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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo dic. 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Para o gol: latência e identidade de gênero

 

To score a goal: latency and gender identity

 

Para el arco: latencia e identidad de género

 

 

Osvaldo Luís Barison1

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As questões da definição de gênero são de grande interesse na psicanálise atual. O autor salienta que a construção da masculinidade não tem recebido o mesmo investimento teórico do que a feminilidade. A partir da vivência em ludoterapia com crianças no período da latência, destaca-se o uso do futebol de botão na sala de análise, sendo que a entrada no universo do futebol representa um espaço potencial na masculinização. Discute-se a técnica do trabalho com latentes, o futebol como expressão simbólica e o processo de tornar-se homem.

Palavras-chave: Período da latência, Técnica de ludoterapia, Futebol, Identidade de gênero, Masculinidade.


ABSTRACT

Interrogations about the definition of gender are of great interest for nowadays psychoanalysis and also the fact that masculinity hasn’t been getting as much theoretical attention as femininity. From sessions of ludotherapy with children in the latency period, specially through button soccer playing, the access into the "world of soccer" is understood as a potential space for masculinization. The author discusses the technique of working with children in the latency period, soccer as symbolic expression and the process of becoming a man.

Keywords: Period of latency, Game therapy technique, Soccer, Identity of gender, Masculinity.


RESUMEN

La definición de los temas de género son de gran interés actual en el psicoanálisis. El autor subraya que la construcción de la masculinidad no ha recibido la misma atención de la teoría de la feminidad. De la experiencia en la terapia de juego con los niños en el periodo de latencia, muestra el uso del fútbol botón en la sala de análisis, ya que la entrada en el mundo del fútbol es un espacio potencial de masculinización. Discute la técnica del trabajo con latentes, el fútbol como expresión simbólica y el proceso de convertirse en un hombre.

Palabras clave: Periodo de latencia, La técnica de terapia de juego, El fútbol, La identidad de género, La masculinidad.


 

 

1. Treino

Vez ou outra, alguns conceitos na teoria da Psicanálise parecem dados como naturais e que não é necessário que se diga mais. O mesmo acontece com o fenômeno que o conceito tenta representar. Uma destas situações é a constituição da identidade de gênero no homem. Outro grupo de fenômenos e conceitos que despertam pouco interesse é o que corresponde ao chamado período de latência. Um outro, que não é propriamente do campo da psicanálise, mas que é de fundamental importância na cultura, é o futebol enquanto expressão de aspectos do psiquismo.

Neste artigo procuro alinhavar estes três aspectos da Cultura e da Psicanálise, visando ampliar o conhecimento que temos sobre a técnica com pacientes latentes, com a definição da identidade masculina e com o futebol enquanto espaço potencial para auxiliar tanto a técnica na ludoterapia quanto a identidade de gênero.

Estes questionamentos teóricos nasceram da minha prática analítica quando me defrontei com vários pacientes com idade entre cinco e doze anos que foram encaminhados pelas escolas, uma vez que tinham dificuldades na aprendizagem dos conteúdos educacionais. Percebi que eram crianças inibidas em suas capacidades cognitivas e motoras, em função de dificuldades afetivas que remontavam suas vivências edipianas e a entrada no período de desenvolvimento que chamamos de latência.

Eram crianças bem amadas, nutridas, algumas com pais adequados e que acreditavam usar todos os recursos conhecidos para darem o melhor para os filhos. Dentre os comportamentos que os pais não toleravam em seus filhos, a agressividade, a sujeira e até a espontaneidade era vista como algo proibido. Aos filhos cabia serem educados, cordatos e agradecidos por todo o bem que os pais proporcionavam. Muitos destes pais cresceram materialmente baseados nas conquistas que tiveram a partir do estudo e esperavam que os filhos tivessem na educação seu maior patrimônio.

Este tipo de vivência, além da possibilidade de gerar filhos inibidos em suas capacidade cognitivas e motoras, também colocava em questão a própria definição da identidade sexual do menino, uma vez que os comportamentos mais ativos são geralmente identificados como sendo do universo masculino. Porém, o mundo masculinizado tornava-se conflituoso com as expectativas do ambiente asséptico destas famílias. Em torno do campo afetivo marcado por expectativas do ambiente familiar e das condições internas dos filhos, ocorria o conflito que gerava sofrimento e a demanda de trabalho analítico.

 

2. Entram em campo: o período da latência

Existe um momento na vida das crianças em que eles colocam em prática a construção que fizeram desde o nascimento e que, por volta dos cinco, até os doze anos, exercitarão os aprendizados que tiveram com os pais no mundo externo ao lar. Trata-se de experimentar os aspectos de diferenciação, tanto do eu e do não eu, do interno e do externo, da realidade e da fantasia e também do masculino e do feminino.

Freud denominou este período de desenvolvimento da psicossexualidade de latência porque acreditava que depois dos anos de lutas edípica, a criança passava por um período em que reprimia as cargas de afeto que até então eram dirigidas para o ambiente familiar – principalmente para o pai e a mãe – e podia se dedicar a outros investimentos. Os mais característicos são associados ao ambiente escolar e a alfabetização, o que pressupõe o acesso ao mundo simbólico. É também característico a socialização com outros do mesmo sexo e o desenvolvimento das habilidades motoras através dos jogos. O que se acredita é que a sexualidade precisa ser fortemente reprimida, passando para o segundo plano, permitindo estes novos investimentos.

É nessa fase que as crianças são capazes de passarem horas repetindo o mesmo jogo. Primeiro lutam para não aceitarem as regras. Fazem movimentos na tentativa de perverterem o combinado e manipularem no sentido de serem vencedores. Com o passar do tempo jogam da mesma maneira até a exaustão, lembrando o comportamento de um obsessivo compulsivo. O que buscam é controlar a sexualidade e a imprevisibilidade da vida através do ensaio que é o jogo lúdico. É nessa fase que a criança percebe que tem mente própria e que ela lhe escapa, precisando aprender a controlá-la.

Outra característica desta fase é a separação entre os meninos e as meninas. É o chamado clube do "Bolinha" e da "Luluzinha". Cada membro de um "clube" odeia e ataca todas as características dos elementos do outro grupo. Inclusive fica vedado a qualquer menino ter muita amizade com meninas e vice-versa, sendo que quem transgredir esta regra fica excluído do grupo de origem, recebendo apelidos difamatórios quanto a firmeza da escolha sexual. O que está em jogo é a repressão dos desejos sexuais. A separação acontece exatamente para ficar mais fácil não ser provocado pela estimulação que o sujeito do outro sexo desperta, assim como facilitar a identificação com os iguais.

O trabalho analítico com crianças nesta faixa de idade parece exigir do analista certas flexibilidades nas regras do setting e colocar-se em uma postura afetiva viva, interessante e participativa junto ao cliente. Algo parecido com o que percebemos no trabalho com os adolescentes, pois estes não suportam a postura analítica tida como mais tradicional, de espera e escuta.

Melanie Klein já nos alertava sobre esta característica transitória da organização da criança latente.

Diferente da criança pequena, cuja imaginação viva e angústia intensa nos permitem um acesso mais fácil ao seu inconsciente, elas têm uma vida imaginativa muito restrita, em razão das fortes tendências ao recalque, características dessa idade. Comparado ao adulto, seu ego ainda é pouco desenvolvido: não têm consciência de que estão doentes e não desejam ser curadas, de sorte que não possuem incentivo para iniciar análise e tão pouco incentivo para continuar com elas. (Klein, 1932, p. 92)

No entanto, como a prática tem demonstrado, é forte a demanda por trabalho analítico com crianças latentes.

 

3. Os times escolhem seus lados: identidade de gênero

Coube a Sigmund Freud (1905), desde "Três ensaios para uma teoria da sexualidade" até os textos das décadas de 1920 e 1930, trazer para a ciência a discussão sobre a questão de gênero, apontando a independência da constituição da identidade sexual em relação ao determinante da natureza biológica.

Para a identidade de gênero e da escolha de objeto sexual, Freud dá ao conflito edípico e pós edípico a primazia nas definições destas fundamentais organizações do sujeito. No entanto, a teoria sobre o complexo de Édipo dá a entender – ou pelo menos é uma forma possível de se entender – que a feminilidade é como a masculinidade frustrada e invejosa. Esta concepção levou parte do movimento psicanalítico a se levantar contra as ideias freudianas e até hoje há busca por uma teoria mais convincente.

É importante observar que no movimento psicanalítico os estudiosos das questões de gênero voltaram-se quase que unanimamente a tentar entender o universo da feminilidade. Talvez pela afirmação de Freud sobre o "continente negro" para se referir às mulheres, ou então a máxima expressa no "o que quer a mulher?", criou-se a ideia de que o feminino precisava ser desvendado, reparando a ignorância do "pai" da psicanálise.

Não é por não se entender a mulher que se pode afirmar que entendemos o homem. A masculinidade também tem seus mistérios, impasses e incertezas. Ela não é naturalmente dada, assim como a teoria da identidade masculina não está pronta e acabada.

Para se ter ideia da quase negligência sobre a masculinidade, houve um número especial na Revista Brasileira de Psicanálise (2008), dedicado ao Feminino e os dois últimos números do Jornal de Psicanálise (2009) que tem como título "Masculinidades, feminilidades: releituras", dos artigos que tratam da questão de gênero, oito são sobre feminilidade, oito sobre os dois e apenas três sobre a masculinidade. Donde se vê que a questão feminina parece despertar maior interesse, ou como se déssemos a masculinidade como já entendida.

Não é objeto desse estudo rever a complexidade da discussão sobre identidade, função, ou mesmo a história dos conceitos de gênero no seio do movimento psicanalítico. Para maiores aprofundamentos recomendo o texto de Person e Oversey (1999) em que fazem a revisão das "Teorias psicanalíticas da identidade de gênero". Estes autores recuperam as formulações de Freud sobre o papel das questões edípicas e pós edípicas na definição da identidade e consequente escolha de objeto libidinal. Passam pelas críticas de Horney, ou as de Jones, em que colocam as origens da feminilidade e masculinidade nas fases pré-edípicas, chegando até Stoller, que sugere uma protofeminilidade constitucional e atávica a ambos os gêneros.

Silvia Bleichmar (2007) propõe três tempos na identificação do gênero masculino nos meninos. Claro que ela faz isso não como etapas rígidas e comuns a todos. Seguindo livremente as ideias da autora, temos que anterior à diferenciação genital, o recém nascido já é incluído em uma teia de representação que organiza o campo em que ele vai se inserir e desenvolver. O enganchamento inicial que faz a essa teia ainda é de forma polimorfa. Assim como a mãe precisa reconhecer naquele "pedaço de carne" um ser pertencente a mesma espécie, também tem que admitir que ele não faz parte do mesmo gênero dela. Para isso, ela tem que ter a própria sexualidade minimamente garantida para si, para permitir que o pai assuma o menino e apresente para ele o universo masculino.

Um segundo tempo, já com a descoberta da diferença anatômica entre os sexos, o pênis ganha supremacia no universo mental do menino. No entanto, o pênis enquanto órgão biológico, não garante o investimento da potência genital, fundamental para a diferenciação de gênero. É um homem adulto que apresenta ao garoto a correlação entre o universo da potência e o pênis. No entanto, isso se dá a partir do modo com que a mãe representa o pênis do filho para si própria, o qual, por sua vez, reflete o modo como ela se relaciona com o pênis do pai do menino, bem como com o do próprio pai, como também com o fato de não ter nascido com um para si.

Num terceiro tempo – sugere a autora argentina – não basta só ser homem, mas sim que tipo de homem se é. Isto se dá pela incorporação da visão de mundo paterna, aí sim o pai torna-se objeto para ser identificado ou negado, posto que foi apresentado pela mãe. Adentra-se muito mais no campo da diversidade do que da diferença de gêneros.

O que é conflitivo na construção da masculinidade, e que está argumentado por Bleichmar, é o paradoxo do menino que precisa ser igual ao pai, mas ao mesmo tempo, não pode ter para si o mesmo objeto erótico do pai, ou seja, a mãe.

Um outro nível de paradoxo que posso ver nesse processo de identificação diz respeito ao fato de que não é possível identificar-se sem uma carga de afeto erótico para com o objeto. O pai é ao mesmo tempo objeto de investimento erótico e representante do mundo masculino, oferecendo este mundo para o menino se identificar. Isto é gerador de conflito, pois, ao mesmo tempo em que o menino tem que ser homem e, portanto, desejar mulheres, tem que amar os homens para se identificar com eles.

A masculinidade se dá na incorporação da potência de outro homem, no caso o adulto, geralmente o pai, mas também, no caso do futebol, o ídolo. Ser igual ao homem adulto garante pertencer a um lugar na cultura, assim como evita se confundir e ser confundido com a mulher.

Há um momento, com o crescimento do menino, que é salutar que a mãe permita que o pai saia com o filho para atividades que sejam reconhecidas como masculinas. Levar o filho ao futebol, quer para assistir, quer para jogar, é requisito geralmente atribuído ao pai. Tanto é que quando eles não agem assim, muitas mães reclamam, questionando uma possível falha da masculinidade do marido.

O universo da masculinidade, já apontado por Winnicott, é o do agir e fazer. É o que apreendemos desta definição de Gilberto Safra.

O elemento feminino possibilita o emergir do gesto e cria a ilusão, perspectiva fundamental do elemento masculino. O elemento feminino possibilita a quietude sustentada, o elemento masculino abre a experiência de ilusão. A ilusão aparece no momento em que o bebê cria o seio como objeto a partir da necessidade. O elemento feminino relaciona-se ao Ser e o masculino ao Fazer. (Safra, 2009, p. 78).

 

4. O jogo: futebol

É na latência que o futebol entra de maneira intensa na vida da criança, principalmente na do menino. É um jogo cheio de regras e que exige a habilidade motora nos pés. Apesar de manipular a bola com a mão ser mais fácil, no futebol exige-se a renúncia dela em favor dos pés. Ao não usar as mãos, a criança começa a ter noção de que é possível fazer algo que é mais difícil mas que dá sentido ao brincar, gerando algum tipo de prazer.

Penso que se trata de um treino parecido com a renúncia edípica. O menino, apesar de ter a mãe como objeto de forte paixão e dependência, tem que "abrir mão" dela e escolher outro objeto de investimento.

Outras mulheres entram como objeto para a libido do menino desiludido e frustrado. No entanto, é neste período que aparece a escolha do time para torcer. Assim, grande parte da carga de afeto é dirigida ao time do coração e aos ídolos do time. Estes são personagens que são oferecidos ao menino como objetos para a identificação. São homens adultos exteriores ao ambiente familiar e que se pode acompanhar a vida privada, desejar coisas boas para eles, enfim, amar. É assim que muito das cargas homossexuais ganham contorno de naturalidade, não só sendo permitida como também estimulada.

Talvez dos jogos que mais ajudam a diferenciar os aspectos de gênero com maior clareza seja o futebol. O envolvimento em que o latente vive em torno do mundo do futebol transformam-no em espaço potencial de identificação com a masculinidade. Se a masculinidade é o fazer no mundo, o futebol é prenhe de ações.

Figura controversa no futebol é o goleiro. Ele é passivo, espera a movimentação do ataque adversário para aí agir. Há uma máxima jocosa no futebol que diz que o goleiro ou é bicha ou louco. Ou outra que diz que o goleiro não joga bola, ele fica no gol. Como o normal é a atividade representada pela ação, o goleiro, por ser passivo, não se enquadra na categoria. Talvez seja por isso que os meninos mais fracos e menos habilidosos sejam forçados a ficarem no gol no início do aprendizado da prática do futebol, identificados como uma pessoa menos viril. O que é importante ressaltar, é o uso da atividade do futebol como modelador da masculinidade.

Outra forma de representação dos aspectos homossexuais é dada pelo posicionamento entre a torcida de um time em oposição as demais. Os garotos podem deixar fluir as cargas de afeto para seus semelhantes, pois são todos do mesmo time. Do outro lado estão os outros – os que precisam ser subjugados – de preferência humilhados. O desejo dos meninos nessa idade é o de masculinização, livrando-se das fantasias homossexuais. Mesmo o abraço nos amigos, os amontoados que ocorrem na hora do gol, têm a característica de serem ato de contaminação da virilidade, como se ao se tocarem com entusiasmo transmite-se uns aos outros o ato viril do gozo que o gol representa. Assim, todo gol implica num ato ativo, de potência sádica que suplanta a atividade do adversário, transformando-o em passivo, empurrando a homossexualidade para o outro lado.

Domar o corpo para as habilidades que são necessárias ao futebol requer a inscrição do corpo no sistema imaginativo. Cada membro, cada órgão corporal que participa, ou que se renuncia à participação, requer grande desenvolvimento na relação da corporeidade, relação esta fundamental na constituição do self.

Seguindo a conceituação de Frank Philips (2003), o futebol insere-se no contexto do play, muito mais do que jogo, este mais afeito à disputa e a competição. É do território do play que vem nossa capacidade de sonhar, imaginar, alucinar, ver o que ainda não existe. É também a nossa inserção no sistema simbólico da linguagem e dos afetos, no qual a experiência de se ser humano pode atingir significação para o sujeito.

Trata-se de um jogo lúdico, como a autorização que o apito inicial do árbitro dá aos jogadores e torcedores para que estes possam voltar a serem crianças. Dentro das quatro linhas é o palco do play que permite o sonho, o mágico, a experiência dos limites do corpo e suas superações, a artimanha, a pletora de afetos, enfim, o lúdico.

Iniciar um jogo empatado, fazer todos os movimentos e depois ganhar ou perder, representam ensaios para se aprender a lidar com os grandes dramas da vida. Mas o mais fantástico é que depois de apurado vencedor e derrotado, o próximo jogo recomeça no zero a zero, dando a chance de um eterno recomeço. As mesmas possibilidades, tanto as sonhadas, quanto as que acontecerem, ganham nova liberdade para se atualizarem e se presentificarem no apito inicial.

É assim que Winnicott pode propor o brincar como espaço para potencializar as questões humanas, rumando ao estabelecimento de um ser autônomo.

A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na intimidade… (Winnicott, 1975, p. 71)

Apesar do intenso contato físico, não se pode machucar o adversário, muito menos ser desleal, mesmo em intenção. Enquanto exercício de convivência em grupo e controle dos aspectos agressivos, o futebol é de grande valia. As origens do futebol representam atividades de caça da idade média. A bola participa como a caça que precisa ser dominada. O objetivo é a conquista da bola, não por acaso feminina. Caso tenha-se habilidade, destreza e correção, pode-se conquistar a presa do jogo e leva-la a meta do gozo máximo e redentor representado pelo gol e pela descarga catártica de sua comemoração. A bola também representa o seio e enquanto no feminino a meta é a identificação com o seio, no masculino temos que o seio – e a bola como símbolo deste – serve para o fazer. No caso usa-se a bola para um fim, a meta do gol.

Em nossa cultura, é raro que um menino não tenha que se haver em algum momento com a escolha solitária de um time de futebol. Reputo esta escolha como um passo momentoso rumo ao universo do simbólico e ao pertencimento ao mundo social. É também um ato carregado de significado na inscrição ao gênero paterno, na busca de masculinização. Vejamos como o ensaísta José Miguel Wisnik relata sua escolha de time.

Agora, um outro complicador. Em 1956, com sete ou oito anos de idade, me vi as voltas com a escolha do time a torcer. Para a criança já capturada pelo fascínio do futebol, talvez seja a primeira decisão pressentida como sendo um ato que alterará a sua vida inteira. Um rito de passagem oficializado no recesso de um foro íntimo imenso e quase virgem. Às vezes essa decisão pode vir pronta e dada pela tradição familiar, como numa sociedade tradicional que já filiasse o nativo a um clã. Mas o meu caso, como imagino ser o de muitos, supunha a indecisão entre as alternativas dadas pelos clubes de São Paulo e a eleição, em princípio arbitrária e cruelmente gratuita, de um objeto para ideal-de-eu, com a consequente inclusão forçosa num campo de compartimentos, no qual passamos a acreditar e ao qual passamos a pertencer como se essa identificação nunca tivesse sido objeto de uma escolha arbitrária. Não acho que esteja exagerando: a escolha do time de futebol redobra, por um gesto nosso, a sujeição primeira a um nome, a inclusão na ordem da linguagem e a identificação inconsciente com um objeto de amor. Ou seja, reencena as bases do nosso processo de identificação, dando-lhe um fantástico teatro em que se desenvolver e se esquecer. Alimentado e açulado pelas motivações grupais e sociais, não é à toa que passamos a defendê-lo pela vida inteira, às vezes furiosa e desesperadamente. (Wisnik, 2008, p. 34)

Situação que reputo bonita e que faz parte dos privilégios que minha profissão proporciona, foi quando um garotinho de sete anos, tendo sido criado dentro da tradição familiar de ser sãopaulino, com a morte do pai e o aparecimento de um novo namorado para a mãe que é corinthiano, viu-se em grande conflito entre seguir a tradição familiar paterna, ou fazer uma escolha livre, baseada em ato próprio. Certo dia apareceu em meu consultório de surpresa com o namorado da mãe para a sessão de análise. Entramos e o paciente queria jogar futebol de botão com o futuro padrasto. Iniciou o jogo com o time do São Paulo e o adversário com o do Corinthians. Continuei trabalhando normalmente, fazendo as interpretações que julgava estarem correta. Lá pelas tantas ele inverteu o tabuleiro e passou a jogar com o Corinthians. Interpretei o desejo de assumir um novo time, uma nova vida, entregar-se aos sentimentos que tinha por aquela nova pessoa, tão divertida, cheia de vida, diferente do que o pai tinha sido e que agora ele não estava mais tendo para si.

Na próxima sessão, logo de início ele me perguntou o que eu havia achado do Fulano. Disse a ele que estava precisando de uma confirmação se ele podia gostar daquele rapaz, se daria certo ele se envolver com ele. Pensou um pouco e disse que se tornaria corinthiano, assim poderiam ir ao estádio juntos, ter o que falar no almoço. Interpretei que era como se estivesse mudando de família, de história, permitindo que superasse um tempo ruim da vida e pudesse agora envolver-se com coisas vivas. Pensou um pouco e disse: "É, e agora também tem o Ronaldo no Corinthians. Claro, emendei, por mais que tenha estas coisas de pai que morre, namorado novo da mãe, o importante é a tua escolha pelo time que você está apaixonado." Assim o Corinthians ganhou um novo torcedor, a mãe pode se aliviar com a aceitação que ele passou a ter do novo namorado dela e o processo de luto pela morte do pai pôde ser trabalhado de forma satisfatória na análise.

 

5. Começa o grande espetáculo: a clínica

Por coincidências do trabalho analítico, durante um período recebi concomitantemente cinco crianças que apresentavam um quadro parecido entre si e se relacionavam comigo de uma maneira peculiar e com grandes semelhanças. Eram meninos do sexo masculino de cinco a doze anos. A queixa principal advinha da escola. Os professores solicitavam a avaliação e tratamento com psicólogo porque eles não conseguiam deslanchar no aprendizado. Apesar de não demonstrarem nenhum comprometimento identificado em outras áreas, havia queixa velada quanto a definição de gênero, pois eram crianças excluídas dos grupos masculinos e que assumiam postura passiva e tímida na sala de aula e no pátio.

O contato com estes meninos revelou que se tratavam de crianças inibidas em suas capacidades cognitivas e simbólicas. Eram limitados nas relações sociais fora do círculo familiar. Tinham também um baixo tônus psicomotor, sugerindo algo depressivo. Não conseguiam também se desenvolverem na prática esportiva. Porém, a queixa principal dos pais era a de não renderem na escola.

Dois destes garotos vinham de lares desfeitos, com os traumas inerentes às separações mal resolvidas nas quais o pai se afasta da vida da criança, deixando as mães com as responsabilidades na educação, o que sugere um vácuo no campo das identificações. Os outros três não. Vinham de lares muito bem organizados. Tinham pais amorosos e que acreditavam fazerem de tudo para os filhos. Usavam todos os recursos conhecidos da pedagogia, da psicologia para leigos, da nutrição, da odontologia e de todos os manuais que ensinam como criar bem um filho.

Eram pais que demonstravam algum sucesso profissional baseado em profissões universitárias. Acreditavam que o estudo seria o grande legado para os filhos e não suportavam a ideia de que estes não rendessem na escola. Observei também que não suportavam nenhum tipo de discussão, tensão ou conflito na relação com os filhos. Imaginavam que faziam o que havia de melhor e qualquer insatisfação era entendida como um ataque de ingratidão. As bagunças, sujeiras, artes e malandragens, eram sentidas como insuportáveis.

Nesta época cunhei a expressão jocosa de "casa de psicólogos" para designar estes lares, mesmo que os pais não tivessem nenhuma ligação com a psicologia. Eram casas assépticas, com tudo organizado, nas quais as demandas deviam ser conversadas e a lógica racional devia prevalecer sobre os movimentos afetivos.

O que chamou minha atenção no trabalho com estas crianças foi o gosto que desenvolveram pelo jogo de futebol de botão – um jogo que tenho em minha sala de ludoterapia e que tem servido muito ao trabalho. Não acho que seja comum o uso deste jogo nas salas de análise. Talvez pela predominância das analistas serem mulheres, ou até mesmo pelo pouco gosto que os analistas têm para com jogos chamados de estruturados. Acredita-se que estes jogos favorecem muito o caráter defensivo através da recorrência e rigidez de atividades preestabelecidas. O futebol não. Ele é diferente. Apesar das regras serem fixas, cada jogo abre uma infinidade de possibilidades nas quais o inusitado, o espontâneo, a habilidade e a sorte participam efetivamente, proporcionando uma atividade muito rica de símbolos e manifestações das características das personalidades envolvidas.

Na Teoria da Literatura existe um conceito utilizado pelos estudiosos dos movimentos artísticos que me é útil para entender os momentos de aparente paralisia nos trabalhos analíticos, principalmente com latentes. Trata-se da "categoria negativa". Procede-se isolando um período histórico e uma corrente hegemônica na produção artística. Destacam-se os marcadores que dão a identidade de uma dada escola ou movimento. No entanto, paralelo ao movimento hegemônico, existem certas características que não são visíveis num primeiro momento. Posteriormente as características secundárias, negativas até então, começam a se revelar. Organizando-se nas lacunas da escola hegemônica, são estas categorias que gerarão o próximo período, ou escola, dando-lhe a identidade e fazendo o desenvolvimento da arte.

Este conceito me é extremamente útil para observar os períodos em que as análises parecem estagnadas, num impasse em que as interpretações não alcançam potência suficiente para dar movimento ao trabalho. É nestas horas que a conceituação sobre as "categorias negativas" passa a ser interessante. Por mais que o quotidiano dos relacionamentos pareçam estanques, cada encontro traz algo de diferente. O pequeno detalhe que diferencia a sessão de hoje da de ontem é que precisa ser sublinhado, observado e entendido.

Assim, mesmo o uso recorrente dos jogos ditos como estruturados (como dama, trilha, palito, futebol de botão, dominó e até xadrez), ganham vida e liberdade. O que se busca entender é exatamente o que de novo está acontecendo no encontro que parece reproduzir uma sequência fixa e sobejamente conhecida no contato com um paciente específico.

Destaco o paciente que chamarei de Amado. Ele tinha o que poderemos chamar de um bom lar. Seus pais eram bem sucedidos econômica e socialmente. O que chamava a atenção era a forma organizada e "limpa" com que conduziam a vida. Diziam que tudo era conversado, não havia necessidade e nem espaço para brigas, incoerências e loucuras. Esperavam no filho a continuidade narcísica do sucesso que acreditam distingui-los dos demais. O preço que pagavam era a artificialidade do ambiente que não permitia o aparecimento de sentimentos desajeitados, deselegantes, agressivos, mesquinhos e "sujos". Tudo parecia se resumir a seguir uma cartilha de obviedades pedagógicas.

O pai de Amado disse na entrevista inicial:

– Em casa eu nunca deixei que ele tivesse arma de brinquedo, não quero que meu filho desenvolva estas coisas de violência. Acredito que devemos desde cedo incentivar os filhos para vivermos em um mundo de paz. Outra coisa que não aceito fazer são estas brincadeiras de luta. Não, não quero criar uma pessoa violenta. A energia que ele tem eu acho que deve ser canalizada para os esportes. Mas aí, o que fazer? Ele é um grosso, parece um frango destroncado jogando bola. Tenho até vergonha de ir aos treinos na escolinha. Vou porque quero que ele saiba que sou um pai que participa. Acho importante estar presente na vida do meu filho.

Na mesma sessão a mãe falou algo assim:

– Eu não entendo o meu filho, vivo para ele. Dou tudo de mim para que ele seja feliz. Converso tudo com ele. Trato-o de igual para igual. Sempre dou conselhos para ele. Não sei se porque meus pais não conversavam comigo e com minhas irmãs, procuro fazer diferente. Pergunto para ele o que lhe falta, por que não consegue ir bem na escola? Mas ele não me responde, fica quieto. Às vezes tenho medo que ele não goste de mim, por isso ele não fala o que tem. Meu marido não aceita que eu fale disso, mas eu vou falar. Eu vou amar meu filho independente do problema que ele tem. Amor de mãe é especial, eu quero que ele seja feliz. A escolha que ele fizer eu vou respeitar.

Osvaldo – De que escolha a senhora está falando?

Pai – Ela fica com estas coisas na cabeça. Eu falo para ela que isso atrai. Nós vamos lutar. Por isso estamos trazendo ele para o senhor. Não iremos medir esforços para livrá-lo disso…

Estava claro que falavam da possível homossexualidade do filho, mas que ainda não podia ser nomeada. Entendi que ainda teria que aguardar para falarmos abertamente sobre isso em outro momento.

Além de outros aspectos, na minha forma de entender, este menino estava esmagado por exigências das quais ele não conseguia entender ou reagir. Havia forte temor de decepcionar ou magoar os "bondosos" pais que queriam o bem dele.

Desde o início de minha relação analítica com ele, ficou muito claro o tanto que ele se esforçava para ser aceito, ser um "bom menino" e acertar. Tomava banho para vir à análise. Vinha limpo, penteado com gel e cheiroso. Estava sempre disposto a conversar sobre a escola, tarefas, provas e notas, relatando o que acreditava ser o motivo de suas visitas. Depois do "relatório", esperava algum sinal meu para abrir a caixa e iniciar algum desenho, normalmente estereotipado e de baixa qualidade estética.

A impressão que me passava era a de um menino travado, que não se permitia ousar nada. Só agia sob consentimento, incapaz de algo espontâneo. Fazia a imagem de um ser frágil, construído sobre bases inseguras e instáveis. Radicalizava a paralisia característica dos latentes tentando manter tudo sobre controle para não sucumbir a pletora de afetos que a mente imatura tentava reprimir.

Quando descobriu o jogo de futebol de botão no armário coletivo que mantenho em minha sala de ludoterapia, quis aprender a jogar. Assimilou prontamente as regras, mas não conseguia conduzir a bola, ou até mesmo chutar ao gol, objetivo do jogo.

Percebia que lhe faltava força, agressividade e gana para vencer. Ele só queria ser aceito, o restante não importava. Meus sentimentos eram de respeitar as características dele, ao mesmo tempo em que me sentia incomodado com a falta de força e atitude dele. Ele mostrava-se muito educado e cordato, incapaz de ousar me desafiar e vencer.

Nos primeiros tempos, eu interpretava a inibição dele como se fosse receio em atacar e danificar os objetos que ele gostava ou que deveria preservar. Parecia-me que era isso. A agressividade estava proibida por ordens externas e exigências internas. O que transparecia – e eu interpretava – que toda movimentação mais incisiva estava carregada de fantasias sádicas e seus horrores. Ele não tinha registro de experiências bem sucedidas no trato da agressividade, não tendo, portanto, desenvoltura para lidar com o universo da ação, do conflito e da luta. Apesar de a casa ser o melhor lugar para se aprender a brigar, a ele estava vetado esta possibilidade.

Com isso, eu acreditava que as dificuldades intelectuais e motoras estavam diretamente ligadas a inibição no desenvolvimento psicossexual. Digamos que o referencial teórico de Freud sobre a inibição, com a complementação de Klein, acentuando o papel do sadismo, serviam de base para meu entendimento e interpretações.

Acho até que ele vinha se beneficiando de nossos encontros de maneira sincera e afetiva, rompendo o clima estereotipado e asséptico do início do trabalho. Ele fazia alguns progressos no jogo de botão. Chegava na sala de consulta e colocava o tabuleiro sobre a mesa. Ele só queria jogar botão durante as sessões. Depois de uns tempos, eu já não tinha muito mais o que falar para ele dentro do referencial teórico que eu conhecia e que usava, parecia tudo muito repetitivo e pouco verdadeiro.

Nesta época eu iniciei a narrar os jogos tal qual um narrador de futebol. Fazia uma mistura de Fiori Gigliotti, Sílvio Luiz e Galvão Bueno. Criei um nome para este personagem-narrador: Godofredo Fredo Fredo. Ele era hilário, animado, cheio de bordões, os quais faziam Amado rolar de rir cada vez que Godofredo Fredo Fredo soltava suas pérolas, sempre aos gritos e usando minha mão para imitar um microfone. As sessões ficaram animadas e ele começou a assistir a jogos de futebol pela TV para sugerir também bordões para mim. Ele estava vivamente entusiasmado com o universo do futebol. Em uma única sessão, criamos mais três personagens: Osvaldo Luís – o comentarista que sabe o que diz; Especuleta Leta Leta – o repórter que é um xereta – e Armando Regra, comentarista de regras.

A sala ficava repleta de personagens; sentia como se estivéssemos em um estádio de futebol e ele correspondia a esta sensação. Eram sessões vivas, entusiasmadas, cheias de risadas e aguardadas vivamente.

Cada personagem tinha uma função e Amado as respeitava. Assim, quando Especuleta Leta Leta – o repórter que é um xereta – lhe fazia perguntas a mando de Godofredo Fredo Fredo, ou em resposta a algum questionamento de Osvaldo Luís – o comentarista que sabe o que diz – ele, com voz e jeito de jogador de futebol, respondia às interpretações como se ele também fosse um personagem, mas falava dele, Amado, em terceira pessoa.

Assim, em uma sessão, depois de terem se aberto as cortinas e começado o grande espetáculo, da bola ter batido no pláááááááástico, depois de eu ter feito uma bela jogada que – pelo amor dos meus filhinhos – não resultou em gol, percebo que ele está conduzindo a bola mas não chutava ao gol. Godofredo Fredo Fredo aponta isso. Ele se surpreende, como se tivesse sido flagrado fazendo algo errado. Porém, continua enrolando e não partindo ao ataque.

A sessão foi mais ou menos assim:

Godofredo Fredo Fredo – O que será que está acontecendo com o Amado, ele está arrumando a bola de um lado para o outro e até agora não chutou nenhuma vez ao gol? Meu povo brasileiro. Você tem alguma ideia Osvaldo Luís – o comentarista que sabe o que diz?

Osvaldo Luís – Não sei não Godofredo, mas para se chutar a gol tem que se ter vontade de vencer, tem que ter um pouco de agressividade e o Amado vive com muito medo de demonstrar força e vontade. Acho que ele está com medo do Osvaldo não gostar de vê-lo desejoso da vitória, pior ainda, ficar muito bravo com ele.

Godofredo Fredo Fredo – Vamos pedir ao Especuleta Leta Leta, o repórter que é um xereta, para que ele pergunte ao Amado o que ele acha de seu comentário.

Especuleta Leta Leta – Amado, o Osvaldo Luís disse que você tem medo que o Osvaldo fique bravo com você, caso demonstre força de vontade ou agressividade. O que você acha disso? (coloco a mão como se fosse um microfone perto da boca dele.)

Amado – Eu não bati ainda porque o Osvaldo não fez nenhum gol e não sei se posso marcar primeiro.

Especuleta Leta Leta – Mas você não sabe por causa da regra do jogo, ou você acha que o Osvaldo pode não gostar caso você marque primeiro?

Amado – É, eu não quero que o Osvaldo fique chateado comigo.

Especuleta Leta Leta – Então o comentário do Osvaldo Luís faz sentido. Você pensa que não pode ter vontade, ter força para fazer as coisas, que tudo tem que estar autorizado antes para que você não sinta que está desafiando alguém?

Amado – Eu não sou de violência, não sou como aqueles bandidos da rebelião.

Especuleta Leta Leta – Osvaldo Luís, aí está o comentário do Amado, o que você acha disso?

Osvaldo Luís – Acho que ele está confundindo ter força de vontade, ter agressividade e espontaneidade como algo que só os bandidos e maus elementos têm. Aí ele não pode ficar tranquilo, animado, com garra, pois imagina que o Osvaldo vai achar que ele é bandido. Então, para não receber nenhuma punição, ele já se pune antes, não desejando e nem fazendo coisas novas e espontâneas.

Godofredo Fredo Fredo –Mas isso é muita confusão para a cabeça de um menino. Especuleta Leta Leta – o repórter que é um xereta –, pergunte ao Amado se ele tem tanto medo assim de ser agressivo e aí ser punido.

Especuleta Leta Leta – Você ouviu a pergunta do Godofredo Fredo Fredo?

Amado – Ouvi sim, Especuleta. Eu não sei se é assim, mas eu sempre tenho medo de tudo. Tenho vontade de ficar parado, num canto. Assim eu sei que nada de ruim vai acontecer… Eu posso chutar?

Armando Regras: A regra é clara, tem que falar para o gol, se não, não vale.

Amado – Então tá: para o gol.

Godofredo Fredo Fredo:– Agora ele vai bater para o gol. Vamos ver se ele vai mandar bala. Eu acho que o Osvaldo está encrencado agora, pois percebi vontade nos olhos dele. Ele vai bater, correu, chutou… defeeeeende o goleiro. Ullll!!!! (barulho da torcida) Mas que chute forte! Estava indo para o canto direito, mas o goleiro estava bem posicionado. O que só você viu no lance Osvaldo Luís – o comentarista que sabe o que diz?

Osvaldo Luís – Eu vi um menino com vontade de marcar gol. Sem medo de ser feliz. Talvez ele esteja percebendo a diferença entre ser bandido e ter vontade. Ou melhor, poder mostrar a vontade e capacidade que estão dentro dele.

A sessão caminhou por aí. O que me chamou a atenção, foi o fato dele falar abertamente de sua fantasia. Claro que a compreensão deste processo já estava presente em mim há bom tempo e eu já havia falado com ele sobre isso. O que passou a ser importante foi o fato dele entrar na brincadeira de uma maneira intensa e sem subterfúgios.

Rapidamente ele passou a ficar animado, feliz, com muita vontade de me vencer no jogo. De uma postura física embotada, sem brilho e ensimesmado, ele abriu o peito, começou a ter sorriso animado no rosto. Tirava o tênis nas sessões, se desarrumava, vibrava com as jogadas. Descabelava-se para poder vencer. Não se conformava em eu ser melhor do que ele. Tinha vida e gana.

As interpretações que visavam a remover suas inibições, oferecendo novo modelo simbólico, foram usadas até o final do trabalho. No entanto, acredito que o que o ajudou a superar rapidamente seus medos foi a postura animada e divertida que criamos em torno do futebol. Juntos criamos personagens que funcionavam como agregados funcionais (Ferro, 1995) e que facilitavam o clima afetivo e lúdico da nossa relação. Personagens fixos, mas que estavam autorizados a falarem diretamente dos sentimentos e fantasias que surgiam nas sessões.

Acredito que um dos fatores que dificultavam que ele aprendesse, era o fato de ele ter que abrir mão do que já sabia e do que era ele. Arriscar-se era por demais persecutório, pois ele não tinha garantias de que poderia se reconstruir logo em seguida sob novos patamares. Para se ganhar, tem que primeiro se perder. Assim, o jogo de futebol, com seu eterno recomeço no zero a zero, serve de laboratório para a o ato de aprender.

A psicanalista inglesa, Marion Milner, escrevendo sobre um paciente que também tinha dificuldades em aprender, afirma que:

a ideia de que as identificações básicas que tornam possível encontrar novos objetos, encontrar o que não é familiar, requerem uma capacidade de tolerar uma perda temporária do self, requerem uma desistência temporária do ego discriminante, que fica apartado tentando ver objetivamente as coisas, tentando vê-las racionalmente, sem as cores emocionais. (Milner, 1991, p. 102)

 

6. Mesa redonda

Concomitante ao atendimento de Amado comecei a usar estes mesmos personagens com os outros pacientes e os resultados eram parecidos. Todos se engajavam na brincadeira e vibravam com o universo do futebol e da análise. Chamou-me atenção a velocidade em que os trabalhos evoluíam e como a resposta no aprendizado escolar era quase imediata.

Não tenho como saber o que aconteceu com estes garotos no tocante à sexualidade, o que percebi é que se beneficiam com a entrada no universo mais comum da masculinidade, por meio dos interesses tidos como característicos do homem. Pareciam mais livres e interessados no mundo, suportando mais as situações diferentes em que tinham que ter postura ativa.

O exercício da masculinidade é construção para toda a vida e se dá ao fazer. No entanto, em muitos lares que entendo como "assépticos", o fazer e o agir parecem vetados sob a rubrica da boa educação. Isso dificulta a movimentação do menino na busca de modelos e de experimentações. O futebol favorece tanto na atividade necessária ao fazer, quanto aos modelos de adultos potentes, quanto à sublimação dos aspectos homossexuais. Tudo isso colocado com certo incentivo da mídia e aceito na maioria dos lares.

O que fica claro é que, apesar do bom referencial teórico que temos sobre a latência e as dificuldades de desenvolvimento, o fundamental no trabalho com estes meninos é a postura ativa, interessante, livre e espirituosa do analista. A potencialidade do espaço expresso no envolvimento com o futebol, encontra na sala de análise e no interior da pessoa do analista, complementos na busca do desenvolvimento e na construção da personalidade do menino.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Osvaldo Luís Barison
Rua José Urias Fortes, 544
15091-220 São José do Rio Preto, SP
Telefone 17 3227-7864
E-mail: osvaldobarison@gmail.com

Recebido em: 29/04/2010
Aceito em: 25/06/2010

 

 

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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