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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.77 São Paulo Dec. 2009

 

TRABALHOS NAO-TEMÁTICOS

 

"Odeio quando você lembra que eu existo"1

 

I hate when you remind me that I exist

 

Ódio cuando te acordás que existo

 

 

Ana Maria Andrade de Azevedo* , I Camila Pedral Sampaio**, I, II

I Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
II Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho visa apresentar o caso de uma criança de 8 anos, atendida em psicoterapia psicanalítica por um período de pouco mais de três anos com duas sessões semanais. São apresentados alguns relatos de sessões, bem como das entrevistas com os pais, com a função de mostrar a riqueza da elaboração da paciente, ao mesmo tempo em que apontamos para a dificuldade do trabalho, não devido a psicopatologia da família, mas também pela dificuldade da analista de ter alcance ao mundo psíquico da paciente. São feitas aproximações a algumas idéias de Armando Ferrari, André Green, Fabio Herrmann e W. Bion, partindo das noções Freudianas de Trauma e Repetição."

Palavras-chave: Psicoterapia psicanalítica de criança, Elaboração, Trauma, Repetição.


ABSTRACT

This work presents the clinical case of a eight year old child who attended psychoanalytic psychotherapy for a period of three years in a frequency basis of 2 sessions per week. The paper includes parents´ interviews and clinical sessions´ material in order to demonstrate the rich elaboration of the patient, as well as, to illustrate the analyst´s difficulties to access the psychic and inner world of the patient. The theoretical elaboration of the clinical material takes into account Freudian notions of trauma and repetition and also includes some ideas from Armando Ferrari, André Green, Fabio Herrman and Wilfred Bion.

Keywords: Child psychoanalytic psychotherapy, Psychic elaboration, Trauma, Repetition.


RESUMEN

En este trabajo se presenta un caso clínico de una niña de 8 años, atendida en psicoterapia psicoanalítica por un período aproximado de tres años con dos sesiones semanales. Se presentan relatos de sesiones y entrevistas con los padres mostrando la riqueza de la elaboración de la paciente y al mismo tiempo, enfocando las dificultades del trabajo no por motivos de la psicopatología de la familia sino por la dificultad de la analista para alcanzar el mundo psíquico de la paciente. Son efectuadas aproximaciones a algunas ideas de Armando Ferrari, André Green, Fabio Herrmann e W. Bion, a partir de las nociones Freudianas de Trauma y Repetición.

Palabras clave: Psicoterapia psicoanalítica en niños, Elaboración, Trauma, Repetición.


 

 

“Eu odeio quando você me lembra que eu existo!”, disse uma vez a pequena - repetindo algumas tantas outras - quando, contando com quase 8 anos, eu, sua terapeuta, ousava referir-me diretamente a ela no decorrer de uma sessão. O implicitamente ‘combinado’, que se tornara, por assim dizer, nosso estilo de trabalho, era brincarmos juntas, cada uma com seus personagens, cada qual com seus disfarces e nomes, a cada sessão inventados. Ela considerava ‘jogo sujo’ que eu ousasse mencionar o seu ou o meu nome em minhas falas. Passei a dar ‘tratos à bola’ para inventar modos de significar ou explorar o tema de nossas brincadeiras numa direção terapêutica. Ora me tornava uma vizinha bisbilhoteira que, comentando o que se passava na outra casa, acabava por permitir o surgimento de algum conflito ou fantasia implícitos, ora protagonizava com meu personagem conflitos difíceis para ela admitir, de modo que ela pudesse me ajudar a solucioná-los; enfim, explorava a brincadeira de modo a manter aberto esse canal, já que a conversa direta sobre o que se passava com ela, ou sobre o que se passava entre nós, era experimentada como uma intromissão. Então, disfarçávamo-nos. Vale o que nos lembra Fabio Herrmann, entretanto: “nunca alguém é tão ele mesmo como quando se quer fazer passar por outro” (Herrmann, 199, p. 220). Apostando nisso, procurava explorar esses mundos que a menina me trazia e manter livre o nosso trânsito ali; na verdade, contornando uma região sombria de sua experiência, que se referia, sobretudo, às suas relações com o pai e a mãe reais.

Essa área, ao que me parece, era aquilo cuja existência não deveria ser lembrada, a não ser em último caso, nas raras ocasiões em que ela me havia trazido notícias diretas dos acontecimentos em casa. Então, uma vez me dissera que não conseguia não falar para a mãe o que sabia não ser verdade (toda essa fala pelo negativo é aqui propositalmente acentuada; mais adiante será possível discutir seu significado). Confessou que já contara para todo mundo o que era o certo, mas que para a mãe não era capaz de fazê-lo. Numa outra ocasião, em que a mãe quisera levá-la a um programa sensacionalista de auditório e que ela não se sentia capaz de dizer que não queria ir, ela pediu que o pai entrasse na sessão para poder conversar comigo a respeito. Numa outra ocasião, ainda, ela me contou que vinha tendo muito medo na hora de dormir. Tinha medo que algo acontecesse a seu pai. Imaginava viadutos que poderiam cair sobre a cabeça dele, tremia à noite ao sentir presenças fantasmagóricas em seu quarto, junto a seu corpo. O medo era real. Pai e mãe eram reais. Usualmente, era justamente o real que não deveria dar mostras de existir. Ela odiava que eu a lembrasse dessa existência. Queria entrar por inteiro em suas histórias. Quanto ao medo, no mais das vezes, ela preferia iniciar suas histórias pela hora de dormir... E, no brinquedo, todos dormiam sem medo.

As notícias mais diretas do campo familiar me eram trazidas nas entrevistas que eu fazia semestralmente com o pai e sua segunda mulher. A pequena parecia contar com isso e me pedir que deixasse nosso contato se dar em outro campo. Eu entendia esse pedido como se fosse o de uma moratória. Um tempo livre de dívidas, livre dos embates do real. Entendendo que o conceito de trauma em psicanálise, pelo menos desde 1920, com Além do princípio do prazer, tem algo a ver com o confronto entre a psique e o ‘real’ - explico-me a seguir - cabe talvez agora perguntar qual a realidade cuja existência devia ser negada tão energicamente por essa pequena paciente. O que nos poderia ajudar a entender se tal realidade tem para ela características de um ‘real’ intolerável e traumático que só cabe repetir, ou se pode se inserir no caminho de uma elaboração. E mais: ajudar-nos-ia a discutir o que, nessa realidade, tem características que se podem considerar traumáticas: se o ‘real’ é acontecimento, ou se uma fantasia poderosa, capaz de criar efeitos reais, pode ser considerada igualmente potente, do ponto de vista do poder traumático.

Assim, levando em consideração as colocações de Freud (1920/1948a), estou considerando o conceito de trauma como o afluxo no interior do psiquismo de um montante de excitação tal que, seja por sua qualidade, seja por sua intensidade, o psiquismo encontra-se despreparado para acolher, de modo que permanece incapaz de ligar tal intensidade por meio de suas funções de representação. Ou seja, traumático para o sujeito é o encontro com estímulos que se comportam em relação a ele como um ‘real’ não representado, como algo que está para além de qualquer possibilidade de significação e de sua própria possibilidade de significar. Essas experiências permanecem como um rombo de significação no psiquismo.

Lucimar, a pequena paciente de quem viemos até aqui falando, vivera, em sua história real, episódios que bem poderiam se considerar traumáticos, mais ou menos classicamente, segundo se adote uma ou outra versão dos acontecimentos. Por uma ou outra versão, entenda-se: a versão do pai ou a versão da mãe, duas versões poderosas sobre a vida e o corpo/mente dessa menina, entre as quais mal se desenhavam suas próprias perguntas.

O pai e a mãe de Lucimar haviam vivido juntos por muito tempo e a relação já começava a chegar a seu fim, não imaginando eles qualquer possibilidade de terem filhos, quando ela foi concebida. A mãe não se acreditava capaz de engravidar, embora não tivesse feito nunca exames que lhe imputassem ou ao casal algum tipo de infertilidade. Ela simplesmente não achava que ficaria grávida; tinha já por volta de 40 anos e assustou-se verdadeiramente com a notícia da gravidez, sobrevinda das idas e vindas, encontros e desencontros de um final de relacionamento, com o qual, pessoalmente, não se conformava.

Separaram-se quando Lucimar tinha seis meses. As visitas do pai à pequena filha foram sempre dificultadas pela mãe, com atrasos e impedimentos e entremeadas por escândalos apaixonados. Foram necessários alguns recursos judiciais para administrar as visitas e arbitrar a possibilidade do pai levar a filha para passar o dia ou o fim de semana com ele, sem a presença da mãe e sem ter de se restringir a ficar em casa dela. De sua parte, ele havia reconstituído sua vida, casando-se novamente com uma mulher divorciada, que tinha do primeiro casamento outros filhos. Era essa a família que ele passava a oferecer à filha.

Quando Lucimar contava com 3 anos, sobreveio o acontecimento que havia de marcar sua história e sua vida: a mãe acusou o pai de estar abusando sexualmente de Lucimar. Dizia ter ouvido isso da própria filha. O pai negava veementemente essa acusação e, por sua vez, acusava a mãe de estar, através de estratagemas, forçando a filha a falar coisas inventadas por ela, mãe. Todas as diligências pacíficas montadas no intuito de esclarecer a situação foram interrompidas por atuações da mãe, que permanecia recorrentemente acusando o pai e encontrando razões para levar a filha ao IML, para exame de corpo de delito, no intuito de comprovar suas suspeitas. As perícias montadas no caso não encontravam indícios ou sinais que comprovassem a culpabilidade do pai. A mãe permanecia gritando suas certezas, que se convertiam em absolutas à medida que o tempo passava. Em torno de si espalhava antipatia e indisponibilidade. O juiz da vara da infância e da família passou a recear que a mãe pudesse, com suas atuações, pôr a criança em risco. Sugeriu ao pai que pedisse a guarda da filha. Vale notar que a criança, Lucimar, acompanhava essas situações, sendo intensamente questionada pela mãe.

Assim, com 3 anos, Lucimar foi separada de sua mãe e foi viver com a avó paterna, sob guarda provisória, numa cidade do Nordeste, enquanto aguardavam a decisão judicial definitiva. Nessa época, eu soube do caso, tendo sido procurada pelo pai para um aconselhamento. Dois anos mais tarde, quando a sentença judicial concedeu em primeira instância a guarda de fato ao pai e este a trouxe para morar consigo, ele a conduziu a mim, no intuito de pedir ajuda psicoterapêutica para a filha.

Informada da procura da terapia, a mãe veio ao meu consultório, trazendo, numa pasta cheia de documentos relativos ao processo, aos quais acrescentara seus próprios comentários por escrito, o que dizia ser sua versão dos fatos. Avisou-me que não pretendia participar da terapia da filha. Mas me fornecia sua contribuição, já que, de sua parte, tinha certeza que o ex-marido abusara da filha e continuava a fazê-lo. Não tendo encontrado, nem no contato e nas brincadeiras com a menina, nem nas longas entrevistas, feitas com o pai e a nova esposa, qualquer indício ou sinal de abuso sexual por parte do pai, aceitei tratá-la, com a dúvida sobre qual seria ou teria sido o efeito dessa convicção materna tão poderosa sobre o psiquismo infantil. Se não tinha havido abuso factual, havia, sim, parecia-me, um violento derramamento de palavras e significações adultas sobre o corpo de Lucimar, seus sentidos, orifícios e mucosas tendo sido precocemente anunciados e atados a uma significação adulta. Tanto o pai como a mãe insistiam com suas “versões” dos fatos, sem qualquer possibilidade de diálogo. Versões que se afirmavam como “verdades” sobre os acontecimentos, produzindo no espaço mental da menina a presença contraditória e excludente de um pai e uma mãe que se contrapunham violentamente, entre si e na consideração dos fatos.

Caberia aqui refletirmos sobre as condições de integração corpo-mente presentes nessa situação. Armando Ferrari (2004) é um autor que aborda a importância da relação corpo-mente na formação do psíquico, enfatizando que as impressões sensoriais, vivências e situações pelas quais o objeto concreto, “o corpo”, passa no início da vida, são determinantes na constituição do universo psíquico e no desenvolvimento das funções mentais. Esse processo, chamado por ele de mentalização, requer que o “corpo” (OOC)2 seja “eclipsado”, para dar lugar não apenas a um objeto externo, como também à categoria do psíquico.

Nas descrições que os pais trazem de Lucimar, assim como nos próprios relatos desta, fica evidente que esse “corpo”, nunca saiu de cena. Foi estimulado, nomeado em detalhe, observado e tocado concretamente, de forma a não deixar dúvida quanto à sua existência e importância. E será que foi possível a Lucimar “eclipsá-lo”, dando lugar para que a atividade psíquica simbólica se desenvolvesse?

Parcialmente, talvez sim. No entanto, é lícito pensar que tanto o processo intrasubjetivo como o intersubjetivo tenham ficado bastante prejudicados, e que o paradoxo central entre corpo e mente, biologicamente significativo, não tenha alcançado um resultado satisfatório. Segundo esse autor, a experiência humana origina-se na experiência de ser um corpo vivo, que constantemente emana sensações e emoções, ao mesmo tempo em que, possuindo uma mente, tem de registrar e lidar com as informações vindas do corpo para representá-las psiquicamente. A hipótese de Ferrari supõe a mente como uma função do corpo.

Assim como Bion (1962), Ferrari também salienta a importância da presença materna, com a função de rêverie, para que esse processo inter e intrasubjetivo tenha êxito. É na relação com a mãe (mundo externo) que as emoções e sensações, sendo contidas, podem vir a ser significadas e registradas. Uma atitude de perplexidade e incontinência de uma mãe angustiada, diante das angústias da criança, como parece ter sido o caso da mãe da paciente, com uma vivência de desorganização psíquica como consequência dessa perplexidade, irá determinar a perplexidade da criança, além de potencializar suas angústias. Em lugar de se criarem sentidos, há um incremento na falta de sentido.

Como menciona André Green: “Psiquismo é espelho, quer dizer, não apenas imagem, mas o retorno da imagem acrescida de elementos, ao si mesmo, para que o eu possa vir a tornar-se si-mesmo” (1995, p. 279). Sem essa possibilidade, é quase impossível sair do concreto, da prisão do sensorial e do emocional, para adentrar o psíquico, o sentido e a continuidade do ser. Poderíamos pensar a experiência e a vivência de Lucimar, desde cedo, de outra forma que não esta, certamente “traumática”?

Partindo do suposto que tudo isso ocorreu muito cedo na vida de Lucimar (3 anos), quando o que entendemos por corpo-mente começava a se estruturar, em relação à possibilidade de representação psíquica da experiência, e que se repôs permanentemente ao longo dos anos seguintes, não tendo sido confirmado nem recusado inteiramente e tendo permanecido em circulação no universo de significações parentais da menina, podemos supor que as consequências em seu mundo interno foram intensas e profundas. É minha hipótese que esse corpo que primeiro sentiu o trauma, seja em termos de “real abuso”, seja em termos de angústia “inominável”, desenvolveu, a partir de então, caracteristicamente, uma precocidade em seu desenvolvimento psicossexual, ao mesmo tempo que, paralelamente, teve de encontrar formas para lidar com o trauma em nível do psíquico, tais como o splitting, a negação, a identificação projetiva e, certamente, a repressão. O “real” vivenciado como insuportável parecia conter a presença de um pai e uma mãe em confronto, em luta. Luta cujo ringue era o seu próprio corpo. A vivência provável foi de total desamor. O que se opunha ao “real” incompreensível e intolerável, constituindo-se num outro universo, eram suas fantasias, suas ilusões que de certa maneira a ajudavam a falar do impensável.

Dotada de excelentes condições intelectuais, Lucimar parecia ser capaz de criar linguagens plásticas, atividades lúdicas elaboradas e muitas vezes códigos cifrados. Ao longo de mais de dois anos de trabalho, fomos passando por fases muito diversas, pontuadas por brincadeiras características que iam se substituindo e, após repetições e retomadas, dando lugar a novas formações lúdicas. A preocupação que se manteve comum nesse tempo foi a de manter e alimentar aquele espaço de brincadeira, tão livre quanto possível, respeitando o entendimento de que ali deveria constituir-se um campo neutro, capaz de possibilitar sua expressão. No mais das vezes, no entanto, nesse nosso estilo de brincar, acabávamos assumindo quase sempre uma situação de duplicação de cenas. Fazíamos duas famílias, dois desenhos, duas empresas; quero dizer, tínhamos mais frequentemente duas cenas que interagiam entre si do que uma cena na qual nós duas ocupávamos papéis diferentes. Assim, era preciso encontrar uma maneira de visitar a cena ocupada por ela, de estabelecer uma possibilidade de comunicação e trânsito entre nós, com um mínimo de referência direta à nossa interação como analista e paciente, ou como adulto e criança.

Os fragmentos de sessão que pretendo trazer para a presente reflexão referem-se a uma fase de nossos encontros caracterizada por essa duplicidade de cenas, cada uma de nós habitando um espaço de modo próprio. Passei a supor que essas duplas cenas podiam ser entendidas como uma referência à sua dupla vida, tão diferente quanto possível entre a casa da mãe e a casa do pai. Lucimar precisava viver e afirmar verdades muito diferentes em cada um desses ambientes; e essa situação não vinha podendo ser modificada, o que em muito me preocupava. As duplas cenas também refletiam o estado de seu mundo interno psíquico, dividido, negado e muitas vezes cindido e atuado, de forma a buscar um equilíbrio entre as polaridades: Bom e Mau, Certo e Errado, Pequeno e Grande, Real e Imaginário, Pai e Mãe, Amor e Ódio, Corpo e Mente. A presença de um desses aspectos imediatamente evoca seu contrário. A noção oferecida por André Green sobre o “trabalho do negativo”, em muito ajudou para que fosse possível prosseguir no trabalho “A presença do ausente”, tornava-se um elemento fundamental para a compreensão de seu material: a toda ação, a todo gesto correspondia concomitantemente seu contrário. Ser e não ser complementavam-se; vida real e imaginária também. Nas sessões, analista e analisanda dividiam papéis e funções. Recentemente, em uma última entrevista realizada com o pai e a esposa, eu fora informada de que ele havia vencido o processo judicial em instância superior. Isso era animador. Por outro lado, Lucimar havia revelado à madrasta, numa situação bastante descontraída entre elas, que, quando a mãe lhe perguntava se o pai ainda abusava dela, pergunta que ela sempre refazia, ela ainda dizia que sim. Já tentara ‘desdizer’, mas a mãe parecia não ouvir. Por assim dizer, desistia. Não conseguia.

Então, ela não conseguia não dizer para a mãe que o pai não mexia com ela. Essa frase, ou uma formulação muito semelhante a essa, que fora dita há muito tempo, numa sessão remota, volta a se apresentar em minhas considerações. Pergunto-me sobre o sentido desse excesso de negações, que chega, me parece, a afirmar aquilo mesmo que quer ser negado. Vejamos. Ela não consegue não dizer. Isto é, dizer é não desdizer. Ela não desdiz algo que não ocorre. Então, o seu dizer é negativado. O que significará isso? Ora, sabemos, com Freud (1925/1948b), que a negativa é uma forma de tomar em consideração, de considerar um elemento ao revés, sem que o conteúdo precise ser assumido pela consciência, mas também sem que seja reprimido e/ou afastado definitivamente dela. O conteúdo negado está, por assim dizer, em suspenso, existindo enquanto possa não ser descartado. Não deixa de existir, não se integra ao eu, e tampouco pode ser esquecido, deixado de lado.

Assim, podemos pensar que o “suposto abuso” sexual por parte do pai, com tudo o que implica enquanto contorno e significação no corpo e no psiquismo da menina, existe como algo a negar, portanto, como algo presente por sua ausência. Reapresenta-se incessantemente como uma realidade a recusar, a descartar. Existe como não existindo. Como algo que não se aloja no eu, mas tem de ser reafirmado repetidamente, ainda que para ser desmentido logo depois. Acontecimento que se propõe como moeda de troca entre ela e a mãe, não podendo desaparecer da cena psíquica da menina e da trama afetiva que a une à mãe. Repetidamente, no entanto, um “não” lhe será anteposto na forma do não desmentido, quando se defronta novamente com a casa paterna. Criam-se, assim, para ela, duas realidades, dois corpos, dois mundos a sustentar.

A negativação tem como objetivo diminuir o surgimento da angústia, sendo, portanto, parte de uma atividade defensiva. Mas não só isso está presente nessa atividade. As feridas narcísicas, a perda objetal e também os problemas relativos ao “ideal do ego”, agem despertando depressão e sofrimento. É contra tudo isso que o negativo se instaura, numa tentativa de enfatizar a presença, onde há ausência, mitigando a exigência pulsional sem colocar em risco a própria vida. Para Green (1995), “o trabalho do negativo tem por função a contenção da agressividade e da subversão dos valores pessoais, superando a dicotomia entre o sim e o não, o real e o imaginário, o existente e o não existente” (p. 282).

Essa era a referência com a qual eu entendia as duplas cenas vividas por nós em sessão. Numa dessas sessões, Lucimar trouxe de casa material de escritório, em duas sacolas. A novidade, ao que me parece, era um telefone de verdade, aparentemente desprezado em sua casa, com que ela pretendia montar um escritório. Nós vamos ter dois escritórios. Mas... olha-me apiedada e diz: “Que pena, não trouxe tudo igual para você! Mas você pode usar as coisas daqui, não é?”. Essa era a montagem, então: ela rica e eu pobrezinha, com o que restasse. Era mesmo o máximo aquele telefone! Era preciso instalá-lo num belo lugar. Ela escolhe a bancada onde será seu escritório e começa a montá-lo, com os apetrechos trazidos de casa. Eu escolho um lugar para o meu escritório, na escrivaninha onde habitualmente trabalho. Mas algo aí não funciona para Lucimar. Ela vai ficando angustiada, descontente com suas instalações, e a brincadeira não pode prosseguir. A minha escrivaninha lhe parece um lugar muito melhor e ela se desespera. A montagem, então, não cumpriu sua função de controle da angústia, através do disfarce que tudo iguala, que se destina a impedir que ela se perceba uma criança diante de um adulto, eu, que, a seu ver, tudo pode e tudo tem. A sessão se encerra em pleno desespero regressivo, só atenuado com o telefonema feito para sua casa do aparelho quebrado que trouxera. Afinal, o aparelho era mesmo o máximo. Mas sua ‘realidade’ talvez tenha tido um impacto descompensador. A ligação entre eu e ela, a comunicação entre seus dois mundos, o de realidade e o idealizado, não se completa.

Na sessão seguinte, Lucimar traz de casa duas sacolas de roupas. São roupas herdadas das irmãs que ainda não servem nela, ou roupas próprias que já não servem mais. Comento que estou vendo que ela trouxe muitas coisas, que provavelmente tem muitas coisas dentro de si para me mostrar. Comunica-me que vamos montar uma loja. A arrumação da loja toma tempo considerável. Põe preços em todos os produtos, dispõe as roupas pela sala. Escolhemos nossos nomes, fazemos nossos crachás. Ela será a dona. Eu vou comprar. Depois inverteremos as posições. A montagem aqui parece mais eficaz. Somos agora duas adultas em relação. Para Lucimar, tudo se resolve no crescer. Ser adulto é estabilizador. Aqui, ela pode aproveitar minha presença e minhas sugestões, sem sentir-se atingida pela falta, ou pela impotência, sem medo das diferenças e das surpresas. Ao final, ela pede que eu dê um nome à loja. Escreve num cartão, então, o nome dado, ‘Coisa Pouca’, com nossos nomes embaixo. Entendo que fizemos uma sociedade e comemoro com ela. Temos, finalmente, a chance de compor uma cena.

As duas sessões acima antecipam aquela que escolhi para refletirmos. De tal feita, Lucimar traz novamente material de escritório, agendas, cadernetas para anotação, cartões, celulares, tudo muito bem dividido dessa vez em duas sacolas, cada qual com exatamente a mesma coisa que a outra. Uma é minha, outra é dela. Vamos trabalhar em banco. Ela se dispõe em minha escrivaninha. Eu fico na bancada que ela escolhera anteriormente. Nada de usar o telefone de verdade hoje. Vamos transformar outros objetos em telefones, como sempre. Mantemos os nomes da sessão anterior. Ela dá ordens, quer ‘aqueles’ cheques imediatamente. Eu começo a fabricá-los, mas resolvo ligar para ela para ‘bater-papo’, busco aliança; ela me trata mal, não tem tempo a perder. Eu comento em voz alta: “O que estará acontecendo? Minha amiga está esquisita, parece que não quer conversar hoje... não estou entendendo... queria tanto conversar, contar as novidades, fico aqui só fazendo estes cheques sem sentido, que não sei para que servem...”. Enquanto isso, vou tentando novos contatos, percebendo que nossa conversa hoje se dará pela via do fio imaginário. Ela parece sensibilizar-se e começa a me responder mais detidamente. Certa altura, começa a me dar instruções: “Anote aí: Marisa Monte. Ponto. Noutra linha: Rua dos Vergates, 115, traço B. Telefone: 5555-128978. Agora a senha”. Me dita, então, uma sucessão de sinais, complicados de entender e reproduzir. Dado instante, vem até a minha mesa e diz que eu anotei tudo errado, não tenho mesmo jeito, sou burra. Vou enunciando minhas dificuldades ali: sou alguém em apuros em frente a um código secreto que não consigo entender. “O que será que isso quer dizer? Sei que tem um sentido, mas não consigo decifrar... É muito difícil ter que se haver com uma mensagem cifrada como essa!”. Ela está imperturbável diante das minhas dificuldades. Liga-me novamente e continua a mensagem: “Marisa Monte e Mármore, anota aí: ‘tseid’. Isso quer dizer casamento, mas não precisa anotar. Agora, continua: xx, dois traços longos...” e mais uma sucessão de sinais incompreensíveis se enfileiram em minha caderneta. Eu digo: “Parece que estamos então falando em outra língua, mas eu não entendo essa língua, que posso fazer? Esse Mármore, aqui, será alguém frio, de coração de pedra?”. Faço tentativas de abrir o campo. Decido tomar uma providência, vou ligar diretamente para Marisa, já que tenho o telefone anotado. Lucimar gosta da ideia. Levantando-se da cadeira, transforma-se em Marisa Monte, M. M., e me atende. Está com pressa, não tem tempo a perder, vai fazer um show. Diz que eu posso confiar em Alice - nome da personagem vivida por Lucimar. Viveram juntas por muito tempo, é muito sua amiga. As cifras todas são apenas a senha que ela tem para acessar o banco.

Acho significativa a saída encontrada pela pequena. Está então me falando do produto - cifrado - de uma grande intimidade com essa Mulher Misteriosa, ao mesmo tempo inacessível e admirada, M. M.: quem sabe, duas vezes mãe. Intimidade que a deixa às voltas com uma ‘mensagem enigmática’, na forma de um código cifrado acerca de um tema que ela ao mesmo tempo reconhece e desconhece. A fantasia materna, existente nela como um enigma, obriga Lucimar a manter uma relação cifrada com a mãe. Talvez comece a poder me falar da angústia dessa relação, em que ela deve se relacionar por códigos incompreensíveis nos quais se defronta, incessantemente, com uma incapacidade de tradução e de alteração - “não consigo...” -, o enigma materno existindo nela como uma suspensão negativada, que a faz “conseguir” manter o amor e o interesse da mãe por ela.

Propor à analista um código que não tem provavelmente decifração nem para ela mesma, é pedir à analista que diga que saiba aquilo que ela não sabe, que reforce o que ela acha que sabe; enfim, que a tire desse estado atormentador de ser e não ser. É pedir à analista que seja pai e mãe, anulando essa realidade contraditória e desconcertante que a rodeia. Na verdade, em seu mundo psíquico, realidade e fantasia, presente e ausente se confundiram, se misturaram a ponto de se constituírem em material cifrado. Com a mãe, ela usa o código proposto por esta, para manter o relacionamento e, provavelmente, corresponder ao que imagina seja o desejo desta. Mas qual é a linguagem possível com o pai? Que canal de comunicação, que códigos, que sentidos essa relação adquire? Supomos que o medo e a depressão encobrem e disfarçam, provavelmente, o desejo, as fantasias e as ilusões que poderiam surgir dentro dela em relação a esse pai “abusador”.

Na verdade, Lucimar só pode dar continuidade a essa existência dupla, tanto na análise, como com os pais. Ela é a menina abusada, e ela não é a menina abusada. Ela não pode dizer, nem desdizer. Paralisada, impossibilitada de ter uma versão da realidade e de sua história, que corresponda ao que ela conhece e experimentou, Lucimar busca reproduzir, nessa dualidade presente e em seus disfarces, suas angústias e temores e aquilo que lhe permanece incompreensível, na esperança de que em algum momento seja tolerável existir, sendo ela mesma.

A proposta psicanalítica supõe que é somente com o estabelecimento de um sentido, veiculado na experiência e carregado pelos afetos, que pode vir a se estabelecer um vínculo estável e forte entre o “interior” (psíquico) e o “exterior” (real), entre o si mesmo e o outro.

Os dois autores citados, Armando Ferrari (2004) e André Green (1995, 1999, 2001), diferem em muitos aspectos em seus referenciais teóricos; no entanto, aproximam-se num ponto que parece ser fundamental: a importância do estabelecimento de uma relação intrapsíquica, ou seja, da pessoa com ela mesma, para que o universo psíquico possa se desenvolver e serem criadas representações simbólicas.

Para Lucimar, o “real” e o “psíquico”, não se complementam, nem se contrapõem. Não podem coexistir desde que para ela a identidade não se completou, a separação e a discriminação entre ela e o outro é precária, determinada mais por suas fantasias e desejos do que pela realidade. Ela é Lucimar e Alice, protagonista e expectadora de seus próprios “shows”, assim como muitas vezes reveza com a analista esses papéis. Ela tem um corpo que desconhece e do qual ignora o significado, enquanto tem uma mente que procura se separar e se afastar da experiência real, privilegiando o disfarce, a magia e a onipotência. Integrá-los é extremamente difícil. À imaturidade psíquica de Lucimar, no momento em que se viu ante a separação dos pais e as angústias e acusações da mãe, se acrescentou uma imaturidade física, o que determinou o estado denominado aqui de “traumático”, um estado em que não foi possível haver nem continência interna, nem externa.

 

Referências

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Green, A. (2001). El tiempo fragmentado. Buenos Aires: Amorrortu.        [ Links ]

Herrmann, F. (1999). A paixão do disfarce. In F. Herrmann, A psique e o eu. São Paulo: HePsyqué.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Andrade de Azevedo
R. Dona Maria Carolina, 51 - Jd. Paulistano
01445-000 São Paulo, SP
Fone: (11) 3061-2362
E-mail: amaaz@osite.com.br

Recebido em: 23/09/2009
Aceito em: 07/10/2009

 

 

* Membro efetivo e analista didata da SBPSP. Docente e supervisora no Instituto de Psicanálise da SBPSP.
** Membro filiado do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Docente e supervisora do curso de Psicologia da PUC-SP. Faleceu em julho de 2009, aos 54 anos.
1 Camila Pedral Sampaio contou com a colaboração de sua supervisora, Ana Maria de Andrade Azevedo, para a elaboração e redação final deste material clínico, que foi apresentado no Congresso Internacional de Psicanálise da IPA, realizado no Rio de Janeiro, em julho de 2005.
2 Objeto Original Concreto.

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