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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A escala de Procusto ou à procura de um leito para a psicanálise

 

The Procrustes scale or in search of a psychoanalytic bed

 

La escala de Procusto o en búsqueda de un lecho para el psicoanálisis

 

 

Leda Maria Codeço Barone1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco UNIFIEO

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de crítica ao modelo do Sistema Qualis de avaliação de periódicos de psicanálise, aborda a autora a adequação de tais critérios às particularidades da disciplina psicanalítica. Propõe a reflexão sobre o estatuto de cientificidade da psicanálise, considerando seu objeto e método. Vale-se das contribuições de Herrmann – reconhecendo como objeto da disciplina o Homem Psicanalítico, e como método psicanalítico, a interpretação, compreendida como ruptura de campo – e conclui que somente a análise minuciosa e ponderada dessas questões poderá oferecer subsídios para a criação de critérios de avaliação que não mutilem o pensamento psicanalítico.

Palavras-chave: Sistema Qualis, Método psicanalítico, Periódicos psicanalíticos.


ABSTRACT

The present work offers a critical consideration of the evaluative model of psychoanalytic reviews, endorsed by the Qualis System, and it has the objective to reflect upon the adequacy of evaluation criteria adopted by this System, to the particularities of our discipline. It proposes a reflection upon the scientific statute of our discipline, considering its object and method and, taking into account Herrmann's contributions, it considers the object of our discipline the Psychoanalytic Man and its method, interpretation defined as field rupture. The article recognizes that only a serious and rigorous analysis of such issues could offer the adequate subsidies in this matter, that would not mutilate psychoanalytic thought.

Keywords: Qualis system, Psychoanalytic method, Psychoanalytic reviews.


RESUMEN

El presente trabajo parte de una crítica al modelo de evaluación de periódicos de Psicoanálisis realizada por el Sistema Qualis, teniendo como objetivo reflexionar sobre la adecuación de los criterios de evaluación a las particularidades de nuestra disciplina. Propone una reflexión sobre el estatuto científico de nuestra disciplina, considerando su objeto y método. Apoyado en las contribuciones de Herrmann, este trabajo reconoce como objeto de nuestra disciplina el Hombre Psicoanalítico, y como método psicoanalítico, la interpretación, definida como ruptura de campo. El trabajo reconoce aún que solamente un análisis serio y criterioso de esas cuestiones podrá ofrecer subsidios para la creación de criterios de evaluación que no mutile el pensamiento psicoanalítico.

Palabras clave: Sistema Qualis, Método psicoanalítico, Periódicos psicoanalíticos.


 

 

A maior parte deste texto baseia-se em trabalho que apresentei numa mesa-redonda2 na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), quando se discutia a questão das publicações da área. As ideias que então defendi continuam atuais e ainda me inquietam. Foi com alegria, por isso, que acolhi o convite do Jornal de Psicanálise para tornar público o meu ponto de vista.

As questões da escrita do analista sempre chamaram a minha atenção – especialmente aquelas ligadas à publicação. Há mais de dez anos participo do conselho editorial de Percurso – Revista de Psicanálise e durante oito participei do conselho editorial do Jornal de Psicanálise (os quatro primeiros como membro do conselho e os quatro últimos como editora). Assim, é desse lugar que pretendo falar, de maneira a levantar alguns pontos que possam contribuir para a reflexão mais sensível do modo de avaliação das publicações psicanalíticas.

Como editora do Jornal de Psicanálise (JP), herdei do profissional que me antecedeu a preocupação em conseguir boa avaliação no Sistema Qualis3 e, consequentemente, indexação em bases de dados de prestígio. Na época, o JP já havia dado início a inúmeras modificações, com as quais prossegui, no sentido de atender às exigências da avaliação.

Problemática tarefa, uma vez que, ao mesmo tempo em que as alterações eram efetivadas, os critérios do Sistema Qualis se modificavam. Por exemplo, para ter uma boa avaliação no Qualis, a publicação precisava estar indexada em base de dados de prestígio – no entanto, para ser aceita em qualquer base de prestígio, era imprescindível boa nota no Qualis. Dessa situação um tanto surreal, extraí, com o perdão da brincadeira, a sofisticadíssima teoria do cão que corre atrás do próprio rabo.

Não cabe, enfim, falar aqui das formas de avaliação passadas:4 o propósito é tratar do modelo atual. A área de psicologia, que avalia os periódicos de psicanálise, compartilha com outras áreas das humanidades a concepção sobre o que é um periódico científico. Para a área da psicologia5 o documento sobre os critérios do Qualis foi elaborado por uma comissão coordenada por Antônio Virgílio Bitencourt Bastos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrada por Cleci Maraschin e William Barbosa Gomes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Gerson Yukio Tomanari da Universidade de São Paulo (USP), Maria Amália Pie Abib Andrey e Maria do Carmo Guedes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Oswaldo Hajime Yamamoto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Paulo Rogério Meira Menandro da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Esse novo modelo de avaliação passou, desde logo, a receber críticas de diferentes setores da comunidade científica brasileira. Marques (2009), no texto "A escala da discórdia", informa que pesquisadores de áreas diferentes fazem críticas que vão desde apontar como perigoso o peso exagerado dado, nessa escala de avaliação, ao fator de impacto (FI) até a falta de critério na política de avaliação da Capes.

No editorial da revista Química Nova, vinculada à Sociedade Brasileira de Química, Fernando Galembeck, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Jailson Bittencourt de Andrade, da UFBA, dois pesquisadores produtivos, lembram que a valorização excessiva da visibilidade e da inserção internacional dos periódicos, medida pelo FI, promove diferenciações artificiais entre publicações de subáreas da disciplina:

Considerando-se uma área específica como a química, a comparabilidade entre periódicos utilizando o fator de impacto (FI) incorre em sérios desvios. Por exemplo, o periódico Inorganic Chemistry dificilmente apresentará um FI maior do que Analytical Chemistry, o que não significa que não haja artigos de excelente qualidade nas duas disciplinas. Simplesmente a visibilidade das inovações metodológicas analíticas em outras disciplinas é maior do que a da química inorgânica. (Galembeck & Andrade, citados por Marques, 2009, p. 2)

Na visão desses autores, que reconhecem a importância de sistemas de avaliação para a elevação da qualidade do ensino, a Capes deveria desenvolver critérios de avaliação mais sofisticados e complexos, já que fator de impacto não constitui, efetivamente, uma medida absoluta de qualidade.

Outra crítica vem da socióloga da ciência Lea Velho, também da Unicamp, que chama a atenção para as consequências decorrentes da perda de prestígio das publicações:

Na maioria dos campos do conhecimento há uma diversidade de paradigmas e publicações que os contemplam – um economista marxista não publica seus papers em periódicos de orientação neoclássica, por exemplo. O risco é tirar a voz de paradigmas minoritários e exigir que se publique tudo no chamado mainstream. Isso é uma loucura para a ciência. (Velho, citado por Marques, 2009, p. 4)

Mais adiante, dentro dessa mesma perspectiva crítica, faz outra ressalva: pesquisas de interesse apenas regional também sairão perdendo, pois "Já há uma tendência na pesquisa agrícola de prestigiar temas de interesse internacional em detrimento da solução de problemas da agricultura nacional, que sempre foi a tônica do Brasil nessa área" (Velho, citado por Marques, 2009, p. 5).

Para não desviar este trabalho de seu escopo, em vez de alinhar outros reparos críticos, gostaria ora de lembrar a lenda grega de Procusto, meliante que oferecia uma hospitalidade suis generis aos viajantes perdidos. Ao recebê-los, deitava-os sobre uma cama de ferro. Caso ultrapassassem o tamanho da cama, ele cortava o que sobrava. Se fossem mais curtos, ele os esticava, até que alcançassem o tamanho desejado.

Procusto, como se depreende, foi um normalizador avant la lettre. Ele poderia mesmo ser eleito como patrono daqueles que utilizam inflexíveis princípios para avaliar produções humanas – o que, obviamente, de nada adiantaria.

Critérios são importantes, mas não devem ser utilizados de forma rígida e automática, sem levar em conta distinções e especificidades. O que proponho é pensar critérios inteligentes para avaliar as produções em psicanálise. Minha proposta reside em pensar um leito mais propício às produções psicanalíticas. Um leito que possa acolher o pensamento psicanalítico sem amputá-lo e, igualmente, sem forçar um modelo próprio à ciência positivista.

Nesse sentido, vale lembrar a crítica formulada por Davis e Hersh, em The limits of mathematics:

O mundo interior da vida humana nunca será matematizável. É certo que alguns psicólogos e sociólogos aparecem com seus questionários e estatística de qui-quadrado, pretendendo estudar quantitativamente a mente humana; mas a maior parte dessas investigações está tão distante do alvo que basta ao crítico dizer Puuh! que caem sob o peso de seu próprio absurdo pomposo. (Ferris, T.; Fadiman, C. The world treasury of physics, astronomy, and mathematics. Little, Brown, 1991, citados por Herrmann, 2004, p. 50)

Proponho, pois, refletir sobre o que se entende por cientificidade e sobre quais são o objeto e o método da disciplina psicanálise. Somente a análise séria e criteriosa dessas questões poderá oferecer subsídios para criação de um leito que, diferentemente do procustiano, acolha e fertilize o pensamento psicanalítico.

Para tanto, tomarei como ponto de partida algumas ideias desenvolvidas no editorial do Jornal de Psicanálise (Barone, 2006), que se dedicou ao tema "Psicanálise: investigação e produção teórica" e nos textos de Herrmann publicados nesse mesmo Jornal em 2005 e 2006. Naquele editorial, reconheço as contribuições trazidas pela obra de Fabio Herrmann, membro da SBPSP, e lembro que em sua extensa obra o autor defendeu o desenvolvimento da psicanálise como forte candidata à posição de teoria científica da alma, estrategicamente colocada entre Filosofia, Psicologia, Medicina e Literatura. No artigo que então publicou, Herrmann reiterou que a principal dificuldade para a psicanálise ser considerada uma ciência reside na parcialidade com que trata seu objeto. Como gostava de dizer: A psicanálise não ocupa ainda o espaço inteiro a ela reservado por direito e por origem, não preenche o horizonte de sua vocação.

O autor tomou três pontos básicos como direção a este horizonte: a rigorosa recuperação do método psicanalítico, que depois de Freud foi confundido com o tratamento clínico; a generalização das teorias metapsicológicas, para que possam dar conta não apenas das condições psíquicas individuais, mas do real humano; e, por fim, a ampliação do espectro de temas que se consideram psicanalíticos, hoje limitados quase apenas aos já tratados pessoalmente por Freud.

A maior contribuição do pensamento de Herrmann, como ele próprio não cansou de dizer, consistiu na investigação cuidadosa do método psicanalítico, a interpretação, entendida como ruptura de campo. E dele (do método) decorrem duas derivações, cuja aceitação nem sempre é vista com bons olhos.

A primeira diz respeito ao reconhecimento do objeto de estudo da psicanálise, ou seja, o Homem Psicanalítico. O Homem Psicanalítico, por não se tratar do homem concreto, mas de uma ficção, induz à aceitação da ficção dentro da psicanálise. A segunda derivação nos força a levar em conta o montante de desconhecimento que a ruptura de campo deixa à mostra. O conhecimento do psicanalista é sempre provisório e parcial, construído e reconstruído a cada sessão com o paciente. Herrmann assim afirma no texto aqui comentado:

Na prática psicanalítica, esta é a função possível da teoria: operar como interpretante na ruptura de um campo, e é caso de desconfiar de qualquer teoria que passe incólume pela prova de ruptura de campo; ou não se trata de uma legítima teoria clínica, mas de uma especulação abstrata que não se deixar tocar, ou o analista a emprega com fé cega e não está disposto a teorizar por sua conta e risco. (Herrmann, 2006, p. 69)

No texto Psicanálise e Pesquisa Herrmann (2005) reconheceu o interesse daqueles analistas que trabalham em universidades – mas não só deles − em promover pesquisas e como consequência divulgá-las por meio de publicação. Ao analisar tais pesquisas, conclui que elas são basicamente de três modalidades: pesquisa empírica; investigação teórica (ou pesquisa conceitual) e pesquisa clínica.

Sobre a pesquisa empírica, que imita a pesquisa das ciências da natureza, Herrmann chamou a atenção para o perigo quando se utiliza um modelo de pesquisa inadequado ao objeto de estudo. Se a linguagem matemática é importantíssima para o desenvolvimento do conhecimento moderno, seu sucesso depende da adequação ao objeto, o autor adverte. No caso da psicanálise, a matemática é aceitável como recurso auxiliar, nunca como o método principal, o que levaria sem dúvida ao absurdo.

Sobre a pesquisa conceitual, Herrmann reitera que os conceitos psicanalíticos não são dedutíveis uns dos outros, mas da escuta clínica. Para esclarecer tal ideia, compara os conceitos psicanalíticos aos fotogramas que compõem um filme, afirmando que só fazem sentido em movimento no curso de uma análise. Assim,

discutir os conceitos da psicanálise em estado teórico, o oposto do estado nascente que a clínica e a análise da cultura proporcionam, pode levar rigorosamente a qualquer conclusão, pois estes não se derivam um do outro e nem todos se relacionam diretamente entre si. … A psicanálise é o método interpretativo em ação, não uma teoria. (Herrmann, 2005, p. 261)

Finalmente, sobre pesquisa clínica, o autor reconhece que o trabalho do dia a dia do analista em seu consultório é uma das formas mais elevadas da investigação. De cada análise, o analista deriva prototeorias, que algumas vezes chegam a teorias elaboradas suficientemente para serem publicadas. E o conjunto desse trabalho de pesquisa é feito com o método psicanalítico. Diz Herrmann:

Não necessariamente a partir da técnica terapêutica padrão, é evidente, mas, tal como as psicanálises da cultura de Freud, obedecendo ao método interpretativo. Uma pesquisa psicanalítica é mais que um relato clínico, com efeito. Quanto mais? Um dos historiais clínicos de Freud não se consideraria, em si mesmo, uma pesquisa? Com certeza, pois, além de apresentar a história de um tratamento, faz avançar decisivamente o conhecimento da psique humana. Um ensaio teórico, apoiado em material clínico ou na análise de certo recorte da sociedade e da cultura, constitui também uma pesquisa. Explorações técnicas, idem. Em suma, pesquisa é algo que os analistas estão sempre a fazer; bastaria saber transformar o trabalho diário em pesquisa comunicável. (Herrmann, 2005, p. 269-270)

No mesmo texto, o autor reitera que toda pesquisa científica é constituída de duas dimensões essenciais, mas de importância diferente: a de descoberta – heurística – e a de verificação. Para o autor a primeira delas – a heurística – é sem dúvida alguma a mais importante, o coração da pesquisa se poderia dizer, enquanto que a comprovação ou verificação "é um segundo momento, um apêndice valioso, porém jamais central à pesquisa." (Herrmann, 2005, p. 270).

Tais são as questões que gostaria que fossem tomadas em consideração na construção de um leito para a psicanálise. Ou já nos resignamos a deitar em cama inóspita?

 

Referências

Barone, L. M. C. (2006). Psicanálise: investigação e produção teórica (Editorial). Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70), 9-10.         [ Links ]

Herrmann, F. (2004). Pesquisando com o método psicanalítico. In: F. Herrmann & T. Lowenkron (Orgs.) Pesquisando com o método psicanalítico (pp.43-83). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2005). Psicanálise e pesquisa. Jornal de Psicanálise, São Paulo. 38(69), 259-271        [ Links ]

Herrmann, F. (2006). Psicanálise, ciência e ficção. Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70), 55-79.         [ Links ]

Marques, F. (2009). A escala da discórdia. Pesquisa Fapesp Online,, 160. Recuperado em junho 2009, em http://www.revistapesquisa.fapesp.br.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Leda Maria Codeço Barone
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 46/38
04544-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3045-9064
E-mail: ledabarone@uol.com.br

Recebido em: 25/5/2011
Aceito em: 8/6/2011

 

 

1 Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Professora do programa de pós-graduação do Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco UNIFIEO.
2 Mesa-redonda "Agência de fomento e universidade: para onde apontam as publicações?", durante a jornada sobre publicação em psicanálise, realizada em São Paulo, em junho de 2009.
3 Ferramenta usada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para classificar os periódicos nos quais os programas de pós-graduação publicam sua produção científica.
4 Esse sistema de categorização dividia os periódicos segundo sua circulação (local, nacional e internacional) e a sua qualidade (A, B, C). Segundo a nova avaliação, a qualidade dos periódicos passa a ser medida principalmente pelo Fator de Impacto (FI), independentemente do âmbito de sua circulação, gerando oito estratos (A1, A2, B1 a B5 e C) com pesos diferentes. O estrato C tem peso zero. O FI pretende medir o impacto científico de determinada publicação e considera o índice de citação dos seus trabalhos em outros periódicos.
5 Consultar http://www.capes.gov.br/avaliacao/qualis.

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