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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Por que um jornal?

 

Why a journal?

 

¿Por qué un jornal?

 

 

Elias Mallet da Rocha Barros1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor descreve sua experiência editorial em revistas científicas e discute sua função e funcionamento. Ao fazê-lo coteja a função e o funcionamento dessas revistas na área da psicanálise com a própria atividade psicanalítica.

Palavras-chave: Peer review, Journal, Fédida, Escrita psicanalítica, Processo de avaliação.


ABSTRACT

The author describes his long editorial experience in regular Scientific Journals and he discusses its function and modus operandi. Subsequently he also discusses the relationship between the psychoanalytical activity in the clinic and the function of a Psychoanalytical Journal.

Keywords: Peer review, Journal, Fédida, Psychoanalytical writing, Evaluation process.


RESUMEN

El autor describe su experiencia editorial en revistas científicas en el área del psicoanálisis y discute su función y funcionamiento comparándolos con la propia actividad psicoanalítica.

Palabras clave: Peer review, Journal, Fédida, Escritura psicoanalítica, Proceso de evaluación.


 

 

Tive ao longo de minha vida profissional uma intensa participação no campo editorial. Fui editor do Livro Anual de Psicanálise, da Revista Brasileira de Psicanálise, de duas coleções da Editora Imago e, durante cerca de treze anos, editor para a América Latina do International Journal of Psychoanalysis. Ao todo estive mais de 20 anos ligado a esse campo.

Com certa frequência me perguntei sobre o que me atraía nessa atividade. A primeira resposta que me ocorria referia-se à minha intensa curiosidade sobre como outros analistas pensavam a psicanálise nas mais diversas culturas e esse motivo vinha associado a uma busca do rompimento do sentimento de solidão que penso ser inerente à nossa atividade. A essa resposta ingênua seguiase outra: eu estava interessado em saber como o conhecimento psicanalítico se acumula para se constituir em um corpo coerente. Dessa forma me dei conta de que os jornais e revistas científicas eram parte integrante do discurso científico da humanidade desde o século XVIII e fontes para avaliar a evolução do pensamento humano. Essa produção compartilhada por quase todas as culturas é parte daquilo que Hegel chamava de progresso do espírito humano. A estupidez, a ignorância, o ódio à ciência e ao pensamento podem dominar aqui e ali e por certos períodos de tempo, mas o espírito humano sempre progride e esse desenvolvimento pode ser acompanhado através desse tipo de publicação.

Em um artigo anterior, produzido em conjunto com Elizabeth Rocha Barros, enfatizamos que escrever é a única forma de submetermos aos outros o que somos como analistas e de tornarmos a teoria psicanalítica uma construção coletiva e patrimônio comum de todos os analistas, passível de ser pensada criticamente. Sugiro que cada termo constante dessa sentença anterior deva ser objeto de reflexão por todos nós.

Todos nós somos formados em um contexto em que predominam certas orientações teóricas com as quais normalmente nos identificamos, com maior ou menor grau de independência. Quando escrevemos, entretanto, buscamos uma identidade que transcenda nossas origens. Essa nova identidade se forma graças à crítica de nossos leitores, cujos veículos de expansão são os jornais e revistas científicas.

Assim, de certa forma, nunca deixaremos de ser analistas de certa inspiração teórica (kleiniana ou pós-kleiniana, winnicottiana etc.), mas ao escrevermos a partir de nossa clínica buscamos uma identidade que transcenda nossas origens. Assim, ao escrevermos não estamos apenas pondo ideias sobre uma folha de papel. Ao transformarmos vivências, que têm sua origem no inconsciente, em escrita, estamos embarcando em uma aventura que não tem um ponto de chegada previamente definido. Se o tivesse seria uma escrita empobrecedora e autoritária, destinada a fazer proselitismo.

A existência de periódicos científicos funciona com um cadinho para a elaboração contínua dessa identidade coletiva, uma identidade em movimento. Essa construção não ocorre linearmente, pois não é dessa forma que avança o conhecimento. Este se desenvolve dialeticamente por aprofundamentos, rompimentos, retorno ao original, novo rompimento de paradoxos etc.

O analista-escritor faz face a um paradoxo, como já foi apontado por André Green (1992), pois pretende ao mesmo tempo comunicar e convencer, refletir e ter razão. Os comitês editorias das revistas têm por tarefa, dentre as mais importantes, a de zelar para que essas motivações dialeticamente contraditórias mantenham-se equilibradas.

Os analistas se confrontam com um problema complexo ao lidar com esse paradoxo, especialmente aqueles que escrevem sustentando sua argumentação sobre experiências clínicas: como transmitir as observações e as vivências eminentemente emocionais que se passaram entre o analista e o analisando no consultório de forma a que o leitor possa entrar nesse clima para acompanhar a reflexão sem, ao mesmo tempo, impor uma visão ao leitor? A meu ver, este ponto é central. A vivência clínica, em si mesma, não serve para comprovar um ponto de vista, ela é apenas uma ilustração dele.

Tendo em vista as funções acima mencionadas, os jornais necessitam ser seletivos. Não é possível publicar tudo o que é enviado a um jornal. Quanto mais prestígio ele tem, maior o número de artigos que recebe. As publicações são avaliadas das mais diversas maneiras, pelas mais diversas agências. Dessa avaliação decorre o prestígio da revista ou do jornal, e desse prestígio decorre sua circulação. Uma das formas de avaliar uma publicação científica refere-se a um índice chamado "taxa de impacto". Basicamente este índice refere-se ao número de vezes que a publicação é citada em trabalhos científicos em determinado período. Quanto maior a taxa de impacto, mais seletiva torna-se uma publicação. Sendo assim, as publicações precisam desenvolver critérios de seleção. Nem tudo o que é pensado é novo ou original. Isso costuma irritar as pessoas e a criar mitos a respeito do funcionamento dos periódicos científicos, que se utilizam do processo de avaliação por pares − peer review system. Quanto menos conhecidos são os critérios de seleção, maior a taxa de persecutoriedade da população que entra em contato com ela. A paranoia leva as pessoas a acreditarem que somente os "amigos" dos editores têm seus artigos publicados ou somente pessoas de determinada orientação teórica ou de certas nacionalidades são editados e publicados. Essas pessoas certamente desconhecem que as publicações são auditadas − existem agências avaliadoras de correção dos procedimentos, da mesma forma que auditorias zelam pela correção dos balanços e dos bons procedimentos corporativos − e que seu prestígio depende da confiança em sua seriedade no que tange aos procedimentos de avaliação e seleção de artigos para publicação, e assim do prestígio e respeito dos quais goza nos meios acadêmicos. Todas as publicações que se revelaram incompetentes nos seus critérios de seleção pagaram um alto preço por isso. A incompetência se refere a diversos fatores, dentre os quais poderíamos destacar: 1. incapacidade para discriminar plágios; 2. incapacidade para discriminar novidades e/ou originalidades; 3. incapacidade para detectar afirmações absurdas e/ou preconceituosas, isto é, sem sustentação baseada em argumentos críveis; 4. incapacidade de detectar tratamentos estatísticos indevidos (falhas de amostragem, escolha inapropriada de testes das hipóteses, utilização de níveis de generalização incorretos etc.) quanto às conclusões resultantes e algumas outras de natureza menos contundente.

Em uma primeira abordagem parece arrogante atribuir a alguém (o editor) ou a um grupo (o comitê editorial) decidir o que vale a pena ser publicado ou não. Mas o sistema de avaliação por pares tem por objetivo exatamente evitar que uma única pessoa tome essa decisão. E de certa forma podemos dizer que, por mais falha que a avaliação por pares seja, ainda é a melhor forma de avaliar a qualidade de um artigo.

Em linhas gerais, esse sistema opera da forma descrita a seguir.

O editor, depois de receber o artigo, normalmente o encaminha anonimamente a três (ou mais, nunca menos) outros "leitores" (avaliadores), que igualmente permanecerão anônimos para o autor e entre si. Esses "leitores" são escolhidos por seu currículo e pela respeitabilidade de que gozam nos meios científicos. As revistas são tanto mais respeitadas quanto mais respeitados forem seus comitês editorias e seu corpo de avaliadores.

O sistema é necessário por muitas razões. Em primeiro lugar, uma pessoa, por mais informada e culta que seja, não domina todo o campo de conhecimento coberto pela publicação da qual é editor. A distribuição da avaliação por diversas pessoas também serve ao propósito de garantir a diversidade de opiniões e facilitar a identificação das falhas e dos eventuais erros no artigo.

Depois de recebidos os pareceres dos avaliadores, o editor julga se o artigo foi aprovado, se necessita de modificações, se mais esclarecimentos são necessários antes que esteja em uma forma publicável, se o estilo e a gramática são adequados etc.

Nas publicações psicanalíticas − e em todas aquelas das áreas das ciências humanas, embora esta questão não se restrinja a esse campo específico −, é raro que um artigo seja publicado na primeira apresentação. Frequentemente o autor confunde a solicitação de modificações no texto com rejeição do artigo. Quase ninguém sabe que mais de 90% dos artigos não são aceitos na primeira avaliação. E, na minha experiência pessoal, quase sempre também as solicitações de modificação e/ou pedidos de esclarecimento enfurecem o autor. Mesmo sendo editor já por vários anos, eu mesmo invariavelmente me sentia injuriado por essas recomendações, pedidos de esclarecimento etc. Para mim era óbvio que o pedido ou o comentário do avaliador era indevido. Já me peguei enfurecido, pensando que eram frutos da ignorância, da burrice, da má vontade, da falta de leitura atenta etc. Às vezes essas conclusões podem até ser verdadeiras, mas, depois de passado algum tempo, com igual frequência eu me sentia agradecido pelos comentários que me faziam refletir mais profundamente. Eu era obrigado a repensar a questão, reexaminar meus argumentos, confrontar-me com as obscuridades presentes na argumentação, com a ordem seguida pelos argumentos, dar-me conta da confusão de teses, ter de enfrentar a precariedade de certas definições, tomar conhecimento de outros artigos tratando do tema que me haviam escapado etc.

A função do editor e dos avaliadores não é a de vetar a publicação, mas de demandar o refinamento delas.

Nesse processo é fundamental que o autor tenha um argumento claro e o desenvolva com lógica. De forma bem simplista poderíamos dizer que um argumento é uma afirmação com a qual podemos concordar ou discordar.

Um artigo enviado ao International Journal of Psychoanalysis, ou a qualquer outra publicação do mesmo gabarito, não se sustenta na tese, por exemplo, de que "a contratransferência é muito importante para a psicanálise". Essa afirmação é tão genérica que não permite qualquer desenvolvimento, e discordar dela é muito difícil exatamente por esse caráter. Mesmo aqueles que não acreditam na eficácia clínica do conceito não deixam de considerá-lo importante. Sofreria do mesmo mal um argumento que rezasse assim: "Discordo do conceito e do uso da contratransferência na obra de Freud". Podemos concordar ou discordar dessa afirmação? Claro que não, pois depende dos argumentos a seguir. E se o autor pretendesse que "Freud se enganou ao rejeitar esse conceito, pois hoje ele é muito útil"? Também seríamos levados a concordar ou a discordar dessa afirmação, provavelmente por razões mais ideológicas de um lado, e, de outro, não sabemos com quem o autor está dialogando e, por fim, a ideia de que ele é muito útil é muito genérica. Ter clareza no argumento que o autor está investigando é fundamental para que um artigo seja considerado para publicação.

A seguir o autor precisa desenvolver suas ideias utilizando-se de uma articulação lógica em que os "achismos" não têm função. De nada vale a afirmação "Na minha experiência é assim!". Necessitamos de argumentos que possam convencer quem pensa diferente ou, no mínimo, criar um campo no qual a discordância possa ser exercida também de forma lógica e objetiva.

Fédida (1992), refletindo sobre a condição de trabalho do analista e sua relação com a função da linguagem recorre a um neologismo em francês, de grande poder ilustrativo e expressivo também em outras línguas. Esse neologismo nos ajudará a refletir sobre as dificuldades a serem confrontadas pelo analista-escritor. Ele diz que a linguagem dá réson às coisas. A palavra é um neologismo composto das palavras francesas ressonância (réssonance) e razão (raison) e sugere que a linguagem do analista é resultado de uma ressonância, isto é, de um som a ser decodificado nos seus aspectos expressivos e comunicativos que interagem com a vida emocional do analista e com sua razão. Razão aqui não é utilizado no sentido de intelectualização, mas se refere à capacidade do indivíduo de dar sentido, encontrar uma significação para suas vivências emocionais que ressoam através do contato de duas arquiteturas afetivas. A linguagem escrita, nesse contexto, não é cópia de uma vivência, mas aquilo que lhe dá sentido a partir de uma ressonância. É essa ressonância que engaja a reflexão do leitor em um diálogo com o texto, convidando-o a teorizar com o autor.

Fédida diz: "Quando a coisa retorna à fonte das palavras, nomeá-la equivale a tomar o visual como (expressivo do) desejo de linguagem da imagem. E a receptividade é esta capacidade da linguagem de permitir que a turbulência do nome surja em seu tom próprio. Desse tom engendra-se, pelo nome, o desenho interno da coisa, a lógica de seu sentido" (1992, p. 192). Fédida a seguir cita Cézanne quando este, referindo-se ao efeito da observação do mundo objetivo, diz: "É como se eu fosse a consciência subjetiva dessa paisagem, da mesma forma que minha tela é sua consciência objetiva" (citado por Fédida, 1992, p. 192).

Em um trabalho a ser comunicado para uma audiência de psicanalistas, visamos trazer a público uma série de indagações para serem compartilhadas, debatidas, criticadas, objetivando enriquecer nossa própria reflexão e, ao mesmo tempo, tornar patrimônio comum nossa experiência clínica através da elaboração teórica. Com vistas a este objetivo, há a necessidade de uma apresentação clara, coerente e convincente do material clínico e de nossas reflexões a respeito dele. Quando estamos em nossos consultórios atendendo nossos pacientes, automática e sadiamente cultivamos nossa desconfiança de qualquer atitude que vise convencer nosso paciente, de qualquer coisa que seja. Acredito que isso aconteça com todos nós. Agora, quando nos propomos a escrever um trabalho ou a apresentá-lo a colegas, as coisas mudam. Nessa circunstância passamos a consultar nossos arquivos, a começar do mental, buscando materiais convincentes, sessões ou trechos de sessões coerentes com determinada concepção ou ideia. O analista-escritor necessita aprender a conviver com esta contradição dialética.

Contudo, frequentemente vemos pessoas assumindo uma atitude crítica diante de trabalhos articulados, por acreditarem que o trabalho, enquanto estava sendo realizado, já se apresentava dessa forma, o que só poderia ocorrer, segundo esses críticos, se o analista estivesse trabalhando com o fito de produzir um trabalho sobre determinado tema e, nesse caso, estaria forçando uma teoria sobre o paciente. A nosso ver, antes de se chegar a essa conclusão, é preciso diferenciar entre o estilo de trabalho clínico na sessão e o estilo que se adota para escrever um trabalho clínico. No primeiro caso são inadequadas a busca forçada da coerência e a preocupação com teorias psicanalíticas. No segundo caso, a busca da coerência e a preocupação com teorias são necessárias e mesmo essenciais. A busca de coerência, por outro lado, é apenas busca, e não uma demonstração matemática.

Por mais ricas que sejam nossas ilustrações clínicas, nosso leitor nunca se constituirá em testemunho de nossa prática, e é por isso que a referência teórica é essencial, pois somente ela substitui a ausência do leitor no momento em que a sessão ocorreu.

Por fim, parafraseando José Paulo Paes (1999), direi que o ensaio psicanalítico é a combinação de uma aventura no mundo das ideias com o poder vicariante da ficção, que tem inclusive um efeito pedagógico sobre nós quando mostra em um exemplário tão rico quanto o da própria vida a multiplicidade de dilemas e opções, de possibilidades e limites de ação com que se defronta a cada passo, múltipla também, conquanto una à condição humana, promovendo com isso, para usar a frase flauberiana, uma espécie de educação sentimental nossa para a vida fora das páginas do livro.

 

Referências

Fédida, P. (1992). Nome, figura e memória: a linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Green, A. (1992). Revista Brasileira de Psicanálise, 25(4), 683-670.         [ Links ]

Paes, J. P. (1999). A aventura literária. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Elias Mallet da Rocha Barros
Rua Dr. Homem de Mello, 644/42 – Perdizes
05007-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3865-8675
E-mail: erbarro@terra.com.br

Recebido em: 25/5/2011
Aceito em: 2/6/2011

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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