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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo Dec. 2010

 

TRIBUTO A ODILON DE MELLO FRANCO FILHO

 

Pressentimento

 

Presentiment

 

Presentimiento

 

 

Paulo Cesar Sandler1

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Docente do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 

Parecia-me que andava sobre alfinetes. Tinha que falar com meu amigo de tantos anos. Não conversávamos há quatro semanas. Isso já havia acontecido algumas vezes nesses dois anos: Odilon mal voltava para casa de uma quimioterapia. Mas agora, sensação terrível. O sentimento: medo.

– Boa noite. Peço desculpas por estar telefonando a essa hora. Gostaria de saber se o Dr. Odilon pode atender o telefone.

– Dr. Odilon foi para o hospital.

Perda, tão temida, chegou.

 

Na saúde e na alegria…

Uma das coisas que irmanei-me com Odilon foi a curtição toda especial com cerimônias de casamento – e no próprio. "Combinamos", meio na brincadeira, que em todas as religiões do mundo, seus ministros falavam quase que a mesma coisa. Nenhum de nós dois conhecia muito mais do que umas variantes do cristianismo e do judaísmo. Suspeitávamos que ministros budistas e maometanos também deviam falar isso. Na espera, lembrei-me da última conversa: muito enfraquecido, com uma vozinha cujo volume era de dar dó, mas de seriedade e sensatez de sempre, conseguira lembrar-se do nome do barbeiro, o "Vechio" Fillicetti, e também do Sr. Saturno, dono da farmácia Isamar, na Rua Tangará, em frente à minha casa.

Tio Afonso

Irmandade mental multiponto, de tantos pontos que hoje não se pode contar. Para Odilon de Mello Franco Filho e Paulo Cesar Sandler, história contemporânea do Brasil era assunto-deleite. No caso do Odilon, de leite. Após uns anos, venci uma timidez injustificada: "Você é parente do…?". Um chanceler, autor da lei antidiscriminação racial, e de discursos famosos, fortemente cristãos, que levaram ao fim dois anticristos da triste república tropical. "Tio Afonso tinha pouco convívio com a família, mas conheci…" e foi falando coisas nos pareciam determinantes de nossos próprios rumos na vida. Odilon tinha um tino de justiça político, talvez genético, e um respeito atemorizado por certos políticos.

Nosso primeiro contato vinculou-se à Associação de Candidatos "Luis Vizzoni" – bem diferente naquela época. Entre outras atividades, conferia condições financeiras a candidatos desfavorecidos, para que pudessem fazer sua análise. No meu segundo ano de Instituto, zerou-se o caixa. Uma gestão anterior bem intencionada havia acordado com as direções da Sociedade e seu Instituto em doar os fundos para ajudar na aquisição da "nova sede", agora própria, localizada em um belíssimo edifício na Rua Sergipe – lugar que Odilon, como outros analistas, acharam bom para montar seus consultórios. Eu havia sido eleito Presidente da Associação, que logo transformei em colegiado. Uma das primeiras coisas que fiz foi recriar o caixa. Como ficou impossível pagar análises aos desfavorecidos, quem sabe poderíamos pagar supervisões? O Odilon foi uma das pessoas que convidamos. Aceitou. E depois recusou: "Vão achar que quero entrar pela porta dos fundos". O momento político da SBPSP podia ser visto sob o modelo de um funil. Havia vários membros insatisfeitos, desejando – na linguagem da época – "ser monitores de ensino" e também "passarem a didata". E o pessoal do funil, mais poderoso, não queria saber de nada disso. Espero que o leitor não imagine que estou tomando partido; apenas descrevo a situação. Alguns candidatos acharam que era uma lição política; outros, inclusive eu, ficaram impactados com a sensatez e capacidade de espera do Odilon. Um pouco frustrado, tentei aprender esses três "pontos" na lição de psicanálise in vivo – como se diz em Medicina, um dos vários pontos que nos uniram – bondosamente dados pelo Odilon.

Pouca diferença

Se 15 anos é enormidade quando um tem 25 anos e o outro, 10, Odilon mostrou como isso passa a não ter importância à medida que o tempo passa e quando a empáfia e outras características de se habitar a posição esquizoparanoide não dominam o ambiente. Logo descobrimos que havíamos cursado o que nos pareceu ser a mesma faculdade. Era meio esquisito: Dante Nese, Américo, Corbett, e outras figuras um tanto folclóricas, tratadas com seriedade e respeito crítico, pelo Odilon.

Odilon não tinha o menor pejo em ler o que eu escrevia. Um Professor, lendo o que aluno escreve, e pedir esclarecimentos? Não só lia atentamente, mas anotava. E citava, como se faz em ciência. Poucos trabalhos do Odilon não continham citações dos livros e artigos que escrevi. Parecia uma caixinha de surpresas. Um dia, um convite. "Você não quer vir em um dos seminários que estou dando, sobre a Grade do Bion?" Fui lá, todo lampeiro, pensando que seria tomado como um dos candidatos; idade e aparência e disposição de aprender não me faltavam. Odilon, que tinha enorme experiência com grupos, inicia saindo de banda: "Hoje o professor vai ser outro". Instintivamente, olhei para trás para ver o professor, mas aquelas salas só tinham parede, no "atrás". O grupo sorriu: lembrei-me de uma música infantil de Vinicius de Morais, de uma casa que não tinha parede.

Um dia, me telefona: "Poderia me dar uma supervisão?" Respondo: "Para quem?" Como já estava sentado, não caí ao ouvir sua tréplica; "Ué, para mim". Tentei me refazer: "Ah, vamos discutir um caso". Odilon, respeitoso e direto como sempre: "É supervisão, mesmo".

Religiosidade, política e verdade

O Dr. João Baptista França, que organizou a cerimônia em homenagem ao querido Odilon, providenciou um emocionante vídeo em que Odilon aborda o assunto; e também trouxe o testemunho do Prof. Antonio Rezende, que agira, há quarenta anos, como uma espécie de preceptor, tanto de Odilon como de sua esposa, Maria Ignez.

Ele foi uma das pessoas mais isentas de preconceitos e mais caridosas (no sentido de carinho) que conheci em toda minha vida dentro da Sociedade. Um candidato em análise comigo, tentando escolher um supervisor – pois os candidatos pouco conhecem os professores, no início – afirmou: "Incrível, este Dr. Odilon é uma unanimidade nesta sociedade em que tudo se critica!" O candidato, hoje analista, depois achou mais outra "unanimidade" – outro velho amigo do Odilon, o Dr. Antonio Sapienza.

Ausência de preconceitos

Isso é algo que sempre me pareceu constituir um preceito do cristianismo. Também aplicado à atitude científica e consequentemente, à psicanálise, pareceume ter sido incrementada, no caso do Odilon, pela sua própria análise com a Profa. Lygia Alcântara do Amaral – à qual se referia com discrição, carinho e gratidão. Nós dois pudemos publicar, na mesma época, alguns escritos no International Journal of Psychoanalysis: todos discutidos previamente. Por alguma razão, vários colegas mais experientes faziam isso comigo, mas apenas Odilon possuía uma capacidade excepcional: sabia separar a crítica científica da crítica pessoal. Se tal capacidade não podia prover insight, pelo menos evitava violências grupais. Por outro lado, caso elas existissem, Odilon separava-se diplomaticamente de ingratos e violentos. Disse-lhe um dia que devia ser herança do "Tio Afonso", senador da Lei antipreconceito, depois chanceler do governo Goulart creditado para trabalhar no concílio do Vaticano.

Uma experiência religiosa isenta de preconceitos pode prover contato com alguma verdade que não depende de julgamentos ou opiniões pessoais. Situa-se fora do âmbito da ação, pensamento consciente, vontade, falta de vontade ou qualquer coisa proveniente da pessoalidade. A verdade de que algo seja "aquele algo" e não seja nenhuma outra coisa, fez parte de quase tudo que conversei com Odilon – posso dizer, que comungamos. Alguns trabalhos científicos que pudemos fazer em conjunto – o conjunto mais harmônico que tive até então – centraram-se sobre uma crítica severa sobre a moda de "opiniões do analista", onde a pseudorreligiosidade cede lugar a uma religião única, de cunho superior: aquela do analista individual, para quem bastaria emitir opinião, sem compromissos por tentar alcançar alguma faceta real e de senso comum, mesmo que transitória. Compartilhamos de sincera irritação, relativa a colegas que insistiam em opor a obra de Freud em relação às contribuições de Klein e Bion. Para nós dois, parecia óbvio que essas contribuições aconteciam dentro dos limites da extensão, e não da oposição sistemática; assim como nos parecia óbvio que as motivações para tais bandeiras eram políticas e pessoais, nunca científicas.

Moda e banalização

Por nove anos (1997-2006), conversamos sobre verdade, religião, religiosidade, identificação projetiva, contra-transferência e boa parte da contribuição de Bion – sem detrimento de outros autores. Uma das coisas que mais o interessou foi uma nosologia para ser usada por psicanalistas. Fomos chamados para conferências sobre Religião e Psicanálise. Odilon, no Brasil e no Peru2; eu, em Roma3. Percebíamos problemas sérios de apreensão das obras de Freud, Klein e Bion, por serem vulgarizadas e hiper-simplificadoras. Resolvemos fazer alguns trabalhos conjuntos a respeito da banalização da psicanálise, centrando-se em contribuições científicas baseadas no método crítico idealizado por Immanuel Kant (criticismo). Odilon tivera enorme interesse em meus livros a respeito (Sandler, 1997 e 2001).

 

….E na tristeza e sofrimento

Um de seus filhos havia acabado de se casar, o que nos levou a pensar nesta cerimônia de união. Desastres pessoais, algo semelhantes em sua aparência, abateramse sobre nós dois. Desta vez, o último (nascido) foi o primeiro. Tentamos impedir que o desastre se transformasse em tragédia. Sofrimento costuma ser relacionado a desenvolvimento. Nesta época, concluímos um trabalho conjunto sobre intersubjetivismo (Franco Filho & Sandler, 2005). Coisa meio demorada, pelo método de trabalho por nós escolhido: trocas contínuas dos textos escritos, modificados com base em sugestões. O segundo foi retomar um estudo que eu havia apresentado no Rio de Janeiro, depois publicado na revista Alter, versando sobre Verdade e Psicanálise: tema central em minha série de livros para a Imago. Odilon, leitor ardente e atento, apresentou-me a obra de seu amigo de longa data, o Professor Oswaldo Porchat (1995), a respeito de Victor Tausk, uma dentre milhares de coisas que eu desconhecia. Porchat permanecia à côté do mainstream – o "departamento francês d’ultra mar", no divertido dizer do Prof. Paulo Arantes (1994), que Odilon ainda não conhecia.

Creio que Odilon, como o Dr. Antonio Sapienza, que também integrou o pequeno grupo na cerimônia de homenagem são, atualmente, as pessoas com maior experiência em grupos na SBPSP; na verdade, para a lista estar mais completa, os dois estão pareados com o Dr. Antonio Carlos Eva e Dr. Müller de Paiva, para citar apenas poucos. Fomos convidados a apresentar um trabalho em um Congresso Internacional de Grupos, em São Paulo. Nessa época, o desastre acabou se abatendo sobre Odilon; acabei sendo contemplado, pela amizade e confiança mútuas, para apresentar um de seus trabalhos neste evento. Acho que nunca fui tão crivado de perguntas por colegas brasileiros e também do exterior do modo que fui naquele dia – tanto sobre o estado de saúde de Odilon como sobre o conteúdo do trabalho. Sensatez na turbulência – uma das mais importantes características pessoais de um psicanalista, seja natural ou aprendida, bastante ajudada pela formação prática no manejo de grupos, era a marca incomparável de Odilon, que a aplicou institucionalmente, na SBPSP.

 

Noves fora, alegria outra vez

Odilon tinha sutil senso de humor. Nunca resvalava para a ironia, coisa que lhe parecia desrespeitosa. Permitia-se expandi-lo na intimidade dos amigos. Achou interessante minha discriminação entre o Princípio da Incerteza, científico, e um Princípio da Ignorância que se espraiou com mais uma moda onde já não havia escassez delas. Compartilhávamos nossa aflição, outra vez, sobre rumos seguidos pelo movimento.

Parecia-nos constituir uma questão o fato de haver uso abusivo de identificação projetiva (Franco Filho, 2000) e mal-entendidos teóricos a respeito dela. Mais sério ainda, quando aquilo que se resolve negar e projetar é Verdade, sentida como ruim. Pilhei-me, após o desaparecimento de Odilon, apregoando a colegas que, muitas vezes, para várias pessoas, é dificílimo, por ferida recente, aproximar-se de escritos, falas ou lembranças externas do ente querido que se foi. Achava que podia falar, por experiência própria de cedo ter perdido tanto meu pai como minha mãe. Que lástima, que Odilon não estivesse comigo nestes dias. Talvez eu tivesse pensado melhor antes de ficar falando – foi só ao escrever estas linhas, que percebi que era isto que estava ocorrendo dentro de mim.

Gostaria de agradecer a colega Cândida Sé Holovko, pelo convite de anexar estas memórias candentes de um amigo que deixa indizíveis saudades, calor no coração e uma bússola para o futuro.

Até mais ver, meu querido Odilon.

 

Referências

Arantes, P.E. (1994). Um departamento francês de Ultramar. Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana. São Paulo: Paz & Terra.         [ Links ]

Franco Filho, O.M. (2000). Quando o analista é alvo da "magia" do paciente. Trabalho apresentado em Reunião Científica da SBPSP. (Comentado por P.C. Sandler)        [ Links ]

Franco Filho,O.M. (2006). A experiência dos místicos e a do psicanalista sob o vértice de Bion. Revista Brasileira de Psicanálise, 40 (3), 33-47.         [ Links ]

Franco Filho, O.M. & Sandler, P.C. (2005). Intersubjetividade: progresso em psicanálise? Revista Brasileira de Psicanálise, 39 (4), 89-112.         [ Links ]

Pereira, O.P.A. (1995). Verdade e realismo, ceticismo. Revista Discurso, 25.         [ Links ]

Sandler, P.C. (1997). A apreensão da realidade psíquica (Vol. 1). Rio de Janeiro; Imago.         [ Links ]

Sandler, P.C. (2001). Kant e a psicanálise. Rio de Janeiro; Imago.         [ Links ]

Sandler, P.C. (2004). Religione e psicoanalisi. Conferência na Universitá La Sapienza, Roma.         [ Links ]

 

 

Agradeço à Sra. Maria Ignez de Melo Franco, Sra. Marcia de Mello Franco, pelo suporte e compreensão, e à Sra Miriam Lemos de Faria, pela lembrança bibliográfica.

 

 

Endereço para correspondência
Paulo Cesar Sandler
Rua Gomes de Carvalho, 892/31 – Vila Olímpia
04547-003 São Paulo, SP
Tel: 11 3045-0115
E-mail: dr.pcsandler@gmail.com

 

 

1 Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e docente do Instituto de Psicanálise da SBPSP.
2 Tínhamos excelentes amigos em comum neste país; destaco o Dr. Jayme Heresi I., que mantinha enorme respeito
por Odilon; foi responsável pela introdução da obra de Bion no país andino, formando uma série de colaboradores.
3 Do Odilon (2006) "A experiência dos místicos e a do psicanalista sob o vértice de Bion", depois reproduzida em palestra na SBPSP. Minha, Religione e Psicoanalisi; conferência na Universitá La Sapienza, Roma, 2004.

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