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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

As funções da interpretação psicanalítica em diferentes modalidades de transferência: as contribuições de D. W. Winnicott1

 

The functions of psychoanalytical interpretation in different kinds of transference: the contributions of D. W. Winnicott

 

Las funciones de la interpretación psicoanalítica en diferentes tipos de transferencia: las contribuciones de D. W. Winnicott

 

 

Alfredo Naffah Neto2

Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta, primeiramente, a concepção winnicottiana de neurose de transferência e de contratransferência e as funções da interpretação psicanalítica nesse contexto. Em seguida, indica situações de neurose de transferência com pacientes psicóticos e discute a interpretação nessas condições, apresentando um caso clínico de Winnicott, como ilustração. Por último, define a psicose de transferência e o manejo clínico que ela exige, segundo o autor.

Palavras-chave: Neurose de transferência, Interpretação, Psicose, Psicose de transferência.


ABSTRACT

This article presents, firstly, the conception of transference neurosis and counter-transference as defined by Winnicott and the functions of interpretation in this context. Afterwards, it points to situations of transference neurosis with psychotic patients and discusses the interpretation in these conditions, presenting a clinical case by Winnicott as illustration. Finally, it defines transference psychosis and the clinical management it implies, from the author’s point of view.

Keywords: Transference neurosis, Interpretation, Psychosis, Transference psychosis.


RESUMEN

Este artículo presenta, primeramente, la concepción winnicottiana de neurosis de transferencia y contra-transferencia y las funciones de la interpretación psicoanalítica en este contexto. También destaca situaciones de neurosis de transferencia con pacientes psicóticos y discute la interpretación en estas condiciones, presentando un caso clínico de Winnicott, como ilustración. Finalmente, define psicosis de transferencia y el manejo clínico que ella presupone, según este autor.

Palabras clave: Neurosis de transferencia, Interpretación, Psicosis, Psicosis de transferencia.


 

 

Quando interpretar?

É corrente a idéia – baseada numa primeira leitura dos textos de Winnicott –, de que ele somente utilizava a interpretação psicanalítica quando tratava de pacientes neuróticos – e, até certo ponto, de pacientes depressivos –, privilegiando o manejo transferencial quando os pacientes eram borderlines, psicóticos ou apresentavam tendência antissocial (em qualquer dos seus níveis de gravidade). No entanto, essa versão das coisas é superficial, senão equivocada. Conforme tentarei mostrar ao longo deste percurso, o que legitima o uso da interpretação como ferramenta clínica, na clínica winnicottiana, não é o mero diagnóstico diferencial das patologias em questão – muito embora ele seja fundamental –, mas o tipo de transferência que está em curso: ou seja, se está em foco uma neurose de transferência ou uma psicose de transferência. Para complicar ainda mais a questão, tentarei mostrar que pacientes de tipo borderline (ou mesmo psicóticos) podem, em períodos específicos – quando não estão em surto ou imersos em processos regressivos –, entrar numa relação de neurose de transferência (pelo menos, a clínica winnicottiana leva a essa suposição). E que, nesses casos, cabe interpretar a transferência, mesmo em se tratando de pacientes psicóticos. Por fim, também pacientes neuróticos podem apresentar núcleos psicóticos e entrar, num certo momento, numa psicose de transferência e num processo regressivo, requerendo, então, manejo transferencial3.

Portanto, as coisas não são tão simples quanto podem aparecer à primeira vista.

 

A interpretação na neurose de transferência

Primeiramente, cabe esclarecer o que Winnicott entendia por neurose de transferência. Retomando a definição freudiana e lhe imprimindo os seus matizes próprios de interpretação – como, aliás, sempre fazia com tudo o que tomava da tradição psicanalítica –, ele nos diz:

A característica da técnica psicanalítica é esse uso da transferência e da neurose de transferência. Transferência não é somente uma questão de conformidade, ou de relacionamentos. Diz respeito a uma maneira pela qual um fenômeno altamente subjetivo repetidamente surge numa análise. A psicanálise consiste sobremaneira no arranjo de condições para o desenvolvimento desses fenômenos e na interpretação dos mesmos no momento correto. A interpretação refere o fenômeno específico da transferência a um pedaço da realidade psíquica do paciente e isso, em alguns casos, significa referi-lo, ao mesmo tempo, a um pedaço da sua vida passada. ... Seguindo esse trabalho, o paciente perde aquela neurose de transferência específica e começa a borbulhar em direção a uma outra... (Winnicott, 1960/1990c, p. 159)

Num outro texto, em que examina o caso de um paciente que diz ao analista: “Você me lembra a minha mãe”, Winnicott comenta:

Na análise, o analista terá as pistas para interpretar não só a transferência de sentimentos da mãe para o analista, mas também os elementos instintuais inconscientes que subjazem a isso, os conflitos que são despertados e as defesas que se organizam. Dessa forma, o inconsciente começa a ter um equivalente consciente e a se tornar um processo vivo envolvendo pessoas, e a ser um fenômeno aceitável para o paciente. ... Eu serei melhor lembrado como alguém que afirma que, entre o paciente e o analista está a sua atitude profissional, a sua técnica, o trabalho que ele realiza com a sua mente. Agora eu digo isso sem medo, porque não sou um intelectual e, de fato, faço o meu trabalho muito a partir do ego corporal, por assim dizer. Mas penso em mim mesmo, no meu trabalho analítico, operando com um esforço mental, tranquilo mas consciente. Ideias e sentimentos vêm à tona, mas são examinados e peneirados antes que a interpretação se faça. Isso não quer dizer que os sentimentos não estejam envolvidos. Por um lado, posso ter dor de estômago, mas isso usualmente não afeta as minhas interpretações; por outro, posso ter sido de alguma forma estimulado erótica ou agressivamente por uma ideia posta pelo paciente, mas, novamente, isso comumente não afeta meu trabalho interpretativo: o que digo, como digo e quando digo. (Winnicott, 1960/1990c, pp. 161-162)

Nessa passagem Winnicott levanta duas ideias importantes: a primeira delas é que a interpretação consiste num trabalho eminentemente mental, afirmação esta que desenvolverá em outros textos; a segunda é que, numa neurose de transferência, ele se mantém bastante distinto da dinâmica do paciente, receptivo e vulnerável a ela, mas sustentando-se sobre os próprios pés, não entrando nunca numa relação de tipo fusionada (como acontecerá inevitavelmente na psicose de transferência, na qual será arrastado para esse tipo de relação).

Nesse sentido, ele se põe nas antípodas de certa linhagem inglesa – desenvolvida especialmente a partir de Paula Heimann –, que monta toda a interpretação a partir da vivência contratransferencial do analista. Curiosamente, Winnicott prefere – aliás, como Freud e Melanie Klein –, pensar na contratransferência como “aquilo que esperamos eliminar por meio da seleção, análise e formação de analistas” (Winnicott, 1960/1990c, p. 164; o grifo é meu), deixando em aberto toda a dinâmica da psicose de transferência que, segundo ele, não pode ganhar qualquer nova luz por meio do conceito de contratransferência (exigindo-lhe um estiramento de sentido artificial para poder se aplicar aos fenômenos da experiência analítica na psicose).

Entretanto, poderíamos perguntar: o que isso significa? Que Winnicott não leva em conta o que o paciente mobiliza nele no contexto da neurose de transferência? Penso que não é bem assim. Como ele mesmo afirma, os sentimentos presentes participam, sem dúvida nenhuma, da formulação da interpretação. Entretanto, tudo o que emerge ali, no momento, tem de ser devidamente peneirado para cumprir o que Winnicott entende como a função principal da interpretação, qual seja: diferenciar a figura do analista experimentada como objeto subjetivo (na vivência transferencial), da sua figura real (objeto objetivo), que permanece em cena, confundida com a primeira. A esse respeito, ele diz: “Nessa posição, tenho algumas características do fenômeno transicional, já que represento o princípio de realidade, sou eu que mantenho o olho no relógio, embora seja, todavia, um objeto subjetivo para o paciente” (Winnicott, 1962/1990a, p. 166). Ao produzir essa diferenciação – entre objeto subjetivo e objeto objetivo –, a interpretação ajuda o paciente a discriminar o que já aconteceu no passado daquilo que está acontecendo no presente; seu mundo interno, repleto de fantasias, do mundo real, palpável. Isso produz um reforço na função de uso do objeto.

Vou tentar explicitar melhor essa ideia usando um fragmento clínico de um paciente meu. Trata-se de um rapaz de trinta anos que nunca pôde integrar os seus impulsos agressivos-destrutivos em função de uma mãe retaliadora e de um pai extremamente competitivo, que entrava em estado de fúria quando sentia que a sua autoridade estava sendo posta em xeque. Nessa sessão – que se dá após um longo período de análise –, traz-me as suas dificuldades de exprimir irritação comigo a cada vez que faço algo que o desagrada. Pergunto-lhe o porquê da dificuldade e ele me responde: “Tenho medo de entrarmos numa disputa que acabe dando em merda”. Respondo-lhe: “Não sou o seu pai, sou o Alfredo; aqui você pode trazer a sua irritação, que eu não vou entrar em fúria”. A interpretação remete o paciente às suas memórias e fantasias inconscientes envolvendo o pai e, simultaneamente, o faz ganhar um analista real, capaz de acolher os seus impulsos agressivos e ajudá-lo a integrar o que, na história real, ficou dissociado. Esse é um exemplo de interpretação usada para fins de manejo transferencial (quando a raiva efetivamente puder comparecer à cena analítica).

Um segundo exemplo traz o fragmento clínico de um outro paciente, também na casa dos trinta anos, que está comigo há cerca de um ano e que, na sessão em foco, se queixa da dificuldade imensa de relaxar no divã – assim como em outras situações de vida –, dizendo que permanece sempre tenso e de sobreaviso. Pergunto-lhe, então, se quando era bebê não ficou exposto a alguma situação ambiental perigosa. Então ele me conta o que lhe contaram: que, quando nasceu, seus pais estavam morando na França e que a sua mãe não tinha empregada nem babá. E que a sua irmã mais velha ficou tomada de ciúmes do bebê, transformando a vida da mãe num verdadeiro inferno, tumultuando todas as situações em que ela necessitava cuidar do irmãozinho recém-nascido. Digo-lhe, então, que – muito provavelmente –, esse estado de alerta permanente formara-se nessa época, com a função importante de proteger a sua vida contra o perigo real de uma irmãzinha enraivecida, possuída pelo ciúme. Mas que isso já tinha acontecido lá atrás e que agora ele não corria mais esse risco.

Não é sempre que isso ocorre, mas, nesse caso, a interpretação trouxe-lhe um alívio imediato, permitindo, a partir daí, um relaxamento e uma tranquilidade que ele nunca experimentara antes, tanto na análise quanto em outras situações de vida. No caso, trata-se de uma interpretação envolvendo uma reconstrução da sua história de vida, mas cujo efeito é semelhante ao do caso anterior. Reenvia o paciente a memórias inconscientes arcaicas – presentes sob a forma de marcas corporais nunca antes significadas –, e discrimina a figura da mãe/irmã da figura do analista, abrindo campo para o uso de um objeto real, na presença do qual é possível relaxar sem entrar em agonias impensáveis.

A partir desse percurso percorrido, podemos concluir que interpretar meramente a dor de estômago ou a estimulação erótica produzidas no analista pelo paciente, no “aqui-e-agora”, embora possa vir a revelar o mecanismo inconsciente atuante, pode restringir a interpretação ao acontecimento momentâneo, mantendo a confusão entre objeto subjetivo e objeto objetivo ou, num outro âmbito, entre cena passada e cena presente. Por exemplo, se o analista diz ao paciente: “Você está tentando me seduzir eroticamente para desviar a minha atenção de coisas importantes suas, que não quer perceber”, a interpretação, se correta, apenas revela a resistência envolvida, deixando totalmente no escuro a dinâmica transferencial.

Tudo o que emerge na experiência analítica tem de ser considerado, mas deve ser devidamente selecionado, para que a interpretação compreenda a complexidade transferencial de uma forma curta e simples, já que Winnicott procurava ser econômico nas suas interpretações. Ele nos diz:

A verbalização, quando feita exatamente no momento propício, mobiliza forças intelectuais. Somente é ruim mobilizar processos intelectuais quando eles se tornaram seriamente dissociados do psicossoma. As minhas interpretações são econômicas, eu espero. Uma interpretação por sessão satisfaz-me, se levou em consideração o material produzido pela cooperação inconsciente do paciente. Digo uma coisa, ou uma coisa em duas ou três partes. Nunca uso sentenças longas, a não ser que esteja muito cansado. Se estiver próximo do ponto de exaustão, começo e ensinar. Nesse sentido, no meu ponto de vista, uma interpretação contendo a palavra “além do mais” já é uma sessão de ensino. (Winnicott, 1962/1990a, p. 167)

Nessas considerações, aparece mais uma vez, de forma explícita, a afirmação de que a interpretação é um processo intelectual (mental) do analista, destinado a mobilizar processos intelectuais no paciente, e que ela é funcional desde que não estejam em questão dissociações sérias entre mente e psique, no âmbito psicossomático4.

Mobilizar processos intelectuais significa, nesse contexto, acioná-los para a tradução dos processos inconscientes no formato daquilo que a mente já realiza no âmbito do processo secundário, ou seja, do pensamento consciente. Isso faz, como diz Winnicott, com que o “o inconsciente comece a ter um equivalente consciente”. Convém lembrar aqui que, para Winnicott, a mente diferencia-se, primeiramente, para dar ao bebê alguma previsibilidade dos acontecimentos ambientais, portanto, como uma zona diretamente em contato com o mundo exterior, cabendo a ela: transformar a temporalidade subjetiva em Cronos, mensurar espaço, analisar e categorizar eventos, armazenar e classificar memórias, traçar relações de causalidade e fazer previsões (Winnicott, 1965, p. 7). Enfim, fazer a transição do processo primário para o processo secundário.

Cabe ainda lembrar que Winnicott era totalmente contrário à proposta de interpretações feitas fora do timing de elaboração própria do paciente, ou seja, à revelia de qualquer cooperação inconsciente por parte do mesmo, privilegiando o conhecimento técnico do analista em detrimento das pistas dadas pelo processo analítico em curso. Eu o cito:

É muito importante, exceto quando o paciente está regredido à primeira infância e a um estado de fusão, que o analista não saiba as respostas, exceto à medida que o paciente dê as pistas. O analista apreende as pistas e faz as interpretações; frequentemente acontece que o paciente falhe em dar essas pistas, tornando inevitável, então, que o analista nada possa fazer. É importante para o paciente essa limitação do poder do analista representada pela interpretação correta, feita no momento correto, e baseada nas pistas e na cooperação inconsciente que o próprio paciente está suprindo e que constitui o material que constrói e justifica a interpretação. ... (Caso contrário) o analista pode aparecer como muito sabido e o paciente pode expressar admiração, mas, no fim, a interpretação correta torna-se traumática e o paciente tem de rejeitá-la, porque ela não é sua. Ele se queixa de que o analista tenta hipnotizá-lo, ou seja, de que o está convidando a uma severa regressão à dependência, puxando-o para uma fusão consigo mesmo. (Winnicott, 1960/1990e, pp. 50-1)

Ou seja, dito de forma inequívoca, todas as regressões espontâneas e necessárias ao processo psíquico do paciente serão bem-vindas, menos aquelas criadas pelo analista, ao menosprezar e desconsiderar as capacidades daquele que está tratando.

Para Winnicott, é sempre da cooperação inconsciente do paciente que deve surgir a condução da análise, quer se trate de pacientes neuróticos, borderline ou psicóticos. Em outro texto, ele é ainda mais enfático a esse respeito, dizendo que interpreta, muitas vezes, durante o processo, para não acertar exatamente na mosca ou mesmo para errar, de tal forma que o paciente não fique com a impressão de que ele sabe tudo (citado por Winnicott, 1962/1990a, p. 167). Desmistificar o suposto saber do analista é, aí, uma forma de convocar a elaboração imaginativa do paciente com vistas ao trabalho a ser feito.

 

A neurose de transferência em pacientes psicóticos

Winnicott entende que existem dois tipos de psicose:

O termo psicose é usado para significar ou bem que, enquanto infante, o indivíduo não foi capaz de atingir um grau de saúde pessoal que dá sentido ao conceito de complexo de Édipo, ou bem, alternativamente, que a organização da sua personalidade continha fraquezas que se revelaram por ocasião da solicitação máxima da condução do complexo de Édipo. Podemos verificar que há uma linha muito fina entre esse segundo tipo de psicose e a psiconeurose. (Winnicott, 1964/1990b, p. 131)

Esse segundo tipo de psicose caracteriza-se, pois, por defesas criadas contra a ameaça de desmoronamento da personalidade, por ocasião da necessidade de sustentação da intensa ambivalência de sentimentos produzida pelo complexo de Édipo. É essa forma de psicose que, na minha forma de ver, pode produzir neurose de transferência durante períodos analíticos. Ou então, estruturas de tipo borderline que tenham sido geradas em períodos anteriores ao Édipo, mas que contenham um falso self cindido que funcione a contento durante períodos de vida5.

Um exemplo desse tipo aparece descrito por Winnicott no texto “Psychiatric disorder in terms of infantile maturational processes”, publicado em 1963/1990d. Eu o descrevo, aqui, para analisar a neurose de transferência produzida em contexto analítico e as formas de interpretação usadas como ferramenta clínica.

A paciente é denominada por Winnicott de Senhorita X e ele nos diz que as suas necessidades “eram as de um paciente psicótico (apesar do fato de ela não ser tão doente quanto muitos esquizofrênicos que conhecera, com quem vivera e a quem tentara ajudar)” (Winnicott, 1963/1990d, p. 237). Essa menor gravidade do caso pode nos sugerir que ela fosse do segundo tipo de psicose anteriormente descrito, embora seja difícil afirmar isso com todas as letras.

De qualquer modo, na primeira sessão relatada, a de segunda-feira, a paciente apareceu carregada de mantimentos que comprara numa loja que descobrira perto do consultório. Isso sugeriu a Winnicott o desenvolvimento de um tipo de transferência envolvendo aquilo que a paciente denominava a sua “avidez”, como se vir para a análise fosse vir para uma grande refeição. Tinha havido uma longa preparação para que isso acontecesse, que alternara os sintomas anoréxicos da paciente com uma libidinização extrema de comidas bem preparadas e bem servidas.

Na sessão de terça-feira a paciente deitou-se no divã na posição de poder ficar fitando o analista, como sempre fazia e cobriu-se com a manta. Nada aparentemente aconteceu. Falaram sobre alguns temas de forma inconstante, mas nada se desenvolveu. No final, a paciente estava contente e disse que tinha aproveitado a sessão. Winnicott diz que não se sentiu, de forma alguma, desnorteado, embora não soubesse, de fato, o que estava acontecendo.

Na sessão seguinte, de quarta-feira, a senhorita X começou se desculpando por não ter material para trazer. Em seguida, entabulou uma conversa com Winnicott sobre corrida de cavalos, comparando o jóquei inglês, que deixa o cavalo livre para pular (e, então, quando a corrida é ganha, isso significa que o cavalo é realmente, bom) e o jóquei alemão, que calcula tudo, incluindo o número de passos que o cavalo terá de dar até o obstáculo. No final, disse que o que a impressionava era o treinamento dos cavalos.

Aí Winnicott já pôs as suas orelhas em pé, pois sabia que ela tinha um grande interesse no “treinamento” de analistas, pois tivera uma experiência analítica frustrada, anterior à análise com ele, vindo depois a descobrir que esse primeiro profissional não tivera “treinamento” analítico.6.Esse fracasso da primeira análise impedira-a durante muito tempo de voltar a procurar um segundo analista.

Em seguida, a paciente contou um sonho sobre um pintor de quem falara uma semana antes, de cujos quadros gostava muito. No sonho, ela ia comprar um quadro, talvez um que vira na exposição original, mas descobriu que todos eles haviam mudado. Os originais assemelhavam-se a pinturas de criança e era um desses que queria comprar. Mas os que estavam agora à mostra eram todos calculados e sofisticados e o pintor sequer se lembrava dos anteriores; ela chegou a desenhar um deles para fazê-lo lembrar-se, mas sem sucesso. Winnicott nos conta: “Quando eu disse que o sonho continuava o tema da técnica dos cavalos para pular obstáculos, o assunto do treinamento e da perda da espontaneidade, ela percebeu que era assim e ficou satisfeita. E elaborou o tema” (Winnicott, 1963/1990d, p. 236).

Essa primeira interpretação de Winnicott – dada a meia-boca, apenas associando os elementos principais e deixando o restante à elaboração da paciente –, produziu então, resultados, levando-a a um pensamento que tivera após a sessão do dia anterior, terça-feira, na qual aparentemente nada parecia ter acontecido. Mas as aparências enganam e essa sessão tinha sido decisiva.

Explicando melhor, naquela sessão ela percebera que Winnicott não se comportara como o analista anterior que, cada vez que ela se calava ou tentava entrar em contato com o seu mundo subjetivo, fazia-a sair do divã e se sentar, ou mudava totalmente de procedimento. Percebeu, portanto, que essa nova análise não teria de ser interrompida, como a anterior.

O sonho fazia alusão à primeira análise, na qual era impedida de buscar as pinturas infantis de que necessitava – pinturas da sua primeira infância –, sendo obrigada a aceitar, no lugar delas, pinturas calculadas e sofisticadas que nada tinham a ver com ela. Mas, paralelamente a isso, a conduta da paciente, ao longo dessas sessões, colocava em xeque a segunda análise. Como? Permitir-se permanecer no seu ritmo próprio e não produzir nada de visivelmente importante na sessão de terça-feira, era uma forma de testar como Winnicott iria se comportar diante desse material supostamente tão pobre. Não iria ele atuar como o analista anterior e tentar “produzir” um material mais rico, tirando-a do contato com o seu mundo subjetivo? Descobriu que não, que esse segundo analista, ao contrário do primeiro, era “treinado”.

Mas – vocês poderiam perguntar – por que digo que o que está em foco é uma neurose de transferência, considerando que o paciente é psicótico? Porque o que está em cena é o analista sob duas visadas diferentes e simultâneas: de um lado, Winnicott como objeto subjetivo, o que quer dizer, amalgamado à figura incompetente do analista anterior e, de outro, Winnicott, objeto objetivo, analista atual, que necessita ser discriminado do primeiro colega. Ora, é essa experiência paradoxal do analista, simultaneamente subjetiva e objetiva, fantasiosa e real, permitindo que ele ocupe uma posição de fenômeno transicional, que define a neurose de transferência, segundo Winnicott.

O trabalho com essa paciente, nessa sessão, foi tão efetivo que, na sessão seguinte, de quinta-feira, ela chegou atrasada um quarto de hora, o que era coisa muito rara na sua análise. O carro não tinha chegado a tempo, mas ela comentou que essa explicação não era satisfatória, pois havia sonhado na noite anterior que tinha se atrasado para essa sessão. Winnicott, então, interpretou que alguma coisa havia mudado, de tal forma que agora ela mostrava ambivalência com relação a ele e à análise. As elaborações seguintes, feitas pela dupla, evidenciaram que o medo (associado ao intenso desejo) de vir à sessão tinha a ver com a sua avidez e o receio das dificuldades que Winnicott teria futuramente para manejá-la, quando ela atingisse a capacidade total para reclamar para si o analista e tudo o que ele possuía. Medo de colocar a sua avidez em cena e, com isso, perder o analista.

Para concluir essa parte, gostaria apenas de salientar que, quando se interpreta um paciente psicótico nessas circunstâncias, o cuidado tem de ser ainda maior, já que a mobilização dos processos intelectuais pode, aqui sim, vir a reforçar dissociações ou cisões já existentes entre a esfera mental e o restante do psiquismo. Seguir as pistas inconscientes e nunca caminhar na frente do paciente constituem, aí, cuidados indispensáveis.

 

A psicose de transferência e o manejo clínico

A psicose de transferência emerge sempre com pacientes em estado de intensa regressão a estados de dependência e, diferentemente da neurose de transferência, nela a figura real do analista é inteiramente eclipsada. Traduzindo em termos winnicottianos: aí o analista é unicamente experimentado como objeto subjetivo. Margareth Little (1990), falando-nos de sua análise com Winnicott, nos longos períodos de regressão por que passou, nos conta:

Para mim, D. W. não representava minha mãe. Na minha ilusão transferencial, ele era minha mãe ... e, como há uma continuidade real entre mãe e feto, genética e corporalmente (por meio das membranas e da placenta), assim, para mim, suas mãos eram o cordão umbilical, seu divã a placenta, os cobertores as membranas, muito aquém de qualquer nível consciente, até um estágio bem posterior. (p. 98)

É nesse sentido que, num outro texto, Winnicott (1956/1975a) diz que nesse tipo de transferência é como se o presente retornasse ao passado e o analista se defrontasse com os processos primários do paciente, no ambiente original em que foram confirmados (pp. 297-298).

É justamente por não colocar em cena nenhuma mistura de tempos cronológicos – já que o presente retorna ao passado –, nem tampouco de tipos de objeto – já que aí o analista é somente experimentado como objeto subjetivo –, que a psicose de transferência não requer interpretação. Ou seja, nesse contexto, a interpretação torna-se desnecessária, já que não há nada a ser discriminado, diferenciado, nem no nível dos tempos envolvidos, nem no nível dos objetos aí implicados. Necessária aí é tão somente a sustentação da transferência, para que o paciente possa reviver a situação traumatogênica diante de um ambiente mais acolhedor e assim retomar experiências que, na história real, não puderam se realizar ou ficaram truncadas.

Por essa razão, aí não cabe mais a atenção flutuante do analista, como ferramenta clínica, e muito menos se esperar associações livres de um paciente em tais condições. Já não estamos mais na técnica psicanalítica padrão, mas na técnica modificada.

Um paciente regredido exige a presença maciça do analista, incluindo, muitas vezes, contatos corporais à guisa de holding. Ao mesmo tempo, o analista não pode perder a função de realidade, como Winnicott (1960/1990c) comenta:

O analista necessitará permanecer orientado para a realidade externa, enquanto, de fato, está identificado ao paciente, ou mesmo fundido a ele. O paciente deverá se tornar altamente dependente, ou mesmo absolutamente dependente, e essas palavras são verdadeiras mesmo quando há uma parte sadia da personalidade (dele) que atua todo o tempo como uma aliada do analista e, de fato, lhe diz como se comportar. ... O psicótico borderline gradualmente quebra as barreiras daquilo que eu denominei atitude profissional e técnica do analista, e força uma relação direta de tipo primitiva, até o ponto de uma fusão. ... Há muito a ser dito sobre o uso que o analista pode fazer das suas reações conscientes e inconscientes diante do impacto do paciente psicótico ou da parte psicótica do paciente sobre o seu self e o efeito disso tudo em sua atitude profissional. (pp. 163-4)

Concluindo: se diante da neurose de transferência o analista necessita manter-se sobre os próprios pés, receptivo, mas distinto da dinâmica do paciente para poder elaborar mentalmente as interpretações, a psicose de transferência já lhe solicita algo totalmente diverso: um estado de total identificação ao paciente, chegando mesmo à fusão, sem que perca, ao mesmo tempo, a orientação para a realidade externa e o contato consigo próprio. Winnicott (1947/1975b) é categórico quando nos diz: “Penso que numa análise de psicóticos … o analista se encontra numa posição comparável à de uma mãe de um bebê recém-nascido” (p. 202).

Talvez seja por isso que recomenda que jovens analistas se limitem ao atendimento de pacientes neuróticos. Eu o cito: “A vasta maioria das pessoas que pode vir a nós para psicanálise é não psicótica e os estudantes devem primeiramente aprender a análise de casos não psicóticos” (Winnicott, 1960/1990c, p. 162). Mas podemos perguntar: até que ponto isso é possível? Não foi o próprio Winnicott quem disse, inúmeras vezes, que grande parte dos neuróticos acaba revelando, ao longo da análise, a existência de núcleos psicóticos escondidos? Também não foi ele quem disse que os dois tipos de transferência geralmente se alternam ao longo do processo, exigindo do analista cuidado e atenção? (citado por Winnicott, 1956/1975a, p. 299).

Essas são perguntas que, mais uma vez, colocam em questão essa profissão que Freud criou e que ele mesmo descobriu tão complexa e intrincada que a classificou como impossível.

 

Referências

Little, M. (1990). Psychotic anxieties and containment: A personal record of an analysis with Winnicott. Londres: Jason Aronson.         [ Links ]

Naffah Neto, A. (2008). Contribuições winnicottianas à clínica da neurose obsessiva. Percurso: Revista de Psicanálise, 21, (41), 27-36.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1965). The family and the individual development. Londres & New York: Routledge.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975a). Clinical varieties of transference. In D.W. Winnicott, Trough paediatrics to psychoanalysis. (pp. 295-299). Londres: Karnac. (Trabalho original publicado em 1956)        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Alfredo Naffah Neto
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04544-000 São Paulo, SP
Tel: 3045-3082
E-mail: naffahneto@gmail.com

Recebido em: 10/11/2009
Aceito em: 10/02/2010

 

 

1 Este artigo constituiu, originalmente, uma conferência proferida no III Colóquio Winnicott de Campinas, em novembro de 2009.
2 Psicanalista, Mestre em Filosofia pela USP, Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Professor Titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, autor de vários artigos e livros sobre Psicanálise e Música (Ópera, principalmente).
3 As formas de manejo transferencial das patologias depressivas e da tendência antissocial infelizmente escapam aos propósitos desta reflexão, razão pela qual não as abordarei aqui.
4 Isso, sem dúvida, requer cuidados especiais no caso de neurose obsessiva já que, devido à intensa dissociação entre a esfera mental produtora dos sintomas e o mundo interno dos objetos persecutórios, uma mobilização intelectual poderia simplesmente vir a reforçar as defesas obsessivas no paciente. Por isso, Winnicott afirma que a análise da neurose obsessiva requer um tanto de manejo transferencial (citado por Naffah Neto, 2008).
5 Quanto ao primeiro tipo de psicose, Winnicott diz que, no extremo, ele guarda muito pouca semelhança com a psiconeurose, já que nenhum complexo de Édipo ou ansiedade de castração nunca foram sentidos como uma ameaça maior à personalidade do indivíduo.
6 Aqui eu chamo a atenção para a expressão inglesa training of analysts que, em português, não tem muito sentido, já que não dizemos treinamento de analistas, mas formação de analistas. Embora não se trate de uma análise lacaniana, a palavra training aí é fundamental.

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