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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo Dec. 2010

 

TRADUÇÕES

 

A capacidade de criar e a exigência de criar

 

The capacity to create and the constraint to create

 

La capacidad de crear y el requisito de crear

 

 

René Roussillon1

Analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP
Presidente do Grupo de Analistas de Lyon
Docente da Universidade de Lyon 2

Endereço para correspondência

 

 

O desejo de criar

Na criação artística, como em qualquer atividade criativa, a psicanálise tentou primeiramente colocar em evidência o impacto do sexual e do fantasmático originário para organizar suas formas. A procriação e o conjunto dos processos psíquicos que presidem sua construção aparecem, então, como o próprio protótipo de toda criação, como a problemática matricial, o motor escondido, o ponto de origem da impulsão inconsciente, sua fonte, inspiração e energia, ponto também, onde ela forja suas particularidades específicas, onde ela encontra, às vezes, também seus conflitos e suas inibições, onde se depara com suas limitações.

Numa época em que se entendia encontrar na atividade artística uma das formas mais completas de uma espiritualidade que elevava a alma humana para além de toda materialidade e assegurava ao mesmo tempo seu triunfo sobre a animalidade pulsional primitiva, uma tal interpretação foi frequentemente mal recebida e considerada como "reducionista" demais. A criação fascinava, seduzia e se aceitava que seus motivos profundos ficassem protegidos de uma visão muito crua, e que as ilusões fundadoras de seu valor e de sua própria essência, ficassem suficientemente veladas.

É verdade também que os psicanalistas do momento – a começar pelo próprio Freud – achavam de bom tom, em nome da verdade que permeava os círculos psicanalíticos, não ser delicado demais com os conteúdos inconscientes, sobretudo quando diziam respeito ao sexual e ao fantasma. Isso, ainda mais, que a criação os fascinasse, mobilizando ao mesmo tempo sua inveja, tanto quanto sua relação com o sagrado.

Quando a inveja não é excessiva, ela alimenta a capacidade de desconstrução necessária à inteligibilidade, ela contribui então com a desidealização indispensável ao trabalho do pensamento, ela "legitima" os aspectos necessariamente "redutores" de qualquer análise, nas quais ela procura satisfazer uma parte de seus motivos inconscientes. Os psicanalistas e o próprio Freud não se privaram de utilizar os aspectos positivos da inveja que os criadores e suas criações mobilizaram em si mesmos. Mas a admiração vem contrabalançar frequentemente esse primeiro movimento e reconhecer o valor do trabalho do ego que se exprime no movimento criador, para além dos simples motivos inconscientes mobilizados pela urgência.

Entretanto a "contratransferência" sobre a criação, aquela que se revela num tipo de interpretação demasiadamente centrada na liberação do "sexual recalcado" ou do "sexual sublimado" – teoria da sublimação das "pulsões parciais", típicas da perversão! –, quando interrogada de fato pelas "respostas" sociais a essas interpretações, testemunha uma certa insuficiência de elaboração. Foi necessário também reconhecer que se o fantasmático originário representa bem uma das questões mascaradas do processo de criação artística, o apagar de seus traços na criação é tão característico do processo quanto de sua presença inconsciente. Ceder à tentação de pensar nesse fato como o simples efeito de uma forma de resistência à existência de conteúdos inconscientes acarreta o risco de negligenciar outra característica fundamental do processo criador: tende a apagar os traços daquilo sobre o que se origina, como também da energia de suas origens. Encontra mesmo, portanto, no apagar de seus traços uma das questões essenciais de sua formação.

A história das relações da psicanálise com a criação poderia ter terminado na constatação desta conflitiva fundamental entre a ação de uma força iniciadora, e a necessidade da sua "ultrapassagem" que fosse suficiente no seio do processo, e se limitar então a extrair das produções humanas, as formações intermediárias particulares que resultam da elaboração desta dupla exigência. A história parou para alguns nessa constatação, e no desenvolvimento desta "clínica" da criação.

Outros, pelo contrário, – e aqui penso, em particular, em D.W. Winnicott e em autores que se baseiam em sua contribuição – relançaram a questão a partir da constatação mais ou menos explicita que se o sexual está presente por trás de todo processo criador, é à medida que muda de natureza, à medida que ele não fica semelhante à si mesmo, é o que não cessa, então, de interrogar-se sobre sua natureza.

O sexual considerado como motivo escondido do processo criador torna-se um sexual enigmático em sua natureza, ele pede, então, por sua vez a ser interpretado. Se ele pode representar a matriz do desejo satisfeito na criação, se ele pode fornecer o modelo de toda criação, é que ele não é mais semelhante a si mesmo, que se tornou sexual por metáfora, sexual metafórico. Ou melhor ainda, que ele representa o poder metaforizante por excelência, aquele que revela sua natureza por meio de sua capacidade geradora de símbolos, mais do que qualquer outro de seus conteúdos particulares.

No après-coup do percurso que começamos a percorrer aqui, o poder "interpretativo" do sexual revela uma solidariedade escondida entre ele próprio e a simbolização. Implicitamente, e como sem nos darmos conta, a análise mudou de tópica. Ela achava que podia "ler", tranquilamente, na criação o efeito de um desvio pulsional que encontrava no seio da produção artística uma via desviada para se satisfazer, apesar das diferentes censuras que atuavam no seu percurso. Ela descobre no decorrer de seu próprio percurso o exercício de uma força de ligação que chega a se efetivar, à despeito do conflito que a habita, uma força de ligação cuja plasticidade caracteriza sua natureza: ela não é idêntica a si mesma, melhor, ela não saberia ser idêntica a si mesma, ela perturba os próprios dados da identidade, ela a simboliza, a torna simbólica.

No caminho, o sexual encontrou a figura de Narciso, aquela do movimento auto, aquela do retorno sobre si mesmo, da reflexividade que produz e revela o enigma do "si mesmo", e para além, a da identidade. O íntimo que parecia ter se afirmado pouco à pouco, como o lugar não ambíguo do desenvolvimento do valor identitário, como local próprio onde o sujeito podia esperar poder se reencontrar sem ameaça excessiva, o íntimo se encontra preso num paradoxo que subverte potencialmente suas condições de apropriação e de apreensão. O íntimo aparece também como paradoxalmente portador de uma alteridade interna, seja em alguns paroxismos de afirmação sobre si mesmo, como portador de uma verdadeira alienação desta alteridade. Quanto mais a tentativa de afirmação de um insignificante "em si" provou ser forte, mais a ameaça de descobrir que somente uma forma desconhecida de "para si", se fez premente. A conflitiva de bom quilate na qual a revolução psicanalítica acreditara possível reconhecer o florão de seu avanço, encontrou-se às voltas com formas de paradoxos que reabriam crucialmente a questão: as relações da psicanálise com a problemática da criação iriam ser profundamente modificadas.

 

A necessidade de criar

O "corte epistemológico invisível" passou precisamente por aquele que iria renovar esse assunto: D.W. Winnicott. Lá onde as formulações e os esquemas de pensamentos anteriores supunham a afirmação de uma identidade suficientemente assegurada de si mesma, lá onde do mesmo jeito o pensamento estava exposto no paradoxo da origem da criação, o conjunto de conceitos formando em Winnicott a teoria da transicionalidade propunha uma tolerância aos paradoxos, que permitia suspender a questão e ao mesmo tempo estabelecer a indecisão necessária para sua metabolização.

O conceito de encontrado/criado que propõe o pensamento de D.W. Winnicott transforma as relações recíprocas do sexual e da criação. A satisfação alucinatória do desejo que preside o processo criador só pode se manter pelo seu encontro com uma realidade assim também criada, à medida que esta última confirme o próprio processo. Então não há mais necessidade de interpretar a criação a partir do sexual. Este não é mais concebível sem seu laço orgânico primeiro com a criação, e é a partir da inevitável distância entre o encontrado e criado, e como procedimento na redução desta distância, que encontra sua nova definição subjetiva. É a problemática da criação que abre aquela do sexual e não mais o inverso, a sexualidade tornando-se, então, por isso um caso particular da maneira onde a diferença e o afastamento trabalham a criação. O desejo de criar como expressão do sexual, é substituído pela necessidade de criar (veremos no capítulo seguinte a questão da destrutividade, colocada entre parênteses aqui para clareza da exposição) como motor da sexualidade; na passagem a criação se libertou do modelo pro-criativo, sem necessariamente, desta vez, ser pensada a partir do "parcial da perversão".

Entre os dois, a simbolização ganhou suas cartas de nobreza, ela deixou o estatuto de meio para a ação, para ser repensada à partir de sua função fundamental: ela aparece como o novo objetivo do aparelho psíquico no seio de sua tarefa da vida e da sobrevivência. A ação, a produção lhe são, à partir de então, subordinadas, ou devem, in fine, lhes serem subordinadas. O mundo, a vida e suas particularidades históricas, devem ser encontradas /criadas, o sexual contribui para essa tarefa fundamental, ele representa a força, graças à qual ela pode se completar, a impulsão que permite sua colocação em ação, a força de ligação que torna possível sua realização.

A dificuldade será, então, a maneira como este trabalho pode ser preenchido, isto é, as condições de possibilidade de sua emergência. Se a distância entre o encontrado e o criado for excessiva, a pulsão sexual terá dificuldade de se organizar e de assegurar sua primazia, a ligação será desencorajada pela amplitude de sua tarefa e dará lugar a formas desorganizadoras ditas da pulsão de morte.

No lugar de um desejo de criar, o movimento tomará a forma de uma exigência de criar ou, se a tarefa parecer estar perdida de antemão, de uma exigência de destruir. Nós estamos no centro das relações entre a questão da criação e o que convém chamar de zona de traumatismo primário da psique, quer dizer, esse setor da psique onde a experiência não pode ser ligada, simbolizada e apropriada subjetivamente, aquele que, portanto, ficou clivado dos processos integração da subjetividade, aquele do "não criável".

 

A exigência de criar

A exigência de criar aparece, então, como o esforço do sujeito para tentar, através da experiência criativa, colocar "no presente do ego" a experiência que se ressente de apropriação subjetiva e de simbolização, como uma forma de se religar secundariamente àquilo que teve historicamente que cortar de si mesmo para continuar a sobreviver. Mas do mesmo jeito o caráter "secundário" desta tentativa, por mais vital e doloroso que possa já aparecer ao sujeito, freia, até mesmo entrava, a integração primaria da experiência vital que preside o movimento criador. A produção criativa secundariza a simbolização mesmo se ela se efetua com a ajuda de procedimentos de simbolização não verbais, na medida – e teremos que voltar nesse ponto mais tarde – em que ela a produz "fora" da psique, e de forma "materializada" à medida que ela a externaliza. Lá o processo parece uma sutura secundária da clivagem, solução específica das ligações consideradas perversas. A simbolização é "materializada", "mostrada" ou "ouvida", mais que profundamente refletida. A tentativa de transicionalização da zona traumática, a tentativa de criar pela produção artística o que foi encontrado na experiência traumática, mas não apreendido subjetivamente, testemunha cada vez mais, o fracasso daquele primeiro encontrado/criado. É necessário, portanto, cada vez mais, materializar os conteúdos psíquicos que a simbolização interna deles não conseguiu efetivar.

A simbolização artística representa, frequentemente, uma "boa" solução social para a zona traumática primária de um sujeito, mas de um ponto de vista intrapsíquico ela não é sempre produtora de laços organizadores, pelo menos a nível de seus "benefícios primários". É por isso que sob uma forma ou outra, ela será compulsivamente repetida.

Essas últimas reflexões abrem a questão das relações complexas que religam o sujeito a suas "produções" simbólicas e, portanto, reabrem o problema das relações que a psicanálise mantém com as criações artísticas.

 

Psicanálise e produções artísticas

Acabamos de perfilar duas modalidades diferentes do processo criativo, a primeira centrada no desejo de criar, considerado como uma tentativa de reduzir por meio da simbolização a distância inevitável que se insinua entre o encontrado e o criado, a segunda fundada na necessidade de tentar reduzir um corte vindo da trama da subjetividade. Nos dois casos a atividade criativa está a serviço da função dita de "síntese", do ego e da subjetividade. Sempre, nos dois casos, a atividade simbolizante que opera na produção criativa está submetida a um trabalho de disfarce que tenta apagar ou reduzir a marca da ferida, motivo desta tentativa.

Entretanto, enquanto esse trabalho da atividade criativa fundamentado na redução da distância, no seio do encontrado/criado, – isto é, sobre um desejo de criar – apaga metaforizando, ao ser o efeito de uma exigência para criar, ao repousar sobre uma tentativa de sutura de um corte na trama da subjetividade, esse "apagamento" se efetua tentando anular de um outro lado o que atua dentro do processo criativo. A metaforizarão apaga deslocando, ela conserva um elo com a fonte de onde ela se alimenta enquanto a sutura tenta apagar a fonte, colocando-a em cena, ela tende a substituí-la radicalmente mais do que a deslocá-la.

No primeiro caso, a transicionalização da relação com a produção criativa se efetua também na interioridade psíquica, o elo é "primário", a criação dá as condições de estabelecimento de um novo elo "secundário". No segundo caso, a simbolização "primaria" não ocorreu – ela procura precisamente se realizar com a ajuda do dispositivo-simbolizante utilizado para a produção artística ou criativa –, o elo que vai se estabelecer com a produção será secundário, é "fora" que ele vai procurar se criar porque ele está em dificuldade "dentro".

A partir daí, uma vez que a criação fundada no desejo de criar e que a integração pulsional se modifica no seio do aparelho psíquico, as comunicações intrasistêmicas (comunicações que, uma vez a função atual da produção simbólica realizada podem se libertar dela) a produção fundada na compulsão a repetição, vai ao contrário, ter que "jogar" com a produção material, seja mantendo-a "à vista" no campo perceptivo, seja ao inverso subtraindo-a do campo perceptivo para fazê-la desaparecer e com ela o que tentava suturar. Dito de outra forma, e endurecendo a oposição funcional, de um lado a produção criativa mantém a transicionalidade interna, ela lhe fornece de passagem um lugar de transferência para que ela possa dar-se a si mesma uma outra forma de colocação para que ela possa apreender ou se reapreender, enquanto que, de outro lado, ela procura mascarar a falha desta transicionalidade interna: a ferida não é da mesma natureza. Certamente nas criações concretas, nas produções efetivas, se misturam, frequentemente, os dois procedimentos que estamos procurando descrever: a vida psíquica não é tão delimitada quanto os modelos que tentam descrevê-la podem deixar transparecer, mas no entanto, a polarização que propomos remete a uma polarização "observável".

É por isso que a psicanálise mantém com as criações humanas relações necessariamente ambíguas.

De um lado psicanálise e criação artística vão na mesma direção, aquela da simbolização da experiência vivida recalcada ou clivada: elas visam transformar uma matéria prima psíquica em representação, elas procedem pela transferência desta matéria prima no seio de um dispositivo-simbolizante destinado, com a ajuda de seus parâmetros específicos, a transformar em representante-representação este "dado" inicial, a torná-lo assim mais "utilizável" para um psiquismo sob o primado do principio do prazer- o que se opõe, então, a uma psiquismo submetido à compulsão à repetição. O trabalho de criação pela simbolização é seu vetor fundamental, ele organiza as características essenciais do "quadro" no seio do qual elas são levadas a se desenrolar, e que possuem por isso o mesmo numero de características comuns. Não se "simboliza" de qualquer jeito, há regras precisas a serem reconhecidas e a respeitar para que o processo possa se desenvolver, regras que constituem a pedra de toque da capacidade de utilizar o dispositivo-simbolizante, para simbolizar efetivamente e não somente "produzir" representações ou as "percepções". Portanto, um número de particularidades aparentam a psicanálise e a atividade criativa "artística".

Mas por outro lado, essa aliança "objetiva" é conflituada por uma modalidade de utilização intrapsíquica da produção simbólica, suscetível de obedecer a uma economia interna diferente, até mesmo oposta. A produção simbólica que a psicanálise tenta manter visa a otimizar a circulação intra e intersistêmica, que ela procura promover com a ajuda das modalidades da simbolização, uma função autoapropriadora e autorepresentativa necessária às modificações autoplásticas do trabalho de integração. O "belo" que ela encontra não deve nada aos cânones da estética social, refere-se antes à harmonização interna ligada ao trabalho de integração, entender-se bem, ver-se bem, sentir-se bem, refletir sobre si mesmo o melhor possível e se exprimir da forma mais justa e mais verdadeira: tais são as regras constitutivas de ação e de transformação. Seguramente esse trabalho não está cortado dos sistemas sociais, e a estética não lhe é necessariamente um valor estranho, mas a subordinação maior de sua empreitada não a coloca em primeira mão no centro desta.

 

A arte pela arte

Não acontece o mesmo na simbolização artística, mesmo se zonas de recortes são claramente assinaladas entre elas. A criação artística pode também visar a uma melhor integração vivida a partir do trabalho de colocar em forma na obra, ela pode também tender a um valor de formação transicional para uma retomada intrapsíquica autoplástica. Mas então ela deve renunciar ser ela mesma seu próprio fim, ela deve renunciar a sua autotélia e renunciar a aceitar ser somente um meio transitório em direção à busca de um outro objetivo: aquele de tomar o sujeito em questão e por meio dela, aquele de captar a história de vida que ela procura por em cena.

Os teóricos da arte moderna lutaram com firmeza para que nenhum outro objetivo fosse atribuído à produção artística. É "a arte pela arte" que faz a autotélia o vetor fundamental do trabalho de simbolização artística. Um tal preceito abre direito para modos de utilização da criação que não podem mais ser compatíveis com os desafios da prática psicanalítica que são até, às vezes, antagônicos. Essa dificuldade encontra-se em certos tratamentos de artistas, nos quais o trabalho efetuado em análise não é produtor de mudança autoplástica, mas serve para alimentar a criatividade do sujeito. Em outros, ao contrário, as mudanças internas esgotam a inspiração, ou melhor a necessidade de produções criativas, raros são os tratamentos onde produções artísticas e transformações internas acontecem harmonicamente e se apóiam mutuamente. A maior parte do tempo a psicanálise desenvolve capacidades de simbolização que encontram na relação intersubjetiva seu espaço de desenvolvimento privilegiado e no desenvolvimento de modalidades de simbolização "internas" sua finalização a mais especifica.

Assim, portanto, se não há a priori oposição formal entre os dois modos, não há também necessariamente congruência. O que em última análise, comanda as condições de relação que eles mantém entre si é o tipo de funcionamento psíquico subjacente e seria um erro pensar que a expressão do processo criador é sempre idêntico à si mesma. Na realidade, nós já começamos a evocá-lo anteriormente, não há aqui o "em si" da produção criativa, mesmo se uma certa teoria social ou mesmo um certo "modo" artístico tendesse a fazê-lo crer: existem sujeitos tomados pelas formas de seus desejos ou tomados pelas particularidades de sua história traumática, que tentam com mais ou menos talento e sucesso, materializar representativamente aquilo que os determina.

A atividade criativa apenas saberia ser "para um sujeito" ela é neste sentido subordinada fundamentalmente à função que ela exerce dentro de sua economia simbólica de conjunto.

Isto me conduz a uma outra observação que diz respeito às condições subjetivas da criação. Mesmo se os criadores foram frequentemente, e ao mesmo tempo "teóricos" da criação, mesmo se eles se juntaram a correntes criativas que poderiam fazer pensar na adoção de um estilo criativo deliberado e perfeitamente dominado, uma grande parte das características de suas criações deve, assim mesmo, estar de acordo com os efeitos surpresa do jorrar criativo que domina o artista mais do que este o domina, pelo menos no estado nascente, e na alteridade interna que assim se manifesta.

Uma vez iniciado o movimento criativo, o "produto" deste conquista uma relativa autonomia, que é aliás, sem dúvida, uma das características de seu valor. Ele guia a mão ao mesmo tempo que é fabricado por ela, seja que o processo encontre uma resistência especifica da matéria (do meio a partir do qual se cria: consistência própria e forma da pedra para esculpir, resistência da matéria das palavras, de suas correspondências secretas, ou exigências da língua etc.) seja que a impulsão criativa possua sua lógica própria que só se revela precisamente na ocasião da surpresa daquilo que ela produz.

Isto também os artistas frequentemente sublinharam. Existe aí algo em comum, guardadas as proporções, com a associação livre em psicanálise, e com uma certa disposição de "acolhimento neutro" daquilo que vem, o que quer que seja que venha.

Esta "neutralidade" relativa torna possível o surgimento do novo, ela permite que alguma coisa do trabalho de simbolização que se efetua na intimidade do espaço interno e em parte inconsciente possa encontrar lugar na atividade criativa, ela conecta também a questão da criação com o maternal e o feminino.

Talvez possamos, a partir dessa atitude acolhedora do inesperado, reconhecêlo no après-coup como o objeto desconhecido procurado, como o traço de um outro agindo em si e sem dúvida para além do que se entende habitualmente por inconsciente, identificar uma das características fundamentais da criatividade, que deve aqui então ser entendida no sentido de uma capacidade de dar forma e sentido àquilo que advém do "exterior", mas também do mundo interno e dos objetos, outros, que o povoam. Abordamos aí, sem dúvida, uma outra forma do processo encontrar-criar que evocamos mais acima, ou melhor uma outra faceta deste, a recíproca daquela que nos já utilizamos. Se de fato, por um lado, o criado chama por sua descoberta no mundo perceptivo-motor e chama pela redução da distância entre realidade interna e realidade externa, por outro lado, todo "encontrado", toda manifestação da realidade externa, chama por sua vez por sua integração significante, isto é, a capacidade de criá-la dentro de si.

O encontrado também deve poder ser criado, isto é, representado e significado em si. O verdadeiro processo criativo não estaria no quiasma desse duplo imperativo: ser capaz de produzir aquilo que se cria potencialmente, ser capaz de criar aquilo que se encontra, de lhe dar uma dimensão criativa "para si", quando Miró encontra uma pedra numa praia qualquer, essa pedra torna-se um "Miró", a matéria prima é transfigurada pelo seu encontro com o criador, ela adquire um outro estatuto diferente daquele que sua natureza primeira tinha podido lhe conferir.

Encontramos então assim a questão das relações fundamentais da criação com a identidade subjetiva, o que nos faz reencontrar o íntimo sobre a outra de suas faces. Se de fato, por um lado, é necessário poder pensar em um "sujeito da criação", isto é, pensar a necessidade de uma pré-existencia do sujeito à atividade criativa, pensar a necessidade de um sujeito de uma "pulsão a criar", por outro não se entende o sujeito como tal, mas como "produto" da atividade criativa. É a atividade criadora/ transformadora que permite ao sujeito de se capturar a si mesmo, de se apreender como "ator" de sua vida, como agente de seu destino. Nesse sentido o sujeito é tanto o efeito de suas produções quanto pode ser seu autor.

A criação é produção de si mesmo, ela é necessária para o advento do sujeito a si mesmo. O que significa que o sujeito está sempre inserido numa dinâmica dialética, entre, de um lado, uma forma de existência potencial, uma exigência de criação, e de outro uma forma de realização, de produção de si pela criação. A atividade criativa o transforma e o produz da mesma forma que, pela atividade criativa, ele mesmo transforma o mundo que encontra. Aí está, sem dúvida, a razão fundamental do fato da psicanálise se interessar agora de maneira central pela problemática da criação: esta remete a alguma coisa de essencial na problemática narcísico-identitária do sujeito humano, no paradoxo de sua identidade.

 

Simbolização e criação

Nós já o indicamos, o paradoxo da identidade subjetiva, para poder se desenrolar sem se fechar numa reflexividade paradoxante, inibidora e num impasse, deve apoiar-se em um aparelho de simbolização no seio do qual o paradoxo de uma identidade não semelhante a si mesma possa ser tolerada. A simbolização, aquela que está subjacente à atividade criativa, supõe de fato, como já observamos várias vezes "objetos", símbolos, que sejam e não sejam semelhantes a si mesmos. Os objetos que são semelhantes a si mesmos na ordem simbólica, só o são "simbolicamente" eles valem por outra coisa que não eles próprios, eles representam outra coisa. É esta a identidade paradoxal do objeto símbolo, ele só é símbolo se não é tratado como idêntico a ele mesmo, se ele é tomado por outra "coisa", se ele encontra no seu centro uma alteridade que o constitui.

O processo de metaforização repousa sobre essa capacidade de tolerância à não-identidade de si mesmo, sobre essa capacidade de deslocamento interno, imóvel, da identidade, na identidade. Ela está no fundamento do elo e da capacidade de ligação. Ela depende na sua origem do encontro identificante com um objeto que não é ele mesmo, que só encontra sua consistência própria, com a condição de aceitar apagar suficientemente os traços de sua alteridade. Um tal prescritivo define a função materna primeira que prolonga, depois do nascimento, o paradoxo do estado de gestação, que ele também supõe a tolerância da não-identidade a si, em si.

Situando a origem da criatividade na maneira pela qual se estabelece a dialética relacional primária entre mãe e bebê, D.W. Winnicott apenas restituiu uma função essencial na gênese da capacidade criativa, ele abre no mesmo movimento a possibilidade de pensar sobre isto.

"Eu sou o seio", tal seria a primeira forma segundo Freud, aquela que, além das transformações sucessivas que irão afetá-la, continuará a informar secretamente o processo criativo. Contudo, esta potencialidade criativa só terá valor utilizável para a criação se ela descobrir, no caminho de seu desenvolvimento a felicidade de reconhecer o simbólico como o lugar de sua realização. Se a psicanálise das origens cedo reconheceu a importância da função paterna nesse percurso, a psicanálise atual concede agora à função materna um lugar tanto quanto essencial na possibilidade de sua emergência. É porque a criatividade primaria tropeça sobre a alteridade e a exterioridade de seu primeiro objeto que ela poderá empreender, com a ajuda deste mesmo objeto, a via que leva ao símbolo: a alteridade do objeto é para ser simbolizada, é o que é necessário simbolizar primeiro, ela deve simbolizar para fora mas também deve simbolizar como alteridade colocada para dentro, como alteridade constitutiva de si.

Contudo, essa simbolização só poderá se efetuar se o objeto a ser simbolizado for, ao mesmo tempo, um objeto "para" simbolizar, que se a mãe que lhe escapa pela sua alteridade fornece, ao mesmo tempo, à criança o meio de recriá-la, de reencontrá- la "dentro". A "função simbolizante" da mãe opera tanto na distância que ela cava no seio da ilusão primaria da criação da criança, quanto na capacidade que ela lhe transmite de reduzir esta distância por uma criação simbólica. A atividade criativa ulterior do sujeito levará o traço deste primeiro deslocamento, desta primeira transfiguração do movimento criativo e isto tanto no conteúdo das criações quanto no dispositivo artístico utilizado.

A clínica coloca em evidência a verdadeira "transferência" que se estabelece das características especificas da relação com a mãe, e em particular do lugar da função simbolizante que aí pode se desenrolar, em direção ao dispositivo artístico utilizado mais tarde.

A escolha da matéria para criar, aquela do meio com o qual a simbolização artística se efetivará, mas também o modo de relação que o criador vai manter com suas próprias criações, a maneira como elas serão utilizadas, as particularidades das condições subjetivas dos atos criadores e tudo o que é importante no "dispositivo" de criação, carregará traços "reminiscentes" transferidos a partir desta história primitiva. Essa transferência afetará tanto os sucessos quanto as transformações da atividade criativa, tanto sua "inspiração" quanto seus pontos de tropeço e cegueira. A relação com a mãe, e o traço que se inscreve no interior a partir desta relação, é a primeira "matéria" a ser simbolizada e para simbolizar, mesmo se certos "modelos" de simbolização são adquiridos a partir da identificação com o pai e à forma pela qual ele se acomoda nesse trabalho, mesmo se esse último fornece, ele também, algumas das condições de possibilidade de seu advento. Ela é a "musa" a partir da qual adquire sentido a impulsão criativa, aquela que, tanto de fora quanto de dentro, promove o trabalho criativo, o exige devido a sua existência separada.

Criar é produzir o si mesmo na base de encontro com a alteridade interna, com a essência materno-feminina, que serve para se constituir. É aceitar encontrar a surpresa de descobrir, provindo de si-mesmo, uma alteridade consubstancial a si, e de se religar através de suas próprias produções. A capacidade de criar supõe que essa alteridade não desencoraja de início o esforço para se reconhecer, que ela contém em germe um convite a produzir uma figura de si-mesmo.

 

Sublimação

Tudo isso nos conduz bastante naturalmente a retomar a questão da sublimação, ao redor da qual o pensamento freudiano tentou articular o sexual e a criação, e que foi objeto de numerosos debates quando de um recente congresso de psicanalistas de língua francesa.2

Meu primeiro ponto dirá respeito à questão da definição de sublimação e de um constrangimento sensível que se manifesta na troca interanalítica a esse propósito. O termo sublimação designa um processo psíquico particular ou uma atividade do tipo cultural e socialmente investida. Podemos passar diretamente, como fazemos às vezes nas discussões, de um a outro sem qualquer outra forma de processo e sem consequência sobre a clareza de nossas trocas deve-se deixar indefinida esta precisão e procurar nesta falta de definição o próprio valor, a própria essência do processo, como acontece, frequentemente, quando os processos flertam com a transicionalidade?

Talvez deva ser para meditar, mas tenho o sentimento que uma parte dos debates sobre esta questão será esclarecida por uma diferenciação mais fina daquilo que pode religar mas também separar os dois. As atividades culturais e artísticas comportam bem a colocação em fato de um processo sublimatório, mas também a de outras coisas que podem não ter nada a ver com a sublimação, e podem obscurecer as delimitações das propriedades do processo e da capacidade sublimatória.

A atividade sublimatória que desemboca na produção de criações artísticas ou culturalmente investidas é tomada no seio de um conjunto de questões, que concernem tanto o lugar do processo sublimatório dentro do conjunto da economia da personalidade quanto o jogo das relações sociais nas quais ela se inscreve. Se não diferenciarmos os dois, nos expomos a deixar toda uma série de juízos de valor relevante de posições ideológicas de grupos sociais, tomar o lugar da justa apreciação metapsicológica. Quem decide se a "sublimação" da qual se fala é "grande" ou "pequena", como isso já foi aventado. Quem decide se ela é de "vida ou de morte", se ela é de "exceção", como isso também já pode ter sido dito. E em função de que critérios essas apelações são atribuídas. Há critérios intrínsecos para defini-las, critérios internos do funcionamento psíquico. Ou haveria somente critérios extrínsecos, e então como evitar o peso do gosto de uma época de uma ideologia de grupo dominante. Algo que é sublimação em uma época será ainda em outra, ou algo que seria uma "grande" sublimação a partir de seu êxito social será reclassificada como pequena ou média sublimação se esta perde a precisão. Aqui percebemos bem que deixamos o campo transicional e mesmo o psicanalítico.

Chamo a atenção sobre o fato de que as sublimações mais frequentemente dadas como exemplo pelos analistas dizem respeito a certos "artistas" investidos pelo que eles representam como referência para um dado grupo social. A sublimação em questão é uma sublimação "XVI arrondissement" se me permitem este recurso caricatural. Eu não tenho conhecimento de referência às sublimações que apaixonam as crianças do Bronx ou os adolescentes de periferia, e entretanto os cantores Usher ou Alicia Keys são infinitamente mais conhecidos pelas suas produções artísticas no mundo atual que a maioria dos artistas que na maior parte das vezes são evocados pelos analistas, se decidimos que este critério é determinante. Mas essa atividade sublimatória diz respeito a formas de manifestação em relação à música Rap ou R&B, em relação à dança dita "Hip-Hop", que os analistas praticam pouco no seu conjunto, ou que depreciam e até recusariam frequentemente a dar a qualificação de "sublimatória". E, entretanto, que trabalho de elaboração nos dançarinos de Hip-Hop, que criatividade, até mesmo que paixão criativa, que presença e ultrapassagem do sexual, que "domínio" da pulsão!

Outrossim, é extraordinário o quanto a dança é a grande ausente nas trocas. Teríamos dificuldade em pensar a sublimação quando ela coloca o corpo em cena, diretamente? Da mesma maneira, enquanto L. Baldacci (2005) propõe uma "sublimação desde o começo", as sublimações da criança, do bebê, são quase ausentes em matéria de trocas a partir de sua relação.

De minha parte, passei mais de 20 anos numa periferia quente de Minguettes à Lyon, e fui sensível, no momento em que o Rap e o Rai fizeram sua aparição, à maneira onde um investimento da língua, o da sua poesia, se manifestava e trazia uma nova saída àquilo que apenas encontrava habitualmente o modo da ação para se exprimir nos adolescentes dessas periferias. Penso que há neste caso um autêntico trabalho de sublimação, e isso até mesmo nos adolescentes próximos da delinquência. Mas é verdade que se trata de sujeitos aos quais acontecia Freud dizer tratar-se de "ralé". Vemos rapidamente a ameaça ideológica que contém um tal debate.

Isto me conduz a um outro ponto que parece-me necessário evocar porque apresenta uma outra fonte de dificuldade dentro do debate. Nas atividades sublimatórias socialmente investidas, misturam-se diferentes componentes que é útil separar bem. O processo sublimatório se inscreve, de fato, no interior de um funcionamento psíquico de conjunto, ele se oferece como um dos processos de gestão da economia pulsional, mas ele é somente uma parte do todo. Ele é tributário de uma economia psíquica de conjunto e seu vir a ser e seus efeitos no campo da psicopatologia são relativos ao lugar que ele ocupa na economia psíquica de conjunto. Assim, não é porque um sujeito recorre a processos de sublimação, que estará isento de toda potencialidade patológica ou que estará imune ao suicídio ou a outra forma de expressão do desespero. A sublimação é um dos "destinos" da pulsão, ela não seria um passaporte para a saúde psíquica; ela pode estar a serviço de qualquer atividade do ego, seja perversa ou depressiva, como mostra a psicopatologia de alguns grandes artistas. Pode haver processos de sublimação num sujeito designado de melancólico ou paranoico, até mesmo esquizofrênico, o que não é contraditório, é até mesmo bastante difundido.

Essas primeiras observações estavam aí somente para introduzir a ideia que me parece necessária de refinar a definição de sublimação e de precisar seu status metapsicológico.

Primeiramente, para encurtar e ir a uma primeira formulação essencial, a sublimação é um processo de "transformação" da pulsão, ela pertence à categoria metapsicológica particular das "transformações", ela visa portanto a um tipo de "destino" pulsional particular. Ela pode, portanto, também combinar-se com processos de idealização ou de projeção, implicar a necessária presença de um processo de recalque, mesmo de clivagem, mas sua particularidade deve primeiramente ser identificada com o reconhecimento de um processo de transformação da pulsão e não de uma defesa como a projeção ou a idealização por exemplo.

Esse processo de transformação se faz necessário pela característica fundamental da sexualidade infantil e das pulsões pré-genitais que a habitam; elas não tem vias de descarga especifico e ameaçam portanto produzir efeitos de insatisfação, e isso de maneira intrínseca, como Freud nos lembra em suas últimas notas de Londres. Mas o processo está também implicado, por outra parte, pela existência das interdições que pesam sobre certos modos de satisfação da sexualidade infantil, sobre certas colocações em ação, que obrigam o sujeito a transformá-las em formas de expressão.

 

Inibição quanto ao fim

Se se tratar, em seguida de precisar qual o modo de transformação que caracteriza a sublimação, o marco maior dado por Freud é o que trata da "inibição quanto ao fim". Mas o pai da psicanálise não chega a precisar até que ponto vai a consequência imediata de sua afirmação, aquela de que precisamos para identificar a positividade da sublimação e não somente sua negatividade. Se há inibição quanto ao fim, se pode haver inibição quanto ao fim, é que a pulsão toma então a representação como novo objeto. A inibição quanto ao fim acompanha-se de uma modificação do objeto da pulsão. A representação não é mais o meio de representar ou de reconhecer uma satisfação obtida em outro lugar, ela se torna o novo fim da pulsão, e seu novo objeto, seu novo objetivo.

É assim que eu compreendo o que Baldacci (2003) observa quando assinala a importância da transferência sobre a palavra na sublimação num tratamento: não é neste caso indicar que a palavra torna-se um "objeto", isto é, que a representação torna-se um objeto para a pulsão? Eu me junto a Baldacci na ligação que ele propõe, mas me parece que é necessário generalizar mais ainda sua intuição, e para além do tratamento. Eu proponho considerar que a transferência não se efetua apenas sobre a palavra do sujeito, mas de uma forma mais geral se efetua sobre os sistemas de representação da pulsão, sobre todos os sistemas de representação. Por isso é que se explica porque o processo de sublimação pode "produzir" "objetos representações" visuais, tácteis ou sonoras e sem palavras. É a transferência sobre a atividade representativa que me parece ser fundamental no processo sublimatório, é ela que define qual transformação caracteriza a sublimação.

Uma tal definição esclarece a natureza das atividades sublimatórias, que produzem todos objetos-representações, representações que se tornam objetos, e é esta sua característica fundamental. Mas é necessário também precisar, ao mesmo tempo, que quando a pulsão toma a representação como objeto, ela se torna por sua vez "produtora" de objeto, ela é conduzida a dar uma forma materializada à representação, como no brincar ou na atividade artística ou artesanal. Tomar a representação como objeto, é também transformá-la em um objeto, em um objeto materializado, um objeto perceptível, concretizado, o que não muda sua natureza representativa mas muda seu estatuto psíquico. É também descobrir o valor representativo de alguns objetos. Aqui está claro que sublimação e simbolização dialogam, que algo da sublimação é necessário para a simbolização o que não quer dizer que os dois campos convergem integralmente.

Contudo a implementação de um tal processo não caminha por si só, e desejo abrir a questão sobre eventuais condições da sublimação, a questão de uma "capacidade" para a sublimação.

 

Capacidade de sublimar

Há sem dúvida no processo de realização alucinatória um processo que apresenta uma ligação com a sublimação: ambos os processos se realizam por meio da representação e na representação. A realização alucinatória do desejo, trazendo de volta a representação psíquica a uma percepção, dá um estatuto de objeto à representação, o desejo se realiza "na" representação identificada ao objeto. Nesse sentido, há também para mim "desde o início" um processo em direção à sublimação, à medida que a alucinação, assim como a sublimação dão um estatuto de objeto à representação. Elas tratam, as duas, a representação como um objeto; sem dúvida isso cria uma filiação entre as duas.

Mas me parece propriamente falando, que a sublimação não pode estar lá de início, a menos que possamos dar à expressão "desde o início" um outro sentido não marcado pela consideração temporal. Se ela está numa relação de parentesco com a alucinação, essa filiação só pode tomar de fato sua medida, após uma renúncia, um desvio e uma volta que mudem sua natureza de maneira suficientemente substancial para interditar a superposição de um sobre outro.

O investimento da representação como objeto para a pulsão – no qual eu coloco a essência do processo de sublimação – supõe de fato que o sujeito tenha aceitado perder a ilusão inerente ao funcionamento da realização alucinatória do desejo, que tenha renunciado a manter a exigência desta forma de realização que consiste em passar ipso facto da representação ao objeto percebido alucinatoriamente; uma realização que consiste em investir a representação de tal sorte que ela produza uma identidade de percepção, isto é, uma ativação alucinatória. Nenhuma sublimação na realização alucinatória de desejo, esta é até mesmo o inverso daquela. A sublimação baseia-se na capacidade do ego de colocar efetivamente em jogo toda uma série de processos, toda uma série de efetores, para produzir uma transformação efetiva e produtora de objeto-representação.

Mas a sublimação supõe a existência de uma realização alucinatória anterior, ela supõe que tenha havido uma experiência de satisfação anterior. A sublimação supõe de fato que o ego possa se dar os meios de tornar a representação "apresentável" para a pulsão, e isso exige uma experiência de satisfação anterior suficiente e um trabalho psíquico atual que se efetua no domínio da representação. Mas ela deve também respeitar os imperativos próprios desta, ela deve reconhecer em particular a realidade especifica que é a dela e a realidade dos objetos com os quais ela trabalha; a sublimação exclui a confusão de campos. Em outros termos, a capacidade de sublimação supõe um trabalho de ego lá onde a realização alucinatória primitiva dispensa todo trabalho. Ela supõe a capacidade de um trabalho que reconheça a natureza representativa do novo objetivo pulsional, que reconhece a natureza representativa e material do objeto a produzir, que reconheça sua natureza e sua especificidade. Lá onde a alucinação superpõe percepção e representação, ao contrário a sublimação deve diferenciá-los.

Se há, portanto, na sublimação uma maneira de "reencontrar" uma equivalência da representação e do objeto, de uma representação que vale para o próprio objeto, de uma representação-objeto portanto, a maneira como a sublimação "reencontra" o objeto supõe o luto anterior da "técnica sensorial" (Freud, 1913) primitiva da alucinação, e uma capacidade do ego em reproduzir um equivalente perceptivo de objeto na sua representação.

Com a sublimação passamos da alucinação primitiva àquilo que Freud depois Winnicott chamaram de ilusão, o registro da ilusão, isto é, o encontro com um objeto encontrado/criado, o encontro com um objeto criado de tal sorte que possa "acolher" a percepção alucinatória, de um objeto perceptivamente apto a acolher a alucinação.

Freud escreve, na sua correspondência com Ferenczi "eu vou te contar um grande segredo, não se renuncia jamais a nada, o que existe são apenas trocas". Eu proponho considerar a sublimação como uma forma de transformação da pulsão que torna possível uma parte da "troca" da realização alucinatória primitiva, que permite não renunciar totalmente ao que a realidade e a interdição nos ensinou que não se podia atingir pela via direta.

 

Superego e sublimação

Tudo isso nos conduz a prolongar a reflexão sobre a função do superego na atividade sublimatória. Frequentemente sublinhamos os aspectos de interdição, isso corre tão naturalmente que ousamos apenas evocá-lo… mas minha longa reflexão sobre a simbolização, me conduz a sublinhar que um superego que funciona suficientemente bem, se comporta na economia psíquica do sujeito também como uma instância que autoriza e distribui os modos e as formas de realização possíveis.

O superego distingue três modos de realização: ele indica primeiro, por seus sinais e imperativos, o que o sujeito pode realizar efetivamente e o que só pode realizar nesta forma particular de ato que é o ato da palavra, o que ele pode, portanto, realizar no dizer. Ele distribui também o que pode ser assim realizado daquilo que só pode se realizar na representação, pela representação, e ainda frequentemente na condição desta não ser um equivalente de um ato, que não seja especular, isto é, que ela seja suficientemente disfarçada, realização no ato, realização no ato da palavra e realização apenas na representação interna metafórica permitem que o conjunto das moções pulsionais possam encontrar uma forma de realização. Não renunciamos ao desejo; a o que temos que renunciar quando nossa organização psíquica é ameaçada é a uma forma particular de realização, é a um modo particular de realização. O que não podemos realizar efetivamente, nós podemos dizê-lo e "fazê-lo no dizer", e o que não podemos realizar nem de uma maneira nem de outra, podemos ainda pensá-lo ou realizá-lo na representação interna, na representação metafórica.

É no seio desta regulação que me parece que é necessário pensar o lugar da sublimação, como solução intermediária, materializada, que se situa entre a realização efetiva e a simples representação psíquica. O brincar da criança – que para mim (e me parece que também para Freud, se seguimos sua indicação de 1907 sobre o criador literário) representa a primeira atividade sublimatória – deve ser brincado efetivamente para adquirir todo seu valor, ele deve materializar efetivamente a atividade representativa, colocá-la num ato-jogo, "produzi-la" sobre a cena do jogo. Parece então que a sublimação adquire sentido no seio de uma economia sob o primado suficiente do princípio do prazer, ela o supõe, ela contribui em permitir seu primado. O que pudemos chamar "sublimação de morte" não é para mim uma sublimação, mesmo que se trate de designar assim atividades artísticas socialmente valorizadas, mas testemunha um problema de regulação de conjunto da gestão do prazer. Ela testemunha, seja do fracasso do trabalho do processo sublimatório, do fracasso da sublimação em absorver uma potencialidade traumática muito importante, ou, enfim, da severidade do superego que não permite suficientemente a realização de desejo em ato.

Mas as condições de desenvolvimento de uma capacidade de sublimação concernem também à ligação com as pessoas significativas do ambiente primeiro. Para que a representação tome suficientemente corpo para ser tomada como objeto, é necessário que ela "reencontre" algo do objeto em sua própria forma, é necessário que traga em si mesmo uma parte do objeto. Será muito longo desenvolver aqui as relações entre a representação e a experiência subjetiva primeira 1 (nota de rodapé: Para um aprofundamento desses pontos (cf. Roussillon, 1999), Agonia, clivagem e simbolização, e em particular os capítulos consagrados a "materialidade da palavra" e a "retórica da influência"), e a maneira como esta retoma certos aspectos da forma daquela, mas desejo sublinhar que, para que um processo de sublimação seja encarado, é necessário que as experiências subjacentes a expressão pulsional comportem um quantum suficiente de satisfação, sem o qual a própria sublimação não se apresenta. Só se encontra o que se perdeu, mas só se pode perder o que se recebeu. Quando a experiência não comportou suficientemente satisfação, o esforço do sujeito é de tentar se proteger de seu retorno ou de tentar, se esse se produz, de qualquer forma, encontrar enfim a satisfação faltante.

 

A sublimação e o objeto

Como todas as experiências e os processos psíquicos, a sublimação é também em parte tributária do lugar que ela adquire no seio do encontro com os objetos primeiros. Parece-me necessário sublinhar a esse aspecto que o essencial consiste no fato do reconhecimento do valor do trabalho de sublimação mais ainda do que do produto da sublimação propriamente dito. O valor "social" do produto do processo de sublimação depende dos "talentos e dons" pessoais do sujeito, que não são coisas negligenciáveis certamente, mas o essencial concerne os processos psíquicos implementados, e isso qualquer que seja o valor social do "produto" e portanto dos talentos e dons pessoais envolvidos. Uma criança que realiza um desenho tendo em vista seus recursos do momento, numa formatação desajeitada de seu mundo interno e de alguns de seus movimentos pulsionais, tem a necessidade de que o valor do trabalho produzido seja pelo menos reconhecido e isto, qualquer que seja o valor "objetivo" do produto em questão. Assim, mais do que o valor reconhecido do produto acabado, que releva talento ou dom como acabei de ressaltar, é o trabalho psíquico implícito na produção que me parece ter que atrair reconhecimento.

Esta me parece tributaria de uma conjuntura relacional particular sobre a qual eu gostaria também dizer algumas palavras. Para que a produção do processo sublimatório conquiste todo seu valor, é necessário que a transformação da representação em um "objeto" seja aceita e reconhecida pelos objetos outro-sujeitos implicados na moção pulsional subjacente. Tomar a representação pelo objeto, em vez do próprio objeto – e acrescento, pensando nas primeiras formas de sublimação, na presença deste objeto – supõe que o objeto outro-sujeito envolvido aceite essa maneira de ficar sem ele e de reencontrá-lo de outro jeito, esta maneira de apoderar-se dele e de deixá-lo. Para retomar a fórmula de Winnicott que fez a receita, é necessário que o objeto outro-sujeito "sobreviva" às manifestações autoeróticas que a sublimação ainda implica nessa época.

 

Sexualização e dessexualização

É hora de chegar ao último ponto que desejo discutir, à medida que ele também me parece ser a fonte de desentendimentos nos debates; diz respeito à questão da sexualização e da dessexualização. O mal-entendido parece provir do fato de que quando essas expressões são utilizadas, negligencia-se precisar a que nível nossa reflexão as utiliza. Por exemplo, quando se fala em dessexualização, trata-se de uma dessexualização "primária", isto é, efetivando-se no "sistema primário", dito de outra forma no inconsciente, ou de uma dessexualização no seio do sistema secundário, isto é, no pré-consciente. Sente-se então a importância destas precisões: se a sublimação implica uma dessexualização "primária", eu compreendo que ela possa então aparecer como a manifestação de uma "sublimação de morte" porque um tal processo de dessexualização só se observa nos processos de desintrincação pulsional, é a sua própria forma de ser. Mas trata-se disso no pensamento de Freud e daqueles que sustentam a existência de uma "dessexualização" na sublimação?

Parece-me que a dessexualização em questão pertenceria mais ao sistema secundário, e se faz acompanhar pela manutenção de uma sexualização primária, isto é, pela ativação de uma fantasia inconsciente investida libidinalmente e subjacente ao processo sublimatório, porém recalcada. Senão de onde a psique extrairia sua energia de investimento da atividade sublimatória? De outro lado, na maioria dos processos sublimatórios, a presença de representações "herdeiras" da fantasia sexual se manifesta. A maior característica dos processos inconscientes, dos processos primários não seria a sexualização, e a ligação que as caracteriza, quando ela pode ser implementada, numa coexcitação sexual? De outro lado, a dessexualização faz parte dos imperativos do sistema secundário, faz parte do que os torna possíveis e eficazes.

É nesse jogo complementar de processos primários e secundários que a sublimação encontra todo seu sentido e sua melhor inteligibilidade metapsicológica. Uma representação psíquica inconsciente é investida, ela adquire desse fato uma potencialidade alucinatória que fica reduzida e controlada pelos sistemas de ligação do ego, mas ela é "sexualizada" por esse investimento libidinal. A censura psíquica do superego exige a renúncia da realização alucinatória, o investimento da representação psíquica fica moderada e exige da representação e do sujeito um trabalho psíquico de transformação metaforizante. A organização do pré-consciente pode então admitir rebentos, derivados da fantasia inconsciente investida, mas ela faz sofrer uma mutação a seu destino pulsional, ela "inibe" a moção pulsional "quanto ao fim" e toma a produção representativa como novo "fim" e "objeto" pulsionais, conforme aquilo que propusemos mais acima. Esse processo tem como efeito "dessexualizar" a moção pulsional, na medida precisa da mudança de objeto e de fim pulsionais.

 

Referências

J.-L. Baldacci & Séchaud, E. (2003). Ma réflexion implicitement avec eux. Leurs deux rapports peuventêtre consultés dans la Revue française de psychanalyse, 5 (spécial congrés). Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S. (1907). Le créateur littéraire et la fantaisie. In S. Freud, L’Inquiétante Étrangeté et Autres Textes. Paris: Galimard.

Freud S. (1913). Totem et tabou. In S. Freud, Ouevres Completes. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Roussillon R. (1999). Agonie, clivage et symbolisation. Paris: PUF.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
René Roussillon
12, quai de Lérbie
69006 Lyon, France

Recebido em: 2/8/2010
Aceito em: 6/10/2010

 

 

Tradução de Janine Sachs Feder
Revisão de Eliana Rache e Richard Chemtob Carasso
1 Analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP, presidente do Grupo de Analistas de Lyon, docente da Universidade de Lyon 2.
2 Em 2005 os dois relatores eram J.L. Baldacci e E. Sechaud; minha reflexão "dialoga" implicitamente com eles. Seus dois relatos podem ser consultados na Revue française de psychanalyse, 5, Special Congrès.
© Dunod, cedido pelo autor para publicação no Jornal de Psicanálise.

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