-da mãe, é o rosto da mãe-ocupada-com-um-outro-desejo que, “do outro lado do espelho”, subitamente revelará o terceiro ao infans, dentro desse espaço do “feminino primário”. Assim, o muito pouco da mulher maternal será precocemente acrescido pelo “demais” da mãe sexual. Podemos, portanto, considerar o espaço do “feminino primário” como o lugar da constituição da bissexualidade psíquica, na complexidade quase imediata dos processos identificatórios do infans com a mãe psiquicamente ausente, por um lado, e com o objeto de desejo que a “torna ausente”, por outro lado (Guignard, 1999, p. 3).

O investimento, pela mulher, dos órgãos de reprodução, é duplo: no plano manifesto é de natureza narcísica, portanto, relativo à identidade e, desse modo, se confunde com o investimento dos órgãos de prazer sexual; mas, no plano latente, esse investimento é essencialmente de natureza autoerótica e se apoia naquilo que denomino “masoquismo materno” que, a meu ver, é o único masoquismo específico da mulher e constitui o avatar próprio da identidade do “materno primário” na menina (Guignard, 1999, p. 7).

Na puberdade, a instalação do ciclo menstrual confronta a menina, pela primeira vez, com a experiência proprioceptiva de seus órgãos reprodutores: útero, ovário, trompas. Essa experiência estabelece uma exigência de trabalho psíquico, principalmente de figuração do invisível, que só é revelado através de cenestesias dolorosas e diante da visão do sangue da menstruação, o que sempre mobiliza um certo grau de angústia, até mesmo de terror. Frequentemente, mascarada pelo trabalho psíquico ligado ao desenvolvimento dos seios, trabalho mais fácil porque baseado na percepção visual, a elaboração pré-consciente relativa aos órgãos reprodutores mobilizará regressivamente as problemáticas oral e anal, que podem, às vezes, levar ao desastre evidenciado pela patologia da anorexia mental (Guignard, 1999, p. 4).1

JP: A senhora acredita que as teorizações psicanalíticas sobre o masculino e o feminino contemplam as problemáticas de sexo e gênero da contemporaneidade?

Florence Guignard: Depende das correntes analíticas pós-freudianas. A partir da obra de Melanie Klein (1932/1981) - principalmente de seus textos sobre o desenvolvimento psicossexual da menina e do menino -, alguns analistas avançaram bastante, principalmente sobre a questão do desenvolvimento psicossexual da mulher.

JP: Freud (1933/1976), ao reduzir os caminhos do desenvolvimento psicossexual da menina em três caminhos possíveis - inibição, complexo de masculinidade e maternidade -, parece desmentir a possibilidade de uma subjetividade feminina de caráter desejante, que possa incluir também uma posição de objeto do desejo. O que nos leva a perguntar: há espaço na teoria freudiana para a sexualidade feminina, além da maternidade ou da histeria?

Florence Guignard: Eu não colocaria esses dois termos em contraposição, por duas razões. Primeiramente, porque a maternidade constitui um desenvolvimento psicobiológico que não diz respeito somente ao corpo do sujeito, uma vez que ela desemboca na transmissão da vida, sendo que a histeria aborda um campo imenso de experiências psíquicas que podem, ou não, incluir secundariamente o corpo do sujeito, mas que não constituem de modo algum um desenvolvimento psicobiológico. Em segundo, porque acredito que poderíamos considerar que três quartos das descobertas freudianas advêm de seus inúmeros trabalhos sobre a histeria, e, em todo caso, tudo aquilo que se relaciona ao feminino, tanto no homem quanto na mulher.

Certamente, enquanto mulheres psicanalistas, poderíamos nos irritar em nos vermos classificadas sob a rubrica da histeria - o que nos remete, de maneira abusiva, a uma nosografia psiquiátrica -, sobretudo quando essa classificação é um meio de defesa utilizado por nossos colegas homens. No entanto, se nos dermos o trabalho de evacuar qualquer julgamento nosográfico e de substituir “histeria” por “feminino” em nossa releitura da obra de Freud, poderemos recuperar muitas observações, bastante pertinentes, feitas sobre a feminilidade pelo inventor da psicanálise.

JP: Com sua experiência e reflexões sobre a teoria e a clínica psicanalíticas, o que poderia enfatizar no discurso freudiano de fundamental sobre o feminino e as mulheres?

Florence Guignard: Resumidamente, pois isso demandaria uma dissecação completa da obra freudiana, eu diria: a honestidade de Freud quando ele confessa não compreender esse “continente negro”; seu questionamento sobre o superego da mulher - porta entreaberta às reflexões de seus continuadores sobre o maternal versus o feminino; sua intuição sobre algo da mulher no masoquismo (ver meu livro Épître à l’objet, 1997, traduzido para o português e publicado pela Imago) - mesmo quando ele, nesse assunto, mistura o feminino com o maternal; suas intuições sobre a gênese da relação de objeto que constitui a relação com o seio - pois sem mulher, não há maternidade e, logo, não há o seio fundador da vida de relação.

JP: Em que medida a integração entre o materno e o feminino pode ser dificultada ou facilitada por valores sociais e religiosos?

Florence Guignard: Eu não tenho as competências necessárias para desenvolver considerações sociológicas, mas, de meu papel de analista, farei duas observações. A primeira é que as sociedades se organizam geralmente sob o modelo da homossexualidade masculina e, por consequência, de maneira defensiva contra a sexualidade da mulher. A segunda é que a “revolução sexual” foi muito mais proveitosa para as formas infantis da sexualidade do que para suas formas adultas, de modo que a integração entre o maternal e o feminino ainda está por acontecer.

JP: Como a presença do homem interfere na alternância entre o materno e o feminino na mulher?

Florence Guignard: Essa presença é indispensável para permitir à mulher se subtrair da avidez da sexualidade infantil de seu infans e reencontrar seu funcionamento feminino.2 Sob a condição, no entanto, de que o homem em questão não esteja em conluio com a sexualidade infantil do infans - o que, infelizmente, acontece com frequência.

JP: As mudanças sócio-históricas toleram novas maneiras de estar no mundo, como, por exemplo, diferentes formas de identidade sexual com novas modalidades de parcerias e grupos familiares. Quais poderiam ser as novas configurações e os novos obstáculos para a constituição de uma identidade sexual saudável?

Florence Guignard: Novamente, eu só posso reagir a essas importantes mudanças sociológicas a partir de minha posição como psicanalista. Penso que as gerações vindouras serão confrontadas com uma necessidade ainda maior que as gerações precedentes de realizar um trabalho de introjeção das diferentes qualidades de seus objetos primários e de identificação dessas qualidades.

Explico: as qualidades psíquicas do “masculino” e do “feminino” não são intrinsecamente ligadas ao gênero daqueles ou daquelas que criam o infans. Existem sempre homens mais femininos e mulheres mais masculinas, e o sentimento maternal não é próprio e exclusivo das mulheres. Algumas delas são, inclusive, particularmente destituídas desse sentimento. Há que se lembrar também da rivalidade do homem com o maternal e com o feminino da mãe. Não há somente “a inveja do pênis”, existe também “a inveja da vagina”, “a inveja do útero” e “a inveja do seio”.

JP: Acredita que haja uma relação estreita entre masoquismo e feminilidade e entre narcisismo e feminino?

Florence Guignard: Sobre a relação entre masoquismo e feminilidade, digo a vocês que, do meu ponto de vista, o masoquismo normal não é o masoquismo feminino, mas, sim, o masoquismo materno. Eu os remeto à leitura do meu livro Épître à l’objet (1997a).

Quanto ao narcisismo, acredito me recordar que, no mito considerado, Narciso era do sexo masculino, não?... Penso que a patologia narcísica está também presente nos dois gêneros, mesmo se ela se manifesta de maneiras diversas e, algumas vezes, diferentes. Não esqueçamos que se trata de um distúrbio de identidade, e que ninguém está protegido de turbulências neste domínio, qualquer que seja seu gênero.

JP: Um dos lutos da adolescência é o de transformar a bissexualidade psíquica em uma identidade de gênero. Como a senhora vê a questão da sexualidade genital e a homossexualidade?

Florence Guignard: Primeiramente, em vez de “transformação da bissexualidade psíquica numa identidade de gênero”, eu falaria de uma “evolução” e de uma “consolidação” da bissexualidade psíquica, que acompanha a instalação serena numa identidade de gênero definitiva. Quero reforçar, com isso, que um homem ou uma mulher, cuja identidade de gênero está bem assegurada, é alguém que pode facilmente se identificar com um ser humano de gênero diferente, assim como um adulto bem desenvolvido pode, sem problema, se identificar com uma criança, e um cidadão do mundo, pode se identificar com meios culturais que não são os seus de origem.

Dando sequência, eu penso que não há uma homossexualidade, mas homossexualidades. A questão é de uma complexidade tão grande que, como disse antes, todo o sistema social está baseado numa mentalidade de ordem homossexual; por fim, penso que temos que considerar a sexualidade psíquica verdadeiramente genital como uma assíntota. Aqui, igualmente, a atividade sexual é somente a parte visível do iceberg da sexualidade psíquica do indivíduo.

JP: A segunda fase da adolescência, na qual o jovem descobre a solidão humana e as experiências de casal, são, do seu ponto de vista, propícias ao aparecimento de depressão, principalmente nas mulheres. Por que as mulheres seriam mais sujeitas à depressão do que os homens nesse período?

Florence Guignard: De maneira geral, a depressão é uma doença da interioridade, logo, ligada ao feminino, assim como a perseguição é uma doença da exterioridade, logo, ligada ao masculino, mas não se pode nunca esquecer que nós, psicanalistas, falamos de qualidades psíquicas. Devemos então nos lembrar que existe feminino e interioridade no homem, como existe masculino e exterioridade na mulher.

Como afirmei na conferência de 1999, a segunda fase da adolescência se caracteriza tanto pela descoberta da solidão humana como pela experiência das relações de casal, com as angústias específicas ligadas a elas. Assim, essa fase é a ocasião de todos os perigos depressivos e, mais especificamente para a menina, é a ocasião do possível desastre da integração das primeiríssimas relações identificatórias com uma mãe que se tornou, desde então, sua rival edipiana como o modelo de suas identificações secundárias.

JP: Como a senhora se coloca em relação à ideia de que a diferença de gênero traria na clínica psicanalítica um viés adicional nas relações do analista homem e da analista mulher com seus pacientes, a partir de seus objetos parentais internos e de sua fratria interna?

Florence Guignard: Como escrevi em meu livro La relation mère-fille [A relação mãe-filha] (2002), eu conduzi, durante vários anos, um estudo com um colega psicanalista para tentar observar a influência do gênero sobre o trabalho do par analítico. Os parâmetros de um estudo como este são numerosos e sutis, e me falta espaço aqui para desenvolver o assunto. Vou me restringir a mencionar que é na situação em que os dois sujeitos do par analítico são do mesmo gênero que observamos mais “pontos cegos” (ver meu livro O infantil ao vivo, 1997b) na contratransferência do analista.

JP: Considerando que a identidade sexual do analista interfere na produção do material trazido pelo paciente e nos rumos da situação transferencial e contratransferencial, como uma atitude mental criativa do analista poderia abrir maiores possibilidades para a dupla?

Florence Guignard: Como dou a entender acima, tratam-se de obstáculos inconscientes (contratransferenciais). Aliás, nenhuma situação de observação é isenta do que você chama de “interferências”. Como os físicos descobriram com a física quântica, interferências existem mesmo quando o campo de observação é estritamente molecular. Logo, temos que nos resignar e tentar “making the best of a bad job”, como dizia Bion, com humor.

JP: Florence, agradecemos imensamente por sua disponibilidade em colaborar com o Jornal, pelas suas respostas precisas e diretas, sugestões de leituras e principalmente pela possibilidade de divulgar algumas das suas ideias bastante originais sobre o tema do feminino em psicanalise.

 

Referências

Guignard, F. (1999). Maternal ou feminino? a rocha da origem como guardiã do tabu do incesto com a mãe [Maternel ou féminin?: le roc d’ origine comme gardien du tabou de l’inceste avec la mère]. São Paulo: SBPSP. 14 p. (Apresentado em: Conferência, São Paulo, 11 ago. 1999.)

Guignard, F. (1997a). Epître à l’objet [Epístola ao objeto]. Paris: PUF.

Guignard, F.(1997b) O infantil ao vivo: reflexões sobre a situação analítica. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Freud, S. (1976). Feminilidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 139-165). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933.)        [ Links ]

Klein, Melanie (1981). Psicanálise da criança. São Paulo: Mestre Jou. (Trabalho original publicado em 1932.)        [ Links ]

 

 

* Estudou psicologia clínica com Jean Piaget e André Rey em Genebra, onde presidiu a formação de psicólogos clínicos e dirigiu equipes de investigação, enquanto fazia sua formação na Sociedade Suíça de Psicanálise. Em 1970, instala-se em Paris como psicanalista. Em 1982, passa a membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Paris, da qual foi vice-presidente por duas vezes. Criou com Annie Anzieu, em 1984, uma associação para psicanálise de crianças; em 1994, funda a Sociedade Europeia de Psicanálise de Crianças e Adolescentes (Sepea), da qual é presidente. Desde 2002, é responsável pela versão francesa do Anuário Internacional de Psicanálise, publicado pelo International Journal.
Escreveu mais de 200 artigos, em diversas línguas. É autora de vários livros - entre eles, O Infantil ao vivo e Cartas ao objeto, lançados no Brasil pela Imago -, participa de destacadas obras coletivas: Devenir adulte (PUF, 1990); Neues vom Weib (Vandenhoeck & Ruprecht, 2000); Inventer en psychanalyse (Dunod, 2002) ; Mère et fille (InPress, 2002); Le traumatisme chez l’enfant (InPress, 2004); Le processu psychanalytique chez l’enfant (InPress, 2006); Les grands concepts de la psychologie clinique (Dunod, 2008). Atualmente, é chair internacional do Cocap (Comitê de Psicanálise de Crianças e Adolescentes) da IPA.
1 Itálicos nossos.
2 Cf M. Fain e D. Braunschweig em “La censure de l’amante” em La nuit, le jour. Paris: PUF, 1975.

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