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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo June 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A sonoridade vocal e seus efeitos no interior da transicionalidade1

 

The vocal sound and its effects within the transitionality

 

El sonido vocal y sus efectos dentro de la transicionalidad

 

 

Alexandre Socha2

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Mestrando em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do conceito winnicottiano de transicionalidade, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma compreensão psicanalítica da voz e dos efeitos da melodia vocal. Em um primeiro momento, pelo impacto da fala materna, a sonoridade da voz é reconhecida em sua possível qualidade de fenômeno e objeto transicional. Em seguida, situando-a no horizonte do espaço potencial, sua influência é identificada nas origens da apreciação musical. Finalmente, o modo como a melodia vocal surge no espaço analítico é explorado pela dinâmica da relação transferencial e contratransferencial. Nesse sentido, é realizada uma breve aproximação do conceito de terceiro analítico (Ogden), no intuito de contemplar a complexidade da voz e dos fenômenos sonoros no processo analítico.

Palavras-chave: Voz, Transicionalidade, Espaço potencial, Musicalidade.


ABSTRACT

Starting from Winnicott’s concept of transitionality, this study aims at an understanding of voice and the effects of vocal melody from three different perspectives. At first, through the impact of maternal speech, the sound of the voice is recognized in its possible quality of phenomena and transitional object. Then, standing on the horizon of potential space, its influence is identified in the origins of musical appreciation. Finally, the way that vocal melody appears in the analytic space is explored through the dynamics of transferential and countertransferential relationship. In this sense, a brief approach to the concept of analytic third (Ogden) is made, in order to contemplate the complexity of voice and sound phenomena in the analytic process.

Keywords: Voice, Transitionality, Potential space, Musicality.


RESUMEN

A partir del concepto de Winnicott de transicionalidad, este estudio tiene como objetivo la comprensión de la voz y de los efectos de la melodía vocal desde tres perspectivas diferentes. Al principio, a través del impacto del habla materna, el sonido de la voz es reconocido en su posible calidad de fenómeno y objeto transicional. Luego, de pie en el horizonte del espacio potencial, su influencia se identifica en los orígenes de la apreciación musical. Por último, el modo cómo la melodía vocal aparece en el espacio analítico se explora a través de la dinámica de la relación transferencial y contratransferencial. En este sentido, se lleva a cabo una breve aproximación al concepto de tercero analítico (Ogden), con el fin de contemplar la complejidad de la voz y de los fenómenos del sonido en el proceso analítico.

Palabras clave: Voz, Transicionalidad, Espacio potencial, Musicalidad.


 

 

Sem dúvida uma das contribuições mais influentes de D.W. Winnicott, a transicionalidade figura como um conceito incontornável na psicanálise voltada às relações objetais da segunda metade do século XX. O artigo intitulado “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, apresentado originalmente em 1951, publicado em 1953 e revisto com significativas alterações em 1971 como capítulo de O brincar e a realidade, é um marco tanto na obra winnicottiana, quanto na literatura psicanalítica. Nesse artigo,Winnicott propõe uma série de contribuições cujos desdobramentos alcançam nossos dias com grande vitalidade. Entre elas estão o valor positivo da ilusão, a noção de uma área intermediária da experiência, sua extensão posterior ao espaço potencial e o princípio do paradoxo regendo a experiência transicional.

Winnicott dá ao termo ilusão um sentido original muito distinto da psicanálise de seu tempo. A ilusão para o autor é sobretudo um fenômeno constitutivo, em vez de uma defesa. Efeito da ativa adaptação materna às necessidades do bebê (preocupação materna primária), a experiência de ilusão lhe oferta uma vivência subjetiva do ambiente, no qual a diferenciação entre eu e não-eu ainda não se coloca em jogo. Ao apresentar o seio no exato momento em que o bebê busca algo para a satisfação de sua crescente tensão instintual, a mãe adaptada possibilita que este seio seja vivido pela criança antes como uma criação sua do que como um objeto externo. A mãe, assumida como mãe-ambiente, é concebida pela criança como parte de si. A ilusão de uma realidade externa que corresponda exatamente à necessidade e ao gesto do bebê é neste início condição fundamental para a confiabilidade no ambiente e para o desenvolvimento de um viver criativo. Gradualmente essa adaptação materna vai diminuindo, segundo a crescente capacidade da criança em tolerar suas falhas adaptativas, e a ilusão vai cedendo espaço para uma realidade compartilhada. No entanto, sem a possibilidade de viver satisfatoriamente essa onipotência, a desilusão (ou o desmame) será vivido como intensa privação ambiental, induzindo a um desenvolvimento prematuro do ego e a uma experiência precoce da realidade objetiva. Nesse caso, há o abandono do anseio pela ilusão e fusão com o ambiente, e o potencial criativo do indivíduo se mantém obstruído.

É neste espaço, antes ocupado pelo fenômeno de ilusão, que Winnicott identifica o surgimento de uma “área intermediária da experiência”. Não mais envolto em uma absoluta realidade interna subjetiva, e ainda não totalmente habitando um mundo externo objetivamente percebido, o bebê encontraria nesse campo de fronteira uma transição entre o prévio estágio de ilusão onipotente para o crescente reconhecimento e aceitação de uma realidade compartilhada. Concomitante a esse processo, a integração do self e a distinção entre eu e não-eu também permite que a criança passe a relacionar-se com objetos reconhecidos como diferentes de si. É a primeira posse de um objeto não-eu3, situada nessa área intermediária (ou terceira área), que Winnicott chamará de objeto transicional. Esse objeto tem a capacidade de conjugar ao mesmo tempo qualidades subjetivas da realidade interna da criança, ao mesmo tempo que possui uma realidade externa concreta (não se trata de um objeto interno, pois jamais está sob um controle mágico).

Por outro lado, vale ressaltar o papel da agressividade primária (força vital) na aquisição da externalidade e na necessidade do indivíduo de relacionar-se com objetos que sobrevivam às suas investidas destrutivas. Esta sobrevivência do objeto, sem sofrer mudança de qualidade ou atitude retaliadora, permite localizá-lo exteriormente ao self como um objeto não-eu. A condição para que a destruição do objeto possa ocorrer livremente no plano das fantasias inconscientes é imprescindível para tanto. Neste sentido, junto à articulação interno-externo, subjetivo-objetivo, a transicionalidade também conjuga a criatividade e a destrutividade nas origens da realidade e do sentir-se real. Tanto a ilusão criadora, quanto a ilusão destrutiva constituem o processo que conduz aos objetos e fenômenos transicionais. Subjacente a essas considerações evidencia-se, portanto, o paradoxo como princípio que rege o desenvolvimento humano. A transicionalidade, como sua expressão princeps, faz coexistir e articula opostos de modo tácito, sem provocar questionamentos, nem para o indivíduo, nem para um observador externo: geralmente há um reconhecimento intuitivo e um respeito dos pais pelo valor de determinado objeto eleito pela criança. A sustentação desse paradoxo, ou a possibilidade de não precisar distinguir entre os opostos é em si, como coloca Winnicott, um grande alívio.

Na passagem de um estado de dependência absoluta, no qual o bebê está fusionado com a mãe, para um estado de dependência relativa, no qual a mãe surge como algo separado de si, os objetos transicionais oferecem segurança e servem como defesa frente às ansiedades provocadas pela ausência da mãe (processo de desilusão). Embora sua importância resida muito mais na sua concretude do que no seu valor simbólico, é importante mencionar que este objeto eleito representa e ocupa o lugar do seio materno (compreendido por Winnicott não apenas como o seio concreto, mas como toda a técnica de maternagem). Sendo assim, o objeto transicional evoca para a criança a própria presentificação materna, proporcionando-lhe conforto e mantendo a continuidade de um ambiente emocional receptivo. Novamente o paradoxo se apresenta, visto que é justamente a aproximação e atualização da presença materna pelo objeto transicional que facilita o distanciamento desta e conduz a criança no caminho rumo a uma relativa independência. Em suma, nega e afirma, ao mesmo tempo, a separação entre o bebê e sua mãe.

Com o passar do tempo e com a gradual ampliação dos interesses, o objeto transicional é descatexizado e perde importância para a criança. Winnicott faz questão de sublinhar que ele não é recalcado, “internalizado” ou sofre elaboração de luto. Em seu desdobramento, o destino do objeto transicional é ser diluído em diversos outros e a transicionalidade é expandida ao brincar e a todo campo da cultura. Como lembra Milner (1952/1991), “a arte fornece um método, durante a vida adulta, para reproduzir estados que fazem parte da experiência diária de uma infância sadia” (p. 103). Assim, toda atividade criativa como o fazer e apreciação artística, o sentimento religioso e a produção científica estão situadas nessa “área intermediária da experiência”, na qual encontramos alívio da constante tensão entre realidade psíquica interna e realidade externa comum4. Esta seria inclusive uma das funções da cultura e da fruição artística, visto que, longe de se restringir à primeira infância, “nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade externa e interna.” e “a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada” (Winnicott, 1951/2007, p. 240).

Ainda que utilize como modelo teórico sua experiência com bebês, Winnicott reconhece que esses fenômenos são inerentes ao ser humano e podem ser retomados em diversos momentos do processo maturacional. Tanto a experiência de ilusão pode ser reatualizada frente a situações que exigem uma nova apropriação pessoal da realidade5, quanto o objeto transicional pode voltar a exercer sua função frente à ameaça de uma situação traumática ou de grande instabilidade emocional no ambiente. De todo modo, a transicionalidade atravessa todo o ciclo da vida humana, ou nas palavras de Winnicott (1959/1994), “sinto que os fenômenos transicionais não passam, pelo menos não na saúde.” (p. 48)

 

A voz como fenômeno e objeto transicional

Embora o objeto transicional seja frequentemente identificado como um brinquedo (ursinho, boneca etc.) ou pedaço de pano com textura suave (fralda, ponta de um cobertor etc.), Winnicott admite a multiplicidade de formas que podem alcançar este registro, segundo aquilo que há disponível para a criança e segundo o modo como ela se relaciona com o ambiente. Uma dessas possibilidades poderia ser reconhecida na voz e em sua sonoridade, cujo estudo realizado pela psicolinguística tem demonstrado seus efeitos impactantes no desenvolvimento desde os primórdios da vida humana.

O desenvolvimento das técnicas de ultrassom tornou possível detectar o modo com que a criança reage a estímulos sonoros desde sua vida fetal. Embora os sons da pulsação e dos batimentos cardíacos prevaleçam no útero materno, também a voz, sobretudo a materna, encontra-se presente no ambiente sonoro intrauterino. Por conta da espessura do líquido amniótico, supõe-se que as frequências graves sejam ouvidas pelo bebê com maior facilidade do que as agudas (inicialmente as inferiores a 300 hertz e posteriormente a 1200 hertz). Mas, se por um lado essa “cortina sonora” elimina a possibilidade da transmissão do timbre da voz materna (ao “filtrar” o registro agudo, todas as vozes soariam graves), por outro, torna plenamente viável a ressonância do ritmo e da prosódia dessa voz. Constata-se que sua presença seja muito incisiva no ambiente sonoro intrauterino, visto que sua transmissão não ocorre apenas pelo líquido amniótico, mas, também, pela própria vibração óssea de todo o corpo materno. Como afirma Castarède (1987/2004), “a audição possui um papel capital no desenvolvimento infantil, visto que, graças a ela, o bebê estabelece desde a vida fetal um primeiro laço com seu ambiente” (p. 77, tradução do autor). Dessa forma, a voz materna surge como um dos únicos elementos sensoriais que promove uma continuidade estável na passagem da vida pré para a pós-natal; o que torna mais compreensível o modo como a presença da voz materna encontra-se intimamente relacionada à sensação de segurança e bem-estar do recém-nascido. Há, porém, na voz materna algo que a difere de todas as outras para o bebê. Não apenas sua presença constante que atravessa o tempo e o espaço no desenvolvimento, mas também certas particularidades, certa melodia no modo de falar que produz efeitos imediatos na criança. Trata-se de um fenômeno frequentemente denominado de fala materna ou “manhês” (motherese)6.

A fala materna é o fenômeno que compreende toda emissão vocal de uma mãe (ou substituta) para seu bebê: suas cantigas de ninar, sua voz propriamente dita e a prosódia peculiar que adquire ao falar com a criança; em suma, a musicalidade da voz materna em amplo sentido. Mesmo admitindo que cada mãe comunica-se sonoramente de maneira singular com seu bebê, é possível também encontrarmos certos elementos e características recorrentes e comuns. Entre eles: estrutura e sintaxe simplificada, expressões curtas, repetições rítmicas, sons desprovidos de significado e curvas melódicas acentuadas. A constância desses elementos nos permite reuni-los, portanto, sob o conceito de “fala materna”. Fenômeno complexo e presente em muitos povos e culturas distintas, a fala materna encontrará ecos em muitas situações da vida infantil e adulta, sobretudo amorosas.

Diferente da fala adulta, na fala materna não há intenção alguma de transmissão de ideias ou conceitos. Ela é a musicalidade da voz em seu estado puro, expressão de uma interação predominantemente afetiva entre a mãe e o bebê. Deste modo, no “banho melódico” de sua voz (Anzieu, 1989), a mãe abre à criança o mundo sonoro, revelando-lhe o caráter profundamente afetivo deste. Não obstante, o “manhês” e suas propriedades descritas acima revelam também outra dimensão primordial da relação mãe-bebê. O conjunto de seus elementos característicos consiste em uma aproximação da fala adulta à fala do bebê (balbucios e sons “reflexos” sonoros). Trata-se, em essência, de um movimento materno adaptativo, geralmente espontâneo e não deliberado, no qual ocorre uma profunda identificação entre a dupla. O gesto adaptativo da fala materna permite ao bebê o reconhecimento dos seus próprios gestos sonoros, repleto de sons ainda não articulados e de grande amplitude melódica. A aproximação entre as cadências e inflexões da prosódia materna e a lalação e balbucios infantis, surgidas dentro de um profundo processo de identificação entre a díade, poderia ser compreendido como um acesso à experiência de ilusão criadora. O entrecruzamento de vozes no jogo sonoro e na interação musical da dupla oferece ao bebê a possibilidade de assumir a voz de sua mãe como uma criação sua. Nesse início o jogo sonoro é concebido pelo bebê como um monólogo, e é apenas com sua crescente habilidade em diferenciar eu e não-eu que se tornará um diálogo. O próprio gesto adaptativo da fala materna à fala infantil reflete também este estado fusional primitivo. Vale lembrar que o jogo sonoro entre mãe-bebê é geralmente baseado na expectativa do ressurgimento e desparecimento da voz, em cadências acentuadas que alternam picos em registro agudo seguidos por decrescendos (em melodia e volume), lembrando uma forma sonora do jogo do carretel (“fort da”). Assim a voz materna, em seu calor e afetividade, ao se apresentar no exato momento em que ao bebê anseia pelo “banho melódico”, insere-se na trilha que vai do fenômeno de ilusão à região intermediária da experiência. Nela encontram-se possíveis contornos de transicionalidade, estando à serviço da travessia entre uma percepção subjetiva e objetiva do mundo, dependência absoluta e dependência relativa.

Com a crescente capacidade de controlar os sons emitidos e a apreensão dos fonemas da língua materna no processo de aquisição da linguagem, o “manhês” pode ser recriado pela criança, que passa também a brincar sonoramente consigo mesma. Esta re-atualização, repleta de contornos pessoais, pode ser utilizada pela criança em momentos de solidão ou ansiedade, tendo um poderoso efeito tranquilizador e reconfortante. Como Winnicott (1951/2007) afirma:

o balbucio do bebê e o modo como uma criança mais velha repassa todo um repertório de canções enquanto se prepara para dormir ocorrem no interior da área intermediária na condição de fenômenos transicionais, juntamente com o uso de objetos que não fazem parte do corpo do bebê, mas que não são inteiramente reconhecidos como pertencentes à realidade exterior. (p. 230)

Um caso apresentado por Daniel Stern (1985/2000) evidencia estas questões de modo ainda mais contundente:

Diariamente, o pai de uma criança (de dois anos) a colocava para dormir. Como parte do ritual de “colocar para dormir”, eles estabeleciam um diálogo no qual o pai repassava algumas coisas que haviam acontecido no dia e discutiam os planos para o dia seguinte. A menina participava ativamente deste diálogo e ao mesmo tempo fazia uso de muitos subterfúgios para manter seu pai presente e falante, prolongando o ritual. Ela suplicava, choramingava, insistia, persuadia e fazia novas perguntas para ele, em uma entonação engenhosa. Mas quando ele finalmente dizia seu “boa noite” e saía, a voz da menina mudava dramaticamente para uma voz séria, em tom narrativo, e seu monólogo começava, um solilóquio…. Depois que seu pai saía, ela parecia ficar constantemente sob a ameaça de sentir-se sozinha e aflita (um irmão mais novo havia nascido nesta mesma época). Para manter seu controle emocional, ela repetia em seu solilóquio os tópicos abordados no diálogo com seu pai. As vezes parecia imitar sua voz ou recriar algo do diálogo anterior, de modo a reativar sua presença e a carregar consigo para o abismo do sono. (p. 173, tradução do autor)

Esse interessante exemplo mostra não apenas o uso da voz materna (no caso, o pai exercia função de “maternagem”), ou sua recriação, com a finalidade de travessia entre o estado de vigília e o sono, mas também revela a capacidade da criança em manipular esse objeto sonoro. Propriedade indispensável para a condição de transicionalidade, o manuseio e a excitabilidade da musculatura, advindo da materialidade do objeto, encontram aqui correspondências na modulação vocal e na vibração do corpo provocada pela reverberação das cordas vocais. Neste sentido, a fala materna poderia tanto apresentar-se para a criança como fenômeno transicional (tal como colocado por Winnicott), quanto como objeto transicional, visto que, admitindo a materialidade do som, a voz contemplaria os aspectos sensoriais e estéticos exigidos na relação objetal e no uso que se faz do objeto.

Convém ainda ressaltar que afirmar a voz materna como veículo para a transicionalidade não é o mesmo que afirmar que o bebê concebe a mãe em si como seu objeto transicional, questão que tornaria a experiência muito mais problemática, pelas implicações do desmame e pela necessidade do distanciamento entre mãe e bebê (desfusão). Na verdade, busca-se compreender a fala materna como um objeto sonoro apresentado pela mãe. Este poderá, entretanto, conforme o valor atribuído pela criança, tornar-se re-presentação ou a-presentação simbólica de sua presença.

 

Espaço potencial e as origens da musicalidade

O desenvolvimento posterior da transicionalidade, como já dito, é sua ampliação à vasta área denominada experiência cultural. Neste percurso, o objeto transicional perde naturalmente seu valor e significado para a criança, e entre ela e o ambiente estabelece-se o espaço potencial. É este espaço, manifestação posterior da “área intermediária” entre realidade interna e externa, que sustenta a possibilidade de um viver criativo. O brincar, tema que ocupa lugar de destaque na teoria winnicottiana, situa-se neste espaço potencial e é o ponto de partida que conduz o indivíduo a desfrutar de toda sua herança cultural.

Assim, o lugar ocupado quando criamos ou somos tocados por uma obra de arte, por exemplo, é esta terceira área de experiência. Quando escutamos uma música que nos comove profundamente, não temos dificuldade em reconhecê-la como um fato externo: obra criada por tal compositor, executada por tais músicos, seguindo a uma partitura definida. Entretanto, naquele momento ela é também vivida como um fato subjetivo, carregada de uma tonalidade pessoal que nos remete às nossas experiências, sejam estas do passado, do presente ou como anseio do futuro. Neste limiar entre percepção subjetiva e objetiva, a música é recebida pelo ouvinte como se fosse sua própria criação. De fato, este é um sentimento muito comum entre pessoas ligadas à música ou às artes em geral: diante de uma obra que nos toca profundamente, sobrevém um forte desejo de ter sido o seu compositor. E, em certo sentido, o somos. O arrebatamento provocado pela obra artística é por vezes semelhante a um encontro consigo mesmo, como se nela encontrássemos imagens do self. Assim, nada mais justo do que reivindicar uma autoria conjunta, pois em minha audição recrio a obra junto ao seu compositor “factual”.

Na investigação destes fenômenos e de suas origens nos deparamos novamente com a fala materna. Há uma íntima relação entre as experiências primordiais de transicionalidade por ela veiculada e a fruição musical na vida adulta. Uma linha imaginária que liga o jogo sonoro entre mãe e bebê com a futura capacidade deste em usufruir de uma experiência musical. A descrição feita por Tolstói sobre sua relação com a música talvez nos auxilie nesta compreensão:

Enquanto estou escutando música, eu não penso em nada e não imagino nada, mas certo sentimento estranho e voluptuoso enche a tal ponto a minha alma que eu perco a noção de minha existência, e esse sentimento é a recordação. Mas, recordação do quê? Embora a sensação seja intensa, a recordação não é nítida. É como se alguém lembrasse algo que jamais existiu. … Se supusermos que a música é recordação de sentimentos, ficará compreensível por que ela atua de modo variado sobre as pessoas. (Tolstói citado por Schnaiderman, 2007, p. 108)

Considero estas anotações publicadas no livro Infância (1852) muito valiosas, pois revelam um arrebatamento afetivo na escuta, antes de uma apreciação cognitiva ou intelectual da música7. Também considero oportuno o título do livro onde se encontram, pois a intensidade afetiva com que surge a música nos remete ao banho melódico e à melodia de puro afeto da fala materna.

Tolstói descreve a música como recordação de sentimentos, recordação esta não necessariamente nítida e que talvez jamais tenha existido (mas que provavelmente, eu diria, já tenha sido sonhada). Faz uso destas recordações para compreender o modo como uma mesma música pode provocar efeitos tão distintos entre as pessoas. Na mesma direção, o crítico musical Eduard Hanslick (1854/1989) é categórico ao afirmar que uma melodia não comove porque exprime sentimentos. Para o autor, a estrutura harmônica ou as inflexões e cadências melódicas representam não a emoção em si, mas a dinâmica das emoções: “a música pode reproduzir o movimento de um processo psíquico segundo os seus diversos momentos: presto, adágio, forte, piano, crescendo, diminuendo. O movimento, porém, é só uma particularidade, um fator de sentimento, não é o sentimento mesmo” (p. 37). Entretanto, essa analogia entre “dinâmica das emoções” e “dinâmica musical” é muito propícia para a emergência de recordações e associações feitas pelo ouvinte. Recordações, estas sim, que poderão estar carregadas ou não de um conteúdo afetivo8.

Encontramos em ambos os autores o reenvio da apreciação musical às experiências pregressas biográficas de cada indivíduo. Retomando Winnicott, lembramos que o espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre indivíduo e mundo, depende da confiabilidade no ambiente, proporcionada pela adaptação de uma maternagem suficientemente boa (o que significa tanto a sustentação da ilusão quanto a desilusão). A presença ou ausência de um ambiente que ofereça esta confiança é um fator decisivo para a capacidade de usufruir uma vida cultural rica ou do seu empobrecimento. Neste sentido, não seria demasiado supor certa influência da interação sonora primitiva entre mãe e bebê nas origens da apreciação musical adulta e no modo como cada indivíduo é afetado ou não pela música. A afetividade sonora da fala materna seria, então, a pavimentação do caminho que conduz ao prazer pela música. Abertura de um mundo sonoro que levaria, conforme a relação estabelecida, ao desenvolvimento do gosto musical ou ao seu repúdio. Enfim, situada enquanto possível objeto transicional, a voz materna estaria colocada como o antecessor da música; e o jogo sonoro da dupla, o embrião da musicalidade.

 

A terceira voz e a situação clínica

Winnicott (1971/1975) em sua famosa definição da psicoterapia, afirma que esta seria uma “forma altamente especializada de brincar” (p. 63). É na sobreposição de duas “áreas intermediárias da experiência”, a do analista e a do analisando, que se situa o processo analítico. Tomando-o como um modelo para a psicanálise, Winnicott reconhece o brincar tanto no trabalho com adultos quanto nas análises infantis. Segundo o autor, “manifesta-se, por exemplo, na escolha das palavras, nas inflexões da voz e, na verdade, no senso de humor” (p. 61). O objetivo desse “brincar especializado”, entretanto, é menos o riso ou o prazer do que uma experiência criativa e autêntica do self em comunicação. Assim, frente à impossibilidade de brincar ou, em outras palavras, de estabelecer um espaço potencial entre a dupla, esta se torna propriamente uma das direções do trabalho analítico.

A escolha de Winnicott pela expressão “espaço potencial”, em consonância com o estilo descritivo de seu vocabulário, guarda aspectos fundamentais do fenômeno. O uso do termo “espaço” evocando a metáfora de um “lócus” indeterminado (entre interno e externo), sugere sua difusão sobre o ambiente e a ampliação das fronteiras possíveis para a transicionalidade. Nesta noção de espaço se encontra incorporada também a dimensão temporal, revelada pela experiência de continuidade de si, decorrente dos cuidados maternos primitivos que a conquista desta área intermediária exige. Como afirma Winnicott (1971/1975), “brincar tem um lugar e um tempo” (p. 62). Já o termo “potencial” marca outra propriedade essencial do fenômeno: o da possibilidade em detrimento da factualidade. Trata-se antes da capacidade criativa do humano do que da concretude mesmo daquilo que se apresenta. Em outras palavras, “nem tanto o objeto, mas o uso que se faz dele”.

Assim, do ponto de vista psicanalítico, o espaço potencial pode ser traduzido como a condição para o surgimento de uma comunicação significativa entre analista e analisando: lugar prenhe de possibilidades que sustenta a relação analítica. Nesta perspectiva, a questão transferencial se amplia do “quem o analista está representando” para o paciente, para a “qual finalidade do uso que está sendo feito do analista” pelo paciente. Como já dito, no espaço potencial as fronteiras entre self e ambiente se tornam difusas, facilitando a apercepção e a configuração do setting conforme suas necessidades. Neste ponto, a capacidade em se fazer uso do processo analítico e de recriar com uma tonalidade pessoal os elementos propostos pelo enquadre se aproximam da capacidade em desfrutar da experiência cultural (ou, no caso específico que temos abordado, o prazer pela música). Ambas possuem as mesmas condições, já descritas anteriormente.

O aprofundamento na dimensão estética que atravessa este campo criado entre analista e analisando nos remete novamente à voz e sua sonoridade como elementos primordiais. É lugar comum na psicanálise a ideia de que a incongruência entre o conteúdo e a melodia da fala (“o que é dito” e “como é dito”) serve ao analista como indicador dos movimentos inconscientes e de possíveis conflitos implícitos no discurso do analisando. Porém, a sonoridade vocal põe também em primeiro plano a própria relação estabelecida entre a dupla. As vozes do analista e do analisando, tal como melodias que se cruzam, às vezes em uníssono e às vezes dissonantes, trazem ao registro sonoro as dinâmicas transferenciais e contra-transferenciais. Mantendo o brincar como modelo, o diálogo e o entrecruzamento de vozes da dupla analítica podem ser compreendidos como uma espécie de “jogo de rabiscos” sonoro, no qual uma figura (ou “composição musical”) de dupla autoria é formada. Do mesmo modo como discutido a respeito da obra artística, esta conjunção criativa formada pelo jogo de vozes a cada análise não pertence nem exclusivamente ao analista, nem exclusivamente ao analisando. Assumida em sua transicionalidade, a voz também habita o espaço potencial na análise:

no diálogo psicanalítico, a relação intersubjetiva entre analista e analisando é constituída pela voz, que, circulando entre duas interioridades, funciona como uma espécie de objeto transicional, juntando aquele que fala e o ouvinte em uma unidade-dual imaginária. (Kahane citado por Bollas, 1996, p. 581)

Este jogo de vozes, situado na área comum de experiência inconsciente compartilhada, poderia também ser reconhecido como uma “terceira voz”. Esta terceira voz, tradução sonora do “terceiro analítico” proposto por Ogden (1996) é, paradoxalmente, criação da dupla analista-analisando na mesma medida em que os cria.

A voz do analista e a do analisando não apenas guardam as marcas de suas singularidades, mas também denunciam a intersubjetividade presente no encontro. Nos ecos e ressonâncias mútuas das vozes individuais, a terceira voz, configurando-se como uma terceira subjetividade, atravessa e articula as subjetividades do analista e do analisando. Assim, no espaço analítico, as especificidades melódicas das vozes individuais surgem sempre a partir desta terceira voz, e a ela fazem constante referência. É nesse sentido que Ogden (1998) ressalta a imprevisibilidade de como será sua voz a cada sessão:

Não consigo e nem poderia predizer as vozes com as quais irei me ouvir e falar. Para mim, esse é um dos mistérios de se passar uma vida na prática da psicanálise. Não apenas minha voz é diferente com cada paciente, como, também, quando uma análise vai indo bem, minha voz e a do paciente desenvolvem novos “suprassons” no decorrer de cada hora analítica e durante o decorrer de semanas, meses e anos de uma análise9. (p. 602)

O analista recria sua voz a cada paciente e a cada momento do processo analítico. A composição musical originada de cada encontro é singular e pertence exclusivamente à dupla. Do ponto de vista do analista, trata-se também de uma adaptação à fala do analisando, na qual inclui suas pausas, ritmos, nuances de inflexões e timbres. Seja em contraponto ou em uníssono, o sentido principal de comunicação significativa é mantido no jogo de vozes.

Ogden enfatiza a importância do reconhecimento do terceiro analítico para o desenvolvimento do trabalho clínico. Não considerar tais fenômenos como fatos clínicos coloca ao analista o risco de “diminuir (ou ignorar) o significado de uma grande parte (às vezes, a maioria) da sua experiência com o analisando” (Ogden, 1996, p. 78). Partindo de um registro estético na construção conjunta de uma terceira voz, somos deste modo levados também a repensar a noção corrente de escuta analítica. Por um lado, é certo que a “escuta do sentido verbal”, ou seja, a análise do conteúdo e do encadeamento de significantes proporciona o acesso e a decodificação do inconsciente. Por outro, há momentos de uma análise em que a sonoridade da fala e sua tonalidade afetiva se sobrepõe às palavras, e seu sentido se torna mais significativo do que o conteúdo verbal. Nestes casos, cabe ao analista certa sensibilidade estética, uma espécie de “escuta musical”. O campo artístico e a fruição musical abordados anteriormente ressoam novamente pelo vértice da técnica e da escuta analítica. Tal como no arrebatamento descrito por Tolstói e no “banho melódico” primordial da fala materna, escutar melodias é essencialmente uma experiência corpórea. Dessa forma, no campo sonoro criado dentro da situação analítica, é com o corpo que a escuta se faz. A proximidade da percepção musical com o inconsciente se evidencia ainda mais no modo como a fala do analisando reverbera e repercute corporalmente nos ouvidos do analista. E, no caso do analisando, pelo modo como a fala do analista, independente do que é por ele dito, pode provocar conforto, relaxamento, tensão ou agitação corporal.

Estas seriam algumas compreensões possíveis do fenômeno sonoro, fundado pela voz, no desenvolvimento infantil e no processo analítico. Entretanto, embora apenas o som tenha sido diretamente abordado, o silêncio a partir do qual a sonoridade emerge possui importância equivalente. Som e silêncio se encontram entrelaçados tanto na constituição do self (comunicação não-explicita e silenciosa entre mãe e bebê), quanto na análise, como uma tela em branco ou fundo sobre o qual as figuras projetivas do paciente se desenham. Figuras estas que podem ser “cantadas” em solo ou em dueto pela dupla analítica.

 

Referências

Anzieu, D. (1989). O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Bollas, C. (1996). Pondo em palavras e relatando a sexualidade. Revista Brasileira de Psicanálise, 30 (3), 579-583.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Alexandre Socha
Rua Capote Valente, 753 | Pinheiros
05409-002 São Paulo, SP
Tel: 11 2157-8565
E-mail: alexandre.socha@gmail.com

Recebido em: 24/04/2010
Aceito em: 05/05/2010

 

 

1 Trabalho derivado de dissertação de mestrado pela PUC-SP, bolsa concedida pela FAPESP.
2 Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Mestrando em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
3 A palavra posse é enfatizada pelo autor para esclarecer que não se trata do objeto em si, mas do uso que a criança faz dele. Em outras palavras, o termo sublinha a passagem da “relação de objeto” para o “uso do objeto”.
4 Posição que compreende o fenômeno artístico de modo muito distinto do conceito de sublimação proposto por Freud, pois, em vez da renúncia pulsional, apoia-se na criatividade como força motriz.
5 A percepção criativa, ou apercepção, é condição imprescindível para ascender a uma realidade externa compartilhada. Como diria o poeta Manoel de Barros, “tudo o que não invento é falso”.
6 Encontram-se na literatura específica também os termos “mamanhês” e “babytalk”.
7 Um de seus filhos, o musicólogo Sierguéi Tolstói, relata: “Eu não encontrei em minha vida ninguém que sentisse a música tão intensamente como meu pai. Ouvindo música de seu agrado, perturbava-se, tinha um aperto na garganta, soltava soluços e vertia lagrimas. Uma perturbação sem motivos e um enternecimento eram o que lhe provocava a música” (citado por Schnaiderman, 2006, p. 107). Ambas as citações feitas por Schaiderman foram retiradas do livro de Siergiéi Tólstoi, Ótcherki bilovo, 2a ed., Moscou: Goslitizdát (Editora Estatal de Literatura), 1956, pp. 396-7.
8 Em um artigo póstumo intitulado “Da interpretação das melodias que nos acodem ao espírito” (1909), Sándor Ferenczi se pergunta se haveriam associações de sons não determinadas pela palavra. Admite finalmente possibilidade de associações puramente musicais: “É de se presumir que o ritmo correspondente ao humor do momento baste, com freqüência, para que uma melodia sem palavras nos acuda ao espírito... o ritmo da melodia que me vem ao espírito corresponde exatamente, na grande maioria das vezes, ao grau de minha alegria ou de minha tristeza.” (1992, p.171).
9 Ogden utiliza o termo “suprassom” (oversound) para descrever a sobreposição ou o entrelaçamento dos sons de outras vozes na voz individual.

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