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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.77 São Paulo Dec. 2009

 

TRADUÇÕES

 

A mãe como terceiro, em après-coup, para fazer da menina uma mulher1

 

The mother as a “third-party”, in après-coup, to make the girl a woman

 

La madre como tercero, en el après-coup, para hacer de niña a mujer

 

 

Bernard Penot*

Membro efetivo e professor de formação da Société Psychanalytique de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud estabeleceu (1932/1976) que para tornar-se mulher, a menina tinha que fazer uma "mudança de objeto". Sem dúvida muito mais do que para o menino, é necessário para a menina que ela comece por realizar uma verdadeira transferência da relação libidinal inicial com sua mãe para seu pai. Porém, é preciso também que esta transferência seja acompanhada après-coup por um outro processo, que vai condicionar a realização mais ou menos bem sucedida desta transferência. Do próprio fato que o pai tenha se tornado objeto libidinal de predileção para a menina, cabe à mãe, a partir deste momento, intervir como terceiro para mediar de maneira eficaz esta nova relação libidinal menina-pai. Alguns fragmentos de análise poderão ilustrar este argumento.

Palavras-chave: Après-coup, Feminilidade, Maternal, Mediação terceirizada, Transferência.


ABSTRACT

Freud (1932) established that, to become a woman, the girl had to carry out a “change of object”. Undoubtedly more than the boy, she has to forego a genuine transference of the primary libidinal relation she had with her mother onto her father. However, this transference has to be followed in after-effect (après-coup) by another process that will determine its outcome. Indeed, the very fact that the father has become the girl’s preferred libidinal object means that the mother will have to intervene as a “third-party” in order to mediate efficiently this new father-daughter libidinal relationship. Some clinical vignettes will be used to illustrate this point.

Keywords: After-effect action, Femininity, Maternal, Mediation (by a third party),Transference.


RESUMEN

Freud estableció (1932/1976) que para convertirse en mujer, la niña tenía que hacer un " cambio de objeto", lo que sin duda le cuesta mucho más al niño que a la niña. Para eso se hace necesario que ésta empiece a realizar una verdadera tranferencia de la relación libidinal inicial con su madre hacia su padre. Sin embargo, es importante que esta tranferencia se la acompañe après-coup por otro proceso, que va a condicionar la realización algo exitosa de esa transferencia. El hecho de que el padre se haya convertido en el objeto libidinal de preferencia de la niña, le concierne a la madre, a partir de este momento, intervenir como tercero para mediar de manera eficaz esta nueva relación libidinal niña-padre. Algunos trechos de análisis podrán ilustrar este argumento.

Palabras clave: Après-coup, Femenilidad, Maternal, Mediación tercerizada, Transferencia.


 

 

Freud, em sua 33ª conferência sobre “A feminilidade”, declara: “É da especificidade da psicanálise não pretender descrever o que é a mulher - tarefa que ela não poderia cumprir -, mas sim de examinar como ela se torna mulher, como a mulher se desenvolve a partir da criança com predisposição bissexual” (1932/1976, p. 144).

Simone de Beauvoir lhe faz eco, proclamando, em O segundo sexo (1949), seu célebre: “Não se nasce mulher, torna-se”, indicando que se trata de uma conquista. Nesse mesmo momento, Lacan retoma a noção freudiana de après-coup, verdadeira máquina de guerra contra a ótica desenvolvimentista genética então dominante na IPA - conforme Daniel Widlöcher ressaltou.

Jacques André em relatório notável (2009) não cessa de mostrar que o desenvolvimento da psique humana não acontece segundo uma modalidade linear contínua, como um simples crescimento, mas muito mais através de uma sucessão de retomadas mutativas por meio de après-coup.

Freud colocou como condição fundamental que a menina, para se tornar mulher, deve começar por “mudar de objeto”. É necessário - sem dúvida, ainda mais do que para os meninos - que a menina faça uma verdadeira transferência para o pai de sua relação libidinal primitiva com a mãe. Minha intenção é demonstrar que esse movimento deve, necessariamente, para permitir o “tornar-se mulher”, vir acompanhado de outro fenômeno que condiciona a realização mais ou menos bem-sucedida dessa transferência. Ao mesmo tempo em que o pai se transforma no objeto libidinal de predileção para a menina, é necessário que a mãe venha triangular essa nova relação pai-filha.

Tal operação de transferência citada por Freud deverá, desse modo, revestir-se de um duplo aspecto:

1) De um lado, o pai, transformando-se em objeto libidinal de predileção, se encontra ao mesmo tempo apassivado (em posição passiva) - no sentido de uma apassivação (Penot, 2005), ou seja, de ter de se prestar a esse investimento libidinal por parte de sua filha, sabendo se fazer suficientemente receptivo à sedução desta.

2) A mãe perderá sua preponderância fálica do início e se verá destotalitarizada, descompletada - isso, no entanto, lhe confere uma possibilidade de intervir como terceiro, para mediar de maneira útil a nova relação que liga a menina ao pai.

A respeito deste tema, é surpreendente constatar que Freud em seu texto não tenha distinguido aquilo que, na relação da menina com seu pai, refere-se à ligação de identificação e à de investimento erótico (pensamos aqui no destino pessoal de sua filha, Anna). É marcante que a teoria que ele nos lega não prepare o analista (principalmente se ele é homem) a se apoderar, chegado o momento, dessa posição de transferência maternal, decisiva para ajudar a paciente melhor subjetivar sua posição feminina, ao mesmo tempo em que se desliga da submissão em relação a seu pai.

Alguns fragmentos de processos analíticos podem ilustrar minha proposta.

 

Mireille

Arquiteta muito criativa, não quis passar a barreira dos 40 anos sem ter filhos. Graças a uma fertilização in vitro, pôde finalmente ter um casal de gêmeos.

Para tanto, foi necessário que ela colocasse praticamente em stand by, durante vários anos, sua carreira profissional. Além disso, interrompeu também toda atividade sexual com seu marido. Ela descreve uma relação de rivalidade narcísica parental com o marido, num contexto assexuado.

Ao constatar esse estado zero de sua vida sexual como mulher (tendo seus sonhos eróticos se multiplicado durante a gravidez), ela acaba por me dizer: “É surpreendente para mim constatar que o fato de ter crescido quase que exclusivamente com minha mãe e minhas três irmãs mais velhas não tenha me ensinado de modo algum a ser uma mulher!”.

Seu pai deixara sua mãe pouco após seu nascimento e tinha refeito a vida. Ele representa sempre para Mireille uma figura prestigiosa de manager eficaz, e ela se identificou bastante com suas qualidades de criatividade profissional. Quanto à mãe, ela parece ter se estabelecido como verdadeira dona de casa e chefe de família, com suas quatro filhas, num modo incestuoso - de grande porosidade dos lugares e dos espaços. Ademais, ela se anulava quase que completamente nas ocasiões das visitas do pai, deixando Mireille se confrontar violentamente com ele.

Ao longo de todo o tempo da vivência de casal desta paciente, depois de sua fecundação assistida, senti-me ocupar uma função de acompanhamento materno - no sentido da função maternante -, muito mais do que de uma transferência de imago maternal.

Aqui, me ocorreu lhe dizer: “Por falta de sorte, eis que depois de todos esses anos você se encontra com um analista homem, cujos recursos são obrigatoriamente limitados para lhe transmitir essa feminilidade que você aspira!”. Ela reagiu, rindo de bom grado, e eu com ela.

Na semana seguinte, ela se surpreende de ter podido retomar com renovado prazer as relações sexuais com seu marido - ainda que sob a condição de ser à noite e debaixo das cobertas.

Minha intervenção parece ter sido recebida por ela como o reconhecimento de minha própria incompletude - a falta do sexo que não tenho -, ainda que ela tivesse me mantido por tanto tempo em posição maternante. Penso que meu comentário me feminilizava um pouco enquanto homem, ao mesmo tempo em que ela me desmaternizava. Disso adveio a possibilidade de Mireille lançar mão de tal abertura para se autorizar a melhor subjetivar sua própria feminilidade sexual a fim de usufruir dela.

 

Antígone

É uma educadora competente, habitualmente vestida de preto. Com 35 anos, se mantém ligeiramente acima dos 30 quilos, de modo a assegurar a ausência de ciclo menstrual.

Ela se dá conta de um duplo luto: ao invés e no lugar de seu pai, que muito jovem (e sem nunca ter derramado uma lágrima) perdeu a mãe (vítima de um câncer generalizado) e, em seguida, a irmã mais velha. Ela própria, filha primogênita, identificou-se intensamente com esse pai - sente-se mesmo muito contente de usar no trabalho uma blusa similar à dele.

Eis que ela me diz o quanto está contente de ter jantado pela primeira vez tête-à- tête com sua mãe (que sofre de enxaquecas e foi bastante ausente na infância da filha). Antígone procura as palavras: “Me parece que nós duas pudemos falar como... como... duas pessoas iguais... de alguma forma”.

Pergunto: “E por que não dizer de mulher para mulher?”.

Sua resposta foi imediata: “É porque eu não me sinto uma mulher!”.

Ela não para de se opor, nesse sentido, à sua irmã mais nova, Ismênia, mãe de família, contente com essa condição. Antígone, no entanto, tem uma relação duradoura e de qualidade com um companheiro que gostaria muito de ter um filho com ela.

Digo-lhe no fim da sessão: “Acima de tudo, você parece temer estar traindo seu pai se você se permitisse desenvolver essa nova cumplicidade com sua mãe”.

Na sessão seguinte, ela traz um sonho: encontrava-se envolvida em meus braços; era difícil aceitar aquilo face a face, mas ela podia suportar, se fosse por trás e que eu a mantivesse assim. Proponho-lhe, então, uma mudança de ambiente de suas sessões: que elas acontecessem no Jardin du Luxembourg! Ela fica surpresa, mas aceita. Quando chegamos lá, eu não paro de orientá-la em direção às pessoas que passam, incentivando-a a abordá-las. Ela percebe que é sempre em direção a homens que eu a dirijo.

Trata-se claramente de um sonho de transferência, que representa um progresso no rumo de uma melhor figuração da relação de confisco paterno, mas ainda sem fornecer uma saída processual. O sonho confirma esse dado de partida para Antígone, de ter estado, de alguma maneira, devotada a seu pai - como se a mãe, consagrando-se a seu segundo bebê menina (Ismênia) tivesse dirigido obrigatoriamente Antígone (então com quase 4 anos) aos braços de seu pai. Temos, portanto, um segundo caso de figura de falta de mediação pela mãe da relação pai-filha.

 

Haydée

Outra analisanda chega a se interrogar sobre a função de mediação das “mães de santo” nos candomblés brasileiros. Ela descreve a atenção protetora destas numa posição que lhe parece “de avó”, velando - sobretudo durante os transes de suas filhas, ao se debaterem, devido à encarnação (“cavalo”) das divindades - para que não se machuquem. Haydée se ressente dolorosamente do fato de não ter sua mãe sabido se posicionar assim entre ela e seu pai, impetuoso e abusivo. Ela descreve a mãe de sua juventude - oscilando entre gestos muito repressivos, batendo nela violentamente, a par de uma relação pseudorrespeitosa de colocar-se à distância - para concluir e acusá-la de tê-la levado a se casar com um homem violento e não sofisticado, com quem Haydée não pôde se realizar como mulher e de quem teve que se divorciar.

Podemos ver, aqui, um terceiro caso de falha de mediação materna: temos a mãe que se coloca numa relação de forças diretas com sua filha e - considerando que a relação da filha com seu pai não lhe diz respeito - fora de seu alcance.

Haydée se dá conta, por volta de seus 50 anos, que seu “tornar-se mulher” ainda está por vir. Essa percepção é reforçada pelo fato de que ela tem duas filhas adultas que lhe parecem mais avançadas que ela nesse caminho, mesmo sabendo que ela fora bastante participante naquele desenvolvimento, uma vez que soubera exercer em relação a elas uma função materna bem mais mediadora.

Haydée sente-se muito tocada ao elaborar melhor isso na sessão. Em princípio, aliviada de poder colocar em palavras essa falha de sua mãe, ela, em seguida, vai passar um dia feriado inteiro sem poder se levantar da cama, sentindo-se literalmente privada de qualquer recurso. Parece-me que estaríamos enganados se falássemos com muita rapidez, neste caso, em uma falha de objeto materno primário, sem nos darmos conta que este somente é atingido através do après-coup da falha de função secundária de mediação da mãe.

Para concluir este relato, diria, em primeiro lugar, que existem sem dúvidas diversas analogias que Freud não pôde identificar entre a “mudança de objeto”, que ele descreve em relação à menina, e o caminho que o menino deve fazer em direção a uma relação terna de cumplicidade com seu pai - ao que se convencionou chamar um Édipo invertido. Lembrando que a menina só pode ter acesso a uma feminilidade efetiva por meio de uma aliança suficiente de cumplicidade mãe-filha.

Contentar-se em falar em termos de homossexualidade mãe-filha, apresenta o inconveniente de ocultar o fato de que se trata, sobretudo, de uma função terceirizante (Green, 2002)2 da mãe, mediando a relação libidinal pai-filha. Cada mãe deve efetivamente recorrer a seu próprio representante paterno interno, a fim de permitir a construção e a realização da feminilidade de sua filha - em après-coup da operação freudiana de troca de objeto libidinal.

Ilustração bastante radical disso nos é hoje apresentada através da produção de um cineasta como Almodovar. Particularmente em seu filme Volver, ele nos dá a visão de um mundo social que seria formado principalmente por mulheres, que assumem com alegria uma posição de terceiro entre suas filhas, e um pai bonachão e restrito ao abuso incestuoso.

A presente proposta visa principalmente a convidar os psicanalistas a ultrapassar, tanto quanto possível, sua sexualidade manifesta - no sentido de ampliar sua percepção das múltiplas transferências e de seu manuseamento. Um analista homem, principalmente - para além de sua possível feminilização -, não deve deixar de saber se situar, chegado o momento, na função terceirizante, assegurada secundariamente pela menina por seu representante materno.

 

Referências

Green, A. (2002). Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine. Paris: PUF.        [ Links ]

Freud, S. (1976). Feminilidade: 33ª Conferência. In F. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 139-165). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1932.)        [ Links ]

Penot, B. (1992). Figuras da recusa: aquém do negativo. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Penot, B. (2005). A paixão do sujeito freudiano. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Bernard Penot
17 rue Beautreillis, 75004 Paris
Fone: (33 1) 4271-2662
E-mail: bpenot@orange.fr

Recebido em: 25/06/2009
Aceito em: 06/08/2009

 

 

* Membro efetivo e professor de formação da Société Psychanalytique de Paris. Foi por muitos anos diretor do hospital dia para adolescentes do Cerep.
1 Trabalho apresentado no ateliê Cowap, no Congresso de Línguas Francesas (Paris, maio de 2009).
2 Particularmente a segunda parte do capítulo 5.

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