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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.77 São Paulo Dec. 2009

 

TRADUÇÕES

 

Travestismo, transexualismo, transgêneros: identificação e imitação1

 

Transvestism, transsexualism, transgender: identification and imitation

 

Travestismo, transexualismo, transgénero: identificación e imitación

 

 

Simona Argentieri*

Membro efetivo e didata da Associazione Italiana di Psicoanalisi de Roma
Associação Psicanalítica Internacional - IPA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No decorrer de algumas décadas, tem havido uma dramática mudança, tanto psicológica quanto nos direitos civis, na convulsiva arena social e cultural em que os assim chamados “transexualismos” vivem, são definidos e se definem. Até a linguagem técnica mudou. No passado, diagnósticos de transexualismo e travestismo eram muito diferentes uns dos outros; enquanto falamos hoje de “disforia de gênero” ou usamos o termo abrangente “transgênero”, que muda o acento da pulsão sexual para a identidade de gênero. Em nosso trabalho clínico, os fenômenos do assim chamado “vestir-se como o outro sexo” infantil aumentaram, e há muito mais casos de perversões femininas - ou, ao menos, sua existência não é mais negada, ainda que possam ter nomes diferentes. Penso que a psicanálise deve se esforçar para recuperar seu espaço teórico e método específico de trabalho clínico, de modo a se afastar dos escândalos confusos da mídia, da sedução falsamente liberal e do conluio da reatribuição médico-cirúrgica de gênero sexual (atualmente permitida nas instituições públicas de muitos países) que, na verdade, remete o problema de volta ao nível biológico. Não podemos nos limitar a intervir, como acontece frequentemente, quando o dano já ocorreu.

Palavras-chave: Travestismo, Transexualismo, Transgêneros, Identificação, Imitação.


ABSTRACT

During the course of a few decades, there has been a dramatic change, both psychologically and in civil rights, in the convulsive social and cultural arena in which the so-called "transsexualisms" live, define themselves and are defined. Even the technical language has changed. In the past, diagnoses of transsexualism and transvestism were quite distinct from each other; whereas, today, we speak of "gender dysphoria" or we use the comprehensive term of "transgender" that moves the accent from sexual drive to gender identity. In our clinical work the phenomenon of so-called infantile "cross-dressing" has increased, and there are many more cases of feminine perversions - or, at least, their existence is no longer denied although they may go under different names. I think that psychoanalysis must work to laboriously retrieve its theoretical space and its specific method of clinical operation so as to remove it from the confused scandals of the media, and from the collusive, falsely liberal seduction of medical-surgical "re-assignment" of sexual gender (by now permitted in the public institutions of many countries) that, in fact, puts the problem back on the biological level. We cannot limit ourselves, as frequently happens, to intervening when the damage has already been done.

Keywords: Transvestism, Transsexualism, Transgender, Imitation, Identification.


RESUMEN

Durante el curso de hace pocas décadas, ha habido un cambio dramático, tanto en el ámbito psicoanalítico como en el derecho civil, en un escenario cultural y social en el que la vida de los nombrados transexuales se definen por sí mismos y lo son definidos. Incluso el lenguaje ha cambiado. En el pasado, diagnósticos de transexualismo y travestismo eran muy distintos entre ellos; mientras que hoy decimos "disforia de género", o solemos utilizar ya el comprendido término transgénero, lo que cambia el acento de la pulsión sexual a la identidad del género. En nuestro trabajo clínico el fenómeno de que los niños se vistan con las ropas del sexo opuesto ha aumentado, y hay muchos más casos de perversión femenina - o, por lo menos su existencia ya no se niega aunque se puede llevar nombres diferentes. Creo que la psicoanálisis debe trabajar muchísimo para recuperar el espacio teórico y específico de esos fenómenos en su método de trabajo clínico para que pueda removerlos desde el escándalo de la media, y del complot de la falsa seducción liberal de los cirujanos que hacen el cambio de género, (ahora ya permitido por instituciones públicas en muchos países), pues, en verdad, sólo ubica el problema hacia tras, a nivel biológico. Nosotros no podemos limitarnos a intervenir, como suele pasar, solamente cuando el daño ya ha sido producido.

Palabras clave: Travestismo, Transexualismo, Transgénero, Identificación, Imitación.


 

 

A recuperação do vértice psicanalítico

No decorrer de algumas décadas, houve uma dramática mudança, tanto em termos psicológicos quanto de direitos civis, na convulsiva arena social e cultural em que os travestis, os transexuais e os assim chamados transgêneros vivem, são definidos e se definem. Embora seja um fenômeno numericamente limitado, a atenção da mídia e o consequente envolvimento da opinião pública tem sido de “grande visibilidade”, ainda que concentrada em casos excepcionais a que a imprensa tem dado ênfase especial.

Mas além dessas situações extremas, com certeza tem havido um aumento enorme de casos de “trans”, bem como um número cada vez maior de pedidos mais discretos de “reatribuição de gênero sexual”, nos centros especializados (mais de cinquenta por mês só em um serviço de saúde pública no norte da Itália), que parecem sugerir um desejo de integração e de “normalidade”. É preciso examinar se tem havido realmente um aumento dessa patologia ou se simplesmente ela veio à tona. Ou, ainda, como tendo a pensar, se são as circunstâncias psicossociais reais que favorecem esse tipo de organização defensiva.

O problema é que, entre escândalos e litígios civis, o desejo de compreender tem diminuído cada vez mais. Há muitas opiniões e pouca reflexão, enquanto a batalha continua, principalmente no terreno midiático, sob a forma de slogans e declarações públicas; entre os apelos repressores dos pensadores convencionais e as exigências das associações e grupos dos “trans” por direitos legais e civis.

Penso, portanto, que a psicanálise deve recuperar laboriosamente seu próprio espaço autônomo teórico e clínico, distante da confusão e da chantagem das ideologias.

 

Um pouco de história

Do ponto de vista psicanalítico, os transtornos da identidade sexual de gênero levaram a princípio a rubrica da nosografia psiquiátrica do começo do século 20, segundo um critério prevalentemente descritivo e fenomenológico. Fazia-se uma distinção clara entre travestismo (homens com ânsia compulsiva de vestir roupas femininas, mas que queriam preservar sua masculinidade psicofísica), e transexualismo (homens que odiavam a própria anatomia e queriam desesperadamente mudá-la a qualquer custo para a anatomia feminina). Ambas as síndromes foram de qualquer modo colocadas firmemente na categoria das perversões.

A primeira questão é se travestismo e transexualismo podem ser reunidos em uma única síndrome. A segunda pergunta é sobre a adequação de enquadrá-los como perversões. Tudo depende inevitavelmente da nossa teorização a respeito do conceito de perversão. Em tempos pós-freudianos, o termo adquiriu, de fato, significados diferentes e progressivamente ampliados, diluídos e diversificados. A literatura sobre o tema é infinita, ainda que nem sempre seja fácil entender quanto os novos autores devem às afirmações primárias de Freud. Do ponto de vista das patologias, há uma disparidade de pontos de vista: alguns põem a transexualidade entre as psicoses (Socarides, 1970), outros a consideram um precursor do travestismo ou da homossexualidade (Limentani, 1979), um transtorno narcísico (Chiland, 2000, 2003; Oppenheimer, 1991) ou um transtorno borderline (Green, 1987); outros, seguindo Lacan, distinguem a transexualidade psicótica das formas neuróticas ou perversas de transexualismo.

 

O trabalho clínico hoje

O material clínico relativo a travestis e a transexuais é necessariamente múltiplo e fragmentário. Pessoalmente, tenho reunido informações tanto de experiências psicanalíticas quanto de psicoterapêuticas, e também de consultas e supervisões. Inevitavelmente, há poucos casos de psicanálise clássica. Como se sabe, esses pacientes dificilmente buscam ajuda do nosso instrumental, tanto por seus sintomas serem egossintônicos como também por serem dominados pela concretude da “atuação”2 no corpo e sobre o corpo. Com maior frequência, e infelizmente, nossa terapia ocorre quando o dano já ocorreu (o fait accompli, de J. Laplanche, 1980), depois do fracasso de outras estratégias (Quinodoz, 2002). Isso se confirma pelas consultas em centros especializados, cujas informações, embora valiosas, dizem respeito a pacientes já autosselecionados e que só raramente se comprometem com uma análise clássica. Por outro lado, sou muito cética a respeito do trabalho clínico dos centros que realizam “mudanças” de sexo, em que os pacientes sabem que precisam convencer o psicólogo sobre sua autêntica motivação. Além do mais, devido às condições precárias dos nossos serviços de saúde, geralmente só há terapia de grupo ou entrevistas individuais ocasionais de tipo cognitivo, que têm pouco significado para nós.

Porém, acho que material clínico indireto é útil, bem como “descobertas ocasionais” durante uma psicanálise ou psicoterapia empreendida por outros motivos.

É importante tentar entender analiticamente a dinâmica relacional das pessoas que acompanham, amam ou às vezes exploram sexualmente travestis e transexuais na “zona cinzenta”, no limite da assim chamada normalidade.

Precisamos lembrar também que a peculiaridade da abordagem psicanalítica é o interesse muito maior nas fantasias que acompanham a sexualidade do que no comportamento manifesto.

 

O caso de Letizia/Leo

Leo me telefona por insistência do médico, exasperado com os pedidos insaciáveis de esteroides e dietas que lhe aumentem a massa muscular, sempre menor do que Leo gostaria, apesar de sessões diárias árduas e exaustivas na academia. Leo nasceu há 27 anos, com o nome de Letizia,3 o que parece uma ironia, em vista de sua constante infelicidade.

Leo vem para uma consulta comigo: um jovem muito pequeno, de rosto simples e limpo, um belo sorriso e uma leve barba. Está vestido simplesmente, de jeans e camiseta preta, que mostra seus bíceps; seus gestos e postura são espontaneamente masculinos e me dirijo naturalmente a ele como homem. Percebo sua necessidade de dignidade e de respeito.

Ele começa dizendo que não sabe realmente porque veio me consultar, mas sente que “algo não está certo”. Conta-me que sempre se sentiu só e incompreendido, mas a verdadeira tragédia foi quando começou a menstruar e foi forçado a admitir ser uma menina. Daquele momento em diante, quis trocar de sexo - o que finalmente conseguiu há três anos, com sacrifício, em um serviço público. Infelizmente, tem havido inúmeras complicações médico- cirúrgicas que lhe causaram sofrimento físico indizível, decepção e profundo rancor.

Não lhe pergunto nada sobre os aspectos técnicos das cirurgias, por medo de parecer invasiva ou voyeurista, e penso que isso me capacita a concentrar a atenção dele em outros aspectos da sua história.

Gradativamente, tenho a impressão de uma pessoa sensível, inteligente, levemente melancólica - em outras palavras, um neurótico médio, que poderia se beneficiar de uma análise, a não ser pelo núcleo relativo à sua identidade de gênero, cuja resistência é a de uma parede de rocha dura. Certa vez, quando falava do seu passado, me dirigi a ele usando um pronome feminino: Leo congelou totalmente. “Isso não está em discussão”, parecia dizer sua expressão.

Ele me contou depois que durante muito tempo não teve relações amorosas nem sexuais; evitava até mesmo se masturbar, porque estava descontente com seus órgãos genitais. Quando adolescente, se apaixonou por uma jovem que não estava interessada nele. No momento, mantém uma relação profunda com um homem, um profissional dez anos mais velho. Mais precisamente, um transexual também - uma mulher que se tornou homem. Ele lhe foi apresentado pelo psicólogo do serviço público de saúde (!), com quem fez um longo período de terapia de grupo antes e depois da “reatribuição”.

Saliento que, enquanto para ele o sexo anatômico é extremamente importante, parece que o sexo da pessoa que ele ama não tem o mesmo peso. “Sim, foi fácil! “Nunca pensei nisso”, diz ele, impressionado com minha observação. Também penso, mas não lhe digo, que eles construíram uma parceria bastante sólida, baseada em ajuda e afeto mútuos mais do que em sexualidade e amor.

Leo então me contou que sua mãe, dedicada e angustiada, cuidou dele enquanto estava hospitalizado, ainda que fosse contra a cirurgia, o que provocou finalmente uma pequena reconciliação entre os dois. Só depois de muitos meses ele me contou que removera os seios, o útero e os ovários, mas não quisera fazer cirurgia plástica nos genitais. “Isso não era importante”, disse calmamente.

Não tinha planos de operar os genitais de modo a combinarem com sua nova identidade; e não penso que isso se devesse unicamente à decepção pelo caos causado pelos cirurgiões. Porém, ele continua obcecado pela inadequação de sua massa muscular e pela falta de pelos no rosto - os assim chamados caracteres sexuais secundários, que deveriam transmitir uma imagem corporal crível e reconhecível do seu self masculino para outras pessoas em sua vida cotidiana.

Na verdade, na vida de Leo tem havido pouco espaço para a sexualidade enquanto prazer - seja por meio de masturbação ou como encontro com outra pessoa. No nível consciente, ele perseguiu desesperadamente seu projeto de se transformar em homem - ou melhor, de ter um corpo masculino que correspondesse aos fatos da sua vida -, mas, em nível inconsciente, precisou destruir e eliminar sua parte feminina, equivalente a uma parte “má” intolerável, que não podia ser integrada. Sua pseudoidentidade masculina, de tipo imitativo, precisa servir para manter distante a ameaça de ansiedades persecutórias. A equivalência profunda é entre partes más e pulsões, expressas na concretude da carne. O verdadeiro drama é que, à medida que a terapia prossiga, ele terá de se haver inevitavelmente com a impossibilidade de se tornar um homem de verdade, e, por outro lado, com a irreparabilidade da destruição que perpetrou em seu corpo de mulher, com sua própria cumplicidade; e, especialmente, com a renúncia definitiva a ter filhos.

 

O caso de Claudio/Claudette

Claudio é um homem grande, de 43 anos, com rosto de menino pequeno. Veio à consulta, de uma pequena cidade do sul, por insistência da esposa. É proprietário de um pequeno negócio bem-sucedido e está casado há oito anos.

De modo infantil e autoacusador, mas buscando minha indulgência, conta que tem um “hábito desagradável”: em seu tempo livre gosta de se vestir exatamente como uma empregada doméstica, do casquete na cabeça aos sapatos. Há algum tempo, usa também sutiã e calcinhas por baixo do uniforme. Gosta de fazer todo o trabalho doméstico assim vestido. Às vezes, enquanto sacode os tapetes, deixa os vizinhos o verem da janela ou da varanda, em exibição que aumenta seu prazer. Nessas ocasiões, nunca se masturba.

Sua esposa aguentou suas peculiaridades por muito tempo (!), mas recentemente se rebelou, porque Claudio queria fazer amor com ela vestido desse jeito. Ele diz que a vida sexual deles tem sido reciprocamente satisfatória.

A meu pedido, ele então conta uma história familiar infeliz. Seu pai esteve “sempre” doente com uma “depressão atípica”. “Ele deve ter me transmitido um pouco”, ele diz, buscando minha confirmação. Na realidade, imagino que o pai de Claudio seja um psicótico, que não foi adequadamente tratado e tornou-se crônico. Parece que ele transmitiu ao filho apenas ansiedade e confusão. Quando Claudio ainda era pequeno, o pai lhe contou que, ao frequentar prostitutas, contraíra uma doença venérea. “Por isso que ele só tinha um testículo! Ele me mostrou”, foi seu comentário, como se isso fosse uma prova irrefutável.

Sua mãe não era afetiva, e os avôs com quem passava grande parte do tempo, eram frios, duros e tirânicos. Ele foi mandado para uma escola religiosa onde os padres eram muito severos. Certa vez, ele me contou, quando pequeno, beijara outro menino. Fico surpresa de que algo tão pequeno, comovente e banal fosse contado como censurável - e talvez ressignificado après-coup como “sintoma”. A única relação afetiva que ele teve, por volta dos 18 anos, foi com uma empregada doméstica mais velha, com quem fez sua iniciação sexual. “Era um belo segredo”, diz Claudio. A mulher era muito doce; vestia-o amorosamente com as roupas dela, e então eles faziam amor.

Claudio contou a história com simplicidade e inocência; queria que eu entendesse como, para ele, o momento de vestir a fantasia era belo e importante. Ele não tinha a menor noção dos aspectos grotescos e inadvertidamente cômicos da questão.

Durante o decorrer das consultas, Claudio paradoxalmente parece ganhar coragem. Encontra na internet um grupo de “homens iguais a ele”, comunicam-se todas as noites; finalmente, ele se sente compreendido, justificado e reconhecido como igual. Certa noite, decide dar outro passo: encontrar-se com os novos amigos - ou melhor, novas amigas -, “travestido”, numa pizzaria. Obviamente, terá de ter um novo nome: ele escolhe Claudette.

Contou-me isso com tal prazer e felicidade que fico comovida e, ao mesmo tempo, preocupada. O encontro foi um “sucesso”. Mostrar-se como mulher e ser tratado como tal pelas amigas e por estranhos o faz sentir-se genuína e extraordinariamente feliz. Ele se esforça para explicar que sexo não faz parte disso tudo. Ele continua a amar e a desejar sua esposa. Ele só espera que ela “o mantenha assim”, talvez até reprovando e punindo-o.

Na verdade, Claudio não continua sua análise. Seu problema é totalmente egossintônico; até as fantasias de punição muito provavelmente satisfazem aspectos masoquistas. O conflito é totalmente externo, com uma esposa que não o aceita, sem que ele consiga entender por quê. Foi a esposa quem o forçou a vir à consulta - se bem que, basicamente, ele espera convencê-la. Com tristeza, percebo que esse homem bom e gentil, ingênuo e inocente, está entregue às mãos da sua esposa como uma criança; porém, não consegue renunciar a vestir sua fantasia - a única área em que ele encontra sustentação,4 emoções e ternura.

Penso que o caso de Claudio/Claudette é realmente de travestismo “clássico”: ele se sente masculino, tem uma sexualidade masculina e se preocupa com seus genitais; mas foi forçado a fugir da identificação com um pai doente e estragado. Precisou recorrer a uma identificação feminina - ou, melhor, feminina fálica, ressignificada a posteriori pela relação em espelho sensual e emocional com a empregada doméstica. Quando “brinca” conscientemente de ser mulher, ele inconscientemente traz para a cena um par confuso mãe/criança, e mantém seu pênis escondido, como um segredo, dentro das roupas de mulher. Faltou a Claudio a experiência fisiológica de narcisismo primário e de ser visto como belo e perfeito pela mãe, muito antes dos seus problemas de definição sexual de gênero.

Penso que, na esteira da ansiedade de castração, ele organizou a solução perversa baseado na negação e na consequente cisão discrepante do ego. Seu travestismo é a solução patológica inofensiva do complexo de Édipo, que evita reconhecer a diferença entre homem e mulher, o que implicaria o doloroso reconhecimento de não ser “a criança maravilhosa” e ficar sozinho.

 

Questões metapsicológicas

A partir destas breves anotações clínicas, penso que ficam evidentes as similaridades entre Letizia/Leo e Claudio/Claudette. Ambos exprimem seu “direito” de serem vistos e reconhecidos pelos outros, de acordo com suas próprias imagens internas. Ambos carregam a exigência/esperança de alcançar uma solução “impossível”. Ambos mostram um entrelaçamento de problemas identificatórios e sexuais em níveis edípico e pré-edípico. As diferenças, porém, são ainda mais significativas e, a meu ver, nos permitem fazer algumas considerações gerais a respeitos dessas patologias.

A estratégia de travestismo preserva desse modo a sexualidade e o uso das pulsões, acompanhada por intensa erotização do corpo travestido e, com não pouca frequência, cotas mais ou menos explícitas de masoquismo. Transexualismo, por outro lado, só fornece a solução desesperada e extrema de sacrificar a sexualidade com a parte do corpo que a representa. Como mencionei no caso de Leo, o projeto dele é a destruição dos seus órgãos femininos.

É possível objetar, porém, que transexuais masculinos (e às vezes até femininos) querem cirurgia plástica para “construir” para si um simulacro de genitais do sexo desejado. Em minha opinião, a questão não muda, porque também nesses casos o primeiro passo é a remoção do pênis e dos testículos e, com eles, a capacidade de orgasmo. O Eros sobrevivente é assim confiado à sensualidade pré-genital, “imitativa”, segundo Eugenio Gaddini (1989), superficialmente sensorial. A pseudoidentidade feminina resultante tira o prazer acima de tudo do fato de agradar e de dar prazer aos homens, porque isso fornece uma autoimagem reasseguradora que é amorosa e amada.

A diferença mais importante diz respeito ao nível de desenvolvimento em que a patologia se organiza. Travestismo, para mim, equivale ao estágio mais evoluído dos processos de separação-individuação, correspondendo à fase e área transicional no sentido winnicottiano. Não é coincidência que o sintoma se exprima principalmente nas roupas e tecidos (materiais inanimados, portanto) e use estratégias do brincar e da ilusão compartilhada. Penso nos trabalhos interessantes de Phillys Greenacre (1969/1979, 1970/1971) e de E. Gaddini e R. Gaddini De Benedetti (1974) relativos à patologia do objeto transicional e da comparação entre fetichismo infantil e objeto transicional patológico excitante. O processo de pensamento do transexual, ainda que limitado ao núcleo da identidade de gênero, é, ao contrário, vinculado à concretude do corpo; fica mergulhado na realidade e é insensível ao jogo da ilusão. A teimosa obstinação de buscar uma solução no nível biológico é sintoma da falta de acesso ao simbólico, enraizado numa área pré-simbólica de separação incompleta entre self e não-self.

Minha resposta às questões iniciais, portanto, é que precisamos continuar fazendo uma distinção entre travestismo e transexualismo, e que ambos devam ser considerados, ao menos teoricamente, como perversões.

Contrapondo-se à impiedosa e violenta estratégia de destruição anatômica, às vezes penso a respeito da fascinação, sedução, encantamento, do grande prazer inofensivo da “ilusão compartilhada” que as ambiguidades de identidade masculino/feminino sempre nos têm oferecido por intermédio do mundo do teatro, da arte e da fantasia. Sob os holofotes, o fantasiar-se exerce um mágico fascínio em todos nós; suspendem-se momentaneamente as rígidas leis da realidade, mas sem enlouquecer; o ator “travestido” exprime algo mais, possui um charme e uma atração muito maiores do que a mulher real.

 

Estrutura

Levando em conta as diversas formas ambíguas, mescladas e fugazes, penso que ainda devemos reconhecer como base do quadro clínico de travestismo e transexualismo a negação, mecanismo de defesa típico da perversão, e a consequente cisão estrutural discrepante do ego. Isso explicaria, tanto em transexuais quanto em travestis, o contraste paradoxal entre a parte do ego, que funciona relativamente bem e está em contato com a realidade, e o delírio circunscrito relativo ao gênero sexual.

 

Na dimensão feminina

O transexualismo é uma refutação explícita da antiga suposição de que as mulheres estão isentas da patologia das perversões.

Na minha experiência, a organização psicopatológica do transexualismo é substancialmente a mesma em homens e em mulheres: a convicção delirante - um delírio circunscrito típico - de pertencer ao sexo oposto, e a convicção compulsiva de recuperá-lo, mascara a fantasia inconsciente de agressão à parte “má” do corpo dependente da pulsão. Essa parte, vivenciada como ameaçadora e persecutória, corresponde em nível consciente à identidade de gênero a eles conferida no nascimento; para eles, entretanto, “masculino” ou “feminino” só correspondem a uma cisão defensiva, a uma pseudodistinção entre aspectos parciais do self e do outro.

Mais uma vez, em minha experiência, não penso ter jamais encontrado quaisquer casos reais de travestismo em mulheres adultas ou crianças. Certamente, há mulheres que gostam de se vestir em estilo masculino, mas isso faz parte de um elemento secundário ou estratégico, que visa alcançar um objetivo real e concreto. Nunca conheci mulheres que precisassem se travestir para fazer amor, ou meninas pequenas com obsessão de se vestir como meninos ou que compulsivamente aspirassem a figuras masculinas idealizadas.

No momento, não tenho respostas. Provavelmente, devemos continuar buscando uma explicação para a distribuição desigual de travestismo entre os sexos por meio das diversas soluções relativas à ansiedade de castração.

 

Níveis muito primitivos

O conceito de identidade de gênero refere-se aos estágios arcaicos da vida, quando o senso de pertencimento ao sexo masculino ou feminino começa a se organizar na esfera das relações com os pais, nos níveis pré-verbais e sensoriais. O fato de o desenvolvimento fazer parte do tema mais amplo de níveis muito primitivos de desenvolvimento representa, como sabemos, a ampliação mais significativa de horizontes desde Freud. A partir dos anos 1940, na verdade, a psicanálise tem dado muita atenção aos níveis assim chamados pré-edípicos, narcísicos e às patologias que deles decorrem.

A maneira pela qual a questão é formulada e confrontada depende inevitavelmente de como os diversos autores conceituam os níveis muito primitivos. Por exemplo, Winnicott postula uma fase muito primitiva da existência, que não é só pré-edípica, mas também pré-conflitiva, em que as pulsões não entram em jogo. Isso se opõe radicalmente ao modelo kleiniano, que considera as pulsões em atividade desde o nascimento. Similarmente, há diferentes modos de conceituar a ansiedade nos níveis muito primitivos: como ansiedades catastróficas de aniquilação (Winnicott, 1956), de integração/não integração (Gaddini 1989), de perseguição (Klein). Consequentemente, há modos diferentes de tentar explicar o transexualismo e o travestismo (ou transgênero, na medida em que se especifica o significado), dando maior ou menor importância às vicissitudes das pulsões e ao que acontece antes ou depois.

 

Agressividade e narcisismo

Há concordância geral de que na raiz dessas patologias há dano narcísico, uma autoimagem inadequada e menosprezada, que tenta reparação maníaca. As fantasias que acompanham o travestismo ou, mais, a mudança de sexo, são vivenciadas como portadoras da segurança e do bem-estar, da consolidação do “senso de self”, do qual fala Winnicott. Mas, como A. Oppenheimer (1991) comenta, no transexual há também o ódio inconsciente aos pais, privados da sua principal função generativa. O “novo nascimento” comemora esse triunfo narcísico e garante “benefícios narcísicos”.

Quando se compara a psicopatologia atual com a do passado, penso que devemos levar em conta o papel que, acompanhada da libido, a agressividade assumiu, apesar do estatuto teórico atribuído a ela pelos diversos autores de Freud em diante. Por ora, sabe-se que não é Eros que motiva o perverso, mas o desespero e o rancor com o inexorável fracasso das experiências de gratificação, o que o condena à repetição compulsiva e infinita. Em travestis, e também em transexuais, não é a libido que motiva a solução perversa, mas a necessidade premente de exorcizar a ansiedade relativa à destrutividade na relação. Do meu ponto de vista, a fantasia de reparação maníaca por meio da construção da anatomia do sexo oposto é secundária. O médico e o cirurgião devem ser as pessoas a executá-la, e, o psicólogo, a testemunha complacente.

Um sinal revelador da identidade de gênero, segundo penso, é a postura: o modo de andar e de se movimentar dos transexuais é tão espontaneamente similar ao do sexo desejado que parece ter sido inscrito muito precocemente na imagem corporal, nos ossos e nos músculos. Em contraste, há a ênfase exagerada dos travestis, a qualidade teatral que eles exibem em sua atitude e em seus corpos.

Dou como exemplo o caso de Caterina, 22 anos, estudante de engenharia. Ela veio à consulta depois de interromper uma psicoterapia cognitiva. “As coisas que eles me perguntaram sobre minha infância não significavam nada para mim. Tenho outros problemas”, começou ela, já desesperançada. “Sempre” soube que havia algo errado com seu corpo feminino. Tentou buscar alívio fazendo amor com uma mulher, mas isso não resolveu. Só a ginástica. “Não sou lésbica!”, diz, indignada.

Caterina tem aparência agradável, veste-se bem e tem cabelos longos; não é absolutamente coquete, mas também não mostra qualquer característica masculina. Depois da consulta, acompanho-a até a porta; enquanto ela segue pelo corredor, observo seu modo de andar, mais eloquente do que qualquer discurso. Ela se movimenta exatamente como um menino, e percebo que não poderei ajudá-la do único modo que ela gostaria.

Outro aspecto psicofísico de gênero sexual, que mereceria um artigo exclusivo, é a voz.

Naturalmente, conjeturamos a respeito das relações primitivas desses pacientes com seus pais. Penso que não devemos colocar realce excessivo no aspecto genético. Inevitavelmente, descobrimos elementos genéricos, não específicos, que podem ser encontrados em quaisquer patologias. Penso na monotonia exasperadora dos relatos clínicos atuais, todos mencionando mães possessivas e pais ausentes em quase todos os tipos de patologia, em ambos os sexos. É óbvio que travestis e transexuais tiveram uma relação fusional não resolvida com a mãe, e que o pai não desempenhou adequadamente sua função como “terceiro”. Infelizmente, isso não indica, nem poderá indicar depois - em uma vinculação mecânica post hoc ergo propter hoc -5 como “causa” de síndromes específicas.

Quanto mais se investiga retrospectivamente, na verdade, mais se esbarra em angústias de separação nos elementos básicos, mas genéricos do psiquismo. Talvez devamos reconsiderar como se sobrepõem os dois níveis, edípico e pré-edípico, com que “dotação” se chega à encruzilhada edípica; como ocorreram os eventos evolutivos precedentes, começando pela sensualidade indiferenciada do autoerotismo primário e os processos de separação-individuação e de identificação-desidentificação primárias; como foram articuladas as primeiras organizações defensivas relativas às ansiedades arcaicas de integração-não integração, de perda do self e de aniquilação.

Em outras palavras, devemos tentar explorar uma vez mais em que medida estágios sucessivos de crescimento foram condicionados pelo que aconteceu antes; e também, por intermédio de um “efeito retroativo”, quanto o “depois” reorganiza e reconstitui o sentido do “antes”.

A meu ver, é assim que a sexualidade mantém sua importância como elemento estruturante, que caracteriza a perversão, igualmente e sobretudo, quando é sacrificada. Afinal de contas, a experiência mostra que no âmbito do travestismo e do transexualismo há casos com estrutura típica perversa, bem como casos mistos, formas passageiras, mais plásticas e móveis. Podemos encontrar pacientes com organizações borderline, portadores de diversos tipos de sintomas perversos, tais como os que ocasionalmente frequentam prostitutas ou travestis - às vezes, pedófilos ou sadomasoquistas -, nos quais os traços perversos são apenas sintomas.

Por exemplo, um homem, operário especializado, 43 anos, casado há três, com duas amantes fixas e outras ocasionais, vem muito preocupado à consulta. Desde que sua mulher engravidou, ele sente às vezes um impulso de se vestir como mulher e ir se prostituir na rua. Escolhe homens idosos, com os quais pratica felação.

Pareceu-me evidente que sua iminente paternidade ocasionou a descompensação de uma identidade sexual precária, até então compensada por atuação sexual mais aceitável em nível consciente (Pazzagli, 1999).

Às vezes, durante a análise pode-se observar a passagem de um modo perverso de atuação para sofrimento hipocondríaco ou comportamento de adição a drogas; isso não tem um sentido transformador, é apenas um tipo econômico de oscilação na esfera do funcionamento arcaico e autárquico (Argentieri, 1994).

Penso que foi o que aconteceu com um paciente meu que sofria de alopecia areata, vitiligo e crises típicas de asma. Ele tinha o hábito de frequentar de vez em quando travestis, que praticavam felação nele. Penso que essa era expressão do deslocamento de uma tensão intolerável, que não correspondia a qualquer mudança estrutural.

 

Conluio: uma nova forma de conformismo

Penso que devemos dizer bem claramente que reconstrução - ou, a politicamente correta, “reatribuição” - é uma ilusão ou, melhor ainda, uma fraude, que consiste em destruição cirúrgica irreversível. É uma cisão concreta, por meio de um bisturi.

Certamente, problemas de identidade de gênero sempre existiram em todas as eras e culturas. Hoje, porém, graças à tecnologia moderna, é possível pôr em prática essas fantasias eternas. Em um tipo de conluio maligno, uns com os outros, os primeiros responsáveis são os médicos - endocrinologistas e cirurgiões -, que não têm a humildade de admitir as limitações naturais de cada ato terapêutico. Mais ou menos de má-fé, talvez em nível pré-consciente, e com uma espécie de “complexo de Deus”, eles, arrogantemente, se declaram criadores de novas identidades a pedido. Quanto aos psicólogos, estão geralmente confinados ao papel de meros agregados da equipe. Que tipo de psicoterapia é possível, quando já se disse aos pacientes que, para poderem fazer tratamento médico-cirúrgico, precisam, antes, “elaborar” seu desejo de mudança de sexo? Os psicólogos se arriscam a serem usados por seus clientes apenas para confirmar o que eles, clientes, já têm certeza. Os psicanalistas geralmente se limitam a intervir quando o dano já ocorreu, com reflexões refinadas, mas hesitantes, e se mantendo fora da rixa.

O conluio mais sutil é dos próprios pacientes, que põem todas as suas energias a serviço do seu projeto; obstinadamente tenazes, eles querem confinar seu sofrimento ao corpo e só aceitam tratamento no plano anatômico. Nesse sentido, o papel dos diversos “movimentos” de liberação, orgulho, solidariedade, estudo, etc. é de importância primordial. Graças à função reforçadora do grupo, a questão muda para o nível dos direitos legais e todo o conflito se dirige “para fora”, por meio de agressividade e controvérsia contra a sociedade repressora.

Um argumento que escuto frequentemente em apoio à cirurgia de mudança de sexo é que esses pacientes, de qualquer modo, são irremovíveis e têm grande risco de suicídio e de colapso psicótico: ainda que destrutiva, a cirurgia pode ser assim o risco menor. Porém, a partir da minha experiência limitada, tenho observado que a necessidade não se apazigua. A princípio, o sofrimento se ameniza, contudo, quando depois de anos de tortura física, sofrimento psicológico e sacrifícios financeiros percebem que a “reconstrução” ou, melhor, a “reatribuição” é impossível e que a destruição é irreversível, eles ficam então consumidos por raiva, desespero, ansiedade e, acima de tudo, por ressentimento pela decepção que sofreram.

Outras pessoas pensam que se poderia usar a estratégia alternativa de permitir a mudança de gênero sexual nos documentos, sem as mudanças anatômicas necessárias. Isso seria com certeza menos drástico, mas favoreceria a aliança com as defesas em lugar de atender às necessidades do paciente. Outra estratégia defensiva consiste em lançar todos os casos de “neossexualidades” na mesma mistura, e usar insistentemente a questão da homossexualidade como escudo protetor abrangente para todas as exigências de reconhecimento social.

Evidentemente, no plano fenomenológico, problemas de pulsão e de gênero sexual, de travestismo e transexualismo, de homo e heterossexualidade podem se entrelaçar e se sobrepor em casos individuais; mas é inútil, na verdade danoso, confundi-los também no plano teórico; por exemplo, o lugar-comum habitual de que a “feminilidade” dos gays os torna “menos violentos e mais simpáticos” - um tipo de equivalência estereotipada entre homens homossexuais e mulheres. Com respeito aos próprios homossexuais, tanto homens quanto mulheres, parece haver uma resposta variável a essas simplificações. Às vezes, eles as encorajam, porque é vantajoso aliar-se à força numérica dos novos movimentos para a conquista de direitos civis e culturais - em outras ocasiões, sua reação é de constrangimento e rejeição.

Em toda essa não tão inocente confusão, boa parte da responsabilidade repousa na cultura atual, especial e infelizmente, à parte esclarecida e progressiva que se aterroriza com a ideia de ser acusada de homofobia e de racismo, e que imediatamente endossa qualquer ambiguidade redutiva, declarando apressadamente uma solidariedade que pouco lhe custa.

O Dizionario di Psicanalisi lacaniano (Chemama, & Vendermersch, 2004) declara que mudanças cirúrgicas de sexo são “uma psicose social que funciona na dimensão sexual”. Por exemplo, não há sentido em falar de liberdade de “escolha” a respeito da nossa orientação sexual; se for o caso, nós é que “somos escolhidos” pela vida a encontrar soluções mais ou menos harmoniosas e felizes, de acordo com os fatos da vida e da história relacional de cada um de nós. Como reação à condenação brutal, mas explícita, da parte mais conservadora da sociedade, surgiu um novo conformismo: da condenação moralista para uma hipocrisia normalizadora; da repressão para o conluio; duas maneiras opostas de fugir à responsabilidade de ter opinião própria, refugiando-se num curto-circuito de sentidos. A mesma crítica se aplica ao uso de argumentações biológicas: hoje, assim como ontem, ressaltando o papel de genes e de cromossomos, reduz-se o processo de psicossexualidade a um destino inevitável e, portanto, não analisável.

Penso que, para a maioria, é menos perturbador afirmar sua mente aberta a respeito das cirurgias de mudança de sexo - baseadas na ideia de correção de um “erro” da natureza sobre supostas bases genéticas biológicas imutáveis, eliminando assim o “transtorno” psicológico preocupante - do que encarar realmente a homossexualidade, questão que diz respeito a todos nós, com as relativas complexidades da vida e que, certamente, não pode ser eliminada pelo corte do bisturi.

 

A zona cinza

Na nossa assim chamada sociedade de bem-estar, a zona cinza das situações ambíguas, no limite ilusório entre normalidade e patologia, espalha-se em grandes proporções e só ocasionalmente nos deparamos com ela em nossos consultórios psicanalíticos. Penso, por exemplo, no enorme consumo - sistemático ou ocasional - de pornografia, acima de tudo, de vídeo pornografia, com suas diversas nuances perversas, que vão do sadomasoquismo à pedofilia; das visitas a certos sites de reputação duvidosa da internet - talvez no escritório, ‘por acaso’, por curiosidade ou tédio.

Tudo isso ocorre no clima de “tolerância” da violência distraída e desapaixonada de nossa era; no pano de fundo da pseudonormalidade estatística feita por todos - ou, ao menos, por muitos.

Continuando a lista de mudanças, atualmente é cada vez mais difícil encontrar a diferença clássica entre transexual e travesti. Esses critérios diagnósticos perderam com certeza seu significado, quando aplicados aos “viados” com sua mescla de pobreza, comércio, confusão de gênero. Poderiam ter ainda menos uso para explicar a organização psíquica dos seus clientes, cujo número aumenta cada vez mais e que, de muitas maneiras, poderiam ser absolutamente “qualquer pessoa”. Também nos corpos dessas pessoas “em trânsito”, vemos que foi usada uma grande mistura de soluções; uma colcha de retalhos de depilação e bigodes, seios artificiais e genitais masculinos, hormônios intermitentes, etc.

Não penso que possamos encontrar, em qualquer dessas pessoas, a estrutura típica de “cisão”, que destacamos nas perversões clássicas; quando muito, são microcisões ou regressões à ambiguidade que estão em funcionamento e que agora são endêmicas na psicopatologia da vida cotidiana. Além disso, as duas famosas diferenças da encruzilhada edípica - entre criança e adulto, e entre homem e mulher - têm hoje muito menos valor; na tendência defensiva geral para a indiferenciação, elas parecem menos significativas para a construção da identidade. Tudo isso facilita a orientação para uma organização travesti ou transexual em pacientes que precisam negociar entre ansiedades e defesa.

Em um quadro tão confuso, estão faltando os parâmetros metapsicológicos que antes nos guiavam.

Não acredito que a psicanálise deva ser regulatória ou autoritária, algo que nossa disciplina não deve nem pode ser. Nem sinto qualquer necessidade pessoal de estigmatizar soluções de vida, as negociações entre pulsões, ansiedades e defesas que todos realizam ao seu próprio modo, de acordo com as circunstâncias que a vida lhes oferece.

Meu objetivo, na verdade, não é fazê-los mudar de ideia, ou mesmo “redimi-los” ou “curá-los”, mas trazer seu drama de volta para o campo simbólico, no lugar de estarem acorrentados à concretude da carne.

Desconfio dos que afirmam fazer uma concha defensiva a partir do seu comportamento sexual, como se a apresentação de um casal heterossexual fosse garantia de sanidade e de normalidade. Mas desconfio também dos que gostam de exibir sua solução atípica pessoal.

A tarefa do psicanalista, seja requisitado por meio de uma análise ou de uma consulta, só pode ser a de ajudar cada pessoa a tolerar dúvida, ambiguidade, incerteza; de dar tempo para a compreensão das próprias ansiedades, em vez de fugir em direção à atuação. Porém, o que não devemos fazer é endossar a compreensão errônea de que um “erro” biológico da natureza está na raiz de seu destino, e que a solução deva ser efetuada no corpo por meio da violação com bisturis e hormônios.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Simona Argentieri 
Via G. B. Martini 6, 00198
Roma, Itália
Fone: (39 06) 8416313
E-mail: simonaargentieri@libero.it

Recebido em: 27/08/2009
Aceito em: 04/11/2009

 

 

Tradução de Tania Mara Zalcberg
* Médica e psicanalista. Membro efetivo e didata da Associazione Italiana di Psicoanalisi de Roma e da Associação Psicanalítica Internacional - IPA.
1 Versão condensada de texto integrante da coletânea Transvestism, transsexualism, transgender in the psychoanalytical dimension, editada por Giovanna Ambrosio. © (2009) International Psychoanalytical Association.
2 Acting out. (N. do T.).
3 Do latim, Lætitia: júbilo, alegria. (N. do T.).
4 Holding. (N. do T.).
5 “Depois disso, logo por causa disso.” Em Escolástica, designação do erro que consiste em tomar por causa o que é apenas um antecedente. (N. do T.).

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