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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo dic. 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Um lugar para o sintoma na clínica psicanalítica1

 

A place for the symptom in the psychoanalytic work

 

Un lugar para el síntoma en la clínica psicoanalítica

 

 

Eva Maria Migliavacca2

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Professora titular no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho contém uma reflexão a respeito da função do sintoma na dinâmica do psiquismo, a partir da intersecção entre o campo da psicanálise e o de narrativas com valor de metáfora. O sintoma configura-se como uma porta de entrada para o encontro do indivíduo consigo mesmo. São também apresentados, como ilustração, alguns recortes extraídos da clínica.

Palavras-chave: Sintoma, Metáfora, Psicanálise, Mito, Édipo rei.


ABSTRACT

This paper contains a reflection on the function of symptom in the psyche’s dynamic, through an intersection of the field of psychoanalysis and the one of narratives with metaphorical value. Symptom is regarded as a front door for the individual to encounter himself. Clinical vignettes are also presented as illustration.

Keywords: Symptom, Metaphor, Psychoanalysis, Myths, Oedipus rex.


RESUMEN

Este trabajo presenta una reflexión sobre la función del síntoma en la dinámica del psiquismo, considerando la intersección entre el campo del psicoanálisis y el de las narrativas con valor de metáforas. El síntoma es considerado como una puerta de entrada al encuentro del indivíduo consigo mismo. Son presentadas algunas ilustraciones clínicas.

Palabras clave: Síntoma, Metáfora, Psicoanálisis, Mitos, Edipo rey.


 

 

Procurarei compor uma apresentação que contemple o tema proposto de modo sintético e suficiente, tendo em vista o tempo de exposição pré-determinado. Para isso, pretendo esboçar uma intersecção entre o campo próprio à psicanálise e narrativas cuja função equivale à da metáfora.

As metáforas possuem qualidades como clareza, precisão e descolamento de limites temporais com tal vigor, que se projetam no campo dos símbolos e irradiamse em infinitas direções. Consistem de representações cujo significado resulta ser perene e imorredouro. São modos de dizer algo que poderia ser dito de outra forma, mas não no instante em que foi dito.

Para o psicanalista, metáforas são úteis para substituir a exposição excessiva de material clínico, ajudando a melhor proteger os pacientes. No mais, são interessantes e divertidas, mesmo quando dramáticas.

As narrativas mitológicas estão incluídas entre as criações humanas com valor de metáfora; antes, os mitos propriamente as encarnam. Portanto, é especificamente deles que me valerei nesta exposição, mormente pelo fato de propiciarem incontáveis modelos para o psicanalista pensar sua função.

Qual a compreensão que um analista pode ter do sintoma? Talvez uma delas seja a de não perder de vista seu lugar de abertura de um caminho de investigação cujo final é desconhecido e imprevisível. Afinal, o sintoma indica algo que está além dele mesmo. Quando a terra está doente, estéril, não produz, queremos saber o que se passa, descobrir as razões e, quem sabe, possibilitar seu reflorescimento. Encontramos bela ilustração disso nas lendas arthurianas.3 Da mesma forma, quando os ventos se aquietam em Áulis,4 impedindo os guerreiros aqueus de zarparem para Tróia, silêncio nos ares e nas águas, há indicação de que algo oculto e de caráter maléfico, subjacente ao palpável, minava e impedia o desenrolar dos acontecimentos. Como saber, pergunta o herói, qual deus foi ofendido, qual a ofensa, quem ofendeu, como aplacar sua ira? Consulte-se o adivinho. Um crime, diz Calcas,5 um crime desequilibrador da ordem do universo – como de resto o é qualquer crime – fora cometido e precisava ser reparado. Somente a identificação do acontecimento criminoso permitiria a reparação e a recuperação de movimentos, ainda que não os mesmos do passado. Na clínica, se meu pequeno paciente está silencioso de um modo tal que eu o capto distante, deprimido e alheio, encaro a cena como sinal de uma perturbação que tolhe sua vitalidade e que precisa ser identificada para a reconstituição de uma dinâmica criativa.

Poderia falar sobre psicanálise propriamente, discorrer sobre seus princípios, sobre o método, a técnica; sobre funcionamento mental, conflitos, angústias, contradições, desejos, necessidades e recursos; poderia falar sobre desenvolvimento, teorias, a prática, discorrer sobre a função analítica e esclarecer um modo de ver e trabalhar tendo em vista os sintomas. No entanto, se eu apenas disser que Freud nos deu o fio de Ariadne, provavelmente tudo ficará claro em um instante.

Se eu contar, ou recontar, uma história que em idos tempos contou Ovídio (1988), a de que um dia, em uma época longínqua, tão antiga a ponto de não sabermos mais precisá-la, um jovem assumiu como tarefa enfrentar e vencer um monstro comedor de carne humana que vivia aprisionado nos subterrâneos de um palácio; que o rei desse palácio recebia um tributo anual de sete jovens moços e sete jovens moças para alimentar aquele monstro metade homem e metade touro. Se eu contar que Teseu ofereceu-se para compor esse grupo tendo em mente derrotar o Minotauro. E que ao chegar às portas do labirinto onde o Minotauro habitava, tão intrincado que era impossível sair dele, ali a jovem princesa Ariadne, apaixonada, entregou-lhe um novelo de lã para ele amarrar às portas do antro do monstro e desenrolar à medida que entrava, para não se perder; e deu-lhe também sua brilhante coroa para iluminar o caminho e conseguir depois voltar, o que de fato ele conseguiu…

Não seria esse um bom modelo para a tarefa do analista? Abrir caminho no labirinto do psiquismo e descobrir o que lá se oculta e se manifesta continuamente pela repetição dia após dia, ano após ano, de modos de funcionar que levam à estagnação mental, impedem a criatividade e o crescimento? E seria possível realizála sem respeito à realidade, discernimento, fé e coragem? Freud percebeu bem cedo elementos como esses – ainda que lhes tenha dado outros nomes – que constituem a luz e o fio de Ariadne, sem os quais seria insensato empreender a jornada para dentro do labirinto.

O mito mais conhecido pelos psicanalistas passou pelo crivo da mente iluminada de Sófocles, que o transformou em uma peça trágica, toda ela conduzida por sua mão firme, resultando em uma composição na qual inevitavelmente nos reconhecemos – mesmo com dor.

Em geral, passamos rapidamente pelo início de Édipo rei. A força da peça é tão extraordinária que nos envolvemos com o drama e esquecemos tudo o mais.

Sófocles apresenta o personagem Édipo no ponto médio de sua vida. Os acontecimentos decisivos já se haviam realizado. Entretanto, tudo parecia correr muito bem: Tebas prosperara, livre do flagelo da Esfinge, Édipo governava a cidade, tivera filhos com a rainha, era amado e honrado pelo povo, sua fama de adivinho lhe granjeara recompensas.

Durante vários anos, porém, foi como se a vida estivesse em suspensão. Algo sinistro ficara imóvel nas sombras e já era hora de começar a se movimentar. Todo ato humano tem consequências e não seria Édipo que passaria incólume por essa lei, uma lei não escrita, mas inscrita no psiquismo e evidenciada pela experiência.

Os velhos tebanos não compreendem o que se passa. A cidade era temente aos deuses, piedosa, não negligenciava os ritos sacros. Por que, então, a peste? Um indicativo de que a cidade estava doente, um cancro aberto, poeira sob o tapete, um crime não reparado. Algo corrói por baixo, algo ainda desconhecido, além do visível, não se sabe o que a provoca, um mal oculto.

O mal evidencia a perturbação de um equilíbrio, cuja restauração passa por um processo investigativo acurado. Como no âmbito corporal, por exemplo, a febre é provocada por um mal, mas em si mesma ela não é um mal, é um aviso. Uma infecção em andamento pode contaminar todo o corpo, adoecê-lo por inteiro e levá-lo à morte.

É esse estado de coisas que se apresenta a Édipo e aos tebanos no início da tragédia. Sófocles introduz, portanto, um problema – uma dinâmica não harmoniosa – cujas origens estão para ser esclarecidas.

Como fazer? Consulte-se um oráculo. O que diz o oráculo? Há um assassino impune. A peste é o sintoma da impunidade. Não o é do assassinato. A impunidade configura uma situação artificial, inconclusa, não evoluída, em suspenso. Há um preço a ser pago e a conta pendurada está em vias de ser apresentada. Enquanto não fica claro quem é o devedor, a conta é paga por todo o povo.

Édipo dispõe-se a dar andamento a uma investigação. Quem é o assassino de Laio? Quem é o assassino do rei? É preciso descobrir, senão toda a cidade doente pode perecer. Ele começa uma investigação no escuro, sem saber que corria para o encontro com sua verdade, tão distante ele se encontrava de si mesmo.

Um dia, em seu passado, ele ficara tão horrorizado com outro oráculo, "matarás teu pai e casar-te-ás com tua mãe", que tudo o que pôde fazer foi fugir, correndo loucamente na direção contrária à que teria sido uma fuga bem-sucedida.

A fuga de Édipo pode ser compreendida como representação da fuga, tantas vezes encetada, ao reconhecimento de nossa própria realidade mental. O sintoma resulta ser a evidência da distância entre nós mesmos e nossa vida psíquica e expressa a equivalência no mundo externo de conteúdos do mundo interno.

Nesse sentido ele é um desvio de caminho na bifurcação de estrada de nosso desenvolvimento pessoal.

Sófocles vai, passo a passo, conduzindo seu personagem com reviravoltas, até o momento em que Édipo percebe-se implicado em acontecimentos inenarráveis pelo extremo de dor e horror. Ele não só era o assassino do rei, mas parricida e incestuoso. A comoção invade a assistência que fica inundada de compaixão por Édipo e por si mesma, pois há forte identificação com o personagem que realiza fantasias existentes na mente do espectador no plano inconsciente – assinala Freud.

Sófocles capta questões fundamentais, cuja visão é terrivelmente dolorosa e beira o insuportável. A tragédia mostra um processo desenrolando-se por aproximações. Ela evidencia que podemos chegar ao ponto, mas não de chofre. Podemos começar pela reação expressa por uma palavra que contém a junção – sym – e a separação – toma.

Desdobra-se, então, um trágico processo de investigação, modelo do trabalho analítico. Parte-se de um ponto visível: a peste, assim como visível é o sintoma. Os pacientes vêm com e por causa de sintomas, mesmo inespecíficos. E por que trágico? Porque não se escapa de si mesmo, nunca. Pode-se decidir nunca enfrentar-se, é sempre possível evadir-se, isso sim. Contudo, não há como realmente deixar de conviver com quem se é.

Há pacientes que nos chegam, resolvem não avançar e interrompem o trabalho. Tantas vezes pensamos que se deve a falhas nossas, à inadequação de interpretação, a equívocos de apreensão. Não necessariamente. Simplesmente não é fácil renunciar a soluções já instaladas, não por serem confortáveis, mas porque há que se colocar algo no lugar e esse algo é a investigação sofocleana. E a dor a ser enfrentada? O ódio, o medo, o horror? O sintoma é familiar. Reformular, mudar de vértice, reorientar o rumo, tomar nova direção, tudo isso exige muito e relativamente poucos dispõem-se de fato.

A peste é um elemento muito útil, assim como uma afecção psicossomática, por exemplo. É um estímulo para aventurarmo-nos a entrar na labiríntica dinâmica psíquica do indivíduo que vive um sofrimento com o qual não se sente bem equipado para lidar, ou de fato não está suficientemente bem equipado. O sintoma é como um sinal que completa um ciclo mórbido, fechando-o. O ciclo pode ser reaberto para que nele se incluam novos elementos, de tal forma que sua configuração venha a se modificar. Um elemento novo é a reparação.

Sófocles intuiu. Ele não abandonou Édipo errando na Grécia, consumido de dor e cego. Sófocles recuperou-o, teve vida bastante para isso, felizmente, reescrevendo seu fim mítico em um processo luminoso de reconciliação com a própria história, com a própria verdade, em "Édipo em Colono" (1959). Aos noventa anos ele revisita seu personagem mais amado e expõe os efeitos da mudança catastrófica que se operou nele com a descoberta de sua realidade plena. "Édipo em Colono" apresenta o sábio herói ao término de sua vida, em outro patamar de evolução, inteiramente humano nos sentimentos e ações.

O mito como narrado por seus ecos na Ilíada, Odisseia e outras fontes menos nobres, mas igualmente preciosas, dá a Édipo um destino diferente daquele concebido por Sófocles. O poeta, no entanto, com sua habilidade e fineza de espírito pessoal, pode apreender e explicitar em poesia e teatro as muitas camadas da mente, que se interpenetram e influenciam como uma espiral em contínuo movimento e transformação. Nessa peça, como também em outras, identificamos elementos que nos fazem pensar a experiência real que vivemos como pessoas comuns – pois é o que somos – e como analistas interessados em conhecer e trabalhar com outras pessoas comuns.

Descobrimos o quanto a mente é plástica e inventiva na busca de soluções que evitem a visão da realidade íntima, dolorosa, culposa e desamparada. Fazemos estripulias para nos evadirmos da dor mental. Só conseguimos chegar a ela aos poucos e à medida que construímos recursos de tolerância e continência. Primeiro fazemos o equivalente a uma peste, diria Sófocles. A peste é devastadora, a cidade fica paralisada por ela e é preciso descobrir como salvá-la, descobrir o que foi que ofendeu Apolo e como aplacá-lo. Consulte-se um oráculo, assinalei acima. Oras, consulte-se um analista. Consulte o analisando a si mesmo. Quando o incômodo é excessivo ou a solução não serve mais, somos impelidos a enfrentá-lo para continuarmos a vida. Só então a história começa ou avança. Fazemos, como Sófocles fez com Édipo, um caminho retrospectivo. Começamos da superfície e vamos cada vez mais para trás ou para todos os lados, unindo cenas, fazendo associações, descobrindo e redescobrindo experiências emocionais e reais esquecidas, escamoteadas, negadas, disfarçadas pelos mais inventivos artifícios, perdendo-nos e reencontrando-nos em um infinito labirinto, compondo um mosaico cuja completude, na verdade, nunca se logra alcançar inteiramente.

Uma consequência possível é a conquista de certa autonomia em relação à compulsão à repetição – esse que foi um dos achados mais extraordinários de Freud (1920), se por mais não fosse, suficiente para evidenciar sua estatura de investigador do psiquismo.

Às vezes o sintoma não é tão visível quanto uma peste, é bem mais sutil. Revela-se, por exemplo, em uma paciente cujo contato humano é muito precário, apesar de grande sucesso social. Assim como coleciona namorados, a quem usa e dispensa indiscriminadamente, também o que eu lhe digo é mastigado, triturado, imediatamente dispensado com o equivalente a um "virar as costas", sem nada reter para alguma reflexão. Um dia eu lhe disse algo que a tocou a respeito da necessidade de calor humano que eu percebia nela e da mistura de desejo e temor de que eu percebesse como ela se sentia; ela respondeu apressada "sim, sim, sim". Eu disse então: "Você não confia que nós possamos realmente estabelecer um relacionamento próximo, íntimo e significativo e conversar a respeito?" Ela se comoveu e após curto silêncio, disse: "Isso aqui, com você, é mesmo uma coisa muito íntima. Acho que agora eu sei por que faço análise. Eu nunca deixei ninguém chegar muito perto. E nunca cheguei muito perto de ninguém." E complementa: "Tem uma coisa quebrada em mim. E eu preciso consertar".

Se o vínculo, ou antes, a capacidade de vincular-se está quebrada, consertar seria restaurar essa capacidade, da qual depende fortemente a qualidade da relação dela consigo mesma e também comigo. Seu comportamento apenas indica a dor subjacente, oculta pelo sucesso social e sexual.

A meu ver, quando se fala em contemporaneidade, perturbações contemporâneas, psicanálise do contemporâneo – isso significa pouca coisa. Acho que contemporâneos são, na verdade, os sintomas. Os invariantes, como definiu Bion (1965), permanecem. Certamente, sofremos fortes influências do ambiente, que facilitam ou dificultam nosso desenvolvimento nos mais variados graus. As dores humanas, no entanto, repetem-se: a necessidade de amar e sentir-se amável, mais do que de ser amado – pelo menos após certa época da vida – a precisão de constituir uma boa autoestima, a busca pela realização pessoal, são questões que acompanham o indivíduo humano em qualquer época e circunstância.

O sintoma aponta para o desconhecido. Seja mais gritante ou mais sutil, seja em atitudes recorrentes autodestrutivas, por vezes despercebidas na vida social, seja por intermédio do corpo, sempre suspeitamos de algo de que se foge por dor ou por carência de recursos.

Corremos o risco de nos impressionarmos demais com o barulho feito em torno de perturbações como anorexia, bulimia, pânico, drogadicção, depressão, inclusive esquecendo-nos de que Freud já havia descrito tantas delas no começo do século passado.

O problema do analista consiste em ultrapassar tais aparências e buscar a dinâmica mental inconsciente que, ao fim e ao cabo, é a fonte do sofrimento visível. Uma mocinha chegou a mim tomada pelo que ela denominou pânico. Após alguns anos em análise reconhece e verbaliza aquela crise extremamente dolorosa como uma sorte que ela teve na vida, pois a trouxe à análise, desafogou tensões internas profundas e devastadoras, e abriu caminho para que ela pudesse vir a se reorganizar internamente em termos novos em relação àqueles com os quais se habituara.

O sintoma não deve ocupar o analista por muito tempo. Deve ocupá-lo naquilo que lhe compete providenciar para que o analisando consiga pelo menos preservar a vida biológica e, para isso, conta também com profissionais de outras áreas da saúde, quando necessário.

Ficar na posição de quem vive e observa o que vive, nomeia, identifica, formula e dá a conhecer a outrem aquilo que percebe, requer desenvolvimento contínuo de recursos internos. Aliás, isso é fundamental, uma vez que o analista analisa seu paciente para que um dia ele possa ir embora e tratar da vida – eventualmente, analisar outros.

Então, o psicanalista não é tão interessado em psicanálise. Ele é interessado em gente, em pessoas, ou, antes, na sua própria mente e na dos outros, em como a mente funciona e, ainda, em um campo específico, o da experiência emocional no encontro com seu paciente. Não é o campo da cognição e nem o intelectivo – ainda que ocupem lugar próprio e também fundamental. Acima de tudo, o analista focaliza seu interesse em examinar como se dá uma relação humana, sendo ele mesmo um elemento central de sua investigação. Como Édipo.

A natureza humana é mais do que os indivíduos, ainda que somente neles ela se revele. Como seres humanos comuns, somos movidos por rivalidades, pela arrogância, pela ânsia de poder, por inveja, ganância, ódio; mas somos também capazes de generosidade, de compreensão, de criações artísticas, da medicina, de amar o belo. Conseguir aceitar e lidar com essa grande oposição – ou, como diriam os gregos, conciliar o deus e o criminoso dentro de si – pode levar o indivíduo a ser mais inteiro e a usufruir melhor de todas as suas potencialidades.

Essa tarefa, na verdade, começa muito cedo e estende-se pela vida toda. A psicanálise não é um fim, mas um meio pelo qual pode-se ampliar a base para a vida adulta, cuja consolidação não aconteceu na infância. Há, no mundo de hoje, muitas ofertas de soluções ora mais ora menos rápidas para o sofrimento humano. A proposta psicanalítica é de conhecimento e de melhor percepção de quem se é e de como se lida com as exigências da vida, tanto internas quanto externas. A expectativa é de que o resultado seja enriquecedor para o indivíduo e que isso reverta também para o campo social.

E as teorias? São formulações elaboradas a partir de observações feitas com o uso do método psicanalítico. Ou, antes, o analista observa e vive plenamente a experiência; só então formula conceitos que podem orientar o olhar, mas não aprisionálo. Certamente, isso implica insight. Se os conceitos aprisionam o olhar, há o risco de que se perca a abertura necessária para novas observações e novas teorias ou, como diz o poeta, para nomear "personagens soltos à espera de um autor" (Pirandello, 1993).

O objetivo da psicanálise pode ser definido como sendo o de revelar a face humana, retirando-a das sombras inconscientes que a ocultam, mas não neutralizam sua força, sendo os sintomas um aceno facilitador. Considerando a prática clínica, há alguma chance de, com isso, encontrarmos nosso ser real e desabrochá-lo, assim como de ajudar outros nessa labiríntica empreitada. Daí pode-se pensar a psicanálise como um instrumento para se chegar às pessoas, sendo a primeira o próprio analista.

Por isso, pode-se reconhecer que há quem use as pessoas para fazer psicanálise; e há quem use a psicanálise para chegar às pessoas. Essa distinção é um divisor de águas. Resta ver qual a opção verdadeira de cada um de nós.

 

Referências

Bion, W. R. (1965). Transformations. London: Karnac.         [ Links ]

Freud, S. (1980). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 18, pp. 17-90). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Pirandello, L. (1993). Sei personaggi in cerca d’autore. Roma: Tascabili Economici Newton.

Ovídio Nason, P. (1988). Las metamorfosis. Madrid: Espasa-Calpe.         [ Links ]

Sófocles (s.d.). Rei Édipo. In Sófocles, Teatro grego (pp. 43-90). São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Sófocles (1959). Edipo en Colono. In Sófocles, Tragédias: Edipo rey e Edipo en Colono (pp. 118-201). Barcelona: Alma Mater.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Eva Maria Migliavacca
Rua Joaquim Antunes, 490, cj. 12 – Pinheiros
05415-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3062-3177
E-mail: emiglia@usp.br

Recebido em: 5/9/2010
Aceito em: 6/10/2010

 

 

1 Este trabalho foi apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise em 2009, com modificações e sob o título sugerido pelo congresso "Concepção Psicanalítica do Sintoma".
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Professora titular no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
3 Quando o Rei Arthur adoece e se recolhe, a terra seca e não dá frutos até que a origem do mal seja sanada.
4 A frota dos aqueus reuniu-se em Áulis antes de partir para a guerra. Eurípides põe em cena o drama
que ali se desenrola, na esplêndida tragédia Ifigênia em Áulis.
5 Calcas é o adivinho da épica, sobretudo da Ilíada, assim como Tirésias o é da tragédia.

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