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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.77 São Paulo dez. 2009

 

TRABALHOS NAO-TEMÁTICOS

 

Os (des)caminhos de Édipo: a resposta é o infortúnio da pergunta1

 

Oedipus (mis)conceptions: la réponse est le malheur de la question

 

Los (des)caminos de Edipo: la respuesta es el infortunio de la pregunta

 

 

Claudio Castelo Filho*

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Livre docente em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor parte da análise de uma pessoa que se desenvolve de forma acentuada profissionalmente e intelectualmente, mas evita e teme contato mais profundo com sua intimidade e com seus sentimentos, e faz uma analogia com o mito de Édipo no seu trajeto para encontrar-se consigo mesmo. Propõe que seu real problema seria sua incapacidade para pensar. Onisciente, confunde o que sabe de si com os próprios fatos. Certo de quem e do que é, age, o que o leva à sua tragédia. Tem as respostas, porém não a sabedoria. É uma autoridade moral (rei) que busca culpados, o que o impede de ver o que está diante de si. O analista não deveria considerar os problemas que lhe são propostos, mas os que observa no contato com os analisandos. Para não incorrer nos equívocos de Édipo, deve esquivar-se da função de autoridade moral e focar-se no que não sabe, no que desconhece.

Palavras-chave: Édipo, Alucinose, Culpa, Pensamento, Pergunta, Desconhecido.


ABSTRACT

The author presents a clinical situation where the analysand has reached great intellectual and professional development but fears and avoids a deeper contact with her own feelings and emotional experiences. He sees a parallel in Oedipus story and in his discovery of his actual self. Following Oedipus steps, the author proposes that his real problem is his incapacity to think. He confuses what he knows with the ultimate reality of the facts. Without any doubt about who or what he is, he acts, what leads him to his tragedy. He knows the answers, but is not wise. He is a moral authority (a king) in search of a culprit, what impedes him to see what is right in front of his eyes. The analyst should not get involved with the problems that he is told to consider, but he must pay attention to the ones that he can observe in his relationship with the analysand. In order not to fall in Oedipus errors, he must avoid the function of moral authority and focus his attention in what he does not know, in the unknown.

Keywords: Oedipus, Hallucinosis, Guilt, To think, Question, Unknown.


RESUMEN

El autor tiene como base el análisis de una persona que se desarrolla de manera acentuada, tanto profesional como intelectualmente, pero evita y tiene miedo al contacto más profundo con su intimidad y con sus sentimientos. Él hace una analogía con el mito de Edipo en su trayecto para encontrarse con sí mismo. Él propone que su verdadero problema sería su incapacidad para pensar. Omnisciente, se confunde entre lo que sabe de sí y lo de sus propias acciones. Seguro de quién es y de cómo es, opera, y así empieza su tragedia. Tiene las respuestas, pero no tiene el conocimiento. Es una autoridad moral (rey) que busca a los culpados y esto lo impide de ver lo que está delante de sí mismo. El analista no sólo debería tener en cuenta los problemas que le son presentados, sino también los que observa en el contacto con los analisandos. Para no cometer los mismos errores de Edipo, debe evitar la función de autoridad moral y fijarse en lo que no sabe, en lo desconocido.

Palabras clave: Edipo, Alucinosis, Culpa, Pensamiento, Pregunta, Desconocido.


 

 

Introdução

A analisanda, muito inteligente e competente no seu trabalho, conforme seus relatos, com muitos anos em análise, desenvolveu-se profissionalmente de forma notável durante o tempo que estamos trabalhando. Porém, segundo minha observação, mantém-se muito distante de um contato mais próximo com sua vida emocional, evitando ao máximo vivências de intimidade afetiva comigo no consultório. Ela é alguém que costuma ter resposta para tudo e possui um severo senso crítico em relação aos demais seres humanos. No nosso trabalho, amiúde demolia, de forma aparentemente educada e polida, proposições que eu lhe fazia e que estivessem em desacordo com suas ideias de si mesma e dos fatos que a rodeavam (incluindo meu testemunho sobre o que eu via se passar entre nós no consultório: o que ela não via, não existia). Contudo, o trabalho tem evoluído e ela tem se permitido aberturas antes inexistentes.

Narro uma sessão, como modo de introduzir o tema deste artigo.

Ela deita-se e fala que se sentiu contente e feliz por me encontrar, por ter chegado o horário da sessão. Contudo, continua, verifica que logo em seguida sente certo desconforto, um mal-estar, e se vê sem ter o que dizer e não encontra mais sentido no que estaria fazendo.

Permanece vários minutos em silêncio.

Após alguma reflexão, digo-lhe que ela vivia como algo assustador e intolerável os sentimentos de afeição, contentamento e proximidade, experimentados ao me encontrar, e, por conta disso, tomava providências para conseguir um afastamento, um distanciamento “protetor”, invertendo seu movimento de aproximação para um de afastamento.2 A proteção, porém, levava-a a sentir-se esvaziada e sem sentido. O bem-estar virava mal-estar.

Ela diz não saber bem por onde o que eu digo repercute nela, mas considera que faz sentido. Faz mais uma pausa e comenta que se viu longe, distante dali, pensando em tarefas de seu trabalho e coisas similares.

Digo-lhe que parece ser exatamente a mesma coisa. A diferença consistia somente em ter o distanciamento se tornado ainda mais acentuado: ela, praticamente ao pé da letra, indo para um lugar longe do consultório. Eu havia dito algo que fizera sentido e ela teria sentido a minha proximidade. Imediatamente, tomou medidas para que houvesse um grande distanciamento, pois a proximidade a teria assustado. Faço um breve silêncio e, em seguida, acrescento que ela tomava essa providência em razão do temor que experimentava ao viver uma violenta atração no sentido oposto: ou seja, seu movimento inicial seria o de lançar-se para dentro de mim, de mergulhar dentro de mim, de grudar-se de tal maneira em mim, que temia não mais ser capaz de se ver dissociada de mim.

Novamente ela comenta que minha proposição parece encontrar eco dentro de si, mas ao mesmo tempo não consegue entender direito o que estou dizendo.

Falo-lhe usando uma analogia. Conto sobre o cometa que há uns quinze anos aproximou-se demasiadamente da órbita de Júpiter e acabou tragado pela atração que sofreu por parte dele: ao precipitar-se e desaparecer para sempre nas nuvens daquele planeta, passou a fazer parte do mesmo, não mais tendo existência própria.

Ela diz que faz realmente sentido o que estou lhe dizendo, e parece verificar que toma mesmo providências para manter-se longe e afastada, sentindo que fica fria, dura e “racional”.

Proponho-lhe que tais vivências equivalem às de um bebê que encontra a mãe, ou o seio, e fica intensamente mobilizado, querendo grudar-se, imergir, confundir-se com o seio ou com a mãe. Ao mesmo tempo, fica apavorado com a possibilidade de sumir ou ficar retido dentro dela. Vive esses sentimentos como intoleráveis e toma providências no sentido oposto, para escapar o quanto antes de tal evento. Por outro lado, a mãe e o seio poderiam também se sentir extremamente assustados com a captação de sentimentos dessa intensidade e, sem saber o que fazer, apavorados, também poderiam tomar providências para dar um “chega pra lá” nesse bebê que se aproxima com um imenso “bocão”. Da mesma maneira, ela também temeria que eu reagisse de forma similar se a visse chegar tomada por esses sentimentos e anseios de precipitar-se para dentro de mim e confundir-se comigo, repelindo-a ou censurando-a de algum modo.

Fica mais uns instantes em silêncio e, quando finalmente se expressa, considera que pode ter tomado a mesma medida de ir para muito longe porque ficou pensando nos seus filhos e numa conversa que teve com um deles recentemente, via computador (voip), pois ele mora em um lugar distante.

Digo-lhe que percebia de forma diferente: a meu ver, considerava que ela estava dando sentido ao que eu havia dito, pois a providência de tomar distância - por medo do que poderia resultar a proximidade - parecia ser o método encontrado por ela e seus três filhos homens que precisaram, todos, se expatriarem, ficando longe dela e uns dos outros, pois quando estavam juntos, conforme relatos que ela havia feito inúmeras vezes, se desentendiam de forma acentuada e o clima ficava muito difícil de suportar, ao contrário das conversas que tinham quando se encontravam separados por oceanos e mediados por telefones ou computadores.

Ela reage um tanto indignada à minha proposição: que eu estaria exagerando, que não seria bem assim, etc. Tal situação, diz, não teria cabimento. Proponho-lhe verificar não se tem cabimento ou não, mas sua experiência ao considerar meu enunciado. Ela comenta que experimentaria um forte desconforto se reconhecesse o que estou dizendo. Sente que não quer pensar nesse assunto. Falo que sua atitude de se afastar da experiência e do desconforto do que poderia verificar por meio dela era o seu método habitual para lidar com situações penosas ou que tivessem uma forte intensidade, mesmo que não fossem necessariamente desagradáveis. Ao fazer isso, contudo, tomava tal afastamento de si mesma e de sua experiência que temia perder contato com a realidade e consigo mesma.

Ela diz que parecia ser assim mesmo, já que durante alguns instantes tinha se visto pensando numa situação de trabalho com um colega, em que notou estar se sentindo muito distante da situação em questão e, num determinado momento, temeu perder-se no estado em que se viu, ficando com medo de não conseguir mais “voltar” para a reunião com o colega. Teve de fazer um esforço para conseguir “voltar” e manter contato com o que estava fazendo. Sentiu-se muito assustada por um breve instante. Considerou igualmente que se via fazendo uma tarefa, que sabia bem como fazer, mas não sabia se gostava ou não de fazer aquilo. Na verdade, não sabe o que de fato quer.

Comento que o seu modo de se proteger das vivências intensas e/ou penosas, que era o de romper contato com sua experiência, também a levava a temer uma desconexão mais violenta da realidade, sem volta. De tanto medo de precipitar-se como o cometa sobre Júpiter, ela tomava providências que podiam igualmente lançá-la num espaço infinito e sem retorno, ficando para sempre perdida nele.3

Digo-lhe que minha proposta seria a de experimentarmos aquelas vivências, que ela sente como insuportáveis e impensáveis, juntos, pois eu considerava ter uma condição para ajudá-la a assimilá-las e pensá-las, e que, eventualmente, isso poderia torná-la mais apta para administrá-las. Essa condição, que eu teria a presunção de ter, ela não teria encontrado antes em nenhum outro de seus relacionamentos - a despeito de quão bons possam ter sido. Desse modo, o contato com essas vivências - que ela percebia como impensáveis e assustadoras -, junto comigo, poderia ocorrer sem que isso resultasse em confusão dela comigo, ou em distanciamento dela com a realidade e de si mesma (o que a impede de reconhecer suas reais inclinações e interesses).

A sessão chega ao fim. Ela sai, olhando-me com certa intensidade nos olhos. Sua expressão indicava, a meu ver, uma curiosidade intrigada e alguma perplexidade. Sugeria também um intenso afeto.

 

O não pensar, o pensar e o mito de Édipo

O mais habitual é destacar no mito e na tragédia de Édipo o componente sexual. Contudo, há algum tempo Bion deslocou a importância da sexualidade do centro da questão edípica e colocou no cerne dela a capacidade para pensar. A sexualidade propriamente não constitui problema. Tampouco o incesto. O incesto é decorrência das limitações da capacidade para pensar, assim como as outras “encrencas” que podem envolver a expressão da sexualidade.

Desde então, podemos considerar que o problema de Édipo não era o do incesto e da sexualidade - mas de não poder ele pensar. Não podendo pensar, naturalmente, não poderia, entre outras questões, considerar a sexualidade

O problema de Édipo era, fundamentalmente, a sua arrogância. Ressalvo aqui que não estou considerando a arrogância um defeito moral. Como bem destacou Klein (1946), a arrogância é manifestação de um “mecanismo de defesa” contra a angústia (começando pelo medo de aniquilamento que se manifesta desde os primórdios de nossa existência pós-uterina). O mecanismo de defesa é a onipotência.

Édipo estava certo de que sabia quem era. Não tinha qualquer dúvida quanto a isso. Ao ouvir o vaticínio do oráculo de que estava fadado a matar o próprio pai e desposar sua mãe, sem qualquer questionamento, sem qualquer dúvida ou averiguação, desterra-se de Corinto, convicto de seus conhecimentos sobre si mesmo. Ele sabe quem são seus pais e quem ele é. Agindo dessa maneira, evitaria o vaticínio.

Quando chegam aos nossos consultórios, nossos pacientes também estão convictos de que sabem quem são e o que aconteceu em suas vidas. Relatam seus históricos e os supostos traumas que sofreram - sobretudo por parte de pai e mãe. Não têm qualquer dúvida sobre esses “eventos” e suas decorrências.

Um sério problema que com frequência observo quando faço supervisões de colegas muito bem-intencionados é o seu costume tomar ao pé da letra as histórias que ouvem de seus pacientes e as descrições que eles fazem de seus pais. Não conseguem perceber que aqueles pais do analisando não necessariamente possuem qualquer relação com os pais que realmente tenham ou possam ter tido.4 Não verificam que aqueles pais do paciente podem ser como os pais que Édipo tinha convicção de serem os seus. São histórias contadas pelos pacientes sobre os mitos que têm a seu próprio respeito. Os pais do analisando (salvo quando se trata de crianças) não são verificáveis pelos analistas. Mesmo se tratando de crianças, quando os pais “reais” podem ser entrevistados, seria sempre sensato considerar que os pais aos quais as crianças em análise se referem não são aqueles entrevistados, mas aqueles que elas têm em suas cabeças. Da mesma maneira, os filhos referidos pelos pais em entrevistas são aqueles que os pais têm em suas mentes, mas que não necessariamente correspondem às crianças observadas nos atendimentos, quando eles ocorrem. O analista que vai atender a criança descrita pelos pais acaba não enxergando a criança que tem diante de si, que pode ser muito discrepante daquela sobre quem recebeu informações dos pais ou por meio de anamneses. Freud levou um susto ao verificar que o pai de Dora (Freud, 1905/1972) não correspondia efetivamente ao pai que ela de fato tinha - o que o levou a destacar a importância da realidade psíquica.

O analista precisaria considerar que tudo o que lhe diz o analisando sobre sua vida fora do consultório é somente isso: o que ele relata. Aquilo que o analista pode realmente verificar é o que se apresenta diante dele em seu consultório. Caso contrário, pode começar a interagir com o analisando e aquilo que ele acredita serem os fatos, ficando engolfado em um estado (como teria ocorrido com Jocasta) de alucinose (Bion, 1965/1977b).

Uma maneira de ajudar o analisando seria permitindo que ele tivesse a chance que Édipo não teve, ou seja, a de poder duvidar das próprias convicções.

Voltemos ao mito.

Convicto de que sabe quem é, Édipo se lança pelo mundo. Ele tem a informação de que está fadado a matar o pai e a se casar com a mãe. Contudo, pouco depois de desterrar-se, depara-se numa encruzilhada com um homem mais velho e seu séquito. Desafiado nos seus brios (na sua arrogância, na sua onipotência), numa questão de precedência - quem passa primeiro no cruzamento (nesse sentido, pai e filho operam na mesma frequência mental, não havendo um com maior capacidade de reflexão do que o outro, o que leva ao desastre) -, atira-se contra o desafiante e não só o mata como também todo o seu séquito.

Seguindo seu (des)caminho, Édipo depara-se, diante da entrada de Tebas, com a esfinge. Esta lhe propõe o enigma: decifra-me ou te devoro! Édipo dá uma resposta ao enigma. A esfinge se destrói.

Mas a resposta dada ao enigma corresponde à verdade solicitada por este? A esfinge era um monstro sedento por uma resposta, mas tinha ela algum interesse na verdade? Ou apenas lhe bastava uma resposta? Obtendo-a, não tinha mais por que existir (Bion, 1992, pp. 275-278).

Tal como destaca Bion, citando Maurice Blanchot em seus seminários da Tavistock: “La réponse est le malheur de la question!” (Bion, 2005; 1963/1977a, prólogo). A resposta é o infortúnio da pergunta.

Édipo deu uma resposta e ficou convicto5 de que possuía o conhecimento. Não considerou que tivesse apenas produzido uma resposta plausível e nem cogitou que aquela pudesse não ser a verdade buscada.

Nossos analisandos vêm em busca de respostas e soluções de enigmas. Quão grave não há de ser nossa situação se também nos portarmos da mesma maneira que Édipo, convictos de que temos de produzir explicações e soluções para problemas. Ficamos diante de pessoas que nos colocam numa situação em que teríamos a obrigação de aliviá-las de pragas e pestes que as assolam. Tal como Édipo, ficaríamos atrás de interpretações de enigmas que livrassem Tebas do monstro que a aterroriza. Tal como Édipo, achando que assim procedendo estaríamos no caminho do sucesso, ficaríamos envoltos em enganos e pestes ainda maiores, reiterando um estado de onipotência mental e falsidade (como foi o caso em Tebas).

Édipo deixou a esfinge achando-se muito sabido - porém, quão longe da sabedoria se encontrava.

Nós, como analistas, também tendemos a achar que podemos dar respostas e explicações para resolver as vidas de nossos analisandos. Conhecemos muitas teorias e, dessa forma, podemos ter a ilusão de que temos resposta para as questões que nos assolam. Da mesma forma que Édipo, podemos ficar imersos num sistema moral que procura culpados para dar solução a sofrimentos.

Considero que maior benefício para os pacientes e para nós mesmos seria a aquisição de maior capacidade de suportar dúvida e privação. Isso pode evoluir se, a quem nos procura, pudermos sugerir a possibilidade de refletir sobre aquilo que nos é proposto resolver, até para se considerar se o problema enunciado é o real. Frequentemente não o é. O maior ganho viria do desenvolvimento da capacidade de tolerar a ausência de respostas e não de poder dá-las ou tê-las. Édipo tinha resposta para tudo, porém não conseguia enxergar o que estava diante de seu nariz.

Destruído o monstro, ele é recebido em triunfo em Tebas. Como prêmio, cabe-lhe desposar a rainha da cidade que, por acaso, enviuvara recentemente de um marido assassinado.

Ora, todos os elementos estavam diante dos olhos de Édipo: uma viúva, que tinha idade para ser sua mãe, cujo marido havia morrido nas mãos de um assassino. Ele próprio não fazia muito havia matado um homem e seu séquito. Tudo estava escancarado. Faltava, contudo, quem pudesse enxergar o que estava visível. O problema não era encontrar algo recalcado e no inconsciente, mas perceber o que estava evidente, porém não enxergado; era pensar o nunca pensado ou o impensável.

Tomado por sua arrogância, Édipo não reconhece nada do que estava óbvio.

Os psicanalistas muitas vezes ficam tomados pela ânsia de entender ou explicar os enigmas que lhes são propostos - nas histórias que lhes são contadas, como o enigma da esfinge - e não enxergam aquilo que está diante de seus olhos, desenrolando-se em seus próprios consultórios.

Jocasta também tinha a informação de que estava fadada a se casar com o próprio filho. Contudo, ela crê no que lhe contaram (que o filho morrera). Ela também tem todas as evidências diante de si, mas nada enxerga. O rapaz com quem está para se casar poderia ser seu filho. Envoltos em um estado de alucinose, ambos seguem adiante.6

O analista, ao acreditar naquilo que o paciente lhe conta, e ao tentar trabalhar com esses relatos ou com o que lhe é mostrado - e não com aquilo que efetivamente observa -, também fica engolfado pelo estado de crenças daquele que atende, e acaba não mais percebendo o que tem à sua frente.

Um analisando conta que é vítima da crueldade de seus chefes e colegas. Não obstante, posso verificar em sua experiência comigo que estou sempre pisando em ovos ao tentar dizer-lhe qualquer coisa que em minha opinião lhe seria útil. É tão perseguido e defendido que ouve tudo o que procuro lhe comunicar como uma acusação. Posso propor, ao verificar isso na minha experiência com ele, que considere como tende a ser difícil a convivência de seus colegas e superiores com ele. Depois de certo tempo junto a alguém que sempre reage como vítima a tudo que lhe é dito ou levado à sua consideração, as pessoas devem mesmo perder a paciência e acabar hostilizando-o, mas como reação à sua própria conduta e não como algo primário. Na condição de analista, posso observar aquilo no relacionamento dele comigo, e, dispondo de condições emocionais para viver essa situação, sem ficar envolvido por ela, tenho a oportunidade de lhe apresentar um diferente quadro da situação que vive. Isso poderia lhe dar o que pensar (o que se ver como vítima não permite). Caso verifique o que lhe mostro, poderíamos prosseguir a nossa investigação no sentido de averiguar o que acontece para que ele ouça tudo da forma que o faz (de ser atacado, mesmo quando não é o caso).

O desejo de se ver livre de uma aflição, e o vislumbre da substituição desta por um gozo subsequente, solapou as precárias mentes de Édipo e Jocasta. Não houve espaço para qualquer possível frustração e dúvida. O alívio parece estar ali, vamos agarrá-lo imediatamente, sem mais pensar. Uma é viúva e desvalida numa terra assolada por uma criatura monstruosa. O outro, um jovem desterrado e andarilho, que se vê com uma nobre esposa e um reino a seus pés. Quem há de querer mais? Só quem não estiver embriagado pelos sentidos e puder enxergar não só o que eles mostram, mas também além deles.

Se estamos ávidos para proporcionar um alívio, uma solução - dificilmente poderemos pensar. Propor um espaço de reflexão antes de mergulhar nas delícias da cura e das respostas parece ser algo cruel. Contudo, pode ser justamente aquilo que evita as tragédias associadas à impossibilidade de pensar.

A sexualidade entra nesse campo. Se um indivíduo puder pensar, vai fazê-lo em relação a tudo aquilo que chegar até ele, seja vindo de fora ou de dentro de sua pessoa. Se não puder pensar, provavelmente enfiará os pés pelas mãos ao lidar com a realidade que acredita existir e não com aquela que de fato está lá para ser considerada.

Outro analisando reclama que me conta uma série de problemas e se enfurece porque eu não o ajudo. Digo que achava que o seu problema era exatamente aquele de exigir de mim que pensasse por ele e que lhe desse as respostas que queria ouvir. Considerava, todavia, a partir do meu viés, que dar respostas e dizer como resolver seus problemas seria exatamente aquilo que o impediria de desenvolver suas capacidades para resolvê-los. Além do mais, mesmo que eu pudesse indicar soluções para problemas que não conheço de verdade, quem garante que seriam as soluções adequadas? O que é ótimo para mim, pode ser péssimo para outra pessoa. Como eu poderia saber o que seria melhor para ele? Eu poderia, sim, tentar ajudá-lo a desenvolver suas faculdades mentais, sua capacidade para pensar, de modo que ele pudesse chegar a uma decisão que fosse conforme aos seus interesses, assumindo a responsabilidade por ela. Se desse a resposta, eu o estaria privando exatamente daquilo que ele precisava. Tolerar dúvida, angústia e esperar que as ideias possam evoluir em sua mente, aguentando o tempo que for preciso para isso. Não suportar ficar sem respostas e pressionar alguém para fazer isso era o seu real problema, não aqueles que ele me contava. Aqui, mais uma vez, está, com outro aspecto somente, colocada a situação de Édipo e da esfinge.

Sófocles inicia sua tragédia com Édipo reinando. Acaba com Édipo, que pensava tudo saber, se dando conta de sua prepotência e de sua ignorância. Da presunção (onipotência) chega-se à humildade necessária ao aprendizado com a experiência da vida. Todo nosso conhecimento é sempre precário e transitório, à espera de novas experiências que possam reconfigurar tudo aquilo que percebemos.7

Em psicanálise, o que importa não é aquilo que acreditamos saber, mas sim aquilo que ignoramos por completo. O vértice precisa ser o desconhecido, para que não fiquemos como Édipo, cegos por aquilo que acreditamos sejam os fatos, ou com nossas capacidades destroçadas, como a esfinge, porque acreditamos ter as respostas e as explicações para os enigmas que nos são apresentados.

 

Finalizando - Rondó

Retomo o caso clínico do início.

Em encontro posterior, a analisanda apresenta-se angustiada, aflita. Considera que sua ansiedade poderia estar associada a uma viagem próxima, em que iria encontrar uma pessoa com quem convivera intensamente nos tempos de faculdade, mas que não via há muitos anos. Está francamente apreensiva. Conjectura que talvez esteja nesse estado por causa do receio que tem de viajar de avião ou do exotismo do país em que encontrará a conhecida. Reflete, porém, que é muito habituada a fazer viagens, mesmo para lugares muito mais exóticos do que aquele para onde estava indo. A conversa vai se desenrolando até que, vendo-a mergulhada nos seus pensamentos ou não mantendo, aparentemente, contato comigo ou com o que sucede no consultório, indago o que estava acontecendo. Ela diz que havia tido uma espécie de devaneio, em que se via conversando longamente com essa conhecida de outros tempos. Surge-me, neste ponto, uma ideia que lhe proponho. Digo-lhe que ela estava realmente aflita não por conta do temor da viagem, mas porque estava receosa por não saber quem ia encontrar. Do meu modo de ver, ela não sabia quem ia encontrar: quem estava naquele país distante era alguém desconhecido. No seu devaneio, ela “conversava” com alguém que era conhecido, familiar, e, de alguma maneira, era capaz de conduzir e de aventar qual o desenrolar dos eventos. Contudo, a pessoa que ia ver era alguém que ela não mais conhecia - era uma desconhecida! A amiga de outras épocas não podia mais ser aquela que ia ver. Digo-lhe que se fosse encontrar alguém que conhecia poderia acabar muito frustrada e a experiência provavelmente resultaria em um des-encontro. Sugiro-lhe que talvez fosse útil ela se dispor a reconhecer que ia ao encontro de alguém que não sabia quem era, que poderia ter alguma relação - e que também poderia já não ter nenhuma - com alguém que conhecera muitos anos antes. Proponho-lhe considerar a possibilidade de ir com a mente aberta, para ver com o que vai se deparar, sem qualquer disposição a priori, pois se estivesse com a mente cheia de expectativas e de memórias do que deveria achar, de quem ia “rever”, talvez não tivesse chance de encontrar, de ver, e de conhecer, quem realmente estaria lá para ser visto, conhecido, e encontrado.

Tocada, diz a analisanda que aquilo fazia sentido, e que se percebia noutro estado emocional, bem menos oprimida.

 

Referências

Bion, W. R. (1977a). Elements of psychoanalysis. In: W. R. Bion, Seven servants: Four works by Wilfred R. Bion (pp. 1-110). New York: J. Aronson. (Trabalho original publicado em 1963.)        [ Links ]

Bion, W. R. (1977b). Transformations. In: W. R. Bion, Seven servants: Four works by Wilfred R. Bion (p. 1-183). New York: J. Aronson. (Trabalho original publicado em 1965.)        [ Links ]

Bion, W. R. (1992). Cogitations. London: Karnac Books.        [ Links ]

Bion, W. R. (2005). The Tavistock seminars. London: Karnac Books.        [ Links ]

Freud, S. (1972). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 5-119). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905.)        [ Links ]

Klein, M. (1980). Notes on some schizoid mechanisms. In M. Klein, Envy and gratitude and other works (pp. 1-24). London: Hogarth. (Trabalho original publicado em 1946.)        [ Links ]

Sophocles (1967a). Antigone. In M. Hadas (Ed.), The complete plays of Sophocles (pp. 115-148). New York: Batam Books.        [ Links ]

Sophocles (1967b). Oedipus at Colonus. In M. Hadas (Ed.), The complete plays of Sophocles (pp. 219-261). New York: Batam Books.        [ Links ]

Sophocles (1967c). Oedipus the king. In M. Hadas (Ed.), The complete plays of Sophocles (pp. 75-114). New York: Batam Books.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Claudio Castelo Filho
R. Carlos Sampaio, 304/72
01333-020 São Paulo, SP
Fone: (11) 3284-0424
E-mail: claudio.castelo@uol.com.br

Recebido em: 18/08/2009
Aceito em: 04/11/2009

 

 

* Membro efetivo e analista didata da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Doutor em Psicologia Social e livre docente em Psicologia Clínica pela USP.
1 Trabalho apresentado como tema livre no XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise.
2 O afastamento é também das emoções que experimenta. Ao distanciar-se delas, expelindo-as, sente-se esvaziada de sentidos.
3 Lembrei-me de Édipo afastando-se dos pais que acreditavam ser os seus, indo para longe de Corinto, para escapar de seu destino.
4 Ouço, amiúde, feitos por profissionais, comentários do gênero: “Mas também, com uma mãe dessas! Só podia dar complicação mesmo! Coitado do paciente!”. O relato do cliente é tomado ao pé da letra. O resultado, a despeito de se achar um “culpado”, no meu modo de ver, é um beco sem saída.
5 Esse estado de convicção e de superioridade moral (os culpados são os outros) seria característico de transformações em alucinose (ver Bion, 1965/1977b).
6 Pode-se dizer que a pré-concepção edípica, e não a concepção ou conceito edípicos, estava atacada e destruída. Sendo assim, não dispondo da pré-concepção, Édipo e Jocasta, ao se encontrarem com eventos que poderiam levar a uma realização da pré-concepção, não vivem a realização, e tampouco alcançam a concepção e o conceito edípicos.
7 Se, porém, o vértice na investigação for o de uma autoridade moral buscando um culpado, esta tenderá a ser solapada, visto que o resultado será, provavelmente, não a humildade necessária, mas a destruição e a autodestruição, como a de Édipo, literalmente arrancando seus olhos, Jocasta se enforcando e a prole se dilacerando. O mesmo drama também se repete em Antígona, em que há uma luta pela superioridade entre divergentes autoridades morais (sobrinha e tio), que impede o surgimento de um insight e destroça seus antagonistas.

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