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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo dic. 2010

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O ensino da psicanálise na universidade: do legado de um impossível à invenção de possibilidades1

 

Studying psychoanalysis at the university: from the legacy of an impossible to the invention of possibilities

 

La enseñanza del psicoanálisis en la universidad: del legado de un imposible a la invención de posibilidades

 

 

Maria Lúcia Castilho Romera2 I, II, III ; Cérise Alvarenga3 IV, V

I Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
II Centro de Estudos da Teoria dos Campos CETEC
III Professora Associado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia
IV Psicóloga da Associação Municipal de Assistência Social (BH)
V Projeto Quik Cidadania (Nova Lima)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho aborda aspectos do ensino da psicanálise. Inicialmente, algumas considerações são feitas sobre a transmissibilidade possível de um saber em que a condição de efemeridade erige a solidez de seus achados. Considerar-se-á o pensamento de Freud acerca desta questão seguido, particularmente, pelos de Piera Aulagnier e Laplanche. Da tensão entre eles um emergente se desdobrará: a postura interrogante-interpretante. Nesta perspectiva, o modelo metodológico interpretativo por ruptura de campo, no sentido delineado por Fabio Herrmann lança uma outra modalidade de inter-relação entre o saber que interroga (teoria) e o saber da interrogação (método). Finalmente, duas experiências de ensino na Universidade, a partir das quais se delineia um esboço da encarnação de tal método, destinará o texto à reflexão de um possível ensino interpretante.

Palavras-chave: Psicanálise, Ensino, Interpretante.


ABSTRACT

The present work deals with aspects of the psychoanalysis teaching. Firstly, some considerations are made under the possible transmissibility of knowledge where the condition of ephemerality erects the strength of its findings. Freud’s thought will be considered about this issue followed, particularly, by the ones from Piera Aulagnier and Laplanche. From the tension among them, an emergent will unfold: the questioner-interpretant posture. On this perspective, the interpretative methodological model by field rupture, in the sense outlined by Fabio Herrmann launches another modality of interrelation between the knowledge that questions (theory) and the knowledge of interrogation (method). Finally, two teaching experiences at the university, from which a sketch of the incarnation of such method is outlined, will lead the text to the reflection of a possible interpretant education.

Keywords: Psychoanalysis, Education, Interpretant.


RESUMEN

El presente trabajo aborda aspectos de la enseñanza del psicoanálisis. En principio, algunas consideraciones son hechas acerca de la transmisibilidad del saber donde la condición efímera establece la solidez de sus hallazgos. Será considerado el pensamiento de Freud acerca de esta cuestión seguido de Piera Aulagnier y Laplanche. De la tensión entre ellos un emergente se desdoblará: la postura indagativo-interpretante. Desde esta perspectiva, el modelo metodológico interpretativo por ruptura del campo-inconsciente, en el sentido planteado por Fabio Herrmann proyecta una otra modalidad de inter-relación entre el saber que interroga (teoría) y el saber de la interrogación (método). En el final dos experiencias de enseñanza en la universidad a partir de la que se dibuja un esbozo de la encarnación del método interpretativo, empleará el texto a la reflexión de una posible enseñanza interpretante.

Palabras clave: Psicoanálisis, Enseñanza, Interpretante.


 

 

Introdução

Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões impossíveis quanto
às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios.
As outras duas conhecidas há muito tempo, são a educação e o governo.
(Freud, 1939/1969a, p. 282)

 

É extremamente polêmico o problema do ensino, da transmissibilidade da psicanálise.4 Vários pontos de vista se confrontam, desde aqueles que abordam o caráter inefável deste saber, a irredutibilidade de sua transmissão à experiência analítica, até aqueles que sugerem a estruturação de um currículo que possa apresentar didaticamente os seus conceitos teóricos, métodos e técnicas.

Ensinar psicanálise fora do contexto da formação analítica tem sido cada vez mais frequente. O conhecimento produzido em psicanálise, desde sua invenção por Freud e, particularmente com Freud, até sua reinvenção por inúmeros autores, tornou-se patrimônio cultural da humanidade e influenciou sobremaneira a concepção de ciência, abalando o paradigma dominante da produção do conhecimento. Ao revolucionar a concepção de sexualidade, de mundo e de razão ou de racionalidade, ao mostrar ao homem o absurdo de sua constituição, e que nem sempre se deseja aquilo que se quer, é natural que desperte interesse e exerça influência no pensamento contemporâneo.

A psicanálise está hoje no âmbito cultural nas mais variadas formas e está, antes de tudo, na clínica psicanalítica onde sempre esteve, mas que talvez em função de uma padronização apartou-se da extensão de suas possibilidades.5

Com isso, houve uma ampliação do seu ensino. Em outro artigo, Romera (1994) considerou, a partir do que Piera Aulagnier (1986) chama ensino "aberto" de psicanálise, os riscos de deformação e empobrecimento implicados em uma difusão extremamente ampliada ponderando sobre o outro lado de tal questão, ou seja, o enclausuramento de um saber no limite estrito de si mesmo.

Ante essa complexa tessitura de problemas implicados no ensino da psicanálise é importante ensejar movimentos intertextuais, nos quais se possa entrelaçar saberes e práticas confluentes na busca de uma ampliação do alcance deste ensino para além dos horizontes já estabelecidos. Ou seja, na direção da aquisição possível do legado freudiano: o legado de um impossível.

Piera Aulagnier (1986) considera ser um "modelo metodológico" o que pode ser ensinado fora da experiência analítica. Nas palavras da autora:

O discurso analítico deveria se propor à encarnação deste modelo … encarnação não da "verdade", mas de um método que subordina todo saber sobre o enunciado a uma interrogação sobre o enunciante, o que implica aceitarmos que o conhecimento de si seja um eterno requestionamento (p. 56).

É fato incontestável a presença da psicanálise no contexto universitário. Mister apreendê-lo aí, na sua especificidade. Nunca é demais relembrar neste contexto uma frase dita por Millot (1987) a propósito da Educação e da Psicanálise: "Saber o que se está fazendo quando se educa, já que não se faz o que se quer: eis a esperança que Freud suscitou" (p. 39).

No presente trabalho, inicialmente abordaremos o pensamento de Freud em conexão ou interposição com outros autores contemporâneos, relativamente a esta questão. Em seguida, consideraremos a possibilidade de um impossível mediante a adoção do modelo metodológico psicanalítico na forma de uma transmissão interrogante-interpretante e descreveremos duas experiências de ensino na universidade com este dimensionamento encarnado. Ao final, alguns sinais de cautelosa esperança poderão ser vislumbrados para aquilo que se está denominando "ensino interpretante".

 

Ensinar psicanálise na Universidade: a desobediência parcial a Freud

Recorrendo-se aos textos de Freud, o artigo que trata mais diretamente da relação psicanálise-universidade data de 1918, cuja publicação ocorreu em 1919 em uma revista húngara e intitula-se: "Deve a psicanálise ser ensinada na universidade?"6

Freud (1919/1969b) trata, no referido artigo, da conveniência do ensino da psicanálise nas universidades entendendo que tal inclusão "seria sem dúvida olhada com satisfação por todo psicanalista" (p. 217). Ao mesmo tempo, argumenta: "… é claro que o psicanalista pode prescindir completamente da universidade sem qualquer prejuízo para si mesmo" (p. 217). Justifica a existência das Sociedades de Psicanálise pelo fato de a psicanálise ter sido excluída da universidade. Do texto emergem, ainda, questões de fundo de grande amplitude. Dentre essas se salientam as referentes à formação de psicanalistas, à cientificidade da psicanálise, às instituições psicanalíticas e à inter- relação destas com a psicanálise e com o próprio Freud.

Logo de início pode-se depreender a posição paradoxal de Freud relativamente à instituição universitária: como entender que o psicanalista pudesse prescindir completamente da universidade se a inclusão era olhada com satisfação?

O texto salienta que a universidade é campo ou espaço privilegiado no referente à aplicação da psicanálise, à sua difusão. Destaca de forma significativa essa função da universidade em relação às outras, tal como a de produzir conhecimento. No entanto, essa postura que reduz a relação psicanálise-universidade ao aspecto de expansão e difusão não é unânime. Em outra vertente estão Fédida (1990), Guillaumin (1990) e Laplanche (1975), que apontam os riscos da transformação da psicanálise a partir do discurso universitário se forem ultrapassados os limites da simples difusão de seus conceitos. Conjecturam uma possibilidade de inter-relação entre elas a ser constantemente investigada.

Laplanche (1975), argumentando favoravelmente à presença da psicanálise na universidade, coloca que existe uma comunicação analítica possível porque ela se funda na comunicação virtual de cada um com seu próprio inconsciente.

Outros autores, Garcia-Roza (1994), Herrmann (1994), a partir do desenvolvimento de trabalhos psicanalíticos no âmbito acadêmico, repensaram a conexão psicanálise/universidade, no que diz respeito à função que uma teria sobre a outra. À universidade caberia a reconstrução do saber, por meio de uma investigação conceitual, textual e metodológica da obra freudiana, eximindo-se de exercer apenas uma tarefa expansionista. Dentro desta concepção, Herrmann (1994) enfatiza a capacidade de a Psicanálise produzir saber sobre todo e qualquer fenômeno humano. Tal autor, a situa como eixo do conhecimento sobre o homem a partir do centro de sua humanidade-fragilidade. Destaca o método interpretativo como fundamental para sua praxis, independentemente do lugar onde se efetiva.

Retornando ao texto de Freud (1919/1969b) sobre o ensino da psicanálise nas universidades, a certa altura, acena com a expectativa de uma interligação mais estreita entre os vários campos do saber:

Na investigação dos processos mentais e das funções do intelecto, a psicanálise segue o seu próprio método específico. A aplicação desse método não está de modo algum confinada ao campo dos distúrbios psicológicos, mas estende-se também à solução de problemas da arte, da filosofia e da religião. Nessa direção já produziu diversos novos pontos de vista e deu valiosos esclarecimentos a temas como a história da literatura, a mitologia, a história das civilizações e a filosofia da religião. Assim, o curso psicanalítico geral seria também aberto aos estudantes desses ramos do conhecimento. Os efeitos fecundadores do pensamento psicanalítico sobre essas outras disciplinas certamente contribuiriam muito para moldar uma ligação mais estreita, no sentido de uma universitas literarum, entre a ciência médica e os ramos do saber que se encontram dentro da esfera da filosofia e das artes. (p. 219)

Aqui aparece uma nova ordem de interação configurada muito mais como interface. É natural prever-se que essa interação geraria tensões de diversas naturezas. Não se trata, com efeito, de uma relação linear de dependência da universidade em relação à psicanálise ou vice-versa.7

A postura ambígua de Freud no que se refere a essa questão pode também ser atribuída à peculiaridade do objeto da psicanálise. Esta, com efeito, dificilmente se enquadra na classificação das ciências. É ela uma ciência natural ou humana? A psicanálise é um saber controverso, ora visto como arte, ora como ciência. Criatura apartada de seu criador, escondendo-se de suas vistas, para ser apreendida fugazmente, causando estranha surpresa à medida que apenas des-cobre o que já está dado. A psicanálise é outro tipo de ciência. Muito mais próxima à literatura que, ao descobrir, constata. O desvelado estava lá.

Conforme, explica Laplanche (1975), existem enunciados possíveis concernentes à psicanálise, e à medida que esses comportam trocas discursivas, vislumbra-se a possibilidade de seu ensino.

A partir do modelo metodológico que caracteriza a psicanálise – o interpretativo – e da manutenção da posição apátrida da experiência analítica, é possível acolher a psicanálise em diversos lugares. A fidelidade a esse método8 e a especificidade de seu discurso no interior de qualquer instituição que a abrigue é condição indispensável para a preservação do genuíno saber onde o inconsciente se coloca como pedra angular. E talvez a constatação de Laplanche (1975) possa ser compartilhada:"a universidade não é lugar pior que qualquer outro para fazer isso"(p. 10).

 

Mas… será o impossível possível?

Pela posição assumida por Freud, não é de se estranhar que os herdeiros do pensamento freudiano tenham construído um tipo de intersecção psicanálise-universidade que poderia ser descrita como uma ausência-presença. Esse espaço não seria propriamente um mau lugar, já que a psicanálise se alicerça em certa posição de deslocamentos dos lugares pré-estabelecidos. Entretanto, a importação do modelo de transmissão da psicanálise, considerado padrão nas Sociedades Psicanalíticas, para dentro da universidade9 e que, em geral, não é assumido e reconhecido, pode trazer sérios prejuízos. Considerar que aquilo que se faz não é psicanálise porque não atende os requisitos exigidos em outra realidade com outro conjunto circunstancial de princípios, pode bloquear a condição para que se inaugure uma maneira original de inscrever a psicanálise na universidade. A psicanálise produz um conhecimento original, qual seja, aquele sobre a psique, sobre o homem e sobre o que lhe scapa
enquanto saber. E isso é o que ela tem de melhor para oferecer à universidade.

Neste sentido subtrair-se-ia da psicanálise seu poder questionador voltado para a re-versão dos fenômenos conflitivos, aderindo-se a uma intervenção mais resolutiva do que indagativa, e contribuindo para a inscrição de uma psicanálise, fundamentalmente, técnico-profissionalizante no âmbito acadêmico.

Se a psicanálise não puder se confrontar com um constante questionamento, se não puder colocar-se enquanto contraponto face a outros saberes com paradigmas epistemológicos distintos, passa a exigir um reconhecimento apriorístico e dogmático e a fé ou o "acreditar" tornam-se ponto de maior relevância em detrimento da interrogação e da suspeição, fundamentais em uma postura metodológica psicanalítica. É dentro desta perspectiva que a psicanálise poderia mostrar-se condizente com o paradigma emergente das ciências pós-modernas decorrente da crise do paradigma dominante positivista.10

Que psicanálise é essa? Qual psicanálise queremos? A partir da constatação11 de uma psicanálise menos hermenêutica do que positivista, mais catártica do que elaborativa, mais interpretativa de simbolismos do que da lógica do inconsciente com sua verdade tão peculiar, mais repetitiva do que inventiva e mais adaptativa do que investigativa, passou a ser de fundamental importância o resgate da vertente metodológica da psicanálise como recurso constituinte de uma produção de conhecimento que se aproximasse mais da realidade do sujeito psíquico e dos valores humanos imersos na crise representacional da contemporaneidade. Tal recurso, por ser mais aberto e reflexivo, serviria como resistência ao modelo tecnicista de reprodução de teorias de formas descontextualizadas.

O modelo metodológico psicanalítico/interpretativo por ruptura de campo, no sentido que tem sido delineado por Fábio Herrmann (2001) e enquanto uma suspeição-suspensão dos saberes pré-concebidos, promoveria a quebra de estereótipos e alicerçaria uma postura interrogante com firme destinação investigativa. E o que poderia ser investigado? Todo o sentido humano e não só aquele circunscrito noâmbito da clínica padrão.

Após a constatação das circunstâncias anteriormente mencionadas e buscando alcançar uma peculiar forma de transmissão interrogante-interpretante, projetaram-se dois dispositivos: Visita ao Pátio e Oficinas Terapêuticas (OT) para a efetivação deste particular modo de transmissão de conhecimento psicanalítico. É sobre eles que se versará a seguir.

 

A surpreendente construção do ensino interpretante: do lixo do pátio e da construção de um ofício

Na disciplina Psicopatologia Geral, foi desenvolvida uma prática para os alunos nos pátios da Enfermaria de Psiquiatria. A perspectiva dessa prática era o deslocamento do interesse na doença para o vínculo entre o estudante e o sujeito do-ente e para a dimensão do(s) inusitado(s) possíveis dessa relação des-focada. Era imperioso que se colocasse em questão a ligação direta e exclusiva da loucura com a doença mental e, como legado de Freud, que se vislumbrasse a aproximação da sanidade e da loucura.

A proposição central da atividade era uma interface com o paciente sem um sistema muito estruturado de entrevista ou "exame", de maneira a propiciar condições de um efetivo encontro com o estado mental em franca desorganização ou sub-versão mais condizente com a condição humana fundada na fragilidade e na carência.

Além disso, essa prática objetivava levar o aluno a refletir sobre a instituição psiquiátrica enquanto agente de saúde e promotor em potencial de transformações. A simples presença dos alunos e professores no pátio redimensionava e promovia ruptura na associação de imagens entre pátio de hospital psiquiátrico e depósito de sucata humana. Os efeitos dessa ação, de imediato, foram percebidos na forma de susto e desconfiança por parte da equipe médica, dos alunos de medicina e em grau um pouco menor dos técnicos e funcionários. Entretanto, pôde-se perceber certa mudança de mentalidade no que diz respeito ao relacionamento com o paciente instalando-se uma nova distribuição de forças nas relações padronizadas ali estabelecidas.

Observamos, também, iniciativas variadas de redimensionamento da função de outros espaços da enfermaria, a saber: a sala de estar na primeira hora da manhã transformou-se em sala de ginástica, coordenado pelo enfermeiro docente. Um pequeno terreno ocupado por mato foi transformado em horta. Um dos médicos iniciou atividades em grupo operativo e as atendentes de enfermagem passaram a conversar mais com os pacientes e não só administrar remédios.

Não havia pacientes previamente determinados para que os alunos entrassem em contato, nem tempo estipulado para estar com um paciente ou algo determinado a se dizer. A única indicação fornecida pela professora era para tentarem interagir, agir para dentro da relação ou para o avesso da relação de maneira a tocar na superfície de seu campo, o campo do inconsciente.12

Ao final da hora de permanência no pátio, os alunos eram dirigidos a uma sala de aulas onde faziam uma discussão em grupo sob a coordenação da professora. Os grupos eram investigativos e deste modo exerciam uma função terapêutica.13 Buscavam sinalizadores de algo, cujo sentido haveria de ser não propriamente apreendido, mas surpreendido. Interpretantes que pudessem relançar o inusitado da experiência.

Em seguida às exposições orais, os alunos eram orientados a redigir um relatório sobre suas experiências. Uma escrita o mais livre possível. Como roteiro era-lhes proposto escrever o que haviam observado, percebido e sentido. Através desse conteúdo, via-se resgatada a condição do aluno de protagonista principal do seu processo de aprendizagem, bem como o drama da loucura que passava a não ser apenas sinônimo de doença. Ou seja, passava a ter sentido, significação.

Havia uma dificuldade, em geral, para a confecção desse relatório e, na maioria das vezes, os alunos demoravam em compreender o intento e até mesmo criticavam-no, alegando, principalmente, que se afastava muito do modelo clássico de relatório acadêmico. Rompidas as resistências iniciais, através das falas disruptivas-interpretativas que emergiam dos grupos de discussão e que destronavam o lugar do conhecimento rotineiro, possibilitando a emergência de outros, pôde-se observar que o relatório adquiriu uma função diferente daquela padrão. Não raro eram criativos, adquiriam uma dimensão plástica sem pretensões de "arrumar" o desenho do que foi registrado como impacto, mas procurando trazê-lo de forma inusitada, favorecedora de enlaces reflexivos.

Por outro lado, existiam relatórios que, mesmo sem o fornecimento de um roteiro estruturalmente fechado, adquiriam a característica de uma armadura, a qual o aluno entendia como necessária para coexistir com o modo de ver o mundo que não lhes é peculiar e que se tornava assustadora. Percebe-se, portanto, que os relatórios passavam a constituir uma espécie do esboço do desejo de descoberta, circunscritos, nesse caso, no âmbito da loucura.

A ausência de um modelo clássico que estruturasse o contato ou a relação dos alunos com os pacientes, no início da prática, mostrou-se de extrema importância para a formação profissional. Possibilitou a apreensão de novas modalidades de aproximação do louco e de transmissão da psicanálise. Esta pôde ser apreendida enquanto investigação dos sentidos humanos.

O outro dispositivo utilizado para efetivação da forma de transmissão do conhecimento psicanalítico descrito neste trabalho, foi a implantação da Oficina Terapêutica (OT). Provavelmente desdobrado do dispositivo anteriormente descrito, o Serviço de OT foi implantado para pessoas com severos graus de sofrimento psíquico e seus familiares, na Clínica-Escola da UFU. A implantação desse serviço configurou-se como campo de estágio e de descobertas para alunos de Psicologia, Agronomia e Artes Plásticas.

As OT, modalidade de tratamento ambulatorial, eram constituídas de atividades lúdico-operativas, utilizadas como mediadores interpretantes das relações intersubjetivas nelas estabelecidas. Visavam, primordialmente, possibilitar a ressocialização do doente mental, resgatando seus vínculos consigo mesmo e com o mundo. Procuravam promover a conexão entre o dito, o não dito e o des-dito ou mal-dito e, desta maneira, favorecia outras formas de sustentação dos conflitos além daquela estruturada como psicose. Deixando emergir e tomando em consideração14 as peculiaridades de cada um daqueles que "passaram a viver por conta da doença",15 buscava-se, também, com esse trabalho, criar um espaço de acolhimento da profunda dor advinda da condição de uma quase (não) existência dessas pessoas. Lavorou-se na terra original da mente pela arte da interpretação. Neste sentido, os vínculos formados na e por essa convivência passavam a ser potencialidades terapêuticas.

As oficinas eram voltadas para as necessidades que delas surgiam. Em uma ocasião, uma goiabeira do quintal da clínica estando carregada de frutos e provocava algum tumulto pelo fato de muitas pessoas entrarem para colhê-los. Diante disso, optou-se pela realização de uma oficina de culinária, em que se faria doce de goiaba. Para isso, seriam necessários cuidados especiais. Então, fomos chamar uma nutricionista. Ela chegou e viu que tinha muita gente obesa e resolveu ensinar a fazer sanduíche natural, e assim por diante… A reunião de equipe era imprescindível para essa peculiar forma de conduzir os trabalhos. Os emergenciais críticos eram considerados por todos e lançavam-se os dados. Às vezes, os pacientes começavam a vir muito sujos. Da discussão com todo grupo surgiu a ideia da oficina Espelho Mágico. Convidamos uma cabeleireira renomada da cidade para ser instrutora, compramos bacia de lavar cabelo e instalamos um chuveiro na clínica. Definimos a programação do curso para uma semana. A ideia não era transformar o paciente num cabeleireiro, mas sim construir outras possibilidades de higiene e de cuidados pessoais do corpo e da alma.

Outra iniciativa foi a construção do viveiro para a oficina de plantas ornamentais, cujo serviço de manutenção da universidade atrasou. As britas, assim como outros aparatos de construção, ficaram obstruindo a passagem dos usuários da clínica. Algo haveria de ser feito. A equipe decidiu por um mutirão, quando todos estaríamos experimentando funções distintas daquelas que nos eram rotineiras. Uma estagiária da Psicologia se indignou, recusando-se a carregar pedras. Na reunião, pudemos derivar outros sentidos para essa recusa, emergindo daí um texto delineado de uma forma, por assim dizer, poética sobre o conceito de psicose e que servirá de des-fecho para este tópico: "Sobre a des-razão de carregar-se pedras: esboço de uma lógica de construção e des-construção da psicose."

Era uma vez um homem forte e bonito chamado Felipe. Ele poderia, também, ter outros
nomes e isso o divertia muito. Chamar-se, por exemplo, Napoleão, Flash Gordon,
Ricardo III e tantos outros… Só não poderia ser chamado Ermenegildo, Tupiniquim
ou Tupigambá.
Ele gostava de água e de fogo, mas nunca os dois juntos. Dizia que um anulava o outro
e é muito chato quando uma coisa anula a outra… mesmo que, às vezes, isso possa
acontecer.
Felipe gostava de se embrenhar pelo mato, mas não queria ser chamado de "bicho do
mato". Gostava de capinar, colher café, mas não gostava de carregar pedras, pois era
com elas que algumas vezes os moleques acertavam o seu velho casacão preto que lhe
dava ares de majestade.
Um dia, entretanto, descobriu que com pedrinhas e tijolos pode-se fazer uma construção,
uma casinha para abrigar flores e, talvez, sua Rosa… aquela mocinha linda
que espantava os meninos que lhe atiravam pedras. Porém, era loira. Felipe não tinha
muita simpatia pelas loiras. Preferia as morenas… mas… então na casinha poderia
abrigar a Margarida que como era meio pequena, atendia pelo nome de Guida. Ela ficara
tão linda no dia em que subira no monte de pedras para impedir que os moleques
as pegassem e atingissem o manto real de Felipe.
A casinha recheada com coloridos vasos poderia não ter o conforto e a suntuosidade
de um palácio, mas teria o aconchego de chalé. O perfume que exalasse seria tão suave
que, desapercebidamente, impregnaria as narinas dos sapecas moleques. Inebriados,
não mais se ocupariam em atirar pedras.
Mas como poderia ele carregar pedras se estava brincando de ser rei?
Não…
Um rei não carrega pedras.
Definitivamente.
Mas… como poderia ter sua casinha, se não carregasse pedras???
Pela primeira vez insinuou-se a sra. Dúvida dentro de seu coração.
Recolheu-se, emudeceu-se, enfureceu-se, mas no final, num esforço sobre-humano,
tomado por uma força que não se sabe de onde veio, arrancou de seus ombros o manto
preto, arregaçou as mangas e embrenhou-se no ofício de construtor… sabia-se
Felipe, mas não perderia jamais o direito de ser rei Ricardo III quando à noite, no
silêncio de sua casinha, num merecido repouso de guerreiro, seus olhos se fechassem
para dormir e sonhar.

 

Considerações finais

Os doentes mentais são como os beija-flores.
Nunca pousam. Estão sempre a dois metros do chão
(Arthur Bispo do Rosário, citado por Luciana Hidalgo, 2009)

 

Como exposto no início do trabalho, o ensino da psicanálise encerra questões complexas tendo-se em vista que o conhecimento que dela advém possui uma lógica que não se subordina à padronização requerida por qualquer processo de institucionalização.

Poder-se-ia dizer que um modelo metodológico psicanalítico, configurado como suspensão-suspeição da realidade e efetivado como ensino interpretante, seria o que mais poderia se aproximar de um ensino específico da psicanálise no contexto acadêmico e particularmente no Curso de Formação de Psicólogos. O texto teórico e o clínico (relatos) serviriam, encarnado tal ensino interpretante de (pre)texto para a indagação, a investigação e, eventualmente, novas descobertas.

Enquanto contraponto a outros e distintos modelos de ensino, promoveria condição de crítica colocando em crise todo pensamento que pudesse engessar ideias. Ao sustentar a condição de ciência geral da psique não precisaria restringir a universidade a um local de difusão da psicanálise. Com ela e nela possibilitaria a constituição de campos de interlocução a serem constantemente reinventados. Isso, através de seu método disruptivo – interpretação por ruptura de campo. Neste sentido, poderia combater visões petrificadas do conhecimento dado, sabido, já dito e repetido.

Psicanálise e a Educação: duas profissões impossíveis, como dizia Freud, ou dois projetos em eterna construção?

Tem a psicanálise o direito de se expressar, nas mais distintas linguagens, através das vozes e das mãos daqueles que nela se debruçam com coragem medrosa, ousadia tímida e recato exuberante, pois as ideias, como a terra, disse-me um dia um amigo de encruzilhada, são de quem nelas trabalha.

A que vimos? De minha parte penso na possibilidade da reconquista das humanidades enquanto cientistas, mas, também, enquanto inventores. Por certo mais particularmente inventores de palavras de ressignificações de uma realidade caótica e em ebulição buscando novos horizontes para uma prática profissional inventiva e em condições de abertura.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Lúcia Castilho Romera
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Recebido em: 22/4/2010
Aceito em: 7/7/2010

 

 

1 Este trabalho foi apresentado, em sua versão inicial, no XXVI Congresso Latino Americano de Psicanálise em outubro 2006. Em 2009 foi reestruturado e fez parte do Projeto "A ciência da psicanálise e suas construções" elaborado pelo PGPSI-UFU – Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia em parceria com a Comissão de Pesquisa da SBPSP quando Leda Herrmann, a quem agradeço imensamente, teceu sobre ele comentário valioso.
2 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e do Centro de Estudos da Teoria dos Campos CETEC, Professora Associado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
3 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia UFU, especialista em Clínica Psicanalítica pela UFU. Psicóloga da Associação Municipal de Assistência Social (BH) e do Projeto Quik Cidadania (Nova Lima).
4 Igualmente polêmica tem sido a utilização dos termos ensino e transmissão, ora como sinônimos, ora como antônimos. Em princípio, poder-se-ia dizer que ensino refere-se à comunicação da estrutura conceitual da psicanálise, no âmbito informativo. Reservar-se-ia o termo transmissão ao saber que advém da experiência analítica, em que o papel do inconsciente é particularmente frisado. No entanto, a ambiguidade na forma de utilização desses determina que se reconheça que pode haver um imbricado jogo de interações entre um e outro termo. É assim que esses conceitos serão considerados neste trabalho.
5 Fábio Herrmann (2005) cunhou o termo Clínica Extensa para indicar a necessária recuperação do método psicanalítico como ato fundamental do analista. Esclarece que como a atenção analítica é sempre clínica, a psicanálise da cultura e da sociedade, a correlação de mão dupla com a literatura e as artes, a própria integração com o reino das ciências, tudo isso é Clínica Extensa.
6 Segundo Laplanche (1974-1975), este artigo derivou de resposta a um questionário oficial feito por ocasião da instalação do governo bolchevista em Budapeste, o qual nomeou Ferenczi como professor de psicanálise na universidade. Situa-se, portanto, a partir de um movimento revolucionário. O autor relembra que nessa época havia no universo cultural uma grande hostilidade relativamente às descobertas da psicanálise e a inserção da disciplina psicanálise no curso de Medicina era considerada um avanço, mas, também, um risco.
7 A relação de Freud com a universidade apresenta uma característica de tergiversação. Se, por um lado, Freud a considera dispensável, por outro, ele recorre à mesma em vários e históricos momentos. Um desses foi o pronunciamento de suas conferências na Universidade Clark, onde sua teoria foi oficialmente reconhecida.
8 Método aqui não é utilizado como sinônimo de procedimento. João Frayze-Pereira (2002) nos alerta para a utilização descontextualizada desse termo tendo em vista seu aparecimento como exigência obrigatória criada pela modernidade para acessar o conhecimento em consequência da separação sujeito/objeto. O termo aqui deve ser compreendido como postura, lente de visão e trabalho reflexivo.
9 Fenômeno detectado em pesquisa para tese de doutoramento de Romera, M.L.C. intitulada: A Transmissão–Difusão da Psicanálise: considerações a partir do delineamento de sua presença nos cursos de Psicologia da região do Triângulo Mineiro – Brasil Central, defendida na USP em 1993.
10 Boaventura Souza Santos (2004), apontando a crise do positivismo, elenca algumas características do paradigma emergente das ciências, a saber: todo conhecimento científico natural é científico social; todo conhecimento é local e total; todo conhecimento é autoconhecimento; todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.
11 Constatação feita pela investigação de pesquisa de doutoramento anteriormente citada e da experiência de atendimento clínico na Clínica Escola de uma universidade.
12 Campo diz respeito à lógica inconsciente, como proposto por Fábio Herrmann (1991). Ancora-se na ideia de campo-relação. É a ordem produtora de sentidos (p. 102-09).
13 Esses grupos seguiam, em linhas gerais, a estrutura dos grupos operativos de Pichón Riviere (1988) e dos Grupos de investigação em função terapêutica GIFT, tal como vem sendo delineada pela Teoria dos Campos.
14 Concebidos enquanto movimentos técnicos da Psicanálise como proposto pela Teoria dos Campos.
15 Maneira como eram designados os usuários deste serviço de atendimento.

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