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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

ENTREVISTA

 

Entrevista: ser editor de psicanálise na Europa

 

Interview: being the editor of psychoanalysis in Europe

 

Entrevista: ser editor del psicoanálisis en Europa

 

 

Jean-Michel Quinodoz*

Sociedade Suíça de Psicanálise
Sociedade Psicanalítica Britânica
International Journal of Psychoanalysis

 

 

Jean-Michel Quinodoz é psicanalista clínico em Genebra, membro da Sociedade Suíça de Psicanálise e Distinguished Fellow da Sociedade Psicanalítica Britânica. Foi editor regional pela Europa do International Journal of Psychoanalysis de 1994 a 2003 e de 2008 a 2009. Desde 2003 é editor-chefe dos anuários europeus do International Journal of Psychoanalysis, que publicam uma seleção anual de artigos psicanalíticos com traduções em francês, italiano, alemão, turco e russo. Publicou mais de oitenta artigos psicanalíticos em diversas revistas e seus livros foram traduzidos em várias línguas.1 No último dia 14 de maio, o Dr. Jean- Michel Quinodoz, em visita à nossa Sociedade, concedeu ao Jornal de Psicanálise2 uma entrevista, na qual pôde discorrer sobre sua experiência como editor dos periódicos psicanalíticos na Europa, a formação do psicanalista na Suíça e alguns conceitos que desenvolveu como teórico clínico da psicanálise.

 

Jornal de Psicanálise − Agradecemos sua presença e desejamos-lhes boasvindas. Tendo presente a envergadura de seu conhecimento teórico e técnico, e partindo desse espectro tão amplo, gostaríamos de saber quais são as principais influências pessoais e as principais referências teóricas que guiaram o seu percurso como psicanalista.

Jean-Michel Quinodoz − Comecei minha formação, eu poderia dizer que de forma freudiana clássica, de influência francesa, pois na Suíça românica somos influenciados principalmente pela psicanálise francesa. Mais tarde, descobri Melanie Klein por intermédio de duas pessoas. Uma delas foi Marcelle Spira, que é uma psicanalista suíça que trabalhava, neste momento, em Genebra. Ela formou-se em Buenos Aires, com Mme Marie Langer, Enrique e Arminda Pichon-Riviere, e veio a Genebra em 1955. Fui influenciado também por Hanna Segal, que durante dez anos, na década de 1980, vinha a Genebra dar supervisão e ministrar seminários uma vez por mês. Quando me perguntam hoje sobre quais são minhas influências e sobre como me definiria, respondo que sou um psicanalista contemporâneo. Quer dizer, alguém que sofreu múltiplas influências e que tenta fazer uma síntese, jamais concluída, posicionando-se de forma aberta e tolerante frente às outras correntes psicanalíticas atuais, que são muito numerosas.

JP − Diante da complexidade do mundo atual, gostaríamos que nos falasse sobre como é ser editor, sobre suas reflexões a respeito das publicações e também da formação psicanalítica. Vamos pedir-lhe que fale primeiramente sobre sua experiência como editor europeu do International Journal of Psychoanalysis. No que concerne às publicações, gostaríamos de saber se houve mudanças em função de novas temáticas e de novos parâmetros clínicos.

J-MQ − Sempre me interessei pelas publicações, e desde que me tornei membro da Société Suisse de Psychanalyse, contribuí para o lançamento do Bulletin da SSP em 1979. Trata-se de um boletim em duas línguas, francês e alemão; todos os artigos em francês são traduzidos para o alemão e vice-versa. O boletim é publicado duas vezes por ano, há trinta anos. Quando fui designado como editor do International Journal para a Europa, penso que foi nessa linha, levando-se em conta minha experiência com diversas línguas – francês, alemão, inglês – e também porque, na Suíça, situamo-nos no cruzamento da Europa e das línguas. Tive uma experiência muito enriquecedora durante dez anos, dos quais os sete primeiros com David Tuckett. Viemos uma vez com ele a São Paulo, em 1995, e outra ao Recife. Foi uma experiência muito rica, fundada na confiança recíproca, o que quer dizer que eu, na qualidade de editor para a Europa, tinha depositada em mim a total confiança da Sociedade Britânica de Psicanálise, e eu também confiava nos membros do comitê editorial, assim como em seus numerosos leitores. O trabalho de editor para a Europa é particularmente difícil, pois, contrariamente ao editor latino-americano, que usa o espanhol ou o português, ou ao americano, que usa o inglês, eu tinha de trabalhar com 27 línguas oficiais, sem contar as outras. Mas devo dizer que a atmosfera de confiança foi importante, pois, durante dez anos, não sofri pressões políticas, tais como "você tem de publicar tal artigo ou deve recusar este outro". Jamais sofri pressão alguma da Sociedade Britânica, que é a responsável, a proprietária do Journal há muito tempo, desde 1947.

Durante esses anos, o Journal tornou-se cada vez mais internacional, porque houve uma mudança na política editorial. Desde o final dos anos 1980, as coisas mudaram. Antes era um jornal anglo-americano, que publicava somente artigos norte-americanos e da Grã-Bretanha; e se um europeu, um latino-americano ou um canadense quisesse submeter um artigo, ele deveria traduzi-lo para o inglês e submetê-lo em inglês, o que era muito complicado.

Havia, então, nesse momento, poucos artigos. A política mudou porque o jornal decidiu receber os artigos em qualquer língua, e, uma vez aceito o artigo, ele era traduzido às custas do Journal. Por quê? Primeiro para abrir mais e, segundo, para evitar problemas de tradução, pois tínhamos a garantia de ter a melhor tradução possível. Não é sempre possível ter uma tradução perfeita, mas houve um grande investimento por parte do Journal do ponto de vista financeiro.

Vocês sabem o trabalho que dá para o editor, para mim, como editor, encontrar leitores que não pertençam à Sociedade de onde vem o artigo. Então esse é um processo anônimo, totalmente anônimo. Os leitores não conhecem o nome do autor, o autor não conhece o leitor, mas, apesar disso, eu procurava fazer com que os artigos fossem avaliados, por exemplo, por alguém em finlandês, que não pertencesse necessariamente à cultura finlandesa, mas que fizesse parte da Europa ou reciprocamente, se o artigo fosse em polonês ou em russo, como começa a acontecer agora – buscava ser o mais democrático possível na avaliação.

Durante o período em que estive lá, houve um grande crescimento, de modo que atualmente pode-se dizer que metade dos artigos do Journal provém de outros lugares que não a Grã-Bretanha e a América do Norte. Por exemplo, os artigos europeus representam aproximadamente 35% ou 40% ou mais dos artigos. Eles vêm da Alemanha, da Itália, da França, da Suíça e também de outros países da Europa do Leste. Temos também artigos da Finlândia, da Suécia, da Espanha. Enfim, creio que o editor europeu tem agora uma participação muito importante, em torno de 40%, enquanto, quando comecei, em 1994, tínhamos 8% ou 10% de contribuições. Houve um crescimento grande. Quando deixei o Journal, em 2004, tive como sucessor Antonino Ferro, que continuou minha política com o mesmo espírito. Depois de David Tuckett, trabalhei com Glen Gabbard e Paul Williams, e em 2006 houve uma mudança, os editores mudaram – Dana Birksted-Breen e Robert Michaels tornaram-se editores responsáveis do Journal.

Houve então um problema importante quando Antonino Ferro foi editor para a Europa. Os artigos europeus foram paralisados e houve a suspensão de aproximadamente uma centena de artigos, porque o editor norte-americano, que era de uma tradição muito mais freudiana, como se diz, ortodoxa norteamericana, decidiu que os artigos europeus trariam problemas. Antonino Ferro tentou, fez um apelo para resolver esse problema, mas por fim não obteve sucesso e pediu demissão depois de cinco anos, enquanto poderia muito bem ter continuado.

Nesse momento a Sociedade Britânica interveio. Durante alguns meses, houve discussões com o intuito de abrir novamente o Journal aos artigos europeus, para que a diversidade, a democratização e, sobretudo, a internacionalização do Journal continuasse. Foi quando fui chamado para liquidar os problemas em curso, quer dizer, para retomar essa centena de artigos, reiniciar os processos de avaliação.

JP − O senhor disse que iria retomá-los...

J-MQ − Eu os retomei por um ano e o fiz porque a British Society resolveu o problema entre os editores. Nós o reabrimos. Eu impus condições para voltar. Não quis suceder Ferro novamente com o mesmo problema. Eu disse: "Eu o sucedo por um ano, mas somente com a condição de que os artigos não sejam mais barrados", caso contrário, não teríamos a internacionalização. A British Society concordou e resolveu o problema para que houvesse uma abertura novamente. Então, durante um ano, tive todo esse trabalho de retomar a avaliação dos artigos, mas agora a situação está novamente normalizada.

JP − O senhor pôde recuperar o atraso.

J-MQ − Eu pude recuperar o atraso, sim, é isso. Recuperei o atraso com a colaboração do comitê editorial e de numerosos leitores. Foi um grande trabalho, mas pude recuperar esse atraso, e desde 2010 Jorge Canestri tornou-se o editor para a Europa.

Atualmente, o problema está sendo resolvido, porque a British Society está criando condições que asseguram que não haja mais bloqueios à internacionalização. O Journal continua a ser internacional e penso que o será mais que nunca com as novas disposições da British Society.

O que gostaria de dizer, pessoalmente, é que, há muito tempo, há uma tendência que diz que o Journal deveria pertencer à Associação Internacional de Psicanálise, pois a psicanálise é de todos. Mas penso que se o Journal fosse publicado sob os auspícios da IPA (Associação Internacional de Psicanálise) eu temeria pela independência política. Sob os auspícios da British Society, posso dizer, por experiência própria e pela experiência de outros editores, que tivemos total independência.

Desde o começo, Joan Riviere, que foi editora de tradução do Journal por quinze anos, mostrou sua independência, mas depois de vinte anos tornamo-nos muito mais um jornal internacional eu temo que com a ipa, que é submetida a muitos conflitos e influências políticas, não teríamos liberdade para a seleção dos artigos, pois atualmente – e eu o percebo quando eu mesmo publico artigos – existe uma verdadeira discussão científica. Não é o background político que conta, e sim que há uma verdadeira discussão científica.

Danielle Quinodoz − Garantida pela British Society...

J-MQ − ... para manter uma qualidade elevada do Journal. Penso que as medidas que estão sendo tomadas pela British Society são favoráveis ao crescimento e à manutenção de uma garantia de internacionalização dos artigos.

JP − Aproveitando sua experiência com todas essas publicações durante esses anos todos, gostaríamos de lhe fazer uma pergunta de caráter particular, que se refere à nossa Sociedade. Vamos fazer um breve resumo.

Primeiramente, tínhamos no Brasil a Revista Brasileira de Psicanálise, que era a revista da Sociedade Brasileira de São Paulo. Há muitos anos, passamos essa revista para a Federação Brasileira de Psicanálise. Nessa ocasião, estabelecemos o acordo de que continuaríamos a escolher o editor, que seria de São Paulo, mas a revista é brasileira e pertence à FEBRAPSI (Federação Brasileira de Psicanálise), antiga ABP (Associação Brasileira de Psicanálise). A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo continua com duas publicações: a ide, que o senhor conhece, uma revista que faz interface com todas as outras disciplinas, sociologia, arte, cinema etc., e o Jornal de Psicanálise, que pertence ao Instituto de Psicanálise, um instituto de formação. Este tinha, no início, o formato de jornal, e agora é uma revista. Uma revista que era, na sua origem, destinada aos candidatos, hoje chamados membros filiados, para que pudessem fazer suas primeiras publicações.

J-MQ − Quando fundei o Boletim, a ideia era essa também, fazer com que as pessoas escrevessem. Vou contar, entre parêntesis, uma pequena história. Nossos professores, que eram muito pessimistas, disseram-me: "Você quer fazer um boletim? Os suíços não escrevem. Você faz o primeiro número, e depois nenhum mais. Isso não serve para nada e tem um custo em dinheiro, sai muito caro. Os parisienses escrevem, mas os suíços não". E nós estamos no 32º ano e agora os suíços escrevem. Para os candidatos era a oportunidade de apresentação em público. A eles, dizíamos: "Você ouviu uma conferência? Faça o resumo da conferência, da discussão. Você leu um novo livro? Escreva sobre o livro, faça o book review". Era assim, e assim continua.

JP − Também era assim aqui. Mas, pouco a pouco, neste mundo complexo, o perfil dos alunos mudou muito. Hoje temos pessoas que são muito graduadas, professores universitários, com muitas publicações. São mestres, doutores, livre-docentes, que fizeram também muitas outras formações psicanalíticas em outros institutos, que não pertencem à IPA. Quando chegam ao Instituto de nossa Sociedade, começam pouco a pouco a publicar na Revista Brasileira, na ide, e o Jornal não é mais o jornal para os alunos. Nós, a editora e seu grupo editorial, estamos repensando a identidade do Jornal. Gostaríamos de saber se o senhor acha que ainda faz sentido uma publicação voltada somente para os alunos ou se devemos talvez transformá-la em uma revista científica da Sociedade de São Paulo e a ide continua com sua vocação de interface.

J-MQ − Na conferência de ontem eu disse que é como nos sonhos, depende do contexto. Penso, efetivamente, que é preciso encontrar uma solução que depende do contexto. Em nossa relativamente pequena Sociedade suíça, muitas vezes nos perguntamos se deveríamos fazer uma revista suíça ou se continuávamos com o Boletim. Entre as Sociedades que conheço, a Sociedade belga teve os mesmos problemas que os nossos. Ela é grande como a Sociedade suíça e tem mais ou menos duzentos membros. Na Suíça, temos duzentos membros e 250 candidatos, da Suíça alemã, românica e italiana. Na Bélgica, eles resolveram o problema, fizeram uma pequena revista belga, que é uma revista, o que quer dizer que aquilo que é publicado nela torna-se copyright, enquanto, se publicamos em um boletim, não. Na Suíça, há alguns anos e por decisão da comissão, resolvemos manter somente um boletim. As pessoas podem escrever e publicar. Depois podem publicar em uma revista, e aí se torna copyright. No caso da França, que eu conheço um pouco melhor, eles publicam na Revue Française de Psychanalyse, uma revista, mas eles publicam o Bulletin de la Société de Paris, que é um boletim, espesso como uma revista, muitas vezes por ano, e que contém questões internas, quer dizer, debates públicos sobre questões de dinheiro, sobre questões de seguro social, políticas internas e artigos sobre ética, que não podem ser publicados em uma revista. Então eles têm um boletim, ou um documento que é interno à Sociedade. E a Revue Française é mais copyright. Na Itália, eu não sei exatamente como isso se dá. Não sei se a revista italiana que eles têm ainda é em italiano e em inglês. Na Alemanha, existem duas revistas, a Psyche, a mais antiga e que é mais como a ide, mais aberta à sociologia, à política e às questões psicanalíticas também. Os clínicos fundaram outra revista que se chama Psychoanalytische Theorie und Praxis, Zeitung für Psychoanalytische Theorie und Praxis, porque eles queriam ter uma revista psicanalítica mais clínica, mais teórica, uma revista que é em alemão, que agrupa os editores da Alemanha, da Áustria, da Suíça alemã e, em parte, da Holanda, que é também em alemão. Eu diria que é mais técnica e clínica que a Psyche.

DQ – Eu poderia acrescentar alguma coisa? Quando estava na comissão que refletiu sobre se deveríamos ou não manter o boletim privado ou se deveríamos transformá-lo em revista, na qual não poderíamos publicar assuntos tão privados quanto em um boletim, descobrimos que o boletim tinha uma função muito particular na Suíça, que é trilíngue, e isso em uma mesma Sociedade, uma única Sociedade Suíça que tem a parte que fala alemão, a que fala italiano e a que fala francês. Era importante fazer com que o boletim fosse o traço de união entre essas três partes da psicanálise suíça, pois não se trata apenas de diferenças de língua, e sim de diferenças de cultura por trás das línguas. E, sobretudo, era necessário reunir a parte suíça alemã com toda a cultura alemã que estava por trás, e a parte suíça românica com a cultura românica. No Boletim publicávamos cada artigo nas duas línguas, alemã e francesa. A Suíça italiana, com pouca participação, está próxima da Suíça românica, onde se fala francês. Então tínhamos no Boletim uma função muito particular, a de elo para manter a unidade da Sociedade Suíça. E isso funciona. É muito importante que o Boletim continue a exercer essa função privilegiada, a qual não poderia ser exercida por uma revista, pois como poderia manter-se publicando um mesmo artigo em duas línguas? Não interessaria aos alemães comprar uma revista cuja metade do preço seria para o mesmo artigo em francês. Era isso que eu queria acrescentar.

J-MQ – Foi importante esse acréscimo. A prova é que uma vez tentamos publicar um livro com artigos originais em parte franceses e em parte alemães, e não vendemos nada. Impossível encontrar um editor.

JP − Os candidatos, na Suíça, publicam na revista ou no boletim?

J-MQ − Em geral, começam por publicar no Boletim, justamente porque é "em família", e isso faz com que sintam vontade de escrever mais e de publicar mais longe, e depois na Revue Française.

DQ − Os candidatos na Suíça também são pessoas bem preparadas.

J-MQ − Nossos candidatos são pessoas mais velhas, com cinquenta anos e até mesmo com sessenta, quase não temos pessoas jovens. Os jovens estão começando a aparecer agora.

DQ − É preciso estar muito adiantado na análise pessoal para poder tornar-se candidato. E é somente após tornar-se candidato que este diz que sua análise tornou-se didática. A análise pessoal começa antes de a pessoa saber se quer fazer uma formação ou não.

JP − Gostaríamos de lhe perguntar sobre as raízes da psicanálise suíça, sobre quais são as escolas predominantes.

J-MQ − É uma imensa questão. Danielle tem mais competência para respondê- la, porque ela é da Comissão de Ensino. Mas a partir de minha experiência poderia dizer que na Suíça somos multiculturais em relação às línguas, às culturas civis e às culturas psicanalíticas também. Temos pessoas que vêm dos quatro cantos do mundo, do Brasil inclusive; pessoas formadas na Alemanha, na Áustria, Nova York, Buenos Aires e com muita influência de Paris. Posso dizer que a formação, como disse a Danielle, não é um instituto em que lhe é dito por onde começar e quais seminários devem ser feitos. É uma formação que alguém como Janice de Saussure definiu da seguinte maneira: "swim or sink" − ou você nada, ou se afoga. Esta para mim é a melhor definição. Quer dizer que, se você se interessa pela psicanálise, faz primeiramente sua análise pessoal, e depois de quatro, cinco, seis anos você procura a Comissão de Ensino, que o recebe uma primeira vez, e depois no ano seguinte. No primeiro ano o pretendente fica sem resposta, no segundo lhe é dito: "Sim, você tem análise suficiente para começar a formação", ou então: "Ainda não é o momento". Os pretendentes podem retornar quando quiserem; eles continuam a análise ou a terminam. Quando fazem a formação − a análise de formação é a análise après coup, ou seja, depois de iniciados os cursos, como se diz na França. Quer dizer que, uma vez aceito para os cursos, dizemos: "Sim, você faz uma análise que é reconhecida como análise de formação". O início é a análise pessoal.

DQ − A própria pessoa analisa seu desejo de tornar-se analista. No fundo, nas primeiras entrevistas, tentamos perceber principalmente se a pessoa compreendeu verdadeiramente por que ela quer se tornar analista. Esta é a coisa mais importante para poder iniciar a formação.

J-MQ − É como na França, este é o sistema da APF (Associação Psicanalítica da França) ou da Sociedade de Paris. Quando recebemos um candidato para formação, ele imediatamente pode receber pacientes em análise, sob supervisão. E ele faz seminários, mas também nos seminários ele é livre, totalmente livre. Temos muitos seminários. Temos seminários de tradição francesa, de tradição britânica, seminários de tradição latino-americana, e escolhemos segundo nosso gosto pessoal.

É no quadro dessa formação que nos esquecemos de Freud. Porque tínhamos tantos seminários, de tantas orientações... Os candidatos um dia vieram me dizer: "Não temos mais seminários de Freud. Gostaríamos de redescobrir Freud". "Porque Freud", diziam-lhes, "vocês leem sozinhos." Então é o sistema "nadar ou se afogar" também com o seminário.

DQ − Como a Sociedade cresceu, há um início de exigência mais estruturada, agora. Para aceitar que alguém tenha sua formação validada, a Comissão de Ensino verifica se há um equilíbrio entre os seminários clínicos e os seminários teóricos na lista de seminários que a pessoa fez. Há também a exigência de que haja ao menos um seminário importante sobre Freud. Mas o candidato pode fazer os seminários na ordem que ele quiser. Pode, por exemplo, começar por Bion. É preciso dizer que quem dá os seminários o faz gratuitamente. Há, portanto, o desejo de escolher o seminário que lhe apraz. Além disso, é somente o responsável da Comissão de Ensino que diz: "Sim, mas faltam seminários de Freud. Acrescente-os".

J-MQ − O que é importante no sistema, é que isso funciona por meio das identificações. Sempre.

JP – É exigido um número mínimo de seminários? E isso dura quanto tempo? Quatro, cinco anos?

J-MQ − Teoricamente, sim, um número mínimo de seminários é exigido. Exigimos, no entanto, que a frequência aos seminários dure dez anos. Antes era livre. Se o candidato não fazia nada, ele não fazia nada. Depois, no dia em que queria se apresentar, víamos que, por não ter feito nada, não sabia nada. Mas aquele que verdadeiramente queria se formar estava bem formado. Bem formado, de maneira identificatória, com muita liberdade. Temos candidatos que têm excelentes qualidades, são muito bons analistas, analistas que escrevem, que participam dos congressos.

Depois de dez anos de formação, eles devem solicitar continuar, fazer uma prolongação. Mas eles têm de solicitar. E, se eles não solicitam, lhes escrevemos. É nesse momento que alguns desistem e se retiram.

É verdade que temos muitos candidatos, ao contrário de muitas sociedades atuais. Em Londres, por exemplo, a procura é muito pequena, e se eles chegam a cinco, seis candidatos por ano, eles já ficam satisfeitos. Na América do Norte também. Porém, estivemos em Fortaleza, no Rio e, agora, aqui, e o que encontramos foi um Brasil vibrante. Estamos reassegurados quanto ao futuro da psicanálise!

Gostaria de falar sobre o Livro Anual, que faz parte da formação e de minha atividade de editor.

Em 2003, quando eu era editor para a Europa, Glen Gabbard e Paul Williams, os editores do International Journal, me pediram para ver se seria possível publicar na Europa o Libro Anual, o que é feito na América Latina há 25 anos. Eles pensavam que seria também um meio de o International Journal estender a comunicação, porque na Europa há muita gente que não fala suficientemente o inglês para saboreá-lo. No fundo, a ideia era ver se era possível ampliar a difusão. Eu pude lançar vários Livros Anuais. Eles são todos diferentes. Cada região linguística faz o seu por sua conta. Há o francês, o italiano, o alemão, o turco e o russo. Cada comitê está livre para escolher. E é interessante ver que há autores mais apreciados, os preferidos. Alguns o são mais em seu país e outros alhures. Cada Livro Anual é independente, o quero dizer é que isso faz parte da internacionalização do Journal.

Procurei ter mais contato com a América Latina, também. Por exemplo, no Congresso de Chicago tivemos um encontro com os editores dos anuários latino-americanos. Infelizmente a Nilde Parada Franch não pôde ir à Chicago. Mas o Gustavo Jarast estava lá e o Roberto Doria-Medina também.

Também fizemos um site na internet, com os anuários − annualsofpsychoanalysis.com −, porque, justamente como disse há pouco, se queria mais comunicação, também com uma exposição do Livro Anual. É um site muito prático, porque, para um site da internet, é preciso que com um ou dois toques se consiga acessar um livro. Ora, é muito difícil. Os europeus me disseram: "Se você vai à América Latina, diga que é muito importante que se tenha maior difusão", porque é muito difícil para aqueles que querem ter o Livro Anual em português na Europa, ou mesmo o Libro Anual em espanhol.

Sandra Gonçalves – Sim. O grupo atual do Livro Anual já trabalha para uma melhor difusão. Vamos fazê-lo, vamos fazer o site, vamos renovar a concepção. A edição em espanhol e a edição em português estão bem separadas atualmente.

J-MQ − Isso é tudo que eu queria acrescentar, com a esperança de que cheguemos a uma ampliação. A experiência do L'Année Psychanalytique é que isso faz parte também da formação. Por exemplo, a França tem uma influência muito forte na psicanálise suíça românica, uma influência, eu diria, um pouco excessiva, e que é um pouco como a psicanálise americana que vê, sobretudo, a psicanálise americana, a inglesa vê mais a psicanálise inglesa...

Há duas semanas, justamente, para favorecer a difusão do pensamento psicanalítico no nível internacional, o Instituto de Psicanálise de Genève de Lausanne, da Suíça românica, decidiu dar a assinatura automaticamente a todos os membros e candidatos desta série. Isso é uma boa notícia, porque é importante para a difusão. É muito difícil penetrar no mercado francês, que conhece muito pouco a psicanálise internacional, se bem que agora tenha mais abertura.

JP − Como a assinatura gratuita foi recebida?

J-MQ − Foi um milagre. Temos uma nova responsável do Instituto, que escreve no International Journal, Adela Abella, de origem espanhola, e que escreveu sobre Segal e a arte contemporânea. Ela estava entre os meus responsáveis. Ela levou para a assembleia geral o problema de não cobrar o L'Année Psychanalytique. Era necessário difundir o pensamento de nossos psicanalistas − candidatos e membros. Através do balanço para os três próximos anos, e a verificação de que havia bastante dinheiro, ela propôs que se fizesse essa oferta para a formação, para a ciência psicanalítica, enfim. Ela pensou em termos internacionais. E as pessoas concordaram. Algumas não, mas estas nós conhecemos há muito tempo. São sempre pessimistas e disseram não. Tivemos muito medo de que isso não passasse, porque elas têm influência.

DQ – A editora do L'Année Psychanalytique fez um preço melhor para esse abono coletivo.

J-MQ − O número era vendido por 27 euros. Depois o editor concordou em fazer por 20 euros, em vez de 27 euros, com porte pago. Isso significa que cada um vai recebê-lo individualmente. É uma redução de 30% sobre o preço do volume. É, finalmente, muito eficaz para a formação. Não somente para a formação dos candidatos, mas para a abertura sobre o mundo da psicanálise.

JP − Gostaríamos de saber sobre a concorrência entre a publicação em papel e a publicação na internet. Se há uma publicação integral de todas as publicações, não somente do International Journal.

J-MQ − Sim, isso nos interessa para o Livro Anual, porque agora há a edição PEP3, o PEP-WEB, vocês conhecem, não? Em muitas Sociedades, se a sociedade é grande, pode-se abonar a assinatura do PEP-WEB, não ficando muito caro. Creio que a Sociedade de Paris vai negociar o abono anual, todos os PEP. Antes eram 80 dólares, creio, e agora 60 dólares para membros e 30 dólares para candidatos.4

Então, se a Sociedade quer negociar, você pode negociar com David Tuckett e Nadine Levinson. L'AnnéePsychanalytique está agora na internet também, mas se espera um intervalo de três anos antes de colocá-lo no PEP-Web. Senão, ninguém o compraria. Atualmente há o Livro Anual italiano, o francês e alemão, que acaba de começar, não está ainda no PEP. É extremamente benfeito, como podem ver. Através dos e-books você pode acessar a L'Annata Psicoanalítica Internazionale, em italiano, o L'Année Psychanalytique Internationale, em francês.

Penso que agora a edição eletrônica está em via de ser feita, com o prazo de três anos. Mas creio que, no momento, isso não substitui a edição em papel.

JP – Gostaríamos que o senhor nos falasse sobre o conceito portance, que no livro A solidão domesticada foi traduzido como autossustentação. Pareceunos um conceito muito rico para a clínica psicanalítica.

J-MQ − Posso responder rapidamente a esta questão. O conceito de portance é uma palavra muito bonita em francês e em italiano, só que não tem outra tradução igualmente poética em outras línguas. Com a palavra "domesticada" acontece a mesma coisa. O título do livro "A solidão domesticada também não transmite totalmente a ideia. Em francês é La solitude apprivoisée, mas em outras línguas não existe a palavra apprivoisée.

Ela dá uma ideia bastante poética. Utilizei a palavra portance, no fundo, porque há muitas palavras para exprimir a angústia sob todas as formas. Mas há poucas palavras para exprimir o sentimento de que se atinge certo equilíbrio. Utilizei uma comparação e minha comparação é dizer que portance é um pouco como o surfe sobre a onda. Podemos ter equilíbrio sobre a angústia, angústia de morte, angústia de incerteza, do desconhecido. Além disso, estamos sempre em mudança, nunca estamos estáveis. Assim sendo, nunca atingimos uma sustentação, estamos sempre em movimento quando é preciso manter o equilíbrio. Então é uma palavra muito falada, mas de difícil explicação.

Teresa Haudenschild − Jean-Michel, existe uma aproximação com o conceito de continência?

J-MQ − A continência é uma coisa diferente. A continência é muito mais uma coisa que envolve, mas diria que há algo na identificação, justamente, a capacidade de continência. Mas, sim, tem alguma proximidade. Mas não é de modo algum a mesma coisa.

JP − Pensamos que é um conceito complexo. Que evoca a ideia de holding... contenance... e o conceito de Cléopâtre Athanassiou de soutenance.

J-MQ – Se tomamos a etimologia da palavra portance, em francês ou em italiano, é um termo técnico, que significa a capacidade de suportar uma carga. Por exemplo, estamos sobre este chão. O engenheiro calculou a capacidade de suportar uma carga para que este piso não afunde. Uma estrada também tem uma capacidade de sustentação. Há também outra ideia de portance – a força que sustenta o avião no ar. Quando o avião voa, há correntes sobre a asa que determinam uma capacidade de ser sustentado a partir de certa velocidade, digamos.

Além disso, é também a força que está em questão no surfe. A velocidade de o surfe permite ter uma força de resistência da onda que sustenta, também.

DQ − É muito mais uma força interna que permite sentir o momento de equilíbrio interior. Muito mais que ser sustentado por outra coisa qualquer.

J-MQ − Sustentação ou buoyancy, em inglês, é mais flutuar. É algo interior.

TH − Em português diríamos a capacidade de "carregança", mas esta palavra não existe.

S − Quando viajo de avião, digo sempre para o meu marido que não tenho medo de que ele caia. Tenho medo de... ou o que me inquieta são as turbulências. Portanto, é o que o senhor diz. Porque, em um avião, não sabemos jamais quando é que este movimento vai... é isso. Assim, na turbulência, a gente perde...

J-MQ − Na turbulência há menos força que em águas tranquilas. Quando não há turbulências não sentimos nada, acreditaríamos estar imóveis.

S − Gosto da sua analogia, ela é boa, porque a sinto no avião. Quando tudo está bem, sem problemas, ok. Mas na turbulência, "Meu Deus!"... E é isso a vida psíquica.

J-MQ − Sim, a vida psíquica, na turbulência, é um mistério. A sustentação é um equilíbrio que perdemos e recuperamos. Perdemos a sustentação e a recuperamos todo o tempo. Não a possuímos jamais, mas sabemos o que é. Se não pensamos nisso, podemos dizer que o equilíbrio está sempre lá ou que o desequilíbrio sempre está lá.

JP – É interessante a maneira como o senhor olha o material do paciente, um olhar benigno. Um olhar que vê, sobretudo, o bem, dando importância a esse aspecto da vida psíquica, por menor que seja.

DQ − Como Jean-Michel disse, o que decide é o material paralelo que há, o contexto. A decisão é do analista, não somente por benevolência, mas pela capacidade de ver se são coisas que retornam e que são surpreendentes porque retornam, ou momentos alucinatórios, pesadelos. Isso é outra coisa. É o contexto do analista que decide.

JP – Vocês discriminam isso de ter esse olhar?

J-MQ − Efetivamente pensei em algo assim: poder ver o positivo, mesmo no negativo. Nós fomos criticados por isso. Dizem-nos "Vocês são ingênuos, vocês...", são somente ingênuos. A crítica que nos fazem é que jamais devemos dizer coisas positivas ao paciente. Devemos sempre interpretar as defesas. "Você está em conluio", dizem. "Você acaricia o paciente, você é sedutor." Você ficaria triste ao escutar isso.

DQ − É muito importante para mim, pessoalmente. Quando vejo o copo, digo: "Ele está com a metade cheia", ainda que outros vão se referir à metade vazia. Vejo bem que é metade, que não está todo cheio, mas acho importante, com o paciente, dizer que a metade está cheia, por ver o positivo. Sem ignorar o negativo. E também, uma das críticas que recebemos frequentemente é que interpretamos o objeto mau, que na transferência, pessoalmente, eu me apresento frequentemente como objeto mau, mas também como bom objeto. Eu me apresento como a mãe que é criticada, porque não é perfeita. Acho muito importante apresentarmo-nos sob o aspecto do objeto mau, isso para poder aceder à posição de apreciar, e ser um objeto total, com bons e maus aspectos. E não ter medo de assumir os aspectos maus.

J-MQ − Efetivamente, o que aconteceu é que nossos críticos... critica-se Klein por interpretar o mau objeto, isto é, que temos também partes más enquanto analistas em relação ao paciente. A crítica é de nos interpretarmos como objeto, através dos sonhos etc., e ao mesmo tempo, silenciosamente, o liberarmos (on le libère). De acordo com essa crítica, não é preciso nunca interpretar um bom objeto, porque isso seduz o paciente.

DQ − São críticas muito menos importantes hoje, porque demos muita supervisão, e os jovens psicanalistas veem quanto é importante no trabalho com os pacientes. Eles frequentemente nos pedem supervisão nos casos difíceis, para sair de grandes dificuldades.

Na verdade, eram críticas que recebíamos quando éramos analistas muito jovens, e agora, que somos velhos, temos mais liberdade.

J-MQ − É verdade que tivemos muito a fazer. Aliás, finalmente, foi muito bom, porque estes conflitos nos obrigaram a afirmar nosso pensamento, a escrever. Mas tivemos muita oposição, porque há, na tradição francesa, uma grande oposição a tudo que é ideia contemporânea, a Klein... Bom, mas agora isso está mudando.

Por exemplo, Roussillon e Green falam muito de Bion ou de Winnicott, sobretudo, mas não falam muito de Klein. Mas Bion e Winnicott foram construídos sobre Klein.

É de qualquer modo uma mudança de mentalidade, sobretudo junto aos analistas jovens.

DQ − Penso que a liberdade é muito maior agora do que quando éramos jovens analistas.

JP – Então, obrigada, estamos muito contentes de tê-los conosco.

 

 

* Jean-Michel Quinodoz é psicanalista clínico em Genebra, membro da Sociedade Suíça de Psicanálise e Distinguished Fellow da Sociedade Psicanalítica Britânica. Foi editor regional pela Europa do International Journal of Psychoanalysis de 1994 a 2003 e de 2008 a 2009. Desde 2003 é editor-chefe dos anuários europeus do International Journal of Psychoanalysis, que publicam uma seleção anual de artigos psicanalíticos com traduções em francês, italiano, alemão, turco e russo. Publicou mais de oitenta artigos psicanalíticos em diversas revistas e seus livros foram traduzidos em várias línguas.
1 La solitude apprivoisée: l'angoisse de séparation em psychanalyse (PUF, 1991), Les rêves qui tournent une page (PUF, 2001), Lire Freud: découverte chronologique de l'oeuvre de Freud (PUF, 2004), A l'écoute d'Hanna Segal: sa contribution à la psychanalyse (PUF, 2008). Foram publicados em português A solidão domesticada: a angústia de separação em psicanálise (Artes medicas, 1993) e Ler Freud: guia de leitura da obra de S.Freud (Artmed, 2007).
2 Estiveram presentes à entrevista: Danielle Quinodoz, Teresa Rocha Leite Haudenschild, Sandra Maria Gonçalves, Eunice Nishikawa e Sonia Maria Camargo Marchini. A entrevista
foi conduzida em francês por Sandra Gonçalves (atual secretária executiva do Livro Anual de Psicanálise), que contribuiu com o corpo editorial do Jornal de Psicanálise.
3 Psychoanalytic Electronic Publishing www.p-e-p.org.
4 Valores vigentes por ocasião da entrevista.

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