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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo June 2010

 

TRADUÇÕES

 

Criatividade e psicanálise1

 

Creativity and psychoanalysis

 

Creatividad y psicoanálisis

 

 

Christopher Bollas2

Membro da Sociedade Britânica de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 

Em What is surrealism?, André Breton relembra como, “em certas ocasiões, ele atuava junto aos doentes” durante a guerra, usando os “métodos de investigação” de Freud, assim como experimentava, em um monólogo escrito, lançar ideias no papel, seguido de exame crítico. Para acompanhá-lo nesse processo, convidou Phillipe Soupault e, em pouco tempo, ambos estavam escrevendo automaticamente e comparando resultados. Embora, obviamente, os conteúdos variassem, Breton percebeu que:

Havia falhas semelhantes de construção, a mesma maneira hesitante e, também, em ambos os casos, uma ilusão de extraordinário entusiasmo, muita emoção, uma quantidade considerável de imagens de uma qualidade que nós nunca pudemos obter antes por intermédio da maneira normal de escrever, um sentido especial do pitoresco, e, aqui e ali, alguns toques da mais absoluta bufonaria. (1934/1968, p. 412)

A escrita mostrou-se “estranha”, investida de um “altíssimo grau de absurdo imediato”. Foi a partir do seu experimento com o método de Freud que Breton encontrou o surrealismo e, quando pediu a si mesmo para defini-lo, escreveu que era “puro automatismo psíquico” o qual, através da palavra falada ou escrita, ou de alguns outros meios de expressão, revelaria “o processo real do pensamento”. As associações criadas pelo ato surrealista instauraram uma “realidade superior” – de modo mais puro, pois tinha origem no inconsciente – até então conhecida nas formas do sonho e do “jogo desinteressado do pensamento”.

O manifesto de Breton foi um ataque passional a uma tendência da civilização. Ameaçado pelo “racionalismo absoluto” da humanidade “sob os grilhões da civilização, sob o pretexto do progresso, tudo aquilo que pode ser, acertada ou erroneamente, considerado fantasia ou superstição foi banido da mente, toda a busca pela verdade de forma não usual foi proscrita” (p. 413). E “todo o crédito por essas descobertas deve ser atribuído a Freud”, Breton escreveu, concluindo: “a imaginação, talvez, esteja no ponto de exigir os seus direitos” (p. 414).

O método freudiano da livre associação lançou um dos mais intensos, senão programático, períodos na arte ocidental, e Breton não estava sozinho entre aqueles que foram influenciados por seu modo de imaginar. No romance, na poesia e na música, a postura de Freud era libertária, sugestiva e morfogenicamente concordante com certo tipo de liberdade simbólica emergente.

Eu duvido que tenha sido difícil para os artistas entenderem o fato de Freud ter se mantido à distância das transformações particulares que eles fizeram do seu método.3 Mesmo um leitor casual podia notar o repetido esforço de Freud para filiar suas descobertas ao mundo científico e seu modo peculiar de exigir que um dia todas as suas teorias fossem explicadas biologicamente. Os leitores de O mal-estar na civilização também poderiam perceber que, em sua análise da cultura ocidental, ele enfatizava a troca de prazer pela civilidade, parte da mudança psíquica trazida pelo desenvolvimento do superego.

Seja qual for a ideia que tivermos da celebração que o surrealismo fez de Freud, o que importa notar é que Breton e seus parceiros trouxeram para primeiro plano o que Freud marginalizava em seus textos. Se a civilização era um triunfo da consciência em uma guerra com os instintos e o princípio do prazer, Freud subverteu essa realidade – talvez o que Breton chamava de “realidade absoluta” – inventando o processo da livre associação.

Até certo ponto, Freud subestimou seu método e, com tantas conjecturas, deixou de lado considerações mais profundas e maior desenvolvimento. Assim como um astrônomo que, maravilhado com a descoberta do telescópio, se perde naquilo que vê, ele estava naturalmente mais interessado em suas descobertas com o uso do seu método do que no método em si. Podemos perceber algo análogo, com a mesma tensão, em música, literatura e pintura modernas – um conflito entre o exame do método em cada obra e a concentração no que pode se manifestar ao longo do processo. Podemos pintar uma figura sem termos que verificar o tipo de pensamento que é o pintar. Podemos compor uma melodia sem pensar no que é a ideia da música. Ou podemos escrever um poema e não examinarmos o processo poético.

Realmente essa tensão levanta certas batalhas intelectuais, por um lado, com alguns artistas que depreciam a representação do processo da criatividade e celebram o resultado figurativo da criação, por outro, com aqueles que expressam clara irritação com relação à simplicidade mimética da figura. Talvez, todos nós reconheçamos a essência do debate: cada lado desse conflito perde seu significado, se o lado oposto for erradicado. De fato, sabemos que escritores, músicos ou pintores que manifestam impaciência com os desconstrutivistas – a começar por aqueles artistas cujas figuras desmoronam ou são fragmentadas – também estão bastante interessados no processo que gerou a sua criatividade.

Não é tão difícil compreender pelo menos uma das fontes de sua impaciência. Se um indivíduo é muito acanhado ou muito autocrítico pode haver interferência em sua criatividade. Talvez, o movimento surrealista tenha falhado em perceber seu desejo de empregar o inconsciente porque uma autoconsciência, ansiosa quanto ao seu projeto, resultou numa arte extremamente estilizada. Realmente foi esse excesso de auto-observação – ou representação do caráter da mente – que levou Dali ao seu célebre “método paranoico-crítico” com o qual elaborou o caráter irracional de conteúdos mentais para iluminar mais profundamente a estrutura do irracional. A paranoia, escreveu ele, era o “delírio da interpretação que sustenta uma estrutura sistemática” e a “atividade paranoica-crítica” define-se como “um método espontâneo de conhecimento irracional, baseado na crítica e na sistemática objetivação das associações e interpretações delirantes” (1934/1968, p. 416). Os surrealistas experimentaram seriamente o processo primário: Max Ernst usou ilusões hipnagógicas para prover material para seus colegas, Miró passou fome para induzir alucinações, advindas do que ele pensava ser a forma do objeto. Mas eles agiram dessa maneira num curioso combate de absoluta inconsciência e absoluta consciência, muito parecido com um encontro de absolutos que se negam reciprocamente.

Talvez, o expressionismo abstrato tenha se tornado o compromisso vital. Apenas como um exemplo, pode-se ver nos trabalhos de De Kooning em que medida uma técnica, desde que devidamente divorciada do figurativo, permite que certo tipo de influência inconsciente possa ser observada, mas não prontamente compreendida. Mesmo que, para alguns, o processo da pintura transforme-se em um dos objetivos da mesma, apresentando o que poderia ser uma auto-observação perturbadoramente intrusiva, o resultado é misterioso. Mesmo que os padrões tipifiquem e identifiquem as obras como produtos de certo artista, todavia, eles abrem o projeto com uma interrogação. O que é isso? O que se olha? De qual perspectiva?

De Kooning sabia pintar. Ele sabia como manter a tinta viva na tela até o último momento possível, pronta para a sua erradicação e substituição por outra cor, outra forma. Para toda visão havia uma revisão. E revisões das revisões. O efeito visual cumulativo era suspenso a certa altura, temporal e espacialmente, congelado em uma representação. Se isso nos leva a pensar no misterioso bloco mágico de Freud como uma metáfora do inconsciente, percebido nessas pinturas como uma camada sobre outra a partir das muitas pinceladas, também sugere a metáfora de Freud sobre a própria vida, o self como a cidade de Roma em todos os seus estágios – Etrusca, Imperial, Medieval, Renascentista – visíveis sob o mesmo olhar e sobrepostas umas às outras. Isso acontece na história de qualquer self. Nas obras de De Kooning é possível observar um objeto que, na sua intensidade revisória, reflete a densa determinação da vida psíquica. Podemos ser testemunhas disso; de fato, até certo ponto, somos desconcertadamente tocados, guiados menos pelas convenções ocidentais da narrativa e da figuração do que pela objetivação de nós mesmos, não como corpo ou ser social, mas como movimento inconsciente ou emoção inteligente.

“A arte é um método de abrir áreas da sensibilidade, mais do que mera ilustração de um objeto”, escreve Francis Bacon (1953, p. 620). Nossas palavras – sentimentos, afetos e humores – não são significantes adequados, assim como Bacon quis dizer muito mais com a palavra “sentimento” do que é conjurado por ela. Ele acrescenta, “uma pintura deveria ser a recriação de um evento, mais do que a ilustração de um objeto; mas não há tensão na pintura a menos que haja conflito com o objeto”. Emoção (de “movere”), ou experiência comovente, é um evento interior e pode nos aproximar do que tentamos significar por afeto ou sentimento. Parecemos ser colocados em movimento tanto por estimulação interna (como uma lembrança ou um desejo ou uma ideia misteriosa) quanto por estímulos externos (como encontrar alguém ou ler um livro).

Estados mentais complexos, as emoções, surgem dos caprichos da vida, encontros densos entre interesses internos e circunstâncias. “O modo como trabalho”, disse Bacon, “é acidental…como poderia eu recriar um acidente? [Outro acidente] nunca seria exatamente igual” (p. 622). O mesmo acontece com uma experiência emocional. Bacon continua: “Isto é o tipo de coisa que provavelmente ocorre apenas na pintura a óleo, pois é bastante sutil que um tom, um pedaço da pintura que move algo para dentro de outro, modifique completamente a implicação da imagem”. Muitos concordariam que dois estados emocionais nunca são iguais, que cada sentimento muda o conteúdo no interior da tela.

É possível ver, portanto, como alguns pintores – seguindo os surrealistas – conseguiram identificar-se (conscientemente ou não) com o projeto que era o de Freud. Realmente, é bem possível que o expressionismo abstrato tenha prosperado onde o surrealismo falhou, ampliando nosso entendimento do processo criativo que foi atingido pela livre associação, apresentando-nos um diferente tipo de Roma: uma história das experiências emocionais diferentes do pintor, congeladas em uma única imagem, aquela que materializa a vida psíquica no mundo formal da pintura.

A teoria dos sonhos, que inclui o devaneio, o evento onírico, sua destruição e conversão em outras cenas com base na associação, e a descoberta e interpretação das camadas do pensamento, é uma teoria particular da criatividade. Seu exame permite-nos perceber como – se plenamente – o que acontece na análise encobre algumas das mais radicais expressões simbólicas nos mundos da poesia, da pintura e da música.

Freud, no entanto, era ferrenhamente oposto à consideração do trabalho do sonho como arte. Consciente da adoção entusiasta dos estetas, os quais ele temia que se apropriassem da psicanálise, ridicularizou abertamente qualquer vestígio de estética no sonho. Freud preocupava-se que os objetivos transcendentais dos estetas pudessem se sobrepor às demandas primitivas do corpo – os instintos – que não sustentam nenhuma ambição estética própria, tornando insignificante a força da Gestalt. Realmente, ele pensava que o propósito de todos os instintos era a extinção da excitação, embora ele conseguisse encontrar poucos exemplos que sustentassem esse ponto de vista. Stravinsky poderia ter concordado com ele. “Toda música”, ele escreveu, “ é nada mais do que uma sucessão de impulsos que convergem para um ponto definitivo de repouso” (1942, p. 35).

Talvez, se Freud tivesse construído sua teoria do sonho baseado em Kandinsky, Pound, Stravinsky e Schoenberg, teria pensado diferente, pois os trabalhos desses artistas tinham uma paixão lírica primitiva, afirmando o prazer da estética que origina novas formas expressivas. Talvez, tivesse visto que o processo total dos sonhos é, provavelmente, o alicerce do criativo, um movimento do “ser representado” em direção à realização do desejo.

Se essas intensidades psíquicas, eventos inspiradores comuns da rotina diária, são basicamente acidentais, então, o que seriam os seus estados psíquicos antes de serem sonhados? Seriam, eu sugiro, estruturas mentais internas – a pequena Roma diurna que é designada, mas ainda não-sonhada – energizadas sobre-determinações que se movem de encontro a alguma forma de elaboração. Em Being a character, eu utilizei o termo “genera psíquica” para identificar um complexo inconsciente que usa sua própria gravidade para desenhar para si fenômenos mentais previamente não relacionados.4 A reunião dessas gravidades psíquicas seria inconsciente, mas talvez sentida como um estado de ânimo que advém de uma experiência prévia. A presença contínua desses fenômenos psíquicos no self frequentemente nos fornece um sentimento de estarmos sendo guiados por um espírito modelador. O que Wordsworth escreveu em Tintern Abbey – “Na mente do homem / um movimento e um espírito que impele / Tudo o que é pensante, todos os objetos de todo pensamento, / E move-se através de todas as coisas” – é surpreendentemente semelhante ao modo como os artistas descrevem o processo criativo.

Stravinsky acreditava que a emoção que se expressa como inspiração é um sinal da presença de algo sendo trabalhado pelo artista naquele momento. “Não está claro”, ele escreve, “que essa emoção seja mera reação por parte do criador, abraçando aquela entidade desconhecida que ainda é o único objeto de sua criação e que se transformará em uma obra de arte?” (1942, p. 50). O estado de espírito inspirado no artista, ele sugere, é sinal de um objeto generativo interno que emerge na consciência: “Essa antecipação do ato criativo acompanha a compreensão intuitiva de uma entidade desconhecida já possuída, mas não ainda inteligível, uma entidade que não irá tomar uma forma definitiva exceto pela ação de uma técnica vigilante constante” (p. 51).

O candidato a sonhador transporta antecipações conhecidas não-pensadas5 de seus sonhos durante o dia, não apenas elaborando disseminações de sonhos passados, mas procurando objetos que vão movê-las mais profundamente nos caminhos da vida onírica.

Em grande parte, Freud ignorava o papel diário da observação inconsciente – a coleta, a verificação e a seleção de objetos físicos – um desequilíbrio que Anton Ehrenzweig reverteu com a sua teoria da “triagem inconsciente”.6 Também podemos dizer que cada pessoa terá obviamente uma longa e complexa história de experiências oníricas que, com o tempo, estabelecerá uma espécie de rede interna de inconsciência que varre o mundo, coleta, examina e separa aqueles elementos que são de interesse. Aquilo que é sonhado procura seus objetos oníricos na experiência vivida.

O sonho é uma iluminação desconcertante dos interesses inconscientes do indivíduo, uma manifestação de interesses intangíveis que procuram apresentação. Essa transformação do conhecido não-pensado em consciência torna-se uma espécie de esfinge – um objeto composto – feito do intercurso entre a vida psíquica do self e o movimento aleatório dos objetos evocativos7. Este é o momento em que o impacto coletivo do dia, articulado em complexos de memória e desejo, se apresenta.

O preceito de Freud de que o sonhador deveria associar livremente a partir do sonho significa que qualquer integridade que o sonho aparente ter como evento propriamente dito é ilusória, desde que as associações fragmentem–no eventualmente, descobrindo camadas de pensamento que podem ser entrelaçadas em uma interpretação. O pensamento latente inconsciente de um sonho pode ser encontrado depois que a livre associação crie material suficiente para revelar vínculos conectivos.

Dependendo do ponto de vista, é nesse aspecto que Freud tanto limitava quanto engrandecia a psicanálise. Para alguns, inclusive muitos artistas, a redução feita por Freud desse processo extraordinário a uma única ideia latente, é um anticlímax. Assim como não apostava no trabalho do ego inconsciente na assimilação de momentos psiquicamente significativos durante o dia, ele desprezava o poder fecundo das livres associações oníricas. Freud não estava interessado no sonho como paradigma da criatividade. Seu propósito mais específico era ter acesso aos significados inconscientes dos sintomas dos pacientes através das livres associações dos sonhos. No entanto, aludiu à impossibilidade da completa interpretação de qualquer sonho, mesmo que a extraordinária extensão da interpretação de seus próprios sonhos aparentasse um prazer por si só, análogo ao deleite da interpretação. Além disso, ele parecia estar de acordo com o fato de que, uma vez iniciadas, as livres associações não apenas revelam camadas escondidas do pensamento, mas também se tornam uma rede de pensamento que continuará no próximo dia e, junto com outras redes sobreviventes, irá coletar, selecionar, sonhar e disseminar futuros momentos emocionais.

Pode ser uma medida do gênio de Freud que esta descoberta, suficiente para muitos, seria apenas a primeira de muitas. Para mim, no entanto, esta foi sua mais importante conquista. Em poucos anos de trabalho com seus pacientes – afetado pelas rejeições dos mesmos às suas técnicas – ele estabelece a livre associação, e naquele momento a cultura ocidental mudou para sempre. Muitos artistas, como Joyce, eram precavidos de se vincularem a Freud, embora tenham se apegado à revolução psicanalítica, ainda que de modo discutível, mais imediatamente e talvez mais extensamente do que aqueles que estavam engajados no movimento psicanalítico.

E o que era tão radical?

Para encontrar a verdade que determina os seus estados mentais, peculiares e inevitavelmente conflitantes, um indivíduo gasta energia para saber como e por que, na presença do analista, simplesmente relata o que, por acaso, está na sua mente. Claro que haverá resistência a essa demanda – embora paradoxalmente a resistência, com certa frequência e de modo direto, aponte para as ideias que estão escondidas – mas, deveríamos dizer que uma civilização inteira encontraria a si própria na resistência a algo tão construído.

Ainda assim é fascinante que as ideias trazidas à tona sejam ideias não desejadas. É o discurso do verdadeiro self, o equivalente verbal do “rabisco” de Winnicott ou o momento no qual, segundo Lacan, o sujeito descobre sua própria voz, revelada através de deslizes da língua e frases curiosas.

“É através do jogo descomplicado de suas funções”, escreve Stravinsky, “que um trabalho é revelado e justificado” e, em estado puro, ele acrescenta, “a música é livre especulação” (1942, p. 49). A livre associação é também uma especulação, um momento visionário no qual o self deriva do dia anterior uma pista do seu futuro.

O que a psicanálise oferece à criatividade? Freud inconscientemente compreendeu o processo que não estava apenas no coração da criatividade, mas era o próprio processo criativo – um processo que envolve duas pessoas no qual apenas uma, de modo isolado, havia estado antes. Narrando seus dias, seus sonhos, suas associações, os analisandos criam a si próprios na presença do analista. Eles podem tentar “figurar” a si mesmos, mas o processo associativo finalmente rompe essas figuras e os analisandos afirmam-se, a partir das linhas quebradas, das harmonias discordantes, das caesurae das criações psíquicas.

O sonho materializa a realidade psíquica diária através de uma transformação da forma. Intensidades psíquicas, escondidas e sentidas, são usadas e colocadas na forma de um sonho. Essa pode ser a razão parcial pela qual as pessoas não são simplesmente confundidas por seus sonhos, mas curiosamente bastante orgulhosas deles. Não ficamos impressionados apenas por seus conteúdos, mas por serem transubstanciações – a realidade psíquica intangível é brevemente visualizada –, somos levemente amedrontados pelo processo. “A base da criação musical”, escreve Stravinsky, “é uma exposição preliminar dos sentimentos, um desejo que se move primeiramente em um domínio abstrato com o objetivo de dar forma a algo concreto” (1942, p. 27). Mas a ideia musical que se move na mente de Stravinsky será alterada ao se tornar “som e tempo”, o material da música.

Isso leva-nos à estranheza da criatividade. Quando o pintor pinta, ou o músico compõe, ou o escritor escreve, eles transferem a realidade psíquica para outro campo. Eles transubstanciam aquela realidade, o objeto não mais apenas expressa o self, mas o reforma. Isto pode ser considerado um tipo de projeção – uma colocação do self dentro de um objeto – mas é também uma mudança transubstancial, na qual a realidade psíquica abandona seu lugar na mente e se torna uma inteligência diferente. Comentando sobre um trabalho recente, Gerhard Richter disse: “era uma expressão do meu estado de espírito pessoal e sugere um método para traduzir meu modo diferente de pensar dentro da realidade” (1995, p. 60).

O termo “objeto transubstancial” permite-me pensar acerca da integridade intrínseca da forma na qual o indivíduo movimenta a sua sensibilidade para criar: o pensamento musical, o pensamento em prosa, o pensamento pictórico. Esses processos poderiam ser vistos em parte como objetos transformacionais no sentido de que cada procedimento irá alterar a vida interna do indivíduo segundo as leis de sua própria forma. Mas um objeto transubstancial também enfatiza o “corpo” do objeto em transformação que recebe, altera, e representa a sensibilidade do sujeito que, por sua vez, aceita os seus termos e, agora, vive dentro dele.

Um artista não entra facilmente num alterado estado de inconsciência. Eles sentem a fronteira entre a vida psíquica comum e o espaço de trabalho artístico como algo que é sempre difícil de ser atravessado e ocasionalmente intolerável. Mesmo quando eles se acostumam a entrar nesse outro campo, estão cientes de terem deixado a si mesmos para trás, de terem sido lançados numa diferente forma de vida.

Esse desafio não é sem precedentes, pois, certa vez, fomos presenteados com o desafio da linguagem, seja para penetrá-la e ser transformado por ela, seja para recusar a fala. Para Lacan, entrar na linguagem é aceitar uma profunda mudança no sentido humano da forma, a partir da ordem sensorial imaginada (de um self aparentemente unificado) para articular em frases o self em uma nova forma de ser. As formas artísticas oferecem desafios mais profundos para o self e, assim ocorre com a linguagem, o que emerge de um indivíduo não parece ser de sua própria criação, mas guiado pela forma de um outro.

Escritores, pintores e compositores frequentemente comentam sobre a estrutura interna desconhecida, mas sentida, que reúne um trabalho específico e seu resultado.

Frequentemente quando eu sento… e ligo meu computador ou minha máquina de escrever e escrevo a primeira sentença, eu não sei sobre o que vou escrever porque ainda não fiz a viagem da barriga para a mente.
De alguma maneira, está escondido em um local muito sombrio e secreto ao qual ainda não tenho nenhum acesso. É algo que eu sinto, mas que não tem forma, nome, tom, ou voz. Então, escrevo a primeira sentença do livro… No momento em que acabei o primeiro rascunho, sei sobre o que é o livro. Mas não antes.
(Isabel Allende, citado por Epel, 1994, p. 8)

A arte não personifica algo sem forma, ela o transforma em um campo completamente diferente. “Algo que não sabíamos que tínhamos surge no primeiro plano”, escreve Milosz (Gibbons 1979, p. 3). Wallace Stevens escreve:

Enquanto não houver nada automático sobre [um] poema, no entanto, existe um aspecto automático no sentido de que ele é o que eu queria que fosse sem o saber, antes que fosse escrito o que eu queria que fosse, mesmo que eu soubesse antes que seria escrito o que eu queria fazer. (1979, pp. 50-51)

“Se cada um de nós é um mecanismo biológico, cada poeta é um mecanismo poético”, ele continua. E, em relação a isso, podemos acrescentar que o mecanismo de transformação a partir do objeto conhecido não-pensado, isto é, o poema que virá-a-ser objeto poético, é derivado do processo estético que se desenvolve sob o nome de poesia. Da mesma maneira, aquele estado do pensamento que é pintar, ou compor, é a estrutura da transformação que transubstancia objetos internos a partir da profunda solidão de um mundo interno para uma realidade externa alterada. “O poeta que trabalha é uma expectativa”, escreve Valéry no Poet’s notebook. “Ele é uma transição dentro de um homem”.

Essa transição não é representacional. É presentacional. O que o poeta escreve ou o pintor pinta ou o compositor compõe não existiu antes.

Algo dessa mesma transubstanciação ocorre em uma análise. O paciente tem na mente um sonho, ou um evento do dia anterior, ou um pensamento sobre o analista, e, enquanto ele expõe seus pensamentos, experimenta suas alterações por intermédio da fala. Pensar e falar são diferentes formas de representação. Mas, a fala livre associativa inaugura uma alteração transubstancial, enquanto o self sente um movimento a partir do que, anteriormente, fora a base comum da auto experiência – pensando e falando – em direção a uma nova forma de ser. Assim como as tintas imprimem-se na tela, ou as ideias musicais compõem notas na página, o analisando com a livre associação não apenas cria a si próprio em outro lugar, mas instaura-se na lógica de uma estética que difere de uma pura experiência ou conversa internas.

É possível que essa finalização de um idioma pessoal como self e um novo começo como uma forma diferente façam parte do prazer da criatividade? É claro que a mudança para uma pele diferente pode servir à evacuação do self dentro do objeto em vez de elaborar uma vida interior. É frequente que a nova forma articule a realidade psíquica por meios que não são os meios comuns de expressão.

Isso levanta uma questão mais profunda. O que os diferentes campos artísticos oferecem como objetos transubstanciais? Se eu pintar minhas ideias em vez de musicá-las, não apenas eu estarei selecionando uma forma diferente. Eu também encontrarei uma estética inconsciente diferente. Minhas ideias irão materializar-se, transformadas de acordo com as características da estrutura inconsciente da forma representacional. Talvez todos nós estejamos evoluindo em direção a um dia, em um futuro distante, quando cada um de nós terá desenvolvido habilidades suficientes como poeta, artista, músico e matemático – entre outras – para viver em diferentes formas, cada qual com uma necessidade de processamento muito diferente que, é óbvio, nos reflete de maneiras estéticas distintas. A criatividade, então, pode ser vista como um desenvolvimento em uma civilização, não necessariamente em termos da evolução da arte ou da poesia, por exemplo, mas como expressões múltiplas da realidade psíquica, que com o tempo seria mais inteligentemente servida pela habilidade artesanal de colocá-la na música, na pintura, na poesia.

Trabalhos de imaginação artística são objetos-forma, amostras do idioma pessoal tornado disponível para o outro. Cada objeto-forma demonstra a inteligência composicional de seu criador e sua estrutura estética sugere para seus subsequentes apreciadores uma peculiar integridade evocativa. Embora o leitor, o ouvinte e o espectador sempre recebam um objeto-forma de acordo com o idioma da inteligência receptiva do self de cada um, cada objeto-forma evoca uma resposta formal.

Isso me ajudou a entender a confiança que experimento quando vejo os trabalhos de um artista que admiro. Se eu visitar um novo museu e encontrar De Kooning, sinto prazer e confiança. São trabalhos que eu sinto que conheço. Mas o que eu conheço? O objeto transubstancial certamente possibilita que minha compreensão estética do outro esteja ligada à categoria estética do objeto. Ou seja, esses trabalhos evocam a experimentação de mim mesmo que existe em e através desse meio que é a pintura. Isso traz algo à tona em mim, ou para colocar no vernáculo: isso “fala comigo”. Eu não poderia, no entanto, colocar o que é “falado” ou o que eu “ouço” em palavras. Alguns indivíduos se aborrecem com o exame crítico de sua obra, não apenas porque podem ficar angustiados com o julgamento, mas também, do meu ponto de vista, porque eles penetraram um campo diferente que não é o da palavra escrita, mesmo que o seu campo seja o da ficção em prosa ou poesia que usa a palavra como instrumento.

Em sentido psicanalítico literal, ficamos emocionados com a obra de arte, o que é processado por sua forma. E mesmo se apenas olharmos de relance para uma pintura, ouvirmos alguns poucos compassos de música, ou lermos algumas linhas de um poema, seriamos capturados pela estética do outro, preservada de modo notável nos pós-efeitos de suas vidas, formas de seus idiomas deixados para trás.

“Se eu alterar a consciência de qualquer leitor, será porque eu construí uma consciência em relação à qual os outros podem desejar tornarem-se cientes, ou mesmo, ainda que por um curto período, compartilhar”, escreve William Glass (1996, p. 47). Mas, como Glass sabe muito bem, a consciência construída pelo romance não é a consciência comum, embora cada autor use esse meio para expressar aspectos de seu próprio idioma.

É correto dizer que o objeto artístico apenas reflete o self, mesmo se nós qualificarmos esse fato, assumindo que o artista também expressa a cultura e a tradição artística contemporâneas? Como o objeto transubstancial difere do self no tocante à forma, ele dá suporte ao self, transforma-se num corpo novo para aquele ser. “A música da prosa”, escreve Glass, “elementar como é, limitada como é em seus efeitos, está, no entanto, longe da decoração frívola; encarna o Ser; consequentemente, é essencial que o corpo seja uma forma eloquente” (p. 326). O “objeto” através do qual criamos – pintura, prosa, música – tem sua própria integridade processual, suas próprias leis; quando entramos nele para expressar nossas ideias, nos seus termos, seremos alterados pelo objeto. “Nos dois últimos anos, tenho feito uma série de pinturas com ‘je t’aime’ escrito sobre elas”, escreve Robert Motherwell. “Nunca pensei muito sobre isso, mas estou certo de que, em parte, é algum tipo de ênfase ou modo de existir no que é pensado” (Caws 1996, p. 18). Ou seja, existir em um pensamento que é lançado, que é projetado, em um campo estético diferente, e objetivado de um modo diferente e desafiador. Objetivação projetiva transubstancial.

O mesmo princípio opera quando o analisando entra em análise. Existem elementos familiares – um vestígio da vida social, uma conversa comum, uma unidade de tempo etc. – mas, o meio livre associativo, embora empreste a sua integridade da fala e das associações internas, transforma-se em um novo meio para a expressão do self. Ao entrar em análise, uma pessoa nunca será a mesma novamente. Ela encontrará um novo objeto para a própria transformação e não há nada que se compare a isso, assim como não há nada que seja como pintar, nada que se assemelhe à poesia e à música.

“A arte pertence ao inconsciente”, escreveu Kandinsky para Schoenberg.

É preciso expressar a si mesmo! Expressar a si mesmo diretamente! Não o seu gosto, ou a sua formação, ou a sua inteligência, conhecimento ou habilidade. Nem todas essas características adquiridas, mas aquelas que são inatas, instintivas. E toda a fabricação-da-forma, toda aquela formação-forma consciente, está conectada com algum tipo de matemática ou geometria… Mas, apenas a fabricação-da-forma inconsciente, que estabelece a equação “forma = configuração externa visível” realmente cria formas. (Scoenberg, & Kandinsky, 1984, p. 23)

Talvez aquele objeto interno que é o vir-a-ser da obra encontre sua mais direta expressão na geometria ou na matemática – isto é, a inteligência específica – do veículo da criatividade e não no objeto. O trabalho de que Allende fala que está “em sua barriga” apenas emerge através da escrita, e um dos aspectos da criatividade de qualquer pessoa é a seleção de uma forma particular por intermédio da qual se expressa a ideia criativa.

“Apenas de uma única maneira a forma pode ser discutida num sentido objetivo”, escreve Ernst Bloch em Essays on the philosophy of music. “É onde o elemento formal construtivo, objetivado, não é um instrumento, mas um componente objetivo”, ele acrescenta, “como é especificamente o caso dos efeitos de palco, com o ritmo e especialmente com os diferentes tipos de contraponto que determinam a configuração dos conteúdos como categorias de seu ser inato” (1985, p. 87). Essa determinação da configuração do conteúdo – a lógica da forma – é uma expressão do ser inato do conteúdo, agora deslocado da experiência interna para a propriedade da expressão musical. Ele continua: “aqui a formação do conteúdo verdadeiramente entrou em uma “forma” como sua mais profunda condição agregativa, uma “forma” que representa adequadamente a parte mais básica do objeto, a parte quase-epistemológica e metafisicamente harmônica do objeto” (pp. 87-88). A forma musical, podemos acrescentar, não é mero instrumento, é uma objetivação daquela inteligência que modela a sua ideia, e a estrutura da inspiração revela-se na composição do objeto, ou seja, na forma musical.

A vida criativa normalmente envolve a contração do self, talvez porque todos os recursos internos do self são devotados ao ato criativo. Freud também reconheceu essa necessidade na informação da psicanálise, à medida que paciente e analista se retiram dos estímulos do mundo. É uma retirada de modo a cristalizar o trabalho previamente referido a uma época anterior à responsividade social, pré-datando, inclusive, a presença mediadora primária da linguagem. Cada um de nós tem sido parte dessa retirada do ser, primeiro quando estamos dentro do corpo materno e, depois, sustentados por sua concentração ao longo de muitas semanas após nosso nascimento, o que Winnicott denominou preocupação materna primária. Em psicanálise, a posição deitada, a ausência de contato visual, a presença de um auditório íntimo e a falta de uma agenda recriam o estado de ânimo dos estágios mais precoces da consciência. O pensamento livre associativo pode começar como um tipo de conversa, assim como o esboço do artista é um modo de começar, mas analisandos e artistas eventualmente respondem àquilo que está sendo pedido. Para o paciente isso significa um aprofundamento das associações, assim como para o analista/ artista, um derrame generativo do self na obra.

Em nossos primórdios, dentro do corpo de nossas mães, depois imersos em suas texturas psíquicas e somáticas, nós somos seres encobertos. Wilfred Bion acreditava que a análise permitia uma alteração do ser do analista, enquanto ele sonhava com o material do paciente, transformando as comunicações do paciente em seus objetos oníricos. Essa habilidade certamente deriva de um processo maternal e dá à luz ideias e interpretações inspiradas. No compositor, escritor, ou artista criativo, um devaneio similar é estabelecido, embora depois de anos praticando essa retirada, pessoas criativas o fazem sozinhas, administrando por si próprias, e usando o vir-a-ser do objeto como um tipo de outro.

A retirada para esse campo impulsiona e desenvolve a potência criativa inconsciente, conduzida pelo núcleo do ser do indivíduo. A psicanálise transforma complexos criativos inconscientes – sintomático, patológico, transferencial – em conscientes, mas também intensifica a capacidade inconsciente do self. Bion acreditava que o treinamento psicanalítico era uma educação da intuição.

O tipo de pensamento necessário ao trabalho psicanalítico evoca aqueles objetos em conflito que são parte de nossa existência. Ninguém representou conflitos com objetos precoces tão bem como Melanie Klein. Para ela, cada self está engajado em lembranças contínuas do primeiro encontro com o objeto, representando-os em todas as relações subsequentes. O tipo de pensamento evocado pela psicanálise ou a concentração do artista criativo traz à tona as paixões do amor e do ódio, os objetos de cada uma delas, e as violentas evasões do self como consequência do ser. Assim, a livre associação pode pretender ser objetiva e não-apaixonada, mas, como as associações movem-se mais profundamente dentro do self, elas conduzirão a experiência do self com seus objetos, um fardo que satura o pensamento livremente associado com significado. Por que essas ideias não apenas sustentam suas estruturas simbólicas, como Lacan enfatizou, elas também se assemelham a personagens independentes numa ópera em desenvolvimento. A maneira clássica de ouvir permite que a lógica surja do material, levando em conta aquelas rupturas e áreas superficiais que indicam resistência, aquelas ênfases criadas pelos momentos parapraxiais e aquelas disseminações ocasionadas por palavras polissêmicas. O modo do objeto-relacional escutar os mesmos materiais transforma a sequência de ideias em personagens – tratadas como partes do self ou partes do objeto – que constituem o teatro da transferência. Cada modo de escuta encontra um tipo diferente de conflito, operando em um campo diferente. Na literatura, pode ser a diferença entre o conflito revelado no idioma da escrita e o conflito demonstrado nas representações entre as personagens. Na pintura pode ser a diferença entre a lógica das ideias em desenvolvimento – pensamento que se constitui na inteligência do movimento passo-a-passo do pincel – e o teatro das figuras estabelecidas do mundo do pintor que novamente se engajam na tela.

Em The use of an object, Winnicott (1971/1974) discutiu que a espontaneidade só poderia se desenvolver a partir de um princípio de crueldade. Para usar um objeto, o self precisa ser livre para destruí-lo. É a mãe que sanciona isso em primeiro lugar; realmente, ela é o primeiro objeto de tal destruição. Após um período de relacionamento no qual o amor e ódio da criança estão misturados com um senso de preocupação por ela, a criança gradualmente sente-se mais segura em sua habilidade para usar a mãe, não confundindo esse uso e a destruição com qualquer tipo de dano.

Talvez algo do mesmo princípio enfatize a injunção de Freud segundo a qual o sonhador fragmenta o corpo do sonho por intermédio da livre associação. Os sentimentos e os estados do self manifestos no sonho como uma experiência são guardados como são; quebrá-los através da livre associação não apagará a memória da experiência do sonho. Realmente, a segurança do sonho como algo em si permite a sua destruição e o uso como um objeto de inspiração.

Considerando o sonho ou a mãe como objetos, tanto o princípio freudiano quanto a idéia de Winnicott indicam uma dissolução da figura. Freud rompe as figuras do sonho e Winnicott quebra a mãe, e de cada um emerge um universo de significados potenciais, fragmentado dinamicamente. Essas teorias psicológicas foram se desenvolvendo por um período de sessenta anos, quando algo do mesmo princípio estava sendo celebrado na arte, na música e na prosa. Seguindo a quebra impressionista da figuração representativa, encontramos no cubismo, no surrealismo, no expressionismo abstrato um momento no desenvolvimento do artista quando a figura é rompida. Ela pode se despedaçar como cubista, futurista, surrealista ou abstrata. E, além disso, essa dispersão do objeto foi frequentemente significada pela figura da mulher, pintada e repintada tantas vezes que começa a se dissolver.

Muitos críticos, ao olhar as pinturas de uma mulher, realizadas por Picasso ou De Kooning, argumentam que ela teria sido destruída mediante um ataque misógino à mulher. Essas críticas ignoram o contexto dessa ruptura. Isso normalmente ocorre imediatamente antes da fragmentação do sublime numa refiguração bizarra ou num objeto despedaçado, frequentemente abstraído num movimento espesso de cor e forma. Sugiro que o que vemos aqui espelha o que Freud e Winnicott escreveram a respeito da quebra do figurativo. A ruptura da mulher transforma-se na dissolução do corpo da mãe que, momentaneamente, perde a necessidade da figuração, mas é usada como um projeto para a realização do self. Agora, ela é o processo da pintura, uma presença imanente, des-objetivada e re-formada como a inteligência guardiã da forma da pintura.

Certas obras de arte abstratas, como certos romances modernos (de Joyce, de Faulkner) desfiguram a representação convencional de modo a apresentar o trabalho da criatividade dentro da própria forma, brincando com os elementos da forma, reconhecendo implicitamente o desejo do receptor de ver algo da magia da forma na obra.

A psicanálise pode demonstrar uma falta de respeito semelhante pela santidade do figurativo. Na luta para engajar o invisível, o analista (como o artista) quebra a figura: não para descobrir o que há dentro dela, mas para perceber a inteligência imaterial da forma que é autorizada em nome da mãe. Se a criança está para entrar numa relação com o verdadeiro self, diz Winnicott, então, ela precisa ser livre para inventar a mãe e o self. Para os pacientes usarem a análise, eles precisam ser livres para inventar um analista na transferência, assim como para destruir a integridade da pessoa do analista, tendo em vista a expressão de si mesmos. O analista até certo ponto aceita esse uso.

Pintores, compositores e escritores que têm a liberdade de destruir as figuras de nossa vida, contudo, confiam na integridade da figura mesmo que eles a destruam. Como os psicanalistas, eles reconhecem o paradoxo dessa liberdade. Não poderia ocorrer sem um sentimento de privilégio derivado da figura – a mãe que da à luz – que, entretanto, deverá ser “destruída” à medida que é usada. Tomar tais liberdades não é sublime. Enquanto um self cria outros para além da figura primária, o que é ganho em liberdade de expressão é perdido em termos de segurança pessoal. Com o tempo, as ondas da representação sugerem muitas figuras possíveis e, consequentemente, a mãe primária fica além do alcance. Os expressionistas abstratos podem também ter ansiado pela simplicidade da figura, assim como o self, cercado pela criação de tantas múltiplas representações do objeto primário, lamenta a mãe perdida, em nome de todos nós.

Picasso ou De Kooning podem ter se voltado mentalmente à mulher, armados com a ambivalência que surge da liberdade para destruir. Como, é possível perguntar, a mãe pode permitir que nós a destruamos? Reencontrando-a, mesmo numa forma alterada, então, pode ser um alívio entre os inúmeros e renovados esforços de destruição.

Nós somos separados da mãe, do pai, da família e, o que é discutível, da nossa cultura, pela complexidade fecunda da vida psíquica. Nenhuma figura deverá sobreviver intacta. Nossos pensamentos – em visões e revisões – farão retomadas tão frequentes de todas as figuras que apenas o princípio da figura deverá permanecer. A livre associação libera essa complexidade em um espaço delimitado, constrangido mais ainda pela relutância do paciente em abraçá-lo plenamente, e pelo analista que procura suas interpretações. O trabalho criativo na dança, na poesia, no drama, na ficção em prosa, na música, na pintura, na escultura também envolve degenerações tácitas da figura enquanto as revisões criam múltiplas figuras, sobrepondo umas às outras.

Se não pudermos ter objetos singulares para abraçar pelo bem da consolação, teremos o corpo de formas separadas, nas quais e através das quais nós alteramos e articulamos nosso ser. Essa é a grande promessa de qualquer forma de arte. É também, frequentemente, a realidade do método psicanalítico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Christopher Bollas
1986 101st Avenue Pekin
North Dakota
58361 USA
E-mail: bollas@globalnet.co.uk

Recebido em: 30/10/2009
Aceito em: 10/02/2010

 

 

Tradução de João A. Frayze-Pereira
1 Creativity and Psychoanalysis. In C. Bollas, The mystery of things (pp. 167-180). London & New York, Routhledge, 1999.
2 Christopher Bollas é membro da Sociedade Britânica de Psicanálise. É autor de uma obra extensa que se tornou importante não só na Psicanálise, como nas Ciências Humanas, na Filosofia e nas Artes. Não é apenas a sua experiência clínica que comparece em seus livros, mas autores diversos que oferecem recursos para elaborações pessoais da cultura, integradas à pratica clínica. Além disso, se em seus escritos o conteúdo é psicanalítico, o estilo é literário – um desafio ao tradutor que pretenda expressar a forma idiomática do autor. Em todos os seus livros, dos primeiros (The shadow of the object, 1987; Forces of destiny, 1989; Being a character, 1992) aos mais recentes (The evocative object world, 2009; The infinite question, 2009) confirma-se tal característica. O livro The mystery of things contém uma análise da dimensão paradoxal do processo psicanalítico que objetiva a vida psíquica por intermédio da subjetividade de seus participantes, pois o método de pesquisa na psicanálise – apoiado na livre-associação e na atenção flutuante – corre em sentido contrário a tudo o que aprendemos com as formas lógica, racional e científica de aquisição do conhecimento. No capítulo sobre criatividade e psicanálise, aqui traduzido, o autor examina como os objetos artísticos são distilações de um self, ou objetos-forma que momentaneamente objetivam, isto é, tornam visível e audível, o efeito estético de ser um self. Nesse sentido, os trabalhos da imaginação artística são amostras do idioma pessoal tornado disponível para o outro. E como objetos-forma, eles demonstram a inteligência composicional de seu criador e sua estrutura estética sugere para seus subsequentes apreciadores uma peculiar integridade evocativa. [Nota do Tradutor].
3 Sabe-se que os artistas modernos, em particular os surrealistas, utilizaram alguns conceitos psicanalíticos para fundamentar as suas invenções, uso em relação ao qual Freud se mantinha distante, conservando a Psicanálise longe de qualquer compromisso com o campo das artes. Por exemplo, ao receber o convite do Diretor da produtora cinematográfica UFA para a realização de um filme de divulgação da psicanálise, Freud responde: “minha principal objeção é que não me parece possível fazer uma apresentação plástica minimamente séria de nossas abstrações”. Em outro momento, em resposta a André Breton que o convida para se associar a uma antologia intitulada Trajectoire du rêve, Freud escreve: “ uma antologia de sonhos, sem as associações que a eles se vêm acrescentar, e sem o conhecimento das circunstâncias em que o sonho teve lugar, (...) para mim, não quer dizer nada, e mal posso imaginar o que ela possa querer dizer para os outros”. [Nota do Tradutor].
4 O conceito de genera psíquica , muito resumidamente, significa a incubação psíquica das catexias libidinais do mundo objetal e se desenvolve através da elaboração do idioma pessoal. Cf. Sendo um personagem. Rio de Janeiro, Revinter, 1998, ps. 49 e segs. ( N.T.).
5 Os conceitos de objeto transformacional e objeto conhecido não-pensado são elaborados por Bollas no livro A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não-pensado. Rio de janeiro, Imago, 1992. (N.T.).
6 O conceito de triagem inconsciente é desenvolvido por Ehrenzweig no livro A ordem oculta da arte. Rio de Janeiro, Zahar, 1969, os. 45 e segs. (N.T.).
7 O conceito de objeto evocativo é desenvolvido por Bollas em The evocative object world. London & New York: Routhledge, 2009. Mas, também há um capítulo dedicado ao conceito no livro Sendo um personagem. (N.T.).

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