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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo Dec. 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Sobre a natureza e função do currículo na formação analítica1

 

On the nature and function of the curriculum in analytical training

 

Sobre la naturaleza y función del currículum en la formación psicoanalítica

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti2

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Docente do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do texto freudiano "A questão da análise leiga" o autor re-situa o currículo da formação psicanalítica em seu contexto originário, isto é, num espaço fronteiriço e dialógico com as humanidades. Ressalta a importância do tripé básico da formação que implica em duas áreas privadas, análise e supervisão, e uma área pública, os seminários teóricos e clínicos, enfatizando que é justamente esta última que tem uma função interpretante das transferências privadas que seriam as responsáveis pelas doenças institucionais.

Palavras-chave: Restos transferenciais, Privado, Público, Sacralização, Contemporâneo.


ABSTRACT

Following the Freudian article "The question of lay analysis", the author restores the curriculum to its original context, that is, a frontier-like and dialogical space with the humanities. He stresses the importance of the training’s basic tripod, which implies two private spaces – analysis and supervision – and a public space – the theoretical and clinical seminaries – emphasizing that it is precisely the latter that has an interpretative function of private transferences, often responsible for institutional pathologies.

Keywords: Transferential remains, Private, Public, Sacralization, Contemporaneous.


RESUMEN

Partiendo del texto freudiano El psicoanálisis "silvestre", el autor resitúa el currículum de formación psicoanalítica en su contexto originario, o sea, en un espacio fronterizo y dialógico con las humanidades. Destaca la importancia del trípode básico de formación que implica en dos áreas privadas, análisis y supervisión, y un área pública, los seminarios teóricos y clínicos, enfatizando que es justamente esta última la que tiene una función interpretante de la transferencia privada que serían las responsables por las patologías institucionales.

Palabras clave: Restos transferenciales, Privado, Público, Sacralización, Contemporáneo.


 

 

1. Em 1926, Freud escreve e publica "A questão da análise leiga", cujo subtítulo é "Conversações com uma pessoa imparcial", texto no qual vai descrevendo a um interlocutor imaginário o que é a Psicanálise e o que é um psicanalista e o porquê da especificidade da formação psicanalítica. Naquele momento, dizia ele haver dois institutos de formação, um em Berlim e outro em Viena, e um terceiro prestes a ser inaugurado, em Londres. Naqueles lugares

os candidatos à formação eram submetidos à análise, recebiam instrução teórica mediante conferências sobre os assuntos que eram importantes para eles e desfrutavam da supervisão de analistas mais velhos e mais experimentados. (Freud, 1926/1977, p. 258)

E que

Se [o que pode parecer fantástico hoje em dia] alguém tivesse de fundar uma faculdade de psicanálise, nesta teria de ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de medicina: juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre como a nossa principal disciplina, haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual e familiarização com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a instrução analítica abrangeria ramos de conhecimentos distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. (Freud, 1926/1977, p. 278)

Estava aí colocada de forma simples e direta a importância e a natureza do famoso tripé da formação psicanalítica, e que vem desempenhando papel central não apenas na formação dos analistas desde então, mas também e principalmente nas ferrenhas lutas internas nas mais variadas instituições psicanalíticas desde então. Ultimamente, de uns quinze anos para cá, tem-se falado de uma quarta perna – o clima institucional –, mas no meu modo de ver, ele é apenas decorrente do modo como cada um dos pés originais é tratado e experienciado dentro de cada instituição específica, isto é, do balanço que se dá entre análises de formação, supervisões e seminários teóricos clínicos. Se há uma ênfase em qualquer um dos elementos anteriores, o equilíbrio da edificação se altera, com consequências nefastas seja para a formação do analista seja para a instituição.

2. Se examinarmos atentamente o tripé básico da formação, nos daremos conta de que ele se compõe de duas partes privadas – análise e supervisão – e uma pública – os seminários teóricos e clínicos. E é justamente essa coexistência entre privado e público que dá o tom especial e único da formação do psicanalista, definindo de algum modo o lugar do psicanalista como este "topos outopos3", um lugar terceiro, por assim dizer, um lugar instável, uma "terceira margem do rio4. Se a análise e a supervisão são por excelência o lugar das transferências elas podem muito bem servir como facilitadoras das estabilizações transferenciais dentro das instituições; os seminários clínicos e teóricos, por se situarem no registro da "pólis" e não do "oikos"5, carregam em si o potencial interpretante daquelas cristalizações transferenciais inevitáveis em toda análise e em toda supervisão. Pois mais do que as diversas correntes teóricas são esses restos transferenciais que, sombreando melancolicamente cada analista dentro de sua instituição, são os responsáveis maiores pelas criações de subgrupos totêmicos dentro dela. Para além das ideias em questão, sejam elas as de Freud, Klein, Bion, Winnicott ou Lacan, o organizador das fratrias dentro da instituição psicanalítica é o resto transferencial que imanta de modo melancólico e fetichizante a figura de determinados analistas dentro da instituição. Sacralizados, revestidos com o mana sagrado e elevados a categoria de "pai da horda" um conluio místico se estabelece entre cada um destes analistas e os demais componentes de seu grupo. Como se dá esta consagração? Por uma potencialização grupal dos restos transferenciais de cada análise e supervisão pessoal. Há sempre uma transferência em jogo na eleição de qualquer pensador. Se analista e analisando desenvolvem esta transferência para com o mesmo autor, seja ele Freud, Klein ou Bion, ficará sempre um resto transferencial ininterpretável nesta análise que, se propaga para fora do setting analítico, e para dentro da instituição. A submissão neste caso passa sempre pela análise interminável – aquela onde a transferência pessoal é intensificada e não interpretada – (que se inicia na análise de formação e continua em posteriores reanálises) tendo como consequência nefasta a criação de espaços apolíticos dentro da pólis institucional, pois sua força organizadora e constituinte é totêmica e, portanto, pré-histórica.

3. É aí que o currículo exibe sua máxima importância dentro do tripé. Não apenas por seu caráter interpretante das transferências privadas mas também pela sua natureza democrática e legisladora. Ao contrário das análises e das supervisões, é o currículo da formação aquele que, definindo por escrito o estatuto de inserção de cada analista dentro da instituição, vai situá-lo numa relação não doméstica com seus pares. Por ser a única expressão pública, isto é, reflexo da instituição como um todo, ele funciona para o Instituto assim como a ágora funcionava para o cidadão de Atenas. Ao definirmos um currículo de formação, necessitamos ter em mente até onde ele é favorecedor ou dificultador de um pensamento crítico, democrático e não religioso, o pensar psicanalítico por excelência. Que é o único que remete ao lugar originário da psicanálise e por isso mesmo possibilitador de sua refundação.

4. O que deve ser de leitura e estudo obrigatório e o que deve ser optativo numa formação psicanalítica? É a pergunta que está no âmago das considerações de todo instituto de Psicanálise e a qual cada um dá uma resposta segundo seu momento histórico. Pois a "tradição" é sempre "carregada" pelo momento histórico em que ela é considerada. Eu não pesquisei para este trabalho as transformações curriculares que ocorreram desde a primeira formatação (no Instituto de Berlim creio eu) ao longo destes quase cem anos de existência dos institutos de Psicanálise da IPA mas penso que isso deva ser bastante esclarecedor para se pensar algo como a "História da Formação do Psicanalista". Mas participei de sete Comissões de Ensino em nossa Instituição, em uma delas como secretário e em outra como diretor, além de ter tido várias participações e funções dentro da IPA em assuntos relacionados à formação nestes últimos vinte anos, tendo feito parte da Comissão de Ensino dirigida por Sonia Azambuja, que pensou e elaborou o nosso atual currículo. Naquele momento histórico, se bem me lembro, o que mais pesou para que se chegasse a atual formatação foi a ideia de um currículo que abrigasse as diversas tendências já existentes em nosso grupo psicanalítico – a nossa tradição, por assim dizer – e que também deixasse um espaço aberto, um espaço potencial, para aquilo que ainda não estivesse articulado ou ainda não pensado. E que sobretudo, estimulasse cada analista em formação a construir de forma singular seu percurso. Também foi essencial uma queixa onipresente dos candidatos de então: a de que os estudos de Freud vinham sendo colocados em segundo plano, se não na letra, na forma em que eram tratados. Freud parecia ser a única unanimidade. Por isso, obrigatório, em uma extensão considerável. Será que quinze anos passados, há alguma mudança neste sentido?

5. Também vi com muitos bons olhos, a ampliação feita pela Comissão de Ensino da Diretoria de Nilde Parada Franch, a que se deu o nome de "Formação Continuada". Não apenas pelo fato de "dar abrigo" aqueles candidatos que viviam numa "zona de exceção" mas fundamentalmente por se colocar como cifra da ideia de que um psicanalista não termina nunca de se formar. Ideia que deve ser levada em sua radicalidade, penso eu. Como realizar isso? Hoje penso que há dois outros eixos temáticos que deveriam ser obrigatórios numa formação psicanalítica. Não serão fáceis de serem realizados mas essenciais que neles pensemos, enquanto grupo formador. O primeiro deles seria um estudo crítico da história dos conceitos psicanalíticos e de seus autores nestes últimos cem anos. Aqui caberia uma reflexão a respeito das migrações dos conceitos seja no tempo, seja nas variadas escolas, em decorrência das cristalizações transferenciais que naturalmente ocorrem em qualquer grupo. Pois como escreveu Terry Eagleton (1981) interpretando Walter Benjamin, importante crítico contemporâneo, em seu livro Towards a Revolutionary Criticism:

O que é transmitido pela tradição não são "coisas" e muito menos "monumentos", mas situações – não artefatos solitários mas as estratégias que os constroem e os mobilizam. Não é que nós constantemente reavaliemos a tradição; tradição é a prática de incessantemente ir escavando, curando, violando, descartando e reinscrevendo o passado. (p. 59)

O importante livro de Roustang, Um destino tão funesto, bem como as reflexões de Piera Aulagnier, em Sociedades de psicanálise e analistas de sociedade poderiam servir de operadores de referência neste sentido. O outro eixo implicaria em resituar a Psicanálise no seu lugar originário, isto é, em seu campo natural e dialógico com as demais humanidades, como definiu Freud no texto acima citado. Pois se a delimitação do campo de qualquer saber possibilita um aprofundamento de seu conhecimento, ele traz consigo sérios riscos. Num mundo que se mostra cada vez mais complexo, parece-me evidente que a formação do psicanalista deve apontar sempre para a contemporaneidade pois só se faz psicanálise no presente. E o psicanalista só existe enquanto tal se é contemporâneo. E que para ser contemporâneo precisa estar em contato não apenas com a fala e o pensamento de outros analistas mas, como fez Freud, em diálogo constante com a literatura, com a filosofia, com a antropologia e também com as neurociências. Enfim, ser uma pessoa inserida no cotidiano do mundo, isto é, na cultura. Se não temos em nosso quadro docente, colegas que sejam capazes de coordenar seminários nessas áreas, o Instituto poderia fazer parcerias com a Universidade, seja trazendo experts nessas áreas, seja abrindo a possibilidade do analista em formação participar de cursos dentro da Universidade. Seria, em última instância, quase que levar ao pé da letra a ideia freudiana de que ser psicanalista é se arriscar na e pela impossibilidade.

 

Referências

Agamben, G. (2009). Che cosa è Il contemporâneo? In G. Agamben, Nudità. Roma: Nottetempo.         [ Links ]

Aulagnier, P. (1990). Sociedades de psicanálise e psicanalista de sociedade. In P. Aulagnier, Um intérprete em busca de sentido. (Vol. 1, pp. 59-100). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Eagleton, T. (1981). Towards a revolutionary criticism. Norfolk: Thetford Press.         [ Links ]

Freud, S. (1977). A questão da análise leiga. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 22). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926)        [ Links ]

Roustang, F. (1976). Um destin si funeste. Paris: Minuit.         [ Links ]

Guimarães Rosa, J.G. (1994). Terceira margem do rio. In J.G. Guimarães Rosa, Ficcção Completa. (Vol. 2, pp. 4009-4413). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marcio de Freitas Giovannetti
Rua Itacolomi, 601 cj 33 – Higienópolis
01239-020 São Paulo, SP
E-mail: nnetti@uol.com.br

Recebido em: 4/8/2010
Aceito em: 6/10/2010

 

 

1 Trabalho apresentado em reunião na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP em maio de 2010.
2 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Docente do Instituto de Psicanálise da SBPSP.
3 "Topos outopos" significa algo como um lugar fora do lugar.
4 "Terceira margem do rio", usada aqui no sentido de um lugar intermediário, instável. Título de um conto de João Guimarães Rosa (1994).
5 Oikos em grego significa o espaço doméstico contrapondo-se a pólis, o espaço público.

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