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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo Dec. 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Variações do desenho1

 

Drawing’s variations

 

Variaciones del dibujo

 

 

Vera R. F. Montagna2

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Membro do atual Comitê de Cultura da International Psychoanalytical Association IPA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo foi elaborado a partir do amálgama de duas atividades importantes para a autora: a Psicanálise e a Arte. É um esforço reflexivo de aproximar o desenho, o processo criativo e o encontro psicanalítico na sua dimensão estética. O texto explora questões que se manifestam no âmbito do próprio fazer artístico e da clínica psicanalítica, procurando um diálogo entre a tradição da arte e a inventividade no processo de formação de novos símbolos.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica, Processo criativo, Desenho, Arte.


ABSTRACT

This article was developed from an amalgamation of two activities that are fundamental for the author: Psychoanalysis and Art. It is a reflexive effort to expand some ideas about drawing, the creative process and the psychoanalytic encounter in its aesthetic dimension. The paper explores matters in the making process of art, providing a dialogue with the art tradition and inventiveness in the formation of new symbols.

Keywords: Psychoanalytic clinic, Creative process, Drawing, Art.


RESUMEN

Este artículo fue elaborado a partir de la experiencia profunda de dos actividades fundamentales para la autora: Psicoanálisis y Arte. Es un esfuerzo reflexivo a la aproximación del dibujo, del proceso creativo y el encuentro psicoanalítico en su dimensión estética. El texto explora cuestiones que emergen en el proceso de elaboración de la actividad artística, ofreciendo un diálogo con la tradición del arte e inventiva en el proceso de formación simbólica.

Palabras clave: Clínica psicoanalítica, Proceso creativo, Dibujo, Arte.


 

 

A Isaias H. Melsohn e Evandro C. Jardim

 

Esse esforço reflexivo de aproximar o encontro psicanalítico, o processo criativo e o desenho na sua dimensão estética, é fruto de uma trajetória que compreende aproximadamente 25 anos, e que tem envolvido tanto minhas atividades psicanalíticas como o constante exercício do desenho, da pintura e dos estudos que dedico à arte. Essa convergência de caminhos me permitiu ver como ao desenhar, o gesto de qualquer pessoa, não raro, resulta engessado por "conservas culturais"3, que guardam convenções educacionais e exigências superegoicas do narcisismo infantil. E isso se encontra de tal modo enraizado dentro de nós, que um adulto ao se deparar com seu próprio desenho "livre", por não praticar esse fazer, sente-se constrangido, infantilizado, e faz exigências críticas que resultam no seu afastamento dessa atividade. Sabemos que não basta dizer "não tenho talento", pois o problema não é trivial. É que desenhar, entendido como atividade criativa, fomenta a curiosidade e também implica numa transformação pessoal, como abordarei mais adiante. Para desenhar, por exemplo, é necessário libertar o gesto e se dispor a viver uma experiência estética complexa que envolve a pessoa como um todo. Isso se dá quando nos dispomos a conviver intimamente com nós mesmos, com o objeto que observamos, com o resultado sempre provisório do que realizamos. É um exercício de alteridade. Além disso, nunca é demais dizer, esse fazer também é parte de processos históricos, trazendo consigo o conhecimento acumulado dos diversos procedimentos que envolvem essa prática artística; de outra parte, quando esse conhecimento se coloca a serviço da pessoa torna-se aliado dela e instiga o exercício constante dessa atividade que, sabemos, passa por inúmeras transformações. E acaso isso não encontra ressonância no próprio processo de nossa formação de psicanalistas?

Tendo em vista que o assunto é vasto e muito complexo, vou fazer apenas um pequeno recorte, a fim de estabelecer algumas aproximações e diferenças em ambos os campos: Arte e Psicanálise. O trabalho será desenvolvido em três partes:

1. O desenho.
2. Desenhar e o processo criativo.
3. Desenho infantil e o encontro analítico.

 

1. O desenho

O que me agrada principalmente na tão complexa natureza do desenho, é o seu caráter infinitamente sutil, de ser ao mesmo tempo uma transitoriedade e uma sabedoria. O desenho fala, chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia … (Andrade, 1984, p. 65)

A afirmação extraída de um texto crítico, "Do desenho", serve de foco e ponto de partida para uma reflexão sobre alguns dos múltiplos aspectos desse fazer artístico. Falar do desenho traz de imediato o trabalho humano acumulado nos processos históricos, que surgem da relação entre os homens e destes com a matéria e o mundo circundante. E como nossa existência é pautada por memória e esquecimento, notamos que desde os tempos mais remotos, por uma necessidade interior, o homem empenha-se por traduzir seu pensamento em registros simbólicos. Por meio de diferentes suportes, ele calca as mãos pintadas na pedra dura, faz encavos no osso, na areia, no barro, na madeira, desenha em seu próprio corpo. De tal modo, todos os elementos utilizados se transformam em valores compreensíveis, não apenas para determinada cultura.

É do conhecimento de todos, que a arte da escrita (Cohen, 1965), fundada no grafismo, surge como auxiliar da memória. Seu desenho também se transforma e se expande em diversas direções, desde os signos elementares traçados nas superfícies das pedras, até a formação do primeiro sistema de escrita da humanidade, a escrita cuneiforme suméria (3500-3000 a.C.), chegando até a escrita moderna, oriunda dessa invenção extraordinária dos fenícios (1800 a.C.-1200 a.C

Além das várias transformações que ocorrem ao longo do tempo, a própria atividade artística de desenhar, por ser uma experiência estética complexa, envolve a pessoa como um todo. Temos nisso um embate da pessoa com a matéria, atualizando um passado do homem e "memórias seculares da raça humana" e, ao mesmo tempo, sendo uma busca, é capaz de gerar novos significados e evocar em cada um o que desconhecíamos de nós mesmos e do mundo. Desse modo, desenhar ou observar um desenho exige "um ato de abstração em relação ao pathos do sensível e um ato reflexivo para compreender a engenhosidade da invenção", segundo as ideias de Jacqueline Lichtenstein, em O desenho e a cor (2006, p. 12).

Acrescento, ainda, que a natureza, incontestavelmente aberta do desenho que de imediato reconhecemos, é portadora de uma intrincada rede se significações, a começar pelo próprio vocábulo, signo polissêmico, que por si só abarca um amplo conteúdo semântico. Não caberá aqui, dada a natureza desse trabalho, abordar conceitos, como o de mimesis e de idea, que percorrem os textos filosóficos da antiguidade até os nossos dias. Destaco, apenas, em relação à nossa tradição cultural, que o termo desenho se fixa na língua italiana, no Renascimento, como il disegno. E nesse sentido, vale observar que o verbo disegnare, em italiano, entrelaça dois significados importantes. O primeiro deles, risco e traçado; e o outro, um desígnio, desenho como propósito, projeto humano. O historiador renascentista Vasari4 utilizou a palavra nesses dois sentidos em "O primado do desenho" (1568). Nesse mesmo texto, afirma que o desenho é a expressão e a manifestação do conceito imaginado e elaborado em uma ideia. Ideia, de acordo com o historiador, entendida como intuição do real, originada da experiência prática e estudo contínuo do desenho, para extrair a "verdadeira luz do desenho":

Oriundo do intelecto o desenho, pai de nossas três artes – arquitetura, escultura e pintura –, extrai de múltipos elementos um juízo universal. Esse juízo assemelha-se a uma forma ou ideia de todas as coisas da natureza, que é, por sua vez, sempre singular em suas medidas. Quer se trate do corpo humano, dos animais, das plantas, dos edifícios, da escultura ou da pintura, percebe-se a relação que o todo mantém com as partes, que as partes mantém entre si com o conjunto. Dessa percepção nasce um conceito, um juízo que se forma na mente, e cuja expressão manual denomina-se desenho. Pode-se, então, concluir que esse desenho não é senão a expressão e a manifestação do conceito que existe na alma ou que foi mentalmente imaginado por outros e elaborado em uma ideia.5 (pp. 19-22)

Para Panofsky (2000) essa concepção de Vasari introduz uma "inversão que se opera num sentido funcionalista: dado que a ideia já não pré-existe à experiência nem existe a priori no espírito do artista, mas, se apresenta, ao contrário, como o produto da experiência da qual decorre a posteriori…" (pp. 61-62).

Prossigo a reflexão, retomando as ideias do desenho de Mário de Andrade (1984), na esteira das concepções de Modernidade postas por Charles Baudelaire. Em "Do desenho", o escritor enfatiza com acuidade a característica móvel do desenho, para assim aproximá-lo do provérbio. O desenho, como o provérbio, exprime a experiência vivida, não de maneira estática, mas a "luta entre a visão recebida ou imaginada e o seu registro gráfico" (p. 70). Além desse aspecto, ressalta que o desenho também sofre a ação do tempo e se desprende da emoção imediata, do descritivo, e lentamente "assume a natureza essencialmente poética do provérbio". Com isso em vista, entendo que o desenho contém qualidades próprias: não é apenas contorno, é registro, é sinal que leva o traço da ideia, e nesse sentido é um saber, um conhecimento. Saliento esse ponto, porque se isso não for levado em consideração, o que se faz é apenas submeter a linha do nosso desenho ao assunto, dissociando-a da força que tem nossa forma de expressão. No desenho forma e conteúdo constituem uma unidade que traz consigo as marcas e os registros do gesto. Seus elementos (linhas, pontos) se relacionam e criam espaços contínuos ou descontínuos, vazios ou superposições, que imprimem ritmos. Nele a dança da linha se aproxima e se distancia em diversos movimentos e direções, para gerar qualidades de luz-cor, estabelecer relações de contraste, tensão, articuladas numa sintaxe pessoal. É nesse sentido que o desenho permite ver como cada artista traz consigo o seu próprio modo de fazer, seu gesto particular, que se traduz numa marca singular. Assim, um observador atento distinguirá os traços inerentes ao desenho de Matisse, Van Gogh, Picasso, Paul Klee e assim por diante.

Disso tudo também se depreende que não é apenas "o que se faz", se o desenho é de um pássaro ou uma pessoa, por exemplo, mas "como se faz", como o artista trabalha aquele determinado tema. Assim, quando Degas afirma que "O desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma", põe em evidência no aforismo, o olhar transformador do artista, sua maneira individual de apreender e interpretar o mundo, no âmbito de uma herança cultural. Aqui, a Arte é entendida como poiêin, no sentido primeiro, como o próprio "fazer", que contém a ideia de invenção.6

 

2. Desenhar e processo criativo

Desenhar e observar estão intimamente vinculados. A observação reaviva o uso da intuição, do sentimento, da percepção, da imaginação do observador, de tal modo que todo nosso corpo torna-se, por inteiro, um órgão de focalização, que trabalha nessa operação complexa, que é ver. Aquilo que habitualmente denominamos "ver", consiste na individualização e organização mental dos sinais elementares pela "síntese imediata de algo que está em movimento" (Strazza, 1979). E levando-se em consideração que uma organização mental dos signos contém, além de nossas necessidades e intenções, uma carga de intuição, afetos, inquietudes e ambiguidades, o que resulta dessa organização vai passar, necessariamente, por constantes modificações. Assim entendido, reitera-se que ao desenhar não reproduzimos o visível, o fazer do desenho é um modo de apreender o mundo e, por isso mesmo, é um fazer provisório. Compreende, portanto, "gestos inacabados" (Salles Almeida, 2007). É um jogo entre o tateio e o conhecimento. É um fazer, uma reflexão, reafirmo, conduzida pelo próprio fazer. É uma forma de integrarmos nossas experiências com o mundo, dar sentido para nossas lacunas e nosso desamparo.

Mas desenhar é uma manifestação de sentimento profundo e relação de profunda identidade com aquilo que se observa. É a tentativa de superarmos o habitual, de apreendermos algo que nos escapa.

Assim, desenhar requer um estado de atenção desperto, onde gesto e signo se entrelaçam. Ao desenhar, a leveza da mão se coloca a serviço do olhar, não para a posse e a certeza, mas, para poder apreender, no particular, aspectos de um conjunto que se vê. É generosidade e entrega para poder extrair luz do que se observa. Leonardo da Vinci, extraordinário observador do mundo e criador de mundos, escreveu em seus apontamentos que "o ar está cheio de infinitas linhas retas e radiantes, entrecruzadas e tecidas sem que uma ocupe jamais o curso da outra, e representam para cada objeto a verdadeira forma da sua razão"7. Essa formulação, diz Valèry, "parece conter o primeiro germe da teoria das ondulações luminosas …". O que o crítico vai privilegiar, a partir dessa citação é o método do pintor florentino, isto é, a forma e o modo intuitivo de apreensão dos fenômenos, a partir da observação constante da natureza (os raios, as ondas da água, o som). E ainda acrescenta: "Consiste apenas na emissão de uma imagem, de uma relação mental concreta entre fenômenos. Leonardo parece ter tido a consciência dessa espécie de experimentação psíquica" (p. 93).

Aliado ao modo intuitivo de apreensão dos fenômenos, desenhar significa, ainda, colocar-se à disposição de algo numa atitude de acolhimento e, ao mesmo tempo, estar exposto. Desse ponto de vista, podemos aproximar o fazer do artista e do analista com seu paciente. Ambos podem ser movidos por um desassossego, por pequenos sinais intuitivos que todos temos, mas, muitas vezes os desconsideramos. Pode ser um estranhamento, um sentimento não definido. Desse modo, no processo criativo de vários artistas estudados por Cecília Salles (2007, p. 54), como Federico Fellini, Julio Cortázar, entre outros, há momentos em que um sentimento, uma imagem, uma visão, podem vir "carregados" de algo indefinido, vago, que não sabemos o que é, mas que se fixa mais do que outro sentimento, descrito por esses artistas como "nebuloso", um estranhamento. Tais artistas, por exemplo, usavam cadernos de notas para registrar desenhos, apontamentos, lembranças, rastros de uma ampla rede associativa de seu próprio gesto. Fellini, em seu caderno de notas Il libro dei sogni (2007), desenhava cenários, personagens, sonhos, escrevia. O caderno recebe a primeira mão, o registro de uma ideia, de um sentimento, que se desdobra à medida que outra questão intervém e, ao se tornar diferente, pode gerar novos espaços e configurações, símbolos na mente do artista. Valéry (1999) descreve esse estado indefinido, como "estado de poesia", que, segundo ele, é de natureza irregular, fugaz, transitória. Porém, são estados extremamente fecundos, à medida que podem ser aproveitados e elaborados pelo artista para gerar um poema, um filme e, no caso do analista com o paciente, pode nutrir uma interpretação, dar visibilidade a uma experiência emocional transformadora.

No encontro analítico, esses momentos fecundos surgem, não raro, após a dupla ter podido sustentar muita dor psíquica. Como enfrentar e sustentar esse estado fugaz, de sonho, "evocado entre o sonhador e o objeto estético", "essa nuvem diáfana de não-saber"? Meltzer e Meg H. Williams (1993, p. 238) em Apreensão do belo, aprofundam essa reflexão do impacto estético, agora do ponto de vista da apreciação artística. Para esses dois autores, "manter o sonho tem a ver com uma congruência ou reciprocidade entre os objetos internos e objetos externos" com "pleno reconhecimento do espaço" e, também, com o processo de formação simbólica, que vai auxiliar a sustentação desse estado "de sonho" evocado.

Aprendi pela experiência pessoal, com esses e outros autores, que um dos pontos fundamentais do processo de formação de símbolos, e de criação de novos símbolos, é que ele se dá como manifestação de sentimento profundo e de profunda identidade com aquilo que se observa, numa "congruência simbólica entre objeto interno e externo", ou entre os objetos da própria mente. Aproximando essas afirmações do encontro psicanalítico, temos a questão crucial do método, ou seja, de como penetrar no mundo interno de alguém e sustentar as dificuldades decorrentes do mistério do "objeto estético" (Meltzer & Williams, 1993, p. 240). Como estabelecer uma ligação com nossos pacientes que evite a curiosidade intrusiva, os julgamentos, para gerar um espaço que permita o surgimento de algo inédito? Como suportar a turbulência gerada pelo embate de forças emocionais violentas, antagônicas, frente ao objeto estético, para poder penetrar nessa nuvem, que é "algo" e ainda não é nada?

Freud, logo no início de sua atividade clínica, intuiu que era preciso deslocar o olhar das coisas, para fazê-las dizer, para se aproximar e ter acesso ao não dito, ou ainda, seguindo o pensamento de Bion, àquilo que a mente ainda não processou, os assim chamados, "fenômenos protomentais". Entretanto, é importante enfatizar que o trabalho de usar os pensamentos para criar novos significados só é possível se somos acolhidos por uma mente, que nos coloca em contacto com o "mistério do objeto estético".

Theodor Adorno (1970) em Experiência e criação artística define o comportamento estético como "a capacidade de sentir estremecimentos":

A consciência sem o estremecimento é consciência reificada. Mas tal estremecimento, onde se move uma subjetividade sem ainda o ser, é o fato de ser tocado pelo outro. É a partir dele que se constitui o comportamento estético, em vez de se lhe sujeitar. Semelhante relação constitutiva do sujeito à objetividade no comportamento estético une o Eros e o conhecimento (p. 120).

 

3. Desenho no encontro analítico

O grafismo infantil desde muito tempo tem despertado o interesse de educadores, psicanalistas de crianças e outros estudiosos do assunto. O legado desses estudos é extenso. Sabe-se que na infância uma das manifestações expressivas vitais da criança é o desenho. Fruto de um complexo processo, já abordado anteriormente, o desenho, os rabiscos, as garatujas que as crianças fazem de forma aparentemente aleatória são vivenciados como um todo e não apenas como descarga sensório-motora. E isso em consonância com outras manifestações, como dançar, cantar, falar, ouvir e narrar histórias, que servem para expressar e afirmar um conjunto de vivências e dar sentido ao seu existir. Sabemos que o desenvolvimento da criança se estabelece aos poucos, fruto de um aprendizado complexo em que a experiência de continência materna constante desempenha um papel crucial no enfrentamento de angústias desorganizadoras, dos embates de amor e ódio, para o fortalecimento e o estabelecimento da reciprocidade entre a mente da criança, seus objetos internos e suas relações com o mundo. Nesse complexo conjunto que promove o crescimento, em que a criança pode explorar sua potência criativa, a brincadeira e o desenho desempenham um papel fundamental. E isso foi muito bem explorado por Winnicott (1975) em seu conceito de espaço potencial. Nessas atividades, os movimentos corporais da criança sugerem linhas em forma de círculos, retas em diferentes direções etc., que só podemos imaginar porque se manifestam entre o corpo e o ar. Porém, quando esses movimentos se expressam no papel ou em algum outro suporte, eles se configuram como desenhos de autoria da criança, que são resultantes de seu modo de ser.

Com respeito ao encontro analítico, é particularmente instigante o momento em que a criança desenha. Um aspecto a destacar é o fato de o desenho ser um modo de associar livremente, isso porque por meio de sua linha é possível ousar para explorar novos espaços e, assim, experimentar intensamente o viver criativo. Exemplo disso são os squiggles (jogo do rabisco) de Winnicott, que testemunham a intimidade entre analisando e analista pela atividade do desenho. Essa atividade permite estabelecer um espaço de comunicação criativa num contexto lúdico de busca de conhecimento e de gerar novos símbolos.

Esse tipo de complexidade relacionada ao uso e aos significados do desenho em diferentes níveis de apreensão requer do analista muita cautela e experiência pessoal. Tanto o desenho de um modo geral quanto o desenho infantil, não raro, suscitam ideias precipitadas no adulto, motivadas pela urgência de nomear, de atribuir juízos de valor ou, até mesmo, alimentadas por certos clichês. Nesse sentido, Edith Derdick (1989) ao estudar o grafismo infantil faz a seguinte observação:

O adulto se esforça para conseguir enxergar figuras nos desenhos das crianças; ele tem dificuldades de ‘permanecer em suspensão’. Sente uma necessidade imperiosa de nomear figuras, como se figuração fosse sinônimo de maturidade intelectual e habilidade motora. Não necessariamente. Existem desenhos de crianças de dois, três e quatro anos com estruturas geométricas e abstratas elaboradíssimas (p. 141).

Mas o desenho também pode ser pensado como expressão de fantasias inconscientes da criança, com seus significados simbólicos, a exemplo do que propõe Melanie Klein; ou, como sinalizador do funcionamento mental da dupla, como entende o psicanalista Antonino Ferro (1995). Para este psicanalista, o desenho que a criança apresenta no encontro analítico é entendido como "verdadeiro fotograma onírico do funcionamento do par naquele momento" (p. 46), frequentemente desconhecido por nós, que devemos compartilhar e assumir para alcançar o paciente onde ele está.

Para ilustrar essas ideias e fundamentos do desenho, com ênfase também no crescimento mental como uma função estética (seguindo o pensamento de Meltzer), pretendo apresentar alguns desenhos realizados por um menino de oito anos de idade, no terceiro ano de análise. Cabe esclarecer aqui, que esses desenhos foram feitos em três sessões consecutivas, e de início acompanhados de comentários descritivos. Posteriormente, os desenhos foram "dramatizados" e, aos poucos, essa dramatização se transformou numa narrativa mais complexa. Os desenhos realizados pela criança evocam um embate de forças emocionais turbulentas, de amor e ódio, de aprisionamento psíquico.

Para exemplificar, destaco um comentário de Daniel no começo de uma sessão:

– Antigamente aquela casa tinha sido mal assombrada.

Fico intrigada e pergunto que casa era aquela e o que a tornava mal assombrada. Daniel explica que era a casa do meu consultório e, em seguida, decide desenhá-la. Começa distribuindo as linhas pelo papel, conforme ilustrado na fig. I, e ajuntando comentários:

 

 

– Um muro de lanças de índio impossível de alguém entrar… tinha vidro no meio das lanças.

As lanças e outros elementos que ele vai agregando ao desenho formavam um conjunto de elementos aterrorizadores que, de acordo com ele, impediam o movimento de entrada e de saída daquela casa. Aqui, é relevante observar a ambiguidade sugerida pelas figuras: grade de lanças – que lembram o desenho sintético de árvores enfileiradas, num caminho; a planta fedorenta – evocando uma figura humana, ou o traçado da mão e dos dedos. Essa planta, situada atrás de um anteparo, com seus ramos e folhas, lembra também o movimento dos braços de uma figura humana.

Daniel completa esse desenho colocando na folha de papel uma rosa preta e uma cabeça de perfil. Esse conjunto de figuras foi colocado no centro da folha de papel e no espaço à esquerda. Já o campo direito foi ocupado pela grade de lanças, situada num amplo espaço vazio. Depois, Daniel acrescenta uma janela envidraçada, com uma lâmina quebrada, onde podemos ver uma caveira e uma luva, ou mão, ceifada.

O detalhamento do desenho é fundamental porque a ambiguidade das figuras evoca um feixe de sentidos evidentes e outros ainda inexplorados, secretos, que podemos acompanhar na sequência.

O desenho do exterior da casa está ilustrado na figura 1. Os desenhos das figuras 2 e 3 foram denominados de caixa assassina, ou o interior da casa mal assombrada. Daniel nomeia para a analista os vários objetos da caixa assassina, entre os quais estão alguns cortantes, outros venenosos, utilizados pela mão assassina, como instrumentos de crueldade e terror:

 

 

 

– Pia com sangue, as bebidas eram poção mágica, veneno e sangue, porta quebrada, cortina rasgada, cadeiras feitas de gilete, cadeira elétrica e uma mulher morta com uma faca grande no peito (deitada sobre uma mesa).

Entre essas figuras distribuídas pela página, Daniel acrescenta um quadrado, dentro do qual escreve a palavra "segredo", e esclarece para a analista que esse segredo não podia ser revelado. Completa a composição desenhando a mão assassina que, de acordo com ele, agia sem piedade, e em seguida, acrescenta o comentário:

– Os caras que moravam aqui eram psicopatas loucos que fugiram do hospício.

Afinal, o que a criança busca? Como suportar essas áreas de terror e de aprisionamento emocional?

Notamos no detalhamento turbulento dos desenhos e nas verbalizações caricatas e banalizadas o embate de forças violentas do conflito estético, tentativas de Daniel não se deixar arrastar para dentro de um filme de horror e ação. Mas, que tipo de parceria é possível estabelecer entre a criança e a analista? Quais os usos e as funções desse conjunto de desenhos de Daniel? Como passar do pesadelo ao sonho?

A partir do desenho 3, Daniel pede ajuda à analista para transcrever a história que ele iria inventar. Nesse momento se estabelece um tipo de parceria fecunda que o permite engendrar uma história inédita – tanto na elaboração de suas fantasias, como na interação com a analista. Daniel procura na analista o sonhador e não mais a intrusão controladora. Nessa aliança, novas buscas fomentam experiências mais integradas. Daniel introduz um elemento organizador, pois a história das crueldades passa a ser narrada e ilustrada em diversos capítulos. Ela é enriquecida por lembranças de situações anteriormente vividas com a analista e por acontecimentos do dia.

Não vou me deter nessa narrativa verbalizada por Daniel e nas suas elaborações. Quero destacar aqui a complexidade das relações entre os desenhos e os seus comentários. Em ambos estão esboçados o referido "conflito estético" (Meltzer & Williams, 1993), vale dizer, o tormento enfrentado para poder suportar a coexistência de movimentos destrutivos e amorosos inundando a mente, no impacto com o objeto estético, com suas qualidades conhecidas ou seus aspectos desconhecidos.

Do ponto de vista gráfico, é possível apreciar a variedade do movimento da linha sobre o papel, a distribuição no espaço, o ritmo, a composição e as diversas relações entre as formas. Ainda, é possível observar o modo pelo qual ele organiza os elementos do desenho e como esses elementos se desdobram, como se reorganizam num processo dinâmico de busca de novas configurações. Nesse particular sentir, imaginar, fantasiar, perceber e pensar se integram na experiência emocional interpessoal. E nesse contexto, a atividade de desenhar se transforma gradativamente em jogo simbólico. É o desenho como linguagem, em que o movimento das linhas permite a forja de novos espaços e significações. Assim nas figuras IV e V, exibidas na sequência, acompanha-se o desencadear de muitos diálogos entre a analista, o paciente e o próprio desenho. Nessa interação, nota-se que uma parte não enclausurada do self do paciente é capaz de observar os atos de crueldade e de terror, da sua curiosidade intrusiva e suas conseqüências destrutivas. O contacto emocional consigo mesmo, com seus objetos internos e externos se expande, numa perspectiva de conhecimento e responsabilidade pessoal. A partir daí, Daniel elabora o que até então era um mundo desconhecido para ele. E, assim, usa sua mão, sua mente a serviço de um processo criativo.

 

 

 

Nos primeiros desenhos, então, temos a apresentação de aspectos fragmentados, violentos, advindos da área psicótica, fomentado por ansiedades e fantasias onipotentes pré-genitais. Tais aspectos vão se mesclando àqueles elementos portadores de mistério, segredos, dando mais complexidade ao desenho. Por sua vez, o movimento e as variações da linha abrem espaços e aberturas ainda não habitados. São áreas silenciosas que contrastam com as vivências atormentadoras, descritas pela criança. A linha potente do desenho de Daniel percorre com liberdade os espaços do papel num tateio intenso e vivaz. Seus sentidos escapam ao senso comum, criam o inesperado, agregando conhecimento para o paciente e a analista.

Daniel comenta:

– A mão assassina, toma uma 51.

A mão assassina se liberta e se transforma.

– Aqui a mão leva um cérebro para o corpo.

E, mais do que isso, surpreende:

– Ela traz boas ideias para a cabeça.

A existência estática e absoluta dos elementos das figuras e objetos apresentados nos primeiros desenhos de Daniel torna-se dinâmica. Estabelece uma rede ampla de relações em que a intuição é capaz de suscitar múltiplas ideias, germinando conhecimento. É a aquisição da capacidade de distinguir símbolo e simbolizado, pela participação do self. Desse modo, Daniel é capaz de observar, examinar, interpretar, testar a realidade na relação consigo mesmo e com a analista. É o trabalho-sonho no processo transformador de sofrimento em dor mental, o conhecimento de si mesmo e a formação de novos símbolos.

 

 

Pelo exposto, percebemos que não existe um desenho solto, aleatório, desvinculado da relação com o outro. No caso desses desenhos de Daniel, eles não foram pensados a priori, nem eram definitivos, foram utilizados como ferramentas que tornam possível pensar, promovendo crescimento no trabalho da dupla analítica. Dessa perspectiva, o desenho aguça a curiosidade – e não a intrusão –, a intuição, a imaginação, favorecendo o diálogo dos objetos internos e destes com o mundo externo.

Considerei a natureza estética do método psicanalítico – de acordo com o pensamento de Bion e Meltzer – "a beleza do método" pelo qual a mente elabora as experiências emocionais turbulentas da vida, para poder sonhar. E mais, no conjunto desse trabalho, procurei enfatizar que o desenho na sua complexidade, é uma via de acesso tanto à expressão artística, como também, uma potência fecunda no que diz respeito ao encontro analítico. O desenho exige um tipo de atenção que consiste em olhá-lo, sem interpretá-lo, até que alguma luz emane para o observador. Nesse sentido, favorece novos caminhos de observação e de apreensão de fenômenos que necessitam ser restaurados e reinventados, e aqueles não ainda podem ser reconhecidos, pensados.

 

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Endereço para correspondência
Vera R. F. Montagna
Rua Gracindo de Sá, 71 – Jardim Paulistano
E-mail: veramontagna@uol.com.br

Recebido em: 10/05/2010
Aceito em: 4/8/2010

 

 

1 Trabalho apresentado em Reunião Científica, em outubro de 2009.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Membro do atual Comitê de Cultura da IPA.
3 Conceito de Jacob Levy Moreno amplamente desenvolvido em Psicodrama (Moreno, 1975, pp.159-160 e outras).
4 Giorgio Vasari (1511-1574), historiador, arquiteto e artista em "O primado do desenho", capítulo de sua obra As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos (1568).
5 O texto foi reproduzido por Jacqueline Lichtenstein, em A Pintura: textos essenciais, cap. "O Primado do desenho", (2006, pp. 19-22.).
6 É nessa direção que Pareyson (1993) também considera o sentido do termo "formar" – um fazer queé ao mesmo tempo invenção e "o modo de fazer".
7 Texto citado por Valéry, 1998, p. 91.

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