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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.42 no.77 São Paulo Dec. 2009

 

RESENHA

 

Importante, abrangente - e necessário

Neurose e não-neurose, Marion Minerbo
(Casa do Psicólogo, São Paulo, 2009; 470 páginas)

 

 

Maria Beatriz Simões Rouco*

Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Neurose e não-neurose é um livro necessário, abrangente e muito interessante.

É necessário porque, em contraponto com a mais conhecida estrutura neurótica, caracteriza a estrutura comum às diversas psicopatologias não-neuróticas. Dessa forma, contribui para a superação do equívoco clínico ainda muito comum, que consiste em abordar quadros não-neuróticos com conceitos desenvolvidos a partir da e para a clínica das neuroses.

São muitos os determinantes dessa confusão. Os quadros não-neuróticos não são ainda bem conhecidos, já que muitas de suas expressões são, de fato, novas, frutos da sociedade atual. Há também a distância que separa a abstrata metapsicologia da experiência clínica ‘concreta’, questão que é ainda complicada pela indiscriminada assimilação de conceitos propostos por diferentes autores. Conceitos que descrevem estruturas e funções psíquicas diversas, mas que são intuitivamente usados na clínica, sem o necessário trabalho de comparação, contextualização, diferenciação e articulação.

Por tudo isso, contrastar neurose e não-neurose exige uma abordagem abrangente, complexa e multifacetada. Um enfoque que se posicione com convicção na era pós-escolas psicanalíticas, articule conceitos de diversos autores e considere o psíquico em seus diferentes aspectos, âmbitos e profundidades. Tarefa essa que foi assumida corajosamente pela autora, que elegeu a psicopatologia para articular a experiência clínica à metapsicologia, descrevendo não só sua psicogênese, mas de igual modo sua sociogênese.

Ao exemplificar essas diversas articulações, o livro torna-se definitivamente interessante, uma vez que as psicopatologias não-neuróticas são ilustradas tanto por muitas vinhetas clínicas, como também por meio da análise detalhada de personagens de vários filmes. Estratégia pedagógica que, além de proporcionar a impactante e motivadora experiência artística ao alcance de todos os leitores, permite contornar a inevitável questão ética que empobrece a apresentação de casos reais.

A primeira parte do livro foi escrita com o propósito de facilitar a tarefa de professores e estudantes de psicanálise. Nela, Minerbo adota uma abordagem que entende a psicopatologia como perturbação do campo da intersubjetividade. E, depois de caracterizar a especificidade da escuta analítica, introduz os elementos psicopatológicos e metapsicológicos que permitem diferenciar as subjetividades não-neuróticas das neuróticas.

Na abordagem metapsicológica, as não-neuroses são conceituadas de acordo com a proposta de André Green, e dois manuais de psicopatologia psicanalítica - de Patrick Juignet e de René Roussillon - são livremente adaptados para propor uma articulação de conceitos de autorias diversas. Inspirada por tão bons mentores, Minerbo conjuga com desenvoltura conceitos de Klein, Bion e Winnicott, entre outros, articulando-os aos conceitos freudianos fundamentais. As diferentes expressões das não-neuroses - “adições, distúrbios alimentares, compulsões, patologias do vazio com feitio melancólico, patologias do ato coloridas por diversos tipos de violência, somatizações, perversões” - são atribuídas a falhas mais ou menos profundas na constituição do Eu. Tal fragilidade estrutural, que se manifesta por graus variáveis de sofrimento narcísico e pelas defesas mobilizadas no sentido de aliviá-lo, é socialmente codeterminada. Sua sociogênese é condicionada pela fragilidade do símbolo na cultura pós-moderna.

O Eu é considerado em suas duas facetas: o ego e suas funções, e o self e suas identificações. A psicogênese das subjetividades não-neurótica e neurótica é descrita em suas diferentes etapas, tanto com relação ao eixo narcísico de constituição do Eu, quanto no eixo objetal de constituição do objeto do desejo. A psicogênese do eixo narcísico segue as transformações da situação edípica através das diferentes experiências do terceiro objeto; a do eixo objetal descreve as posições subjetivas típicas das fases do desenvolvimento libidinal. Conceitos dos vários mentores da autora comparecem nessas descrições e, para melhor visualização dessas articulações, três quadros sinópticos são apresentados no final do livro.

A segunda parte é dedicada a descrever a importância do objeto na constituição do Eu e, portanto, se o indivíduo funcionará predominantemente sob o regime de Eros, como ocorre nas neuroses, ou sob o regime de Tânatos, como acontece nos quadros não-neuróticos. Essas considerações levam a autora a diferenciar o ódio da raiva, a descrever suas manifestações nas diferentes fases do desenvolvimento sexual e a detalhar duas de suas figuras: o ódio paranoico e o ódio invejoso.

O objeto que atende a demanda pulsional do bebê pode ser perdido como objeto primário e internalizado. Então, sob o regime de Eros, estrutura-se um Eu forte capaz de transferência e desejo, e o ódio é mitigado pelo amor e vivido como raiva. Porém, se o objeto não contribui para a necessária ligação pulsional, ou se um trauma precoce destrói as ligações já feitas, instala-se um regime pulsional marcado pela compulsão à repetição e pelo ódio. O Eu ferido busca não mais o objeto do desejo, mas aquele que lhe parece necessário para mitigar a dor e construir seu envelope narcísico. Mas há ainda outra possibilidade, também regida por Tânatos. O bebê, desesperado, desiste de buscar um objeto amoroso. Ataca as ligações existentes e mergulha no narcisismo de morte, fechando-se para o outro, e desistindo de sua própria subjetividade.

Na clínica das não-neuroses, dominada pelo ódio e pela compulsão à repetição, a reação terapêutica negativa e a desistência são muito frequentes. Se o sujeito, porém, adoece na e pela intersubjetividade, será somente por meio dela que ele poderá eventualmente se curar. O que também equivale a dizer que o analista será exposto a grandes desafios contratransferenciais.

Na terceira parte do livro, dedicada ao estudo da sociogênese das psicopatologias, Minerbo detalha sua representação-meta: assim como a neurose foi codeterminada pelo vigor simbólico, racionalismo e repressão sexual da era moderna, as psicopatologias não-neuróticas são geradas na pós-modernidade pela fragilidade de sua ordem simbólica, incapaz de ligar a violência pulsional dos indivíduos.

Uma instituição se fortalece quando seus representantes - aqueles que ocupam os lugares simbólicos criados por ela - desempenham corretamente as funções prescritas. Nessas condições, “o laço simbólico, que une significantes e significados, se fortalece e se naturaliza”. “A instituição forte tem o poder para subjetivar as pessoas”, mas isso não ocorre na pós-modernidade, dominada pela permissividade e o relativismo.

Devido à fragilidade das instituições contemporâneas, “a palavra perdeu sua força”, seu conteúdo semântico e seu poder de representação. A linguagem desnaturada altera a própria sensibilidade dos indivíduos. Sem mediação simbólica, não há jogo. A fantasia e a realidade se confundem. A violência pulsional se satisfaz na atuação. Para caracterizar esse estado de anemia identitária, que subjaz ao reality game, à body art, ao reality show e aos crimes familiares, a autora cunha o conceito de depleção simbólica.

É nesse contexto de falha da função simbolizante - que Minerbo identifica com a função materna - que são abordados os diferentes modos atuais de construção de identidade. A adição às grifes, às tatuagens, ao orkut e outras formas de exposição, relacionamento e atuação por meio da internet, como é o caso do sexo virtual. Porém, tem a autora o cuidado de não demonizar esse meio de comunicação, que pode também ser usado com objetivos reparadores e terapêuticos. Ela analisa o que diferencia o uso construtivo e o patológico da internet e cita pesquisas que apontam que a saúde, como sempre, encontra-se na preservação da capacidade de discriminação. No caso, entre o espaço virtual e o real.

Concluindo, este livro é muito importante não só porque contribui criativamente para os necessários trabalhos de distinção entre neurose e não-neurose, de vinculação da clínica à metapsicologia pela psicopatologia e de articulação de conceitos de diferentes enfoques (psicogenéticos e sociogenéticos), mas igualmente porque instiga o leitor a refletir sobre questões que esta proposta de articulação permite levantar.

Foi por esse caminho que me ocorreu que a proposta da autora poderia ser suplementada por uma reflexão que seguisse no sentido oposto ao percorrido por ela, isto é, que fizesse o percurso desde as relações íntimas para as grandes instituições. Isto exigiria acrescentar um capítulo, ou talvez escrever um novo livro, que tratasse das transformações psíquicas que a psicanálise desses pacientes pode propiciar. Nesse caso, poderíamos partir das concepções de Winnicott e Green para pensar o papel dos afetos, da função simbolizante, da linguagem viva gerada no campo intersubjetivo a partir da criatividade primária, para a construção e transformação das instituições e da ordem simbólica vigente.

 

 

Recebido em: 16/10/2009
Aceito em: 04/11/2009

 

* Membro filiado do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Mestre em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da USP. Ex-docente e supervisora na PUC-SP, Metodista e FMU.

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