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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo June 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Para um lugar no espaço transicional (um exercício de diálogo intertextual)

 

Towards a place in the transitional space (an exercise of intertextual dialogue)

 

Para un lugar en el espacio transicional (un ejercicio de diálogo intertextual)

 

 

Milton Della Nina1, I ; João Augusto Frayze-Pereira2 I, II

I Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
II Professor Livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo relata dois trabalhos apresentados em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. O primeiro consiste numa investigação das questões “clínica da compulsão”, “corpo” e “campo de representação”. O segundo é um comentário sobre o anterior, considerando a questão do “lugar do analista” à luz dos exemplos clínicos apresentados. Além disso, o comentário aproxima a reflexão realizada no primeiro trabalho à filosofia de Merleau-Ponty, no tocante ao papel da “presença do analista” e da própria “corporeidade” como componentes do momento instaurador da percepção mútua e reflexiva da existência da dupla. Os dois textos são apresentados como uma proposta de diálogo intertextual que resultou num terceiro texto, concentrado na importância da transicionalidade, sob a ótica do lugar do analista que nele inclui a sua corporeidade.

Palavras-chave: Corpo, Representação, Lugar do analista, Transicionalidade, Winnicott, Merleau-Ponty.


ABSTRACT

The article reports two papers presented in a scientific meeting in the São Paulo’s Brazilian Psychoanalytic Society. The first one consists on an investigation of the questions “clinic of compulsion”, “body” and “representation field”. The second one is a comment about the previous one, considering the issue of “the psychoanalyst place” under the light of the presented clinical examples. Furthermore, the comment approaches the first paper’s thought to Merleau-Ponty philosophy, related to the role of “the analyst presence” and to the “corporality” itself as components of the established moment of the mutual and reflexive perception of the existence of the pair. Both texts are presented as a proposal of intertextual dialogue that resulted in a third text, concentrated on the transitionality, under the light of the place of the analyst, which includes into it the psychoanalyst’s corporality.

Keywords: Body, Representation, Psychoanalist’s place, Transicionality, Winnicott, Merleau-Ponty.


RESUMEN

El artículo expone dos trabajos presentados en una reunión científica de la Sociedad Brasilera de Psicoanálisis de São Paulo. El primer consiste en una investigación sobre las cuestiones “clínica de la compulsión”, “cuerpo” y “campo de representación”. El segundo es un comentario sobre el anterior, considerando la cuestión del ‘lugar del analista’, a la luz de los ejemplos clínicos presentados. Además, el comentario aproxima la reflexión realizada en el primer trabajo de la filosofía de Merleau-Ponty, en lo tocante al papel de la “presencia del analista” y de la propia “corporeidad” como componentes del momento instaurador de la percepción mutua y reflexiva de la existencia de una dupla. Los dos textos son presentados como una propuesta de diálogo intertextual que resultó en un tercer texto, concentrado en la importancia de la transicionalidad, desde la ótica del lugar del analista que en él incluye su corporeidad.

Palabras clave: Cuerpo, Representación, Lugar del analista, Transicionalidad, Winnicott, Merleau-Ponty.


 

 

Prólogo

Este artigo teve origem em dois trabalhos apresentados em reunião científica compartilhada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, um primeiro denominado “Clínica da compulsão, corporeidade e o campo de representação” (Della Nina, 2009), e um segundo que consistiu num “Comentário” sobre o anterior (Frayze-Pereira, 2009). O primeiro assumiu a forma de uma investigação clínico-conceitual que oferecia diferentes perspectivas de leitura, como foi assinalado no Comentário. Entre tais perspectivas, este último privilegiou a que define o “lugar do analista”, considerando os exemplos clínicos apresentados. Além disso, o Comentário aproximou a reflexão realizada no primeiro trabalho à filosofia de Merleau-Ponty, no tocante ao papel da “presença do analista” e até mesmo da própria “corporeidade” como componentes do momento instaurador da percepção mútua e reflexiva da existência da dupla psicanalítica. Do encontro realizado entre nós – autor e comentador – mas, antes disso, dois psicanalistas interessados na constituição de formas estéticas implicadas na experiência clínica, surgiu a ideia de apresentarmos essa interlocução como uma proposta de diálogo intertextual. Assim, o presente artigo foi organizado de maneira a serem expostos, sem muitas modificações, os dois textos inicialmente elaborados. Porém, a partir da fertilização que o encontro de ambos promoveu em cada um de nós, fomos levados a complementá-los com um breve terceiro texto, concentrado na importância da transicionalidade, sob a ótica do papel do analista. É desta maneira que entendemos o seu lugar, incluindo nele a sua corporeidade. Acrescentamos no final do artigo a bibliografia original de cada um dos dois textos (Partes I e II), assim como as referências relativas ao diálogo intertextual (Parte III).

 

I. Clínica da compulsão, corporeidade e o campo da representação

Até que ponto o que se passa no tratamento emerge da repetição do antigo e até que ponto diz respeito, não ao repetido, mas inversamente ao que jamais foi vivido.
(Viderman, citado por Green, 2002/2008, p. 71)

 

Introdução

Em um trabalho apresentado por André Green no XLI Congresso Internacional de Psicanálise, Santiago, Chile, 1998, destaco o seguinte:

É preciso livrar-se de muitos preconceitos para compreender que o que leva um sujeito à análise, em todos os casos, provém menos de uma preocupação em curar-se, que de uma necessidade compulsiva de refazer sua história para o prosseguimento de sua vida, história que ele não conhece e nem sabe como quer, e, recriando-a, torná-la diferente, arriscando-se neste caminho a pagar os custos da ficção que deseja ver realizada. (Green,1998, citado por Schaffa,1999, p. 658)

Neste texto, chama a atenção a expressão “necessidade compulsiva”, uma vez que a busca de nova história a ser psiquicamente vivida seria algo que na clínica psicanalítica se pode assumir naturalmente como seu propósito inconsciente. Atribuo o uso dessas palavras à intenção do autor de destacar a relação com a essência da pulsão, em seu caráter compulsivo sempre na procura de descarga, ainda que na situação analítica isso seja potencialmente possível de ser realizado pela re-ligação das representações inconscientes. Entretanto, o caráter de obrigatoriedade que os termos instituem contrasta com a questão da busca da cura, particularmente diante de organizações não-neuróticas com que o psicanalista vem se deparando e interessando na atualidade, tais como os transtornos psicossomáticos. Nessas situações clínicas, o mais evidente à observação é o caráter de repetição com que os clientes afetados parecem buscar a “cura”. Assim, nesses casos, a compulsividade poderia também se ligar ao próprio caráter de presença evidente da manifestação somática ou, ainda como seria possível pensar, da presença evidente do corpo. Se na situação clínica de uma análise dita padrão, a “corporeidade” não parece ser tão presente a ponto de influenciar ostensivamente a percepção e impressão do analista, tal não parece ser o caso em algumas outras situações clínicas, ainda que de base psicanalítica. Refiro-me às psicoterapias ou mesmo a análise de organizações não neuróticas. Como poderíamos, então, estabelecer uma relação compreensível entre a compulsividade da repetição que o corpo nessas situações parece manter e a compulsividade possível no sentido de renovação significativa e historicamente inserida? Ainda, a que campo de transferência-contratransferência predisporia? Uma breve reflexão nesse sentido, baseada na clínica, é o propósito desta apresentação. A seguir, descrevo três situações clínicas, já publicadas em textos, cujos autores gentilmente me autorizaram a sua transcrição.

Fragmentos clínicos como substrato:
Primeira situação clínica: “Encenação e imaginação em sessão”

O clima que se instalou desde o primeiro encontro analítico era intenso, carregado de muita angústia e um peso tal que levava o analista ver-se colado à poltrona. Roberto tinha uma excessiva urgência para falar que desafiava a instauração de uma cena sustentada na linguagem. A urgência podia ser reconhecida pelo analista como fruto de uma necessidade imperiosa de assegurar a sua continuidade psíquica e, por meio desta, alicerçar sua identidade. Fora criada então uma possibilidade de ali estar, diante de um outro investido simbolicamente do poder de reconhecimento de sua singularidade. Falava de suas mais íntimas angústias, e, ao fazê-lo captava o olhar e a atenção do analista, parecendo dirigi-lo para um ponto: poder ser único e sexuado.
(Canelas Neto, & Schaffa, 2005, p. 3)

Mais adiante, em seu texto, o analista descreve o comportamento e a interação frequente com seu paciente, então presentes:

Na maior parte das sessões desde o início da análise, há um ano e meio, Roberto quase nunca fica deitado no divã. Deambula de um lado para o outro dentro da sala de análise, falando com paixão, num estilo épico e dramático, parecendo imerso na cena ali destinada ao analista ali presente. Às vezes, para à frente do analista, em pé, e pergunta alguma coisa, fixando nele seu olhar, afoito na expectativa de receber seu olhar, suas palavras. A pressão imperiosa dessa demanda, na atualidade da situação, leva o analista, afundado em sua poltrona, a perguntar-se: “Mas, quem sou eu aqui nesta cena para Roberto? O que represento dentro desse teatro vivo?”.
(Canelas Neto, & Schaffa, 2005, p. 5)

Sabemos que o psicanalista autor destas linhas, (Canelas Neto, 2005), tem se preocupado em investigar na clínica a relação entre linguagem e o desenvolvimento da subjetividade como também, no sentido técnico da psicanálise, das aberturas para a condição de capacitação associativa. Este seu impressivo contato analítico é descrito inicialmente em 2004 em reunião científica da SBPSP, em trabalho intitulado “A urgência e o poder da fala dentro da análise e a construção da subjetividade – reflexões a partir de um caso”. Posteriormente foi publicado, com outro título, com co-autoria de Schaffa e deles transcrevi o relato. (Canelas Neto & Schaffa, 2005).

Percebemos, conforme ali se declara, ter desenvolvido a noção de que a captura da atenção pela forte intensidade de expressão verbal, e inclusive corporal, com presentificação da imagem, teria colocado o analista: “fechado no interior de uma formação alucinatória de desejo”. Desta forma, se sentiria impedido de permanecer na “capacidade de transito associativo da escuta”, ainda que a situação também seja reveladora da importância da necessidade de reconhecimento dessa singularidade. Segundo este enfoque, dispunha-se assim para o analista a questão fundamental de como solicitar à “intervenção analítica uma abertura de espaço de representação, uma brecha para encontrar este olhar de uma atenção singular”. Considero este exemplo clínico expressão de impulsividade em análise e das dificuldades que podem se oferecer para o analista quando a mesma se impõe, influenciando inclusive sua própria corporeidade, tal como nos é descrito na atitude contratransferencial de “ficar colado à poltrona”. Aqui, a presença do corpo parece ainda dificultar a formação de um espaço imaginário, perseguido concretamente pelo paciente, e necessário ao analista para estar em seu estado sonhante.

Segunda situação clínica: “A sessão e o ato”
No entanto, quando por outro lado, me apresentei tolerante em relação a sua impaciência para com a esposa e apontei sua enorme intolerância em relação consigo mesmo, Paulo passou ao ato, representando, através de uma encenação concreta durante a sessão, seu movimento autopunitivo que acontecia anteriormente através de seus pensamentos. Seu corpo passou a ser o terreno de suas agressões e descontentamentos para consigo mesmo. Tornou-se extremamente agitado na cadeira, passando em seguida a se morder, se machucar e a bater a cabeça na parede. Diante desta situação fui convidada a tomar uma atitude mais ativa, deixando de apenas apontar ou interpretar tal situação para interpor-me mais concretamente entre a parte do corpo do paciente a ser agredida e a outra parte que lhe agredia, formando assim uma barreira de proteção. Deste modo, o interditei, dizendo que ele não poderia se machucar durante a sessão. É interessante notar que, de fato, quando eu colocava, por exemplo, a minha mão entre sua testa e a parede, ele deixava de se machucar naquele local, buscando outra parte do corpo para ser agredida. Estava claro que sua agressão era autodirigida e bastante insistente, tornando-se através desta proteção externa, paulatinamente menos intensa e mais breve até desaparecer. Podemos notar aqui o quanto o limite opera e Paulo se organiza. Na transferência, aceita a presença do outro como algo que limita e isola sua própria agressividade, uma experiência de outra natureza da que experimentou durante sua infância, onde pode ser acolhido sem necessitar ser excluído, isolado, internado e medicado, forma sempre recorrida para conter sua agressividade.
(Freire, 2008)

Estas linhas foram colhidas de um relatório oficial sobre pesquisa temática em psicoterapia psicanalítica de pacientes com transtorno borderline. Sua autora é psicanalista de formação e investigadora no referido projeto. Sabemos, como é próprio nos casos-limite, que a transferência é de instalação precoce e intensa, apresentando-se de forma indiferenciada e regredida. Assume assim a compulsão a repetição caráter de automatismo, obstáculo ao surgimento do novo, levando frequentemente ao impedimento de interpretações verbais, tal como refere Green (2002/2008, p. 109). Creio, entretanto, que aqui o gesto espontâneo da analista, quase um reflexo determinado por emoções e identificações com o cuidar da dor, em si mesma e no outro, a leva a se interpor com o próprio corpo, sua mão, separando a superfície sensível do paciente daquela do inanimado (parede) e humanizando assim o contato. Poderíamos dizer, mesmo, que isso se passa como se fora verdadeiro ato interpretativo, que se antepõe ao “ato-sintoma” (termo caracterizado por McDougall, 1983) do paciente. Creio ter surgido aqui, quase que somente em ações, o protótipo do contato analítico, com formação de um intervalo continente entre a pura descarga impulsiva e a possibilidade de futura representação ideativa, esta última ainda somente sob a forma emocional e afetiva expressa pela corporeidade. A atitude da analista teria possivelmente funcionado como “realização simbólica”, conforme conceito utilizado por Madame Sechehaye em seu trabalho clínico e também citado por Winnicott em seus trabalhos sobre objetos transicionais, onde nos lembra do exemplo da hóstia sagrada para os católicos. (Winnicott, 1971/1975b, p. 19).

Terceira situação clínica: “A sessão, a conversa e a dor”
Neste dia, compareceram à sessão: Maria Clara, Ivana, Marina e Magnólia.
Maria Clara, em tom de angústia misturado com vergonha e indignação, começa a falar: “Sabe aquela tomografia da cabeça que fiz e que tinha uns círculos a caneta, marcando alguma coisa?” Pois então, eu até tinha me esquecido do exame, passei no neurologista e ele me falou que eram dois bichos que tenho na cabeça. E eu não consigo parar de pensar nisso! Minha dor de cabeça aumentou e o médico falou que é uma doença que dá em porco e que eu peguei porque comi alguma verdura mal lavada! Mas eu sempre lavei direitinho minhas verduras, nunca comi nada sujo! Não consigo dormir de imaginar que tenho esses bichos na minha cabeça! Eu falei pro neurologista que queria tirar logo eles de dentro de mim e ele falou que não precisava porque já estavam mortos! Fiquei mais chocada ainda! Além de tudo, eles estão mortos?! – pergunta consternada.
As demais pessoas se mobilizam com o relato e começam a perguntar a Maria Clara e ao analista se era a doença da “canjiquinha do porco”. A angústia de habitar dentro de si outros seres, além do mais seres mortos, trouxe à tona uma temática por demais pertinente ao grupo, o que explicava aquele estado de aflição grupal que sobreveio. Entretanto, surgem para o analista dois caminhos possíveis de trabalho:
1. Pela via do conceito representacional, enquanto uma metáfora para os enlutamentos por vezes congelados; ou
2. pela via dos afetos, ao acolher essa angústia fomentada pelo relato do contato com o neurologista e o diagnóstico mal esclarecido a sua paciente. Para isso, nesse segundo caminho, elegendo como perspectiva o concreto dessa experiência em sua dimensão humana.
O analista decide pela segunda via. A concretude do relato da vivência de Maria Clara, bem como a fragilidade egóica do grupo, naquele momento mais evidente através de Maria Clara, fez o analista pensar que haveria um caminho de acolhimento do impacto das forças pulsionais, para em um momento posterior entrarem no trabalho propriamente elaborativo, quando então o grupo chegasse ao centro da questão da dor das perdas e do desamparo, subjacente na fala de Maria Clara. Segue o analista:
“Todos nós, humanos, temos bichos, bactérias, dentro de nós; por exemplo: no nosso intestino,que inclusive nos ajudam na nossa digestão. Fazem parte de nossa flora intestinal; em nossa pele também…E o médico neurologista falou em cisticercose?”
Maria Clara diz que sim. Marina vai se lembrando e descrevendo o ciclo da parasitose e em seguida, fala que seu cunhado tem o mesmo problema e que não lhe causa nada. Maria Clara alivia-se visivelmente e segue dizendo que o neurologista aumentou o seu antidepressivo para tratar de sua dor de cabeça, mas que ela teme que seu intestino fique preso. Ivana fala que poderia tomar iogurte que ajudaria a restabelecer o trânsito intestinal e dá uma receita de coalhada caseira. Eis que Marina então, embalada numa lembrança prazerosa do sabor da coalhada, exclama de olhos fechados: “Hum!!!” Lembra em seguida que, quando era criança, achava bonito ver o preparo do biju de mandioca. Maria Clara, Magnólia e Ivana também haviam participado de tal preparo na infância. Ivana exclama: “Era lindo!”. Começam a descrever os passos desde a colheita da mandioca, o descascamento, a ralação, a secagem, o preparo todo até concluir com a tostadura, finalizando o produto. Discutem alguns detalhes dos procedimentos, as semelhanças e diferenças de um lugar para outro. Maria Clara, diferentemente de Ivana e Marina, diz que não tem boas recordações disso e Magnólia concorda com ela.
O analista aponta o fato de estas serem recordações de uma atividade compartilhada por todas, ainda que despertassem emoções diferentes: uma parte se mostrava satisfeita com a lembrança e a outra parte do grupo, pelo contrário, tinha más recordações dessa vivência. Fica nítida a participação distinta delas nessa atividade: Ivana e Maria que se mostravam satisfeitas naquele momento, assistiram de fora este preparo. Eram crianças e se entretinham, entre uma brincadeira e outra, com o feitio do biju, com seu aroma e com seu sabor. Porém, para Maria Clara e Magnólia, aquele significava mais um trabalho árduo do qual saiam com as mãos sujas e machucadas, não tinham registro mnêmico do cheiro e em poucas oportunidades puderam experimentar o biju que era reservado a seus patrões. O analista encerra a sessão: “Um leite azedo pode ser estragado e indigesto, mas também uma deliciosa coalhada caseira”” (Almeida Prado, 2007)

Este terceiro fragmento, cujo autor é psiquiatra, psicanalista e investigador de transtornos psicossomáticos, faz parte de trabalho apresentado durante o III Simpósio Internacional de Educação Médica, Psicanálise e Psicologia da Saúde, em São Paulo, julho de 2007. Refere-se ao atendimento grupal de pessoas, consideradas somatizadoras, com queixas de dor crônica. No dia da sessão estiveram ausentes os homens do grupo. Na sua introdução, o autor destaca que:

Outro condicionante fundamental é que tais indivíduos se dispuseram a esse tipo de análise em frequência semanal. Digo isso pela importância que o desejo, entre eles o de cura, assume no processo psicanalítico. (Almeida Prado, 2007)

Fica aqui evidente como a opção de intervenção assumida pelo analista favoreceu ampliação do discurso associativo das pessoas integrantes do grupo. Sabemos que a técnica da abordagem grupal, sob um enfoque psicanalítico a partir de Bion, favorece transferência cruzada diminuindo a projeção exclusiva sobre o analista e a pressão da impulsividade por vezes existente nas situações grupais. Por outro lado, o efeito afetivo das intervenções também pode ser intensamente ampliado pela ressonância grupal. Assim, enquanto na situação analítica clássica a relativa “invisibilidade” do analista, já suposta, favorece ambiente de necessária reflexão, com continência afetiva, no grupo a presença do analista não pode ser evitada, demandando para desenvolvimento dessa continência que sua própria impulsividade seja reconhecida na contratransferência e assim refletida.

Considero importante ter-se em conta como a reiterada menção ao estado do corpo pelos clientes e das imagens que dele fazem uso, possam indicar traços de uma atividade compulsiva e repetitiva que o analista regularmente enfrenta em sua atividade com tais grupos. Portanto, aqui a presença do corpo é inevitável. Destaca-se nesta situação também a escolha do analista, deixando de seguir uma linha interpretativa, e optando por um aprofundamento das imagens que se apresentavam ao grupo no discurso da cliente porta-voz do mesmo.

 

Algumas reflexões conceituais sobre representabilidade nas situações clínicas

Comparando os fragmentos clínicos enfocados, exemplificadores de três destinos configurados pela impulsividade: alucinação (Roberto), atuação (Paulo), e somatização (Maria Clara), encontrei em Green (2002/2008) excelente qualificação desses fenômenos sob a designação de “transbordamentos do inconsciente”. Em interessante reflexão o autor nos esclarece que, em sua opinião, nos estados limites ou organizações não neuróticas haveria deficiência do que denomina “formações intermediárias”, as quais estabeleceriam relação entre o funcionamento primário e secundário do psiquismo. Ficariam, assim, impedidos de alcançar seu desenvolvimento em plena relação objetal e dentro de sua própria subjetividade. Para Green, a alucinação seria a condição que mais se aproxima de um funcionamento “eficaz” da mente, já que não admite pura descarga “para fora”, como na atuação, ou “para dentro”, como na somatização. Assim, Roberto seria o paciente melhor a oferecer ao analista oportunidade de se aproximar de um sensível campo de representação.

Na situação da atuação, presença pura da pulsão transformada em ação, tal como nos mostra regressivamente o comportamento autoagressivo de Paulo, encontramo-nos no limite da possibilidade de representabilidade, já que sua transformação em linguagem demanda mais da expressividade afetiva mediada pelo outro do que normalmente a própria empatia permite por vezes alcançar. Fica assim claro que o resgate dessa expressividade, enquanto representabilidade para si mesmo, só se fará pela presença do outro.

No caso de Maria Clara as representações possíveis de se estabelecerem frente aos movimentos de sua própria “impulsividade” ou capacidade pulsional, no que foi por Joyce McDougall denominado de “teatro do corpo” (1983), o fazem por meio de imagens que usam o real biológico para dar andamento em sua expressão, ainda que inicialmente de forma compulsiva e repetitiva. Tendo em vista como o campo da representação médica, fundamentado apenas nas imagens do real biológico, é favorecedora de um desvio circular nessa tentativa de representabilidade, não é de se estranhar a frequente adesão dos somatizadores a este meio ambiente (hospitalar).

Portanto, em qualquer das três situações, mas em especial para os transtornos psicossomáticos, diante do imenso espaço a ser desenvolvido pelo movimento psíquico e seu trajeto desde as moções pulsionais, irá se oferecer como problemática para o analista a questão da construção de um campo de representação suficientemente eficiente para a subjetividade e a relação objetal.

 

Contratransferência e a “corporeidade” na situação analítica

Em trabalho comparativo entre ideias de André Green e de Fabio Herrmann sobre a transformação do campo de representação, Schaffa (1999) observa que em Green “a representação é a própria expressão do psíquico”. Por outro lado, em recente trabalho desse autor encontramos também referência a uma sua conhecida expressão, onde ao comentar o desenvolvimento dos processos afetivos desde as mais antigas relações com o outro, dispõe que em suas origens o processo afetivo possa ser como uma “antecipação do encontro do corpo do sujeito com outro corpo” (o corpo do outro, imaginário ou presente). Entende, assim, o psiquismo “como a relação entre dois corpos dos quais um está ausente” (Green, 2002/2008, p. 167). Anteriormente, chega a considerar “todo o psiquismo como formação intermediária entre o soma e o pensamento” (p. 161) e assinala que “certa debilidade de elaboração representativa e uma falência das possibilidades de contenção que a caracterizam”, abrem “a porta para regressões anteriores às representações: a alucinatória, a somatização e a atuação.” (pp. 134-135).

Como reflexão clínica proponho aqui a questão da posição do analista, frente a essas situações onde a representabilidade ainda deve ganhar uma construção e esta forte presença do corpo (“corporeidade”), mormente nos transtornos psicossomáticos, se oferece ainda ao analista como outra via de percepção, seja sob a forma de ato, imagem ou afetação.

Creio que o estudo da contratransferência nos oferece uma via de investigação privilegiada para entender os caminhos possíveis desta construção. Em uma das descrições: da via alucinatória, de Roberto, o autor nos descreve a afetação nele causada. Nos dois outros exemplos, a convivência com os autores permitiu investigação suplementar por meio do diálogo com os mesmos.

Na encenação alucinatória com Roberto, o analista sentia-se “afundado e preso” à poltrona como se seu próprio corpo não pudesse deixar de se fazer presente, carregando assim, como penso, o peso da relação ainda não possível de ser imaginada (“corpo ausente”) com o corpo expresso alucinatória e impulsivamente pelo seu analisando. Necessariamente despertado em sua percepção, pelo olhar e atenção, capturado pela mobilidade e encenação do seu cliente, somente quando se dispõe imaginariamente como outro corpo presente, “contracenando” imaginariamente com o mesmo em sua própria mente, é que lhe surgem indagações, indícios do psíquico. Constrói-se assim a ausência do corpo real, espaço possível para outro nível de representabilidade, não mais exclusivamente alucinatória, mas agora imaginativa e representacional.

Diante da agressividade de Paulo, surge em sua analista um gesto espontâneo, fruto talvez de seu verdadeiro self, capaz de se instaurar como moção pulsional de cuidados, em possível fusão imaginária com o corpo em sofrimento de seu paciente. Assim, não defende apenas o corpo dele, mas também o seu próprio regressivamente. O gesto de cuidado é captado pela mente de Paulo, e como por identificação primária pode readquirir existência novamente e percepção de si mesmo, distinção entre o Eu e o não-Eu. Parte-se assim, na existência de um corpo que em seu movimento em direção a outro, institui psicanaliticamente um espaço necessário entre ambos. Abre-se o possível campo de representabilidade, inicialmente de si mesmo.

Finalmente, frente ao transtorno psicossomático propriamente dito, aqui sob a forma de somatizações, a descrição da evolução de Maria Clara no grupo nos mostra um trajeto, do corpo isolado e autisticamente representado, ao corpo imaginário e compartilhado na relação com o imaginário grupal. Creio, que aqui a intenção do analista, não negando a existência de corpos, e de sua necessidade de expressão, distanciando-se da necessidade quase compulsiva de logo transformá-los em simbolizações, permitiu que o grupo se mantivesse no imaginário, o suficiente para que transformassem o terror do desconhecido em relações imaginativas vivenciais de prazer e dor, também ligadas ao passado e ao presente, campo representativo em seu “assoalho sensorial” (Grotstein citado por Ogden, 1996, p. 355), base para futuras transformações.

 

A guisa de conclusão

A existência de uma necessidade impulsiva, ligada à expressão das moções pulsionais, e que pode se manifestar por meio de uma impulsividade presente no campo analítico por meio da corporeidade, ainda que repetitiva, não deve ser confundida com a verdadeira compulsão à repetição presente nas manifestações de ordem mórbida. Os “transbordamentos do inconsciente”, como os denominou Green, podem ser reconhecidos pelo analista e por meio da atenção e da capacidade de continência, inclusive contratransferencial, pode-se determinar uma direção que permita sua transformação em verdadeira imaginação e campo de representação no vínculo. Entretanto, enquanto estiver em busca ansiosa de estabelecer simbolizações, o analista pode agir por vezes sem respeitar o tempo do processo, ultrapassando a capacidade atual do analisando de efetuar sua própria transformação representativa. Como vimos, seja em análise ou nas psicoterapias de base psicanalítica, considerada a demanda presente em cada momento do campo da transferência-contratransferência, mais arcaica ou elaborada, torna-se possível ao analista, com gesto espontâneo ou colaboração imaginativa, facilitar gradativamente ao analisando a instauração, ou construção, das bases de um campo de representação. A presença viva do que denominei aqui corporeidade não pode ser negada, já que se constitui na matriz afetiva do que, a caminho da simbolização, passa da transformação da moção pulsional ao representacional possível para a dupla.

 

II. Comentário: o lugar do analista

O texto “Clínica da compulsão, corporeidade e o campo de representação”, acima transcrito, é bastante complexo e o comentário elaborado tem especificamente o propósito de explicitar essa complexidade que é ao mesmo tempo psicanalítica e filosófica.

Qual é o objetivo desse trabalho? Com base em algumas situações clínicas que envolvem o corpo, Milton Della Nina tem o propósito de fazer uma reflexão sobre como seria possível “estabelecer uma relação compreensível entre a compulsividade da repetição que o corpo parece manter (nas situações clínicas apresentadas) e a compulsividade possível no sentido de renovação significativa e historicamente inserida” e ainda, “a que campo de transferência-contratransferência predisporia?”. Em poucas palavras, a questão é como conciliar repetição e renovação. Baseada em sólida experiência clínica do autor, evidente no próprio modo como encaminha-se a reflexão teórico-clínica realizada, a matéria que dá suporte ao trabalho é constituída por três fragmentos clínicos que envolvem pacientes e analistas diferentes. Se os pacientes são apresentados como tendo algo em comum (essencialmente a questão da corporeidade na sessão), os analistas distinguem-se possivelmente pelos referenciais teóricos pressupostos. Nas três situações clínicas, os pacientes são configurados pela impulsividade por intermédio da qual se verificam fenômenos como alucinação, atuação e somatização que André Green, citado no trabalho, denomina de “transbordamentos do inconsciente”. E, no entanto, o trabalho não se dedica a fazer uma reflexão sobre esses fenômenos, mas volta-se para uma problemática que me parece central: a questão do lugar do analista junto aos chamados pacientes difíceis. Essa questão do lugar do analista fica colocada, desde o princípio, desde as duas citações com as quais é aberto o trabalho: a epígrafe de Viderman e a frase de Green. A epígrafe diz o seguinte: “Até que ponto o que se passa no tratamento emerge da repetição do antigo e até que ponto diz respeito, não ao repetido, mas inversamente ao que jamais foi vivido” (Viderman). E a frase de Green diz:

É preciso livrar-se de muitos preconceitos para compreender que o que leva um sujeito à análise, em todos os casos, provém menos de uma preocupação em curar-se, que de uma necessidade compulsiva de refazer sua história para o prosseguimento de sua vida, história que ele não conhece e nem sabe como quer, e, recriando-a, torná-la diferente, arriscando-se neste caminho a pagar os custos da ficção que deseja ver realizada.
(Viderman, citado por Green, 2002/2008, p. 71)

Essas citações envolvem uma concepção de transferência que aponta para a criação do novo como saída psíquica e não para a repetição do antigo, isto é, para a patologia expressa na compulsão à repetição. E este aspecto não só reforça a centralidade da questão do lugar do psicanalista no trabalho como implica uma redefinição desse lugar no processo analítico, isto é, não mais interpretar e elucidar, mas vivenciar e compartilhar. Ou seja, como observou Orestes Forlenza Neto na palestra que fez no XVII Encontro Latino-americano sobre o pensamento de Winnicott (2008), esse lugar é definido por uma certa simetria da relação entre paciente e analista. Nesse caso, o fundamental é a sobrevivência do analista e não a sua capacidade de interpretar a transferência. E Orestes vai mais longe, sempre com Winnicott, ao ressaltar que ao invés de perguntar se o que o paciente manifesta é analisável ou não, cabe ao analista se indagar se é possível ou não embarcar na difícil viagem que o paciente propõe rumo ao encontro com o informe. E dependendo do paciente, pode-se dizer que há mais de um lugar a ser ocupado pelo analista. Por exemplo, em se tratando de um paciente neurótico, o analista poderá ocupar o lugar do interprete de conteúdos. Mas, há certos pacientes que requerem que o analista ocupe o lugar daquele que cuida do continente e não dos conteúdos. Nesse caso, a ênfase se desloca para o enquadre, pois para esses pacientes o passado não chega a ser revivido no presente mediante a transferência, mas é o próprio presente. Nessa medida, não caberia interpretar a transferência, mas cuidar daquilo que é vivenciado pela primeira vez com o analista, oferecendo ao paciente os cuidados necessários ao seu desenvolvimento. E é evidente que Orestes pressupõe com essas ideias a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott, mas, também, a ideia do lugar do analista como lugar do paradoxo que é também uma ideia winnicottiana (Frayze-Pereira, 2008). A sustentação de tal lugar é difícil, pois exige defesas flexíveis e profunda sensibilidade clínica, como fica bem ilustrado nas situações clínicas apresentadas, sobretudo pela terceira situação que, “com a opção de intervenção assumida pelo analista, favoreceu-se a ampliação do discurso associativo das pessoas integrantes do grupo” (Della Nina, 2009). Recorrendo ao teatro como metáfora, poderíamos dizer que nesta terceira situação clínica intitulada “a sessão, a conversa e a dor”, temos um analista conversador que se conduz como um diretor de cena, considerando dois caminhos possíveis para o trabalho e optando por um deles. Em contrapartida, nas duas situações clínicas anteriores, os lugares ocupados pelos analistas, no meu entender, aproximam-se, no primeiro caso, do lugar do espectador sob o impacto da encenação imaginária realizada pelo paciente, e, no segundo caso, mais próximo do lugar do coadjuvante que interage e contem o paciente. São formas de ocupação de um lugar possível junto aos pacientes que, da primeira situação à terceira, se aproximam numa gradação de intensidades do lugar paradoxal que exige a metaforização do “holding” materno e da lei paterna, que ao mesmo tempo inclui um não-lugar, que exige do analista ser e não-ser, estar dentro e fora, presente e ausente. É um lugar que se define por um “entre-dois” que liga e discrimina ao mesmo tempo, ou, em linguagem fenomenológica, designado lugar da ambiguidade.

Ora, cabe lembrar, que no referencial fenomenológico-existencial, o ser que ocupa lugar não é espírito, alma ou consciência, mas um corpo. E o corpo é um ser essencialmente ambíguo. Por um lado, sendo um corpo situado, não é um ser que sobrevoa o mundo; e, por outro lado, também não é propriamente “matéria intersticial, tecido conjuntivo”. Segundo Merleau-Ponty, ele é “sensível para si” (1964). Quer dizer, se o corpo pelo qual estou no mundo é uma parte do mundo, um fragmento de sua carne, como tal ele é uma variação extraordinária, cujo paradoxo constitutivo está em todo o visível: assim como ele é concomitantemente sensível e aquele que sente, um cubo de madeira reúne simultaneamente aspectos incompossíveis, superfícies de uma profundidade inesgotável, desde que o visível total está sempre atrás, ou depois, ou entre os aspectos que dele se vêem. Assim, é da natureza do corpo e da coisa, sensíveis, ofertarem-se e esconderem-se. Ambos são opacos e sempre inacabados. Nesse sentido, são emblemas de um Ser que se define pela opacidade e pela profundidade, Ser de latência e apresentação de certa ausência. Isto é, enquanto visível e invisível (Frayze-Pereira, 1984). No pensamento de Merleau-Ponty, pensamento estético que se elabora entre os anos 1940 e 1960, encontra-se uma análise do corpo como corpo reflexivo, isto é, o corpo que simultaneamente é sujeito e objeto, um sensível também capaz de sentir, que utiliza suas próprias partes como simbólica geral do mundo e pelo qual podemos frequentar esse mundo e encontrar nele uma significação. Então, a partir daí, pode-se falar de uma “natureza enigmática” do corpo que transfere para o mundo sensível o sentido imanente que nasce nele em contato com as coisas e nos faz assistir ao “milagre da expressão”. Nesse sentido, “não é ao objeto físico que o corpo é comparável, mas à obra de arte” (Merleau-Ponty, 1945, p.176). Mais concretamente, continua o filósofo:

num quadro como numa peça musical a ideia não pode ser comunicada senão pela exposição das cores e dos sons. A análise da obra de Cézanne, se não vi seus quadros, deixa-me a escolha entre vários Cézanne possíveis, e é a percepção dos quadros que me dá o único Cézanne existente, é nela que as análises adquirem seu sentido pleno. (1945, p. 176).

Quer dizer: uma pintura é um indivíduo, isto é, um ser no qual não é possível distinguir a expressão daquilo que ela exprime, cujo sentido só é acessível mediante o contato direto com o sensível. É exatamente nessa medida que o corpo é comparável à obra de arte, isto é, um ser reflexivo que permite a pregnância das experiências auditivas, táteis e visuais, fundando assim a unidade antepredicativa do mundo percebido que, por sua vez, servirá de referência às representações, à expressão verbal e à significação intelectual. Bom, neste momento, não é possível desenvolver mais essa concepção de corpo, que é fecunda para pensar a relação entre corporeidade e representação, mas apenas para dar uma ideia da complexidade da questão, transcrevo um trecho do livro L’oeil et l’esprit no qual Merleau-Ponty diz:

Eis o enigma: meu corpo é simultaneamente vidente e visível. Ele que olha todas as coisas, também pode olhar-se e reconhecer, então, naquilo que vê o “outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vendo, se toca tocando, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento que pensa tudo assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por confusão, inerência daquele que vê naquilo que vê, daquele que toca naquilo que toca, do sentiente no sentido … . Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas: preso no tecido do mundo e sua coesão é a de uma coisa. Mas porque vê e se move, mantém as coisas em círculo ao seu redor: elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena e o mundo é feito do próprio estofo do corpo. Esses deslocamentos, essas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, lá onde um visível se põe a ver, torna-se visível para si e pela visão de todas as coisas, lá onde, qual a água mãe no cristal, a indivisão do sentiente e do sentido persiste. (1964, pp. 18-20)

Quer dizer, segundo esta concepção, o corpo é reflexivo. E essa reflexão que realiza tem implicações epistemológicas inesperadas, pois será preciso rejeitar os preconceitos seculares que colocam o corpo no mundo e o vidente no corpo ou, inversamente, o mundo e o corpo no vidente como se estivessem contidos numa caixa. Afinal, se o corpo é reflexivo, onde colocar o limite do corpo e do mundo? Onde colocar no corpo o vidente, já que evidentemente no corpo há apenas “trevas repletas de órgãos”, isto é, ainda o visível? O mundo visto não está “em” meu corpo e meu corpo não está “no” mundo visível em última instância. Em suma, a ambígua experiência do corpo consigo mesmo revela o embaralhamento da distinção sujeito-objeto, embaralhamento que também se verifica na relação do corpo com as coisas e com os outros (Frayze-Pereira, 1984).

Em suma, o pensamento de Merleau-Ponty é muito sofisticado e sua contribuição para pensar essa questão da corporeidade e da representação, tal como apresentada pelo também complexo trabalho que suscitou este comentário (Della Nina, 2009), é bastante grande, inclusive para pensar a questão do corpo presente-ausente do analista na sessão e a questão do “psiquismo como relação entre dois corpos dos quais um está ausente” (Green, 2002/2008). Mais radical porque focado na experiência antes da cisão sujeito-objeto, Merleau-Ponty pensa que na relação entre dois não se trata de um estar presente e o outro ausente como dois fatos positivos, uma vez que a dimensão da ausência é constitutiva do corpo na relação com ele mesmo e, por extensão, na relação com uma coisa ou com outro corpo, seja ele do paciente seja ele do analista. É essa ambiguidade essencial que subjaz ao fato da construção de um campo de representação suficientemente eficiente para a subjetividade e a relação objetal dependerem do lugar ocupado pelo analista na sessão junto ao seu paciente. A maneira filosófica de Merleau-Ponty pensar o corpo e o mundo poderia estar na base das conclusões do trabalho que motivou este comentário quando, justamente, propõe-se à reflexão:

a questão da posição do analista, frente a essas situações onde a representabilidade ainda deve ganhar uma construção e esta forte presença do corpo (“corporeidade”), mormente nos transtornos psicossomáticos, se oferece ao analista como outra via de percepção, seja sob a forma de ato, imagem ou afetação. (Della Nina, 2009)

Ou, então, no final do trabalho, quando é dito:

seja em análise ou nas psicoterapias de base psicanalítica, considerada a demanda presente em cada momento do campo da transferência-contratransferência, mais arcaica ou elaborada, torna-se possível ao analista, com gesto espontâneo ou colaboração imaginativa, facilitar gradativamente ao analisando a instauração, ou construção, das bases de um campo de representação. A presença viva do que denominei aqui corporeidade não pode ser negada, já que se constitui na matriz afetiva do que, a caminho da simbolização, passa da transformação da moção pulsional ao representacional possível para a dupla. (Della Nina, 2009).

Deriva daí certa concepção do fazer analítico que, num trabalho anterior intitulado “Re-desenhando com Winnicott: a interpretação encarnada”, Milton Della Nina ressalta, dizendo:

no âmbito clínico, entende Winnicott que a presença do analista representa um fenômeno transicional, já que simultaneamente é representante do princípio de realidade, mantendo assim as condições externas do setting, mas também um objeto subjetivo para o paciente. Nesse ambiente favorecedor de área potencial de ilusão é que o fazer do analista inclui e fundamenta a intervenção interpretativa. (Della Nina, 2007, p. 160)

Muitos outros aspectos poderiam ser comentados a partir de um trabalho tão complexo como esse, mas a questão da posição ou do lugar do analista foi a que mais chamou a atenção, impondo-se como central.

 

III. Um diálogo intertextual: para um lugar no espaço transicional

No comentário que acabamos de transcrever, assinala-se a forma complexa que o primeiro texto adquire ao admitir diferentes vértices de leitura. E a perspectiva escolhida pelo comentário é a que configura o “lugar do analista” o qual, em uma concepção winnicottiana, estaria voltado não exclusivamente para o “interpretar e elucidar” os conteúdos das falas do paciente, mas para o “vivenciar e compartilhar” certos sentidos presentes nessas falas, no decorrer do processo analítico. Nessa medida, o comentário lembra a posição de Forlenza Neto (2008) que, admitindo ainda ser possível no tratamento do neurótico a interpretação de conteúdos, não a considera exequível naquelas situações psicanalíticas em que a organização psíquica não alcançou esse nível de registro. Nessas condições, nas vivências alucinatória, de atuação ou somatização, descritas no primeiro texto, torna-se mais importante a função continente, voltando-se a atenção analítica para as condições em que evolui o enquadre. Assim, o analista dará sustentabilidade à evolução mental do analisando, na condição de se colocar em um lugar, não exclusivamente interno ou mesmo externo, mas compartilhando esse paradoxal espaço denominado por Winnicott de espaço transicional. Nessa acepção, é lógico e aceitável que se destaque a presença do analista como um fenômeno transicional (Della Nina, 2007). De fato, em harmonia com os nossos pontos de vista aqui dialogados e transcritos, cabe lembrar de um texto de Benilton Bezerra Jr. (2007) em que se pode ler:

O papel do analista seria o de criar um campo de interação empática com o paciente, um ambiente de comunicação não necessariamente verbal, eficaz na produção de uma experiência de confiança e do sentimento de sentir-se real, indispensáveis para que o self possa prescindir de mecanismos defensivos mais primitivos e retomar um funcionamento mais espontâneo. (p. 41)

Esse autor, ao nomear tal proposta como “dimensão de cuidado”, parece também mostrar um caminho por intermédio do qual o lugar do analista se encaminha para que a dupla possa vir a reconhecer o “pathos, a experiência de sofrimento não discursivamente organizada” (p. 44). Tal como podemos identificar nas três vivências descritas no primeiro texto, são possíveis diferentes configurações desse trajeto, colocando-se o analista em papéis que, no cenário da situação potencialmente psicanalítica, sempre atendem a essa importância do cuidado e da atenção.

No âmbito da experiência estética, delineada e reconhecida como tal, além do suporte teórico-clínico encontrado em Winnicott, o comentário recorre à filosofia de Merleau-Ponty que nos permite entender como o caótico, evidente nos exemplos clínicos, pode ser caracterizado como “transbordamentos do inconsciente” (Green). Tais situações podem ser encontradas nas caracterizações das respectivas duplas, em formas afetivas, reconhecíveis por meio da metáfora teatral.

Além disso, dada a importância que o corpo adquire, tanto na filosofia de Merleau-Ponty, como nas ideias de Winnicott sobre sua práxis analítica, justifica-se a utilização, no primeiro texto, da noção de “corporeidade” e a importância do vértice que ela instaura naquelas condições clinicas. Para Winnicott, segundo o que nos lembra Lejarraga (2008), levando em consideração o corpo, poderia não haver diferença entre o ser humano e o animal do ponto de vista da instintualidade. No entanto, no tocante à elaboração imaginativa das funções corporais, estaríamos diante de “uma operação exclusivamente humana” (nota, p. 182). Sabemos que o conceito de personalização, operação emocional primitiva, através da qual a psique habita o corpo, segundo Winnicott, refere-se a um processo que não se esgota na infância e dinamicamente se mantém durante toda a vida, oscilando em suas configurações. Assim, deve ser considerado desde as experiências constituintes e mantenedoras do self, sendo parte do que se chamou na primeira parte deste artigo de “corporeidade”. Com efeito, estamos de comum acordo que deve ser ressaltada a importância de se considerar o papel co-estruturante da corporeidade do analista, sobretudo em certas condições clínicas. Quer dizer, a presença e o lugar do analista podem implicar uma atenção à existência e à percepção dessa corporeidade, especialmente naquelas condições em que o caráter mais regressivo da expressão inconsciente determina para a dupla um espaço potencial em estado nascente. Pensamos, em particular, naquelas situações em que o psicanalista não apenas precisa sobreviver à necessidade (cruel) que o paciente poderá ter dele, mas também precisa estar presente para acolher o que seria um gesto de doação de si. A capacidade do analista de se deixar usar como um objeto ao acolher um gesto espontâneo torna-se fundamental para a sua sobrevivência do ponto de vista do paciente e para a experiência de separação entre o eu e o não-eu. Nesse caso, a presença corporal do analista, e a sua consequente percepção por parte do paciente, são fundamentais no decorrer do processo analítico. Trata-se de uma presença reflexiva, no sentido em que o corpo é reflexivo, conforme se afirmou no comentário, segundo Merleau-Ponty, que favorece a emergência de uma situação que pode vir a ser análoga ao lugar em que se vive – um espaço intermediário, uma terceira área da experiência, uma região transicional – cujo aspecto principal é a ambiguidade, isto é, a dimensão do “entre dois”, nem objeto, nem sujeito, mas ambos. Trata-se de certo tipo de experiência, anterior à cisão sujeito-objeto, que diz respeito ao corpo na relação com ele mesmo e, por extensão, na relação com uma coisa ou com outro corpo, seja o corpo do paciente seja o do próprio analista. E é essa ambiguidade essencial que subjaz à construção de um campo de representação suficientemente bom, para o desenvolvimento da relação objetal, tendo em vista o lugar ocupado pelo analista na sessão junto ao seu paciente. Nesses termos, inspirados em Winnicott (1971/1975a, p. 151), podemos comparar o lugar do analista ao espaço ocupado pela mãe-ambiente cuja presença corporal – ambígua, porém estável – facilita para o bebê a criação e o desenvolvimento de um vínculo de confiança necessário ao brincar/viver criativamente. Analogamente, para o paciente, o lugar do analista seria o lugar da ambiguidade a partir do qual se instauraria a experiência que possibilitaria ao próprio paciente articular a realidade psíquica interior e a realidade compartilhada exterior, experiência necessária ao desenvolvimento pessoal em contato com o ambiente. É o que se espera vir a acontecer não apenas no decorrer de uma análise, mas ao longo da vida.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Milton Della Nina
R. Leôncio de Carvalho, 306/81 | Paraíso
04003-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3289-6381
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João A. Frayze-Pereira
R. Joaquim Antunes, 727/72
05415-012 São Paulo, SP
E-mail: joaofrayze@yahoo.com.br

Recebido em: 28/05/2010
Aceito em: 22/06/2010

 

 

1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Professor Livre-docente do Instituto de Psicologia da USP.

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