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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.77 São Paulo dez. 2009

 

TRADUÇÕES

 

Escolhas1

 

Choice

 

Elección

 

 

Jay Greenberg*

Supervisor do William Alanson White Institute
Editor para a América do Norte do International Journal of Psychoanalysis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Compreender como e porque os analisandos fazem as escolhas que fazem é central tanto para os projetos clínicos quanto para os projetos teóricos da psicanálise. No entanto conhecemos muito pouco a respeito do processo de escolha ou a respeito da relação entre escolhas e motivos. Um paralelo marcante pode ser encontrado entre as maneiras como se narra o escolher nos textos gregos antigos e a experiência dos analistas enquanto observam seus pacientes fazendo escolhas no trabalho clínico cotidiano. Buscar a convergência das sensibilidades clássica e contemporânea iluminará elementos cruciais dos diversos significados da escolha e da maneira como esses significados mudam ao longo do tratamento psicanalítico.

Palavras-chave: Escolha, Capacidade de ação, Visão trágica, Motivação, Término.


ABSTRACT

Understanding how and why analysands make the choices they do is central to both the clinical and the theoretical projects of psychoanalysis. And yet we know very little about the process of choice or about the relationship between choices and motives. A striking parallel is to be found between the ways choice is narrated in ancient Greek texts and the experience of analysts as they observe patients making choices in everyday clinical work. Pursuing this convergence of classical and contemporary sensibilities will illuminate crucial elements of the various meanings of choice, and of the way that these meanings change over the course of psychoanalytic treatment.

Keywords: Choice, Agency, Tragic vision, Motivation, Termination.


RESUMEN

Entender el cómo y el porqué de las posibilidades de elección que nuestros pacientes psicoanalíticos llevan a cabo es un elemento central en los proyectos clínicos y teóricos del psicoanálisis. Sin embargo, sabemos muy poco sobre el proceso de hacer una elección y su relación con los motivos del individuo. En este ensayo yo describiré un notable paralelo entre la narrativa del concepto de posibilidad de elección en los antiguos textos Griegos y la experiencia personal del psicoanalista, mientras observamos pacientes efectuar decisiones en la vida diaria de nuestro trabajo clínico. Esta exploración de la convergencia de sensibilidades clásicas y contemporáneas, iluminará elementos fundamentales de los diferentes significados del concepto de posibilidad de elección, y de la manera en que estos significados cambian a traves del tratamiento psicoanalítico.

Palabras clave: Posibilidad de elección, Medio, Visión trágica, Motivación, Terminación.


 

 

Entender como e por que os analisandos fazem suas escolhas é algo central, tanto nos projetos clínicos quanto nos projetos teóricos da psicanálise. No entanto, sabemos muito pouco a respeito do processo de escolha ou da relação entre as escolhas e os seus motivos. Pode-se ver um paralelo marcante no modo de a questão da escolha figurar nas narrativas dos textos gregos antigos e na experiência dos analistas ao acompanhar as escolhas de seus pacientes no trabalho clínico diário. Rastrear essa convergência de sensibilidades clássicas e contemporâneas iluminará elementos cruciais dos vários significados de fazer escolhas e da maneira como tais significados mudam no decurso do tratamento psicanalítico.

Helen, então no oitavo ano de análise, esteve antecipando ansiosamente a visita de um sobrinho que mora noutro estado. Mulher de meia idade, solteira, profissional, Helen se sente próxima desse sobrinho e fica especialmente vivaz durante suas visitas. Dessa vez, o plano deles é um tanto complexo. Em vista de estar o sobrinho com uma agenda muito apertada por conta de compromissos de negócios, a única oportunidade deles se encontrarem seria para jantar com a irmã de Helen - mãe do sobrinho -, assim que o avião dele chegar. O restaurante onde deverão se encontrar dista por volta de uma hora do apartamento de Helen.

Infelizmente, o avião do sobrinho se atrasa e os planos de Helen ficam em suspenso por duas horas, uma vez que ela não sabe quando ele chegará. Ele finalmente a chama - pelo celular, do avião, antes de desembarcar -, dizendo não ter certeza de quando conseguirá chegar ao restaurante, mas que voltará a ligar quando tiver ideia exata do tempo. Ao receber essas notícias, Helen já está com raiva: primeiro, devido às limitações da visita; agora, por ter que esperar até saber quando sair de casa. Também está chateada porque o jantar vai demorar e, temerosa de ficar acordada até tão tarde, acabar perdendo a hora da sessão de análise da manhã seguinte (o que já aconteceu antes). Diz então ao sobrinho que acha melhor não ir ao encontro; ficará em casa, que ele deve ir em frente com os planos e encontrar a mãe. Passa o resto da noite se sentindo abandonada e sozinha.

Conversando sobre o acontecimento, nos dias seguintes, Helen e eu conseguimos desvelar uma gama de significados que ele tem para ela; pudemos articular muitas razões pelas quais ela decidiu não ir ao encontro dos demais para jantar. Em primeiro lugar, ao fazê-lo, ela encenou um padrão de toda a vida de se ver como pessoa isolada e rejeitada, um estepe desnecessário e não querido. Tal posição, por deixá-la sentir-se um pária, ocupa ao mesmo tempo um lugar masoquista algo especial: ela é o centro não visto das atenções. Isso afasta experiências de ciúmes da relação do sobrinho com a mãe e de inveja da liberdade dele (como homem) de ir e vir como quiser.

Tem mais. Ao declinar de participar no mundo exterior, Helen afirma um antigo compromisso de ficar em casa com a mãe, sofredora de longa data (falecida há tempos), traída e abandonada pelo marido, que foi corajosamente em frente, mas que precisava, para isso, da devoção plena da filha mais nova. E, pungentemente, ela se guarda para mim, para a nossa sessão matinal, que não pode ser posta em risco. Naturalmente, por meio dessa devoção, Helen também encena a vingança, um dos temas mais proeminentes de sua vida. Vinga-se do sobrinho, que não a visita com a frequência desejada e que provavelmente nem queria que ela fosse ao jantar. Também se vinga da mãe, que exigia que Helen sacrificasse a vida social e romântica por ela. E, de modo mais tocante, ao menos no momento, vinga-se de mim; sabe que ficarei desapontado de ouvir mais uma história de como as suas esperanças foram frustradas e de como ela sucumbiu ao desespero. Por anos a fio, sua infelicidade tem sido a arma mais potente contra mim e contra a análise, muito parecido com o que era contra a mãe despótica.

À medida que elaboramos cada uma dessas ideias, Helen e eu ficamos com perspectivas diferentes quanto às razões que a teriam levado a escolher não se encontrar com a família para jantar. Fizemos um trabalho analítico bom, mas não consigo deixar de pensar que, embora cada tema já tenha aparecido muitas vezes antes, a escolha de Helen é sinistramente típica. Esse cenário - análise perscrutadora, escolhas persistentes - é muito familiar; analistas diriam que ele ilustra a necessidade de elaborar as coisas. Mas, por trás do conceito de elaboração, ronda uma verdade mais soturna: razões não explicam escolhas - ao menos não totalmente. Isso é algo que sempre soubemos e que sempre achamos intrigante (ao menos em termos pré-conscientes). Está ficando ainda mais desafiador, no nosso mundo psicanalítico pluralista de hoje, porque, apesar da gama de razões sempre crescente do nosso arsenal interpretativo, não estamos nem um pouco mais perto de compreender por que ou como nossos pacientes escolhem do jeito que escolhem.

Evidentemente, há algo acerca do próprio conceito de escolha que nos escapa, motivo pelo qual a escolha é o meu tema de hoje. Nesta altura, permitam-me uma pequena ressalva: há uma tendência de desconfiar que um psicanalista que fala a respeito de escolhas esteja pisando em terreno proibido. Cientes de injunções técnicas de evitar a sugestão, e temerosos de trair a grandiosidade implícita em pretender conhecer qual é o melhor curso de ação para os nossos analisandos, evitamos absolutamente discutir a questão das escolhas. Uma vez que a análise tenha andado bastante, dizemos que os analisandos estarão mais bem equipados para lidar com os desafios da vida - isto é, conseguirão fazer escolhas melhores ou, pelo menos, mais livres. No entanto, a experiência com Helen ilustra algo que a maioria dos analistas desconfia e que Leo Rangel (1981) colocou de forma explícita há mais de um quarto de século: a ideia de que “uma escolha ampliada” decorre automaticamente (ou facilmente) do trabalho analítico “talvez seja uma das falácias mais prevalecentes na prática psicanalítica” (p. 127).

Isso suscita questões clínicas e teóricas. Clinicamente, desafia-nos a pensar a respeito da responsabilidade que a análise, como disciplina, e nós, como praticantes, temos com relação à necessidade dos analisandos de fazer escolhas que afetam a qualidade de suas vidas. Teoricamente, requer que nos dediquemos à relação entre o que fazemos na situação clínica - não importa como conceituamos o que fazemos - e os determinantes da escolha, apesar da complexidade dessa relação. Assim, não devemos sucumbir à nossa reticência e devemos encarar o papel crítico que a escolha desempenha no nosso projeto psicanalítico.

 

Orestes

Se a escolha é tema central em toda análise, também o é nos textos clássicos da Grécia antiga - nos épicos homéricos e, mais tarde, nas tragédias. Podemos retraçar, de maneira notável, mudanças significativas ao longo do tempo na maneira como a questão da escolha é compreendida e retratada nesses textos, mudanças essas que refletem movimentos profundos no modo pelo qual as pessoas compreendiam a si mesmas e seu lugar no mundo. Essa evolução social ampla é especialmente interessante para os psicanalistas, por ser paralela ao tipo de desenvolvimento que vemos nos analisandos ao longo do tratamento. Contarei duas histórias para ilustrar os temas convergentes nos textos e no nosso trabalho clínico: primeiro, a história mítica de Orestes, tal como recontada bem no início da versão heroica da Odisseia e, mais tarde, na expressão dos autores trágicos; em seguida, a história de William, analisando meu, à medida que faz sua jornada, primeiro para dentro da análise e, depois, para fora dela.

Deixem-me lembrá-los rapidamente do mito. Orestes, filho de Agamêmnon, é herdeiro de um legado familiar de ódio, violência e traição inter e intrageracional, sem precedentes na história da ficção. Seu bisavô, Tântalo, filho de Zeus, da primeira geração de mortais, foi chamado de “violador arquetípico das leis estabelecidas (...) para a conduta da sociedade humana” (Hornblower, & Spawforth, 2003, p. 1.473). Durante um banquete que preparou para os deuses, serviu seu próprio filho, Pêlops, como um dos pratos, dando início a uma tradição de assassinato infantil que ecoou pelas gerações, culminando no sacrifício por Agamêmnon da irmã de Orestes, Ifigênia.

Orestes foi expulso de casa pela mãe e por Egisto, amante que ela assumiu enquanto Agamêmnon estava longe, liderando as forças gregas contra Troia, e que conspirou com ela no assassinato do marido. Voltando para casa oito anos após a morte do pai, Orestes agora é um jovem e está ante o problema de como vingar a morte do pai. O mito antigo, que forma a base tanto da narrativa heroica de Homero quanto das versões trágicas posteriores, apresenta Orestes matando a mãe e seu amante; o mito não faz referência às deliberações que levaram Orestes a escolher da forma que o fez.

Mas, nas mãos de poetas, a escolha passa a ser um elemento central da história, e as mudanças na maneira pelas quais se lida com ela são ao mesmo tempo surpreendentes e iluminadoras. Consideremos, inicialmente, a versão heroica contada por Homero. Homero conta a história, no começo da Odisseia, como um tipo de história exemplar. A cena é o lar de Odisseu, que anda perdido há anos por conta de tudo o que lhe aconteceu em sua viagem de volta, de Troia para casa. A situação em casa é caótica; dezenas de pretendentes bradam estrepitosamente para conseguir que a esposa de Odisseu, Penélope, desista da esperança de que ele ainda esteja vivo e se case com um deles. O filho de Odisseu, Telêmaco, está indeciso quanto ao que fazer e é pressionado pela deusa Atena a partir em busca do pai. Como parte de sua exortação, Atena lembra Telêmaco do heroísmo de Orestes; ela tenta influenciar a sua escolha e a maneira como fala mostra como ela - e o poeta - compreendem os elementos da escolha:

Você precisa parar/ De agir como criança. Você já superou isso agora./ Você não ouviu como Orestes conquistou glória/ Pelo mundo afora quando matou Egisto,/ O traidor astuto que assassinou teu pai?/ Você precisa ser agressivo, forte... (Lombardo, 2000, Livro 1, 11, 313-318).

Dois elementos reveladores se destacam neste relato, a narrativa mais completa que restou do mito na literatura épica. Em primeiro lugar, a evidência de que Orestes fez a coisa certa - a escolha certa - é que ele “conquistou glória pelo mundo afora”. A escolha de Orestes é clara ou, pode-se dizer, heroica. Só existe uma maneira de agir como homem, e essa maneira é fazer o que traz fama e glória. Em geral, não há, nas narrativas épicas, distinção real entre escolhas certas e escolhas que trazem fama e glória (Dodds, 1951). A única questão é se Telêmaco consegue encontrar coragem - ser bastante homem - para fazer a escolha certa.

Tal visão de uma escolha nítida requer uma omissão gritante, na narrativa: Homero não menciona - nem aqui nem em qualquer outra parte - que a vingança de Orestes também incluía matar a mãe. Homero estava consciente desse elemento do mito por ele recebido: ele menciona a morte de Clitemnestra e a odiosidade desta, no seu relato do destino de Egisto (Lombardo, 2000, Livro 3, 11, 304-310), mas não diz que ela foi assassinada por Orestes. Heróis épicos não matam suas mães, porque, uma vez que essa parte da história seja incluída, outros aspectos da escolha de Orestes teriam de ser levados em conta. O exame desses determinantes mais complexos da escolha teve que esperar, até uns trezentos anos depois de Homero, as narrativas dos autores trágicos da Atenas do século 5º.

Temos relatos completos da história de Orestes de cada um dos grandes trágicos: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Embora essas versões difiram muito uma da outra, elas se afastam da narrativa épica de modo semelhante. Considerar três maneiras pelas quais as tragédias diferem do épico iluminará a convergência de temas entre essas criações literárias e o nosso trabalho clínico psicanalítico.

Em primeiro lugar, os motivos dos personagens são desenhados de maneira mais intrincada, mais nuançada; nas versões de cada um dos trágicos, o conflito é realçado. Assim, Orestes e sua irmã coconspiradora, Electra, são movidos por um amor ambivalente, por um ódio ambivalente, por lealdades divididas, pelos ciúmes, pela voracidade, pelo desejo de fazer o que é justo, pela culpa e pela angústia. Esses motivos criam o que chamamos hoje de estados da mente: nas diversas narrativas, os heróis são retratados de modos variados, como de coração partido, amargos, indecisos, corajosos, covardes, leais, brutais e lascivos.

Em segundo lugar, a realidade em que os personagens vivem é muito mais complexa do que a de Homero. O Orestes dos trágicos está preso a um conjunto de circunstâncias e deve agir dentro dessas circunstâncias, que remontam ao passado primordial; Ésquilo, mas certamente não Homero, evoca a história de Tântalo em diante, de modos que assombram a escolha que Orestes deve fazer. Nas tragédias, um personagem complexo age dentro de uma teia complexa de necessidade; a consequência, como o classicista Richard Lattimore escreveu, é que “o dever se torna repulsivo” na narrativa da história de Orestes por Ésquilo (1953, p. 28).

Por fim, há as consequências do ato escolhido. Na versão épica, Orestes sabe que conseguirá a glória vingando-se do homem que usurpou a mulher e o reino do pai, e de fato ele alcança a glória, como a fala de Atena a Telêmaco ilustra. As tragédias apresentam um quadro muito diferente das consequências da sua escolha; Orestes deve enfrentar a própria culpa e o julgamento dos outros - deuses e mortais - por matar a mãe, e tanto na versão de Ésquilo quanto na de Eurípides, ele enlouquece em consequência imediata do assassinato. Em ambas as versões, ele também tem que enfrentar o julgamento de uma corte.

As diversas maneiras de a história de Orestes ser contada, a exclusão ou inclusão de acontecimentos e as implicações diversas no estado mental do herói apontam para mudanças no modo de pensar a respeito do significado da escolha nos anos que separam Homero dos trágicos. Essas mudanças derivam de mudanças profundas na maneira de os mortais vivenciarem o seu lugar como agentes autônomos num mundo que tinha sido compreendido como operando segundo a vontade dos deuses. Este tipo de mudança é que nós, como psicanalistas, vemos regularmente no trabalho clínico.

 

Material clínico

Com 35 anos, William estava em análise (a segunda) há cerca de cinco. Nosso trabalho tinha sido profundo; com frequência, o tocava profundamente. Em consequência, ele pôde atingir muito do que o trouxera à análise: superou uma tendência sexual perversa bastante tenaz, conheceu e se casou com uma mulher com quem está vivendo relativamente feliz, mudou de um trabalho em que se sentia explorado e sufocado para outro em que se sente mais ou menos satisfeito, embora persistam algumas das experiências familiares. Ele reconhece vagamente as mudanças e até reconhece que atingiu muitos objetivos, mas queixa-se da análise consistentemente, ainda que episodicamente - sentindo que ela acontece conforme a minha pauta e o esgota por causa das minhas demandas com relação ao tempo e às finanças. Frequentemente, se sente “acorrentado ao divã” (o que, como vocês podem imaginar, reflete desejos e temores relacionados com a vida de fantasia perversa anterior), e que tudo o que precisa para se sentir livre e autoconfiante é terminar. Consequentemente, pelo menos a cada dois meses anuncia estar cheio de “ter” que vir à análise, exausto pelos “sacrifícios” que faz por ela e que vai ou diminuir para uma sessão por semana ou largar de vez. Pergunta o que acho disso, deixando implícito que qualquer coisa que não seja concordância imediata é sinal de que estou movido por interesse financeiro ou - o mais provável - pelo meu próprio envolvimento perverso com ele.

Desnecessário dizer que, nesses momentos, passo a ser o inimigo de William ou, talvez seja mais correto dizer, seu parceiro numa troca sadomasoquista. Sugerir-lhe que falemos sobre os seus sentimentos é atraí-lo para a armadilha de uma análise interminável. Perguntar-lhe a respeito de seus pensamentos quanto a diminuir as sessões ou parar totalmente seria ameaçá-lo de colapso caso não faça as coisas exatamente como eu quero. O silêncio significa que não estou prestando atenção, por ele não estar falando do que eu quero que ele fale, e assim por diante.

Esses impasses duram dois ou três dias; tendem a se resolver quando William tem a vivência de eu lhe dizer algo que transmite preocupação com o seu dilema. Quando isso acontece, nunca tenho muita certeza se achei realmente algo de novo para dizer ou se William ficou mais receptivo; sei é que a atmosfera da sala muda dramaticamente e podemos voltar à nossa maneira colaborativa mais típica de trabalhar juntos. Então, podemos falar sobre o que aconteceu, menos em termos da encenação perversa e mais em termos da necessidade dele de se sentir livre do peso esmagador de ter que levar em conta a vontade de outra pessoa.

Quero focalizar uma ocasião em que William falava em terminar a análise. No entanto, daquela vez as coisas estavam um pouco diferentes, porque cheguei a acreditar que o término - em oposição a simplesmente largar - era uma opção razoável, e deixei isso claro por um tempo. Certamente, ele tem dúvidas a seu próprio respeito, a respeito da capacidade de manter o entusiasmo no casamento, de manter o interesse no trabalho e, de maneira geral, a respeito da estabilidade do seu humor. Mas tento não ser perfeccionista e a afirmação de seguir em frente (uma afirmação que vem de nós dois) parece um próximo passo importante.

Assim sendo, é especialmente interessante que, depois de umas férias de verão, dizendo que tivera um ótimo mês, anuncie William que chegara a hora de passar para uma sessão por semana. Quando devemos fazer isso? Imediatamente? Quem sabe na semana que vem? Ele não quer entrar na rotina exaustiva de manter um esquema analítico; o tempo livre o deixava tão mais disponível para desfrutar coisas com a esposa! Ele quer sair da situação opressiva e sufocante e tem certeza de que quero impedi-lo de agir de modo livre e eficaz.

Dessa vez, dado que já passamos muitas vezes por isso e temos uma ideia compartilhada da dinâmica da situação à medida que ela vai se armando, William consegue ouvir que, ao agir como age, cria um conflito interpessoal que mascara sua ambivalência interna. Ele sabe que, de um jeito ou de outro, vou lhe dizer que vá mais devagar e que ele vai insistir em seguir velozmente adiante. Assim, quando interpreto a cisão e digo que está tentando evitar sentimentos de perda, tanto os que ele antecipou como os que sentiu durante as férias de verão, ele reconhece que provavelmente estou certo. “Você está de volta das férias e de volta ao seu jogo”, diz, de maneira pensativa e afetuosa. Assim, levo um susto quando, minutos depois, digo-lhe que a sessão acabou, e ele pergunta: “Então, quando o vejo de novo?”. “Quinta-feira”, respondo, por não conseguir pensar em mais nada que dizer. Na quinta, William chega em estado de prontidão, dizendo que, ao observar que sua ambivalência da terça bastava, ele sabe que está na hora de agir. E alguma coisa nova foi acrescentada: pensar o debilita, e a ação é necessária porque ele não confia em mim. Se hesitar, tem certeza de que o arrastarei de volta para a análise. Naturalmente, crendo isso a meu respeito, só pode se ver como alguém que quer estar livre para fazer o que precisa fazer.

Hoje, contudo, algo novo me ocorre. Talvez por causa da gentileza do seu “Você está de volta ao seu jogo” (William adora jogos, de todos os tipos), lembro que William não só acredita que precisa de análise (para impedi-lo de desmantelar de maneiras como desmantelava antes), mas também que gosta da análise, tanto porque aprecia poder falar livremente a seu respeito com alguém que o ouve atentamente, quanto porque, pelo que diz, gosta de mim pessoalmente. Mas também sei algo mais: William se envergonha de gostar da análise, pois isso o leva a se sentir muito fraco, muito necessitado, muito submisso, muito feminino. E se envergonha de gostar de mim devido aos desejos proibidos sugeridos por gostar de mim.

Assim, consigo lhe dizer isso e ele consegue concordar entusiasmado. À medida que a nossa conversa prossegue por dias e semanas, a possibilidade de terminar fica mais excitante, mais penosa e mais real para ele. Ele pensa que terminar a análise o deixará livre para estar mais disponível - para a esposa e para o trabalho, dos quais gosta genuinamente. E o libertará de mim, de maneira autoafirmativa. Mas começa a ver, agora, que a liberdade, que sempre pareceu a única coisa que importa, impõe suas próprias exigências: ele precisa enfrentar a perda, os desejos renunciados, a vergonha, o temor das consequências futuras e a culpa por me abandonar. Deixar o tratamento passou a ser o que Roy Schafer - emprestando da crítica literária - caracterizou recentemente como um “nó trágico” (Schafer 2007).

Para William, como para todo analisando, viver com esses nós é um sofrimento; quando temos uma sessão especialmente tocante, ele tende a desejar em voz alta que possa ser a última. Diz que gostaria de terminar - hoje - com o que chama de “parada triunfal”. Mas agora, quando lhe pergunto qual é o triunfo, ele responde com ironia pungente. Escapar de mim vai ser ótimo; vai poder dormir até mais tarde de manhã, e vai ter muito mais dinheiro para gastar. Mas, de verdade, acrescenta, o triunfo é que vai se libertar de algo que ele ama. Talvez seja uma coisa estúpida a fazer e talvez o que ele esteja festejando seja, na verdade, um tiro no pé. Ele já fez isso antes, acrescenta, mas também sabe que é a coisa certa a fazer. Ao menos por ora.

 

Discussão clínica

Escolhi momentos da análise de William que apreendem mudanças na maneira dele falar sobre o término. Mas a experiência que se expandiu do que significaria terminar - a consciência crescente de sentimentos apartados, da ambivalência que acompanha essa consciência e, em última instância, do compromisso mais profundo com o término que ele pode conseguir em consequência - não são o meu foco principal nesta apresentação. Na realidade, estou usando o tema do término e nossas conversas a respeito para realçar o que considero mudanças ainda mais fundamentais no que a escolha significa para William e no que significa ver-se como pessoa capaz de escolher.

Naturalmente, como vimos, William tinha certeza de ser capaz de escolher praticamente desde o início da análise; mas considerem o que escolher, de início, envolvia para ele. Acreditava que podia quebrar as correntes que o prendiam ao divã com um floreio heroico, libertando-se para viver autonomamente como lhe agradasse e sem constrangimentos. Ele podia ser o Orestes que Atena pressionava Telêmaco a ser - crescido, agressivo e forte. Sua atitude em relação a si mesmo como agente da escolha me lembrou marcantemente a maneira como o classicista E. R. Dodds (1951) descreveu os heróis de Homero, que “avançam pelo mundo com bravura; temem os deuses apenas na medida em que eles temem seus senhores humanos e nem se sentem oprimidos pelo futuro” (p. 29). De modo parecido, ao falar em terminar, William tinha certeza de que a escolha seria só liberadora; qualquer que fosse o custo, ele certamente podia suportá-lo.

A ideia de que a escolha não tem custo emocional - característica tanto dos heróis épicos quanto de muitos analisandos em início de tratamento - depende de uma avaliação limitada da complexidade de seus próprios estados mentais e também de uma avaliação limitada da complexidade da realidade. Tal como o Orestes de Homero, William pensava que o único problema era encontrar força interna para romper as cadeias que o prendiam à análise, pois só estava motivado pelo desejo de liberdade e por um sentimento de poder que ele tinha certeza que se seguiria ao ato de autoafirmação e desafio. Tanto para o Orestes de Homero quanto para William nas fases anteriores da análise, o ato de escolher afirma a capacidade de satisfazer um desejo facilmente definido e não ambivalente. A escolha requer coragem, mas, se é possível encontrar coragem, não há uma luta real.

Com este modo de pensar sobre seu estado mental, vem uma ideia restrita da realidade exterior que, de novo, é partilhada pelos heróis épicos e por William no início do tratamento. Consideremos o que Dodds diz a respeito da maneira de ver dos deuses nos épicos: “os deuses se ressentem de qualquer êxito, qualquer felicidade que possa elevar por um momento a nossa mortalidade acima do seu status mortal e, desse modo, usurpar as suas prerrogativas” (1951, p. 29). Ouvimos a transferência inicial de William nessa maneira de colocar as coisas; lembrem-se que eu é que o acorrentei ao divã e lhe impus a minha pauta. Ele sabe que guardo enciumadamente a minha prerrogativa. O projeto analítico é só meu; eu é que estabeleço as metas, tiro proveito da experiência de modo financeiro e de quaisquer outros modos. A análise me pertence, do mesmo jeito que o mundo pertencia aos deuses nos épicos homéricos. E, assim como os deuses de Homero eram ciumentos e se ressentiam das aspirações e conquistas dos mortais, também William sabe que sou ciumento e ressentido com relação a ele - da sua juventude, da sua força, do seu potencial, do seu desejo de ficar livre de mim. Assim, desde muito cedo para William, como para os heróis épicos, a escolha é desafio; é um desafio que traz autoafirmação, sem senso de perda real ou mesmo de risco. Não quer dizer que as escolhas não têm consequências; os heróis épicos são heróis justamente por agirem como agem, mesmo sabendo que suas ações os levarão à morte. O Aquiles de Homero escolheu explicitamente uma vida curta e violenta que o levaria à fama eterna, quando podia ter tido vida longa, pacífica e anônima. E Heitor, na Ilíada, entra na batalha sabendo que vai morrer. De modo semelhante, William sabe, no início, que, como ele diz, “precisa” de análise e que bem poderia facilmente enlouquecer sem ela. Mas submeter-se à minha vontade - o que ele tem que fazer se continuar em tratamento - é insuportável; ele faz justiça a si mesmo me desafiando e prosseguindo sozinho.

Muitos analisandos, talvez a maioria, entram em tratamento pensando em si mesmos como heróis épicos, mais do que heróis trágicos. Ao dizer isso, não estou pensando apenas em analisandos como William, que acreditava que poder assumir o papel ativo em todos os relacionamentos era crucial para a sua sensação de bem-estar. Outros estão tão comprometidos em se ver como passivos - alguém sobre quem os outros ou o destino agem - que têm grande dificuldade de se experimentar como podendo escolher o que quer que seja; eles provavelmente se descrevem como quem nem sequer pensa que há escolhas a fazer. Mas não existe isso de viver sem escolhas. Ao negar que escolhem ou mesmo que agem, esses analisandos desafiam e controlam o seu mundo tão totalmente quanto William desafiava e controlava o seu ao proclamar que poderia quebrar as cadeias que o prendiam à análise, sem qualquer consequência. A grandiosidade da fraqueza não é menos heroica do que a grandiosidade do guerreiro. À medida que a análise de William se desdobrava, o que significava para ele exercer a escolha mudou de maneira substancial. Por fim, sua decisão de terminar já não era mais questão de abraçar e desafiar simultaneamente um destino ditado pelo analista despótico. Chegou a ver que a escolha emerge do conflito e que escolher é lutar - consigo mesmo e com os constrangimentos de viver no mundo. Esse movimento é paralelo à mudança da narrativa épica para a trágica da escolha de Orestes. Os trágicos incluíram o assassinato de Clitemnestra em suas narrativas da história porque seu projeto era chamar a atenção para os conflitos inerentes a todas as expressões da ação humana, vistos por eles como elementos essenciais do que significa escolher. Vemos, nas tragédias, um Orestes atormentado pela escolha a ser feita e assombrado por premonições relativas às consequências, tanto na realidade externa quanto no seu mundo interno. De modo similar, William veio a saber que agir de modo autoafirmativo significa reconhecer a ambiguidade, a ambivalência, a ansiedade, a culpa e a perda. Escolher significa, agora, defrontar-se com a complexidade da sua mente: precisa levar em conta a necessidade de análise, o prazer (perverso ou não) que obtém disso, a vergonha a respeito tanto do prazer quanto da necessidade, a ansiedade relativa ao que vai significar abrir mão, o luto que sabe que vai ter de sofrer. No passado, a cisão e as exigências peremptórias de ação (isto é, a experiência de escolha à maneira dos heróis épicos) mantiveram toda essa constelação de sentimentos à margem.

Essas mudanças afetam e são afetadas pela experiência que tem de mim; à medida que passa a saber mais sobre si mesmo, já não sou apenas o opressor ou a vítima. As velhas ideias a meu respeito se esvanecem, sem nunca desaparecer inteiramente; à medida que se desvanecem, William desenvolve uma noção de mim como uma pessoa do seu mundo que ele sabe que se importa com ele e por quem ele, por sua vez, se importa. Eu passo a ser não só o deus ciumento e opressivo dos épicos, mas também uma pessoa com quem ele sentiu ao mesmo tempo excitação e consolo. Escolher terminar, no contexto dessa nova consciência, para William, significa matar alguém que ele ama. É surpreendente que tanto na narrativa trágica da escolha de Orestes quanto no sentimento novo de William, o assassinato de alguém amado - anteriormente excluído da narrativa - precisa ser incluído; nas tragédias, o outro é uma figura da realidade externa; na análise, é o encontro de uma presença interna nova, relacionada complexamente comigo como uma pessoa real.

Com essas mudanças na compreensão que ele tem de si mesmo e de mim, vem uma ideia mais aprofundada, mais tumultuosa, das consequências da decisão de terminar; à medida que fico mais vivo para ele - mais plenamente outro -, ele aprende que, ao se separar de mim, precisa desistir de manter a expectativa de me controlar, com todos os desejos e defesas que a fantasia de controle envolve. Isso contrasta com a maneira de ver que ele tinha em épocas anteriores do tratamento; acreditava, então, que podia escolher simultaneamente terminar e manter o controle - suas ações desafiadoras e a sua falta de medo diante das minhas reações garantiam isso. Mas agora que sou visto como alguém que tem mente e coração próprios - os quais ele se dá conta que nunca vai conhecer inteiramente - não pode ter certeza quanto ao efeito da sua partida em mim: talvez ele tenha se antagonizado comigo ou me feito mal, talvez eu não vá me lembrar dele ou talvez me recuse a recebê-lo de volta, caso ele queira ou precise voltar. Essas incertezas persistem, apesar de William e eu conversarmos sobre todas elas durante a fase de encerramento. A conversa tornou o término uma experiência mais rica para ele, mas não tornou as coisas mais fáceis, pois ele sabia que escolher sair significava viver com os riscos, terrores e perdas inerentes.

A maneira como contei a história de William reforça o meu argumento central: com a mudança analítica, a escolha passa inevitavelmente a ter um significado muito diferente do que poderia ter tido anteriormente no tratamento. À medida que se conscientizam da ambivalência e da ambiguidade envolvidas em qualquer escolha importante, os analisandos passam a ver que o próprio ato de escolher os põe frente a frente com as soluções de compromisso e limites inerentes à própria escolha (ver Schafer, 2007). Eles vêm para saber, como William, que mesmo as escolhas mais autoafirmativas implicam uma consciência que assalta o próprio sentimento de sermos quem somos. Não pode haver triunfo puro, pois só existem sentimentos mistos. E todas as nossas escolhas revelam a fragilidade do nosso lugar no mundo, pois toda expressão de ação pessoal nos abre inevitavelmente para os efeitos de estarmos sujeitos à ação dos outros.

 

Implicações teóricas

As mudanças, ao longo do tempo, na maneira de William pensar a respeito do término foram incomumente explícitas, mas não especialmente incomuns. Há, naturalmente, muitos modos tradicionais de conceituar psicanaliticamente essas mudanças: pode-se dizer que William desenvolveu uma estrutura de ego e atingiu a capacidade de retardar a gratificação, ou que passou a ser capaz de abdicar de uma defesa maníaca, ou que foi da posição paranoide para a depressiva; ou que curou uma cisão dissociativa e agora é capaz de experimentar conflito interno, ou ainda que, em decorrência da natureza do nosso relacionamento, houve mudanças num conhecimento relacional implícito. Então, com todas essas excelentes explicações psicodinamicamente sólidas à mão, por que é útil invocar a ideia de escolha? É difícil definir conceitualmente a escolha e - uma vez que ela opera na fronteira da consciência - ela tem, na melhor das hipóteses, um lugar marginal no discurso psicanalítico. Não estaríamos melhor, se ficássemos com ideias que são mais familiares e mais evoluídas dentro da nossa própria disciplina?

Talvez. Mas há muito a ganhar dando à escolha um lugar mais central no vocabulário psicanalítico. A psicologia da escolha é a psicologia da ação, e os atos dos analisandos são ao mesmo tempo os dados da psicanálise e os critérios pelos quais julgamos seus efeitos. Assim, pensar a respeito da escolha pode abrir perspectivas novas para velhos problemas. Clinicamente, nos ajudará a reexaminar a relação entre insight e mudança, relação ao mesmo tempo intrigante e central no nosso trabalho. Além disso, levantar questões relativas à psicodinâmica da escolha abrirá uma janela para problemas teóricos bem espinhosos, especialmente os que envolvem as relações entre nossos mundos interno e externo.

As semelhanças intrigantes entre os temas que aparecem no trabalho clínico e os textos antigos oferecem um trampolim para investigar as questões. Jean-Pierre Vernant (1990), historiador da tragédia, poderia estar se referindo à maneira de finalmente William se aproximar da decisão de terminar a análise ao escrever que, na visão trágica, a escolha é “um tipo de aposta - no futuro, no destino e em nós mesmos. Neste jogo, em que ele não está no controle, o homem sempre se arrisca a ficar preso na armadilha por suas próprias decisões” (p. 44). Vernant é claramente não psicológico; sua interpretação das tragédias se apoia em suas origens e significados sociais e religiosos. Mas a ressonância emocional, em suas palavras, é inequívoca, e a mesma sensibilidade recebeu um viés mais subjetivo em Dodds, que lê os textos com uma inspiração psicológica e próxima da experiência. Quando testemunhamos as escolhas de um herói trágico, Dodds diz “sentimos ao mesmo tempo piedade pela condição frágil do homem, e terror de um mundo cujas leis não compreendemos” (1966/1983, p. 180).

Vernant acredita que a visão trágica nos lembra que os mortais não têm o controle porque jamais podem conhecer a vontade dos deuses. Dodds, investigando o mesmo terreno, ilumina o terror que sentimos quando não compreendemos o funcionamento do mundo de um jeito que nos ajude a navegar através dele. A ênfase destes dois classicistas se choca agudamente com a visão psicanalítica. Os analistas - valorizando, às vezes excessivamente, a nossa capacidade de controlar a experiência vivida - ressaltam as causas, não os efeitos; ao fazê-lo, falamos inevitavelmente mais a respeito do mundo interno do que do mundo externo. Os trágicos gregos, que tinham pouco interesse ou consciência da vida interior das pessoas, focalizavam as pressões externas que levam à escolha e as consequências desta; a ênfase deles mostrou como o herói afetará e será afetado pelas ações e reações imprevisíveis de agentes autônomos - deuses e mortais - a respeito dos quais ele não tem nenhum controle.

Desenvolver uma compreensão mais completa e mais clinicamente produtiva do significado que a escolha tem para os analisandos requer que possamos ter em mente essas duas perspectivas muito diferentes. Precisamos conhecer ao máximo as razões internas da pessoa, ao fazer a escolha, mas também precisamos conhecer ao máximo o que significa arriscar agir diante de forças exteriores e diante de consequências que jamais podem ser plenamente compreendidas. Essas forças e consequências só podem estar mais ou menos relacionadas com as razões que levaram o analisando a escolher como escolheu, em primeiro lugar; a visão trágica lembra que os riscos são reais, pois a vontade dos outros é real. Os efeitos da escolha não são apenas os que o analisando imagina que sejam, não são mero reflexo ou projeção das ansiedades internas.

Ainda que diferentes, a abordagem psicanalítica e a abordagem trágica do problema da escolha são potencialmente complementares, e é iluminador ter em mente as duas maneiras de ver. Ao fazer isso, vemos que a escolha se dá num ponto crucial, mas fugidio, no espaço psíquico: o ponto em que o mundo interno do analisando - o mundo dos afetos, dos motivos, dos conflitos, da história pessoal, das representações, da estrutura de caráter, e assim por diante - se encontra com o mundo da realidade externa, seja ela interpessoal ou não. Colocar as coisas desse modo esclarece uma razão pela qual os psicanalistas têm se mostrado relutantes em teorizar a respeito da escolha e porque nos restringimos ao que podemos saber a respeito: qualquer compreensão do significado da escolha deve ser forjada no ponto de encontro das psicologias de uma pessoa e de duas pessoas. Historicamente, os teóricos se acostumaram a falar a língua da psicologia de uma pessoa ou da psicologia de duas pessoas. Nenhuma dessas línguas é especialmente eficaz para conceituar os fenômenos do outro ponto de vista e não dispomos de nenhuma maneira muito satisfatória de falar a respeito de eventos que operam na fronteira dos dois. Recentemente, muitos teóricos sugeriram conceitos-ponte - estou pensando na ideia de um “terceiro analítico” e das várias formulações agrupadas sob o título amplo de “intersubjetividade”. Mas temos tido menos êxito, talvez menos interesse, em teorizar as maneiras pelas quais as pessoas se encontram sem se unirem, um encontro que poderíamos até caracterizar como um embate de vontades. Nesse encontro com um outro separado, autônomo, descobrimos tanto o potencial quanto os limites da nossa capacidade pessoal; aqui é que se molda o significado do ato de escolher.

Temos muito trabalho conceitual a fazer. A sensibilidade que orientou as primeiras especulações psicanalíticas de Freud, e que continua a influenciar tanto a teoria quanto o trabalho clínico, torna difícil fazer uma ponte entre os modelos de uma pessoa e de duas pessoas nos modos que tenho em mente. O pensamento de Freud decorreu do e contribuiu para o desenvolvimento de um período iluminista, período esse que começou no meio do século 19 e continua até hoje. Historicamente, sensibilidades iluministas realçam o potencial da racionalidade humana de controlar o mundo da realidade externa. A grande contribuição de Freud - que ele caracterizou orgulhosamente como uma terceira revolução copernicana - foi nos mostrar que a nossa fé no alcance do nosso controle é ilusória, não porque o mundo se furte à compreensão, mas porque somos muito menos racionais do que acreditávamos. Suas teorias da motivação inconsciente, do determinismo psíquico, do princípio do prazer e da compulsão à repetição - todas prestam tributo a essa sensibilidade.

Os trágicos gregos eram, na maioria, críticos da cultura ilustrada do século 5º de Atenas; por isso é que associamos a ideia de hybris tão intimamente às sensibilidades trágicas. Eles escreveram numa época em que os avanços científicos e tecnológicos faziam parecer que o mundo podia ser totalmente controlado pela inteligência humana e em que a força militar de Atenas levou muitos cidadãos a presumir que a cidade podia alcançar e exercer um poder político ilimitado. Diante disso, os trágicos ensinaram que, por causa do poder dos deuses - cujas intenções fogem eternamente à nossa compreensão -, nós habitamos um mundo em que os efeitos, mesmo das ações mais racionais, são irredutivelmente incertos. Inevitavelmente, a amplitude da nossa capacidade de agir é muito menor do que imaginamos.

Atualmente, na psicanálise, não falamos muito sobre os deuses, mas não devemos nos esquecer do seu análogo contemporâneo, o enigmático outro (ver Laplanche, 1992, p. 12; 1999), um agente por si mesmo autônomo, uma pessoa cujas intenções nunca podem ser totalmente conhecidas e que é participante pleno em qualquer curso de ação iniciado pelas escolhas do analisando. O analista é um outro arquetípico enigmático; o modo do analisando resolver o enigma determina a sua escolha e o que a escolha pode significar. Por muito tempo, no nosso trabalho conjunto, o pensamento de William a respeito de continuar o tratamento foi moldado pela pressuposição de que eu era despótico, vingativo e opressivo. Vivenciar-se ou vivenciar-me de um jeito mais nuançado estava fadado a enfraquecê-lo, comprometendo o senso da sua própria capacidade de ação de um jeito que ao mesmo tempo o aterrorizava e o excitava. Por consequência, ele só podia escolher de modo desafiador, como o herói épico; em muitos aspectos, Helen, com cuja história iniciei este ensaio, continua a fazer escolhas dessa maneira. Para os analisandos - e para todos nós, à medida que empreendemos ações que coletivamente dão forma a nossas vidas -, o que a escolha pode significar num dado momento brota do contexto relacional dentro do qual a necessidade de escolher se apresenta. Esses significados estão num estado constante de fluxo dinâmico; sempre estamos, no trabalho com os pacientes, perseguindo um alvo móvel. As mudanças não são unidirecionais nem lineares; diversos significados aparecem, recuam e reaparecem no curso da análise cotidiana.

Mas a relação entre contexto e escolha é mais complexa, mais recursiva do que isso. O modo de escolhermos não só depende, mas também influencia reciprocamente o que é possível entre nós e os outros; o próprio contexto relacional é moldado pelo que a escolha significa para cada um dos participantes. As declarações súbitas e peremptórias da intenção de William de abandonar o tratamento criavam uma atmosfera de confronto e desafio; isso evocava em mim reações que afetavam o que cada um de nós podia compreender ou mesmo sentir num dado momento. Em geral, o que a escolha significa para cada um dos participantes é um tema central em todos os relacionamentos humanos; no setting psicanalítico, ela emerge da configuração da transferência e contratransferência, ao mesmo tempo em que a influencia. As maneiras pelas quais esses significados móveis afetam e são afetados pelo tratamento devem ser reconsideradas e redescobertas a cada instante de qualquer análise. É uma tarefa intimidante, que não só põe a nossa sensibilidade clínica à prova, mas também requer investigação teórica extensa.

Pensar a respeito das diversas maneiras pelas quais os poetas contaram a história de Orestes e das pelas quais William e eu contamos a história dele, de mim e da análise ilustra quão central a compreensão da escolha é para a construção das narrativas da história pessoal. Isto põe a escolha no âmago do que fazemos a cada dia, apesar das dificuldades de teorizar a respeito e apesar da nossa tradicional falta de inclinação para trabalhar diretamente com ela, clinicamente. O alvo é fugidio, mas à medida que podemos trazer a escolha para dentro da nossa maneira psicanalítica de ver, fortalecemos a nossa capacidade de avaliar e de trabalhar com um determinante crucial e muito negligenciado da qualidade da vida dos nossos pacientes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Jay Greenberg
275 Central Park West, 1BB
New York, NY 10024
E-mail: jayrgreen@aol.com

Recebido em: 18/08/2009
Aceito em: 09/09/2009

 

 

Tradução de Liana Pinto Chaves
Revisão técnica de Haroldo Pedreira
* Analista didata. Supervisor do William Alanson White Institute. Editor para a América do Norte do International Journal of Psychoanalysis.
1 Texto publicado originalmente no Journal of the American Psychoanalytic Association; 2008; 56; 690. © Sage Publications, Inc.

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