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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo June 2010

 

ENTREVISTA

 

Transferência paradoxal e modificações técnicas

 

Paradoxal transference and technical modifications

 

Transferencia paradojal y modificaciones técnicas

 

 

René Roussillon2

Membro efetivo e de formação da Societé Psychanalytique de Paris (SPP)
Groupe Lyonnais de Psychanalyse Rhône-Alpe (GLP-RA)
Professor de psicologia clínica e de psicopatologia à L’Université de Lyon2
Diretor do Psychopôle Rhône-Alpes

 

No dia 30 de outubro de 2009, por ocasião de sua visita a São Paulo para Conferências na SBPSP, o Corpo Editorial1 de Jornal de Psicanálise teve a honra de receber o Dr. René Roussillon.

 

JP – Dr. Roussillon, é um grande privilégio tê-lo aqui na SBPSP. O senhor tem construído um pensamento original dentro da Psicanálise e repensado alguns conceitos como, por exemplo, a noção de paradoxo e de transferência paradoxal, a partir das ideias de Donald Winnicott, autor sobre o qual o senhor tem refletido e difundido na França. A transferência paradoxal, segundo o senhor, pode ocorrer em análises de casos ditos borderline ou limite, que envolvem muitas vezes essas formações transferenciais caracterizadas tanto por reações terapêuticas negativas, como por movimentos de transferência passional ou narcisista. Gostaríamos de saber como o senhor trabalha a transferência paradoxal na clínica?

Roussillon – Penso que há uma mistura entre dois tipos de medidas que se referem à modificação dos procedimentos. Pode ser: passar ao trabalho face a face, ao alongamento das sessões, reacrescentar sessões em determinados momentos cruciais do trabalho analítico. Para mim, a psicanálise não é uma questão de procedimentos… É mais uma questão de escuta e de se ter o melhor dispositivo para cada paciente. Se o paciente, em determinado momento, se esconde debaixo da mesa, vou trabalhar, então, com o paciente escondido debaixo da mesa. E se ele estiver sentado com a poltrona virada para não me ver, sigo meu trabalho da mesma maneira. Com isso não quero dizer que aceito qualquer proposta do paciente, mas aquelas em função das quais compreendo dados de uma história não simbolizada, por meio de sua postura, do gestual corporal. Tenho uma hipótese de que isso conta alguma coisa do paciente e daí vou tentar entendê-la. Estes são os arranjos das situações que vêm em primeiro lugar e em segundo lugar, vêm os arranjos técnicos.

JP – Quais seriam as variações técnicas dentro dessa perspectiva?

Roussillon – Quanto aos arranjos técnicos, penso, sobretudo em três. O primeiro é o alargamento da escuta psicanalítica para além da linguagem verbal, escutando a linguagem do corpo, a linguagem do ato, a linguagem do afeto. Isso significa, para mim, que a escuta associativa, nesse momento, é polifônica e polimórfica e me pergunto de que modo um ato se associa a uma doença corporal, à linguagem, à narração, ao que quer que seja. Há sempre a ideia de que o corpo conta alguma coisa que não pôde ser dita.

O segundo ponto importante relaciona-se com o que Winnicott chama de “uso do objeto”. Em determinado momento, pode-se escutar o paciente e fazer uma ligação entre aquilo que ele vive e quem eram efetivamente seus pais. Há, então, uma escuta que não se refere somente aos processos do sujeito, mas uma escuta que abrange os processos do sujeito em relação aos processos de seus objetos.

Dou um exemplo de uma paciente anoréxica. Ela não come, apesar de não correr perigo, continua vivendo, entretanto toda a sua vida é anorexizada. Ela tenta parar o tempo, está fechada em si mesma. Entendo que ela está em um processo de domínio (não de controle, pois controle é outra coisa). Dominar as emoções é diferente de controlá-las. Ela está dominando as emoções, de modo que as emoções não transbordem. O que podemos reconstituir nessa paciente? Ela tinha uma mãe turbulenta, inapreensível, que estava sempre eficazmente fazendo coisas. Em função destas particularidades maternas sentia que, como filha, não a podia atingir. O movimento da menina em direção à mãe, ao não conseguir encontrá-la, por estar sempre em outro lugar – isto é, ao não encontrar o objeto que estava sempre fugindo por entre os dedos –, volta-se para ela mesma. Ela se anorexiza, pois o objeto não a acolhe. É preciso então ver a reação do objeto para compreender como ela funciona.

Lembram-se da história do Narciso e Eco, personagens de Ovídio? Eco foi punida porque era muito faladeira: só podia então, repetir o final das palavras ditas pelos outros. Ela se apaixona por Narciso. Distancia-se do grupo. Narciso fala e Eco repete o final de suas palavras, escolhendo-as bem, de modo a sugerir como estariam bem juntos. Narciso diz: “saia da floresta, reunamo-nos”. Eco diz “unamo-nos”, pois só repete o final da palavra. Sai da floresta e vai até Narciso. Narciso lhe diz: “não me toque, prefiro morrer a ser tocado por você”. Eco petrifica-se, fica envergonhadíssima, refugia-se na floresta, pára de comer, seus ossos tornam-se duros como a pedra, desaparece e permanece apenas como repetição do final da palavra dos outros. Ela pode ser considerada a primeira anoréxica. Para compreender, vamos admitir que Narciso tivesse dito: “estou muito seduzido por seu amor, senhorita, mas não posso pensar em casamento”… Algo que não a ferisse. Só podemos compreender essa sequência em função de Eco. Para compreender o que aconteceu com Eco temos que recuperar a resposta específica que Narciso deu a ela. É por isso que digo que é preciso integrar a resposta do objeto à compreensão do que acontece com o sujeito. Essa é a segunda alteração técnica: integrar a resposta do objeto, que simplifica extraordinariamente a escuta de problemáticas muito complexas. Isso é importante, porque não se fala apenas do sujeito. Vemos uma cena em que se desenrola uma relação. É simples. Se tentarmos entender a anorexia apenas em função de Eco, falaríamos sobre o medo de suas pulsões, sobre um refúgio autístico, diríamos que tem vergonha, mas, nesse caso, não analisaríamos a situação. É preciso compreender porque ela quebra seus arroubos, seus desejos.

O terceiro dado importante é o que chamaria de “trocas no espelho” à luz do que chamo “conversas psicanalíticas”. É o modelo do squiggle. O paciente diz alguma coisa e o analista responde: “Será que posso entender o que você disse desse modo?” O paciente responde como se fizesse um traço, um desenho complementar e permite ao analista saber o que ele faz com aquilo que o outro dá a ele. Depois, é o que o analista faz com aquilo que lhe diz o paciente. Pode lhe dizer: – É assim que você compreendeu o que eu lhe disse? E assim, formam-se as trocas que levam a imagem que eu reflito para ele, dele mesmo, e a imagem que ele reflete do que eu lhe digo.

Estes são os três elementos mais importantes da técnica. Dizendo de outro modo… Eu explicito o que eu faço com aquilo que o paciente diz e o que ele faz com aquilo que eu digo. Tudo isso é explicitado: “Ah, você me diz isso… Eu entenderia desse jeito”, ou “Ah! Você entendeu assim o que eu disse?”

JP – Na bela conferência de ontem o senhor colocou um aspecto da transferência paradoxal que nos pareceu crítico e fundamental do ponto de vista clínico: a empatia que o analista tem pelo paciente não é sentida pelo paciente empaticamente.

Roussillon – Eu tenho empatia pelo o que o paciente está vivendo, mas que ele não sabe estar vivendo. O paciente só pode se identificar com o analista depois que o analista se identificou com ele.

JP – Poderíamos pensar que o analista empatiza com a dor do paciente, dor esta, que o paciente desconhece empaticamente em si próprio, e a solidariedade do analista o desagrada porque o reconhecimento da própria dor faz com que o paciente tema tornar-se dependente, ao sentir o afeto do analista? Como se rompe esse paradoxo na transferência? É como se na contratransferência o paciente sugerisse que precisasse ser maltratado. Ele demonstra uma confusão, um paradoxo, que faz parecer que necessita de um analista cruel, e não empático. Um tipo de um engodo. Por isso é um nó. Ontem o senhor falou sobre agonia na transferência paradoxal… O analista tendo a agonia do paciente, vivendo um impasse, algo que acontece simultaneamente. Ele quer ser ajudado e não pode ser ajudado. Como sair desse impasse?

Roussillon – Antes de mais nada, é preciso, às vezes, esperar muito tempo. Não estou bem certo de que isso seria uma ruptura. Diria que é mais uma longa desconstrução. Em segundo lugar, levaria em conta o que foi insuportável no sofrimento do paciente: que ele estava só nesse sofrimento. Se é tão insuportável voltar a sentir essa dor, não é simplesmente porque ele tem a dor, mas porque tem a dor na solidão.

Trabalho nisso lentamente, vou devagar e posso dizer: “aí deve doer”. E se o paciente não aceita, eu posso reconsiderar e dizer “então pensei errado”. Daí deixo. São pequenos toques. Posso dizer também ao paciente: “como é duro sentir-se sozinho por meses, anos”. A vida afetiva se reanima a partir da escuta de nossos próprios afetos. Eu não digo nunca: “você se defende contra sua dor”. Eu digo: “no seu lugar também estaria me sentindo muito mal”. Assumo o que o paciente está vivendo: “como você fez? como você se saiu?”, até chegar ao ponto em que o paciente começa a poder sentir a própria dor. Isto tudo é muito delicado. É preciso encontrar o tom justo para dizer ao paciente que ele está sofrendo: “Você me faz sentir como isso é difícil para você e isso me toca muito”. Mas não exagero com muito nhãnhãnhã. Se exagerar, caio na perversão afetiva. Isso seria exploração dos afetos, uma coisa terrível. Faço isso com muita sobriedade, dentro de um tempo, assumindo meus próprios afetos e assumindo que sou eu que me identifico. Mesmo que eu me identifique com ele, não peço que ele se identifique comigo enquanto estou me identificando com ele.

JP – No seu modo de ver, quais seriam as diferenças entre a leitura inglesa e a francesa da obra de Winnicott? Existe diferença? Se sim, como se manifestam na clínica?

Roussillon – Não sei se existe uma leitura francesa ou uma leitura inglesa. Existe uma pluralidade de leituras. Não se trata da leitura inglesa, mas da leitura de Winnicott dentro do contexto inglês. Vamos dar um exemplo. No mundo kleiniano, onde pulsão é algo que ataca o eu, Winnicott dirá, então, que no mundo da transicionalidade não existem pulsões. Isso cabe em um contexto particular, que é o da Sociedade de Psicanálise Britânica. Winnicott está falando da psicanálise kleiniana. No contexto francês, há pessoas que realmente acham que as pulsões atacam o narcisismo. Outros, porém, não acham que as pulsões sejam necessariamente um ataque. Vamos considerar que no espaço potencial, transicional, existem elementos pulsionais. Por exemplo, a capacidade de estar só, na presença do outro. Winnicott diz: “a capacidade de estar só, na presença do outro”. E eu explico, na França, a capacidade de estar só, diante de suas pulsões, na presença do objeto – e acrescento, se o objeto não estiver investido pulsionalmente – não haverá nenhuma dificuldade. As pessoas na França ficam contentes. São os elementos contextuais que estão presentes nessas formulações.

JP – E dentro desta perspectiva, como o senhor incluiria a questão da pulsão de morte?

Roussillon – Aí também existem contextos. O pensamento kleiniano identificou a pulsão de morte à agressividade. A posição francesa não é a de aproximar a pulsão de morte à agressividade, pois há agressividade também na pulsão de vida. Quando a pulsão produz a ligação, ela é de vida. Quando produz desligamento, é de morte. Esse é o primeiro ponto. Em seguida, a questão é se temos necessidade do conceito de pulsão de morte na clínica. O que Freud coloca no termo pulsão de morte? Coloca três coisas muito diferentes: a destrutividade, sob a forma do desligamento, a compulsão à repetição e, enfim, o retorno ao estado anterior que seria o nirvana. Para Winnicott, a criança atravessou os estados de morte psíquica, quando a repetição toma conta de suas experiências.

JP – Poderia repetir a explicação?

Roussillon – É o que Winnicott escreve em “O medo do colapso”. “Compreendo agora que essa paciente que se matou, diz Winnicott, queria que eu lhe dissesse que ela já estava morta desde que era criança”. Aí dá para ver que é pulsão de morte, pois é a repetição da morte atravessada na primeira infância. É a pulsão de morte, não no sentido de Green ou de outros autores. É uma experiência que jamais foi integrada e tem que ser posta no presente para ser integrada.

Freud evoluiu sobre a questão da repetição. Primeiramente ele acha que a repetição vem de uma espécie de instinto. Fala em pulsão, um lado da vida instintiva. Um impulso contínuo para repetir. Essa é a posição dele em 1920. Mas, por exemplo, a criança repete para dominar. Não é simplesmente repetir por repetir e sim para dominar. Pode ser também que a experiência anterior não tenha trazido satisfação e que a criança seja tentada a repeti-la para chegar ao prazer. A primeira hipótese seria a de que temos um instinto de repetição. A segunda, a de que se repete para obter prazer e quando o obtemos podemos ligar e integrar. No fim de sua vida, Freud formulou outra hipótese ainda sobre as experiências precoces, estas são as que mais irão se repetir. Por que elas se repetem? Segundo Freud, por fraqueza de síntese. Temos então outra hipótese. Nós repetimos aquilo que não pudemos integrar, para poder integrá-lo. Não é mais questão de pulsão de morte. É necessidade de integrar as experiências a qualquer preço.

JP – Explorando um pouco mais, sua conferência de ontem, o senhor disse que tinha um paciente que fazia com que o analista sentisse os sentimentos dele. Como o paciente não conseguia sentir, projetava no analista. Bion dizia que o paciente sente a dor, mas não consegue sofrer o sofrimento.

Roussillon – Às vezes, nem a dor o paciente consegue sentir. Quero fazer um pequeno esclarecimento. Diferencio duas coisas. Diferencio um analista capaz de se identificar com o paciente e compreender o sofrimento do paciente, independente do paciente. Diferencio esse movimento ao da identificação projetiva, que é um processo ativo do paciente, para transmitir seus estados interiores ao analista. Para mim nem tudo é identificação projetiva. Para que seja identificação projetiva é preciso que haja uma intenção do paciente para comunicar ou evacuar no analista algo de estados interiores.

JP – O senhor fez referência em uma de suas conferências na SBPSP a uma experiência de troca horizontal entre psicanalistas, o que chamou de “grupo de confiança”. Poderia nos falar a respeito dela?

Roussillon – Acho que o que vocês estão chamando de “grupo de confiança” tem a ver com grupos de supervisão-pesquisa que estou organizando em Genéve nos quais retrabalhamos as análise feitas por analistas competentes, mas que encontram dificuldades ao longo do processo. A confiança é o elemento necessário para que os analistas possam apresentar tranquilamente esses casos que não conseguem levar para frente.

JP – Agradecemos muito sua disponibilidade. E da nossa parte, da SBPSP, prosseguiremos a leitura atenta de seus escritos que muito enriquecem nosso trabalho clínico e nossa reflexão sobre a Psicanálise.

 

 

1 Presentes na entrevista: Cândida Sé Holovko, Mirian Malzyner, Eliana Rache, Marta Úrsula Lambrecht, Silvia Lobo, Richard Carasso e Yeda Saigh.
2 René Roussillon é membro efetivo e de formação da Societé Psychanalytique de Paris (SPP) e do Groupe Lyonnais de Psychanalyse Rhône-Alpe (GLP-RA), ex-presidente do GLP-RA, diretor da equipe de pesquisa sobre processos de subjetivação, professor de psicologia clínica e de psicopatogia à L’Université de Lyon2, diretor do departamento de psicologia clínica de Lyon2 e diretor do Psychopôle Rhône-Alpes. No dia 30 de outubro de 2009, por ocasião de sua visita a São Paulo para Conferências na SBPSP, o Corpo Editorial de Jornal de Psicanálise teve a honra de receber o Dr. René Roussillon.

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