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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Uma memória do futuro sua relevância clínica1

 

The clinical relevance of A memory of the future

 

Una memoria del futuro: su importancia clínica

 

 

Parthenope Bion Talamo2

Sociedade Italiana de Psicanálise

 

 

Este congresso da IPA enfoca de modo principal o fato de que a teorização psicanalítica leva em conta, hoje em dia, a realidade psíquica do próprio analista, na mesma proporção em que já levava em conta a realidade psíquica do paciente. Houve uma mudança em relação ao modo um tanto superficial de Freud, que levava em conta a contratransferência apenas como um "limite"3 – o que, sem dúvida a contratransferência ainda é – para uma visão mais ampla em que os processos mentais do analista, enquanto está trabalhando, são submetidos a um exame quase tão extenso quanto os processos mentais do paciente. Tal modificação foi auxiliada, consideravelmente, pela teorização de Wilfred R. Bion, durante os anos 1950 e 1960 – cujo trabalho pode ser dividido, ainda que de modo grosseiro, em períodos: grupos, nos anos 1940,4 seguido de um período eminentemente teórico, e depois, o período dos seminários clínicos dos anos 1970, concomitantes à escrita de Uma memória do futuro.5 Há muito mais continuidades em seu pensamento do que poderia sugerir tal escavação teórica. Penso que vale a pena examinar, ainda que rapidamente, o desenvolvimento cronológico de seu pensamento antes de embarcarmos em uma discussão mais detalhada de algumas características de Uma memória do futuro – já que esse livro provém e se ancora firmemente em seu pensamento anterior, além de iluminá-lo, como se fosse um tipo de ação a posteriori, ou Nachträglichkeit.

Pode-se considerar como verdadeiro marco da expressão do pensamento de Bion seu pequeno estudo de 1967, Notas sobre a memória e desejo, 6 vindo após seus trabalhos francamente teóricos Aprendendo da experiência, Elementos de psicanálise e Transformações.7,8,9 Seria o sinal de um intento, o de clarificar suas ideias de modo mais explícito? O livro seguinte, Atenção e interpretação10, provou ser mais facilmente abordável, assim como Discussões11 e Seminários clínicos12, publicados postumamente. Então, o que ocorreu com Uma memória do futuro? Por que ela é tão difícil? Depois de ter prometido uma reviravolta promissora, em termos de clareza explícita, houve outra reviravolta no caminho inverso. Esse tipo de questão parece nos levar à hipótese de que Bion talvez estivesse tentando fazer algo diferente nesse momento. Talvez sentisse que nenhum de seus livros e estudos anteriores, seja os que estavam tão próximos quanto possível de uma teoria abstrata de observação psicanalítica, como nenhuma de suas ênfases clínicas mais discursivas, de pés no chão, tinham sido capazes de expressar aquilo que ele desejava, com a amplitude e a garra que ele sabia poder ter.

Uma memória do futuro é um texto psicanalítico sério, de significância clínica notável, e não deveria, de modo algum, ser desprezado como sendo apenas o borboleteio de um ancião no âmbito literário. Meu trabalho na tradução do texto e das notas para a linguagem italiana levou-me a apreciá-lo como verdadeira mina de insights clínicos; sua única desvantagem é que, igualmente a qualquer outra mina, demanda um trabalho preparatório considerável, para que se alcancem minérios preciosos, como sal, carvão, diamantes ou outros. Uma das desvantagens de todo o trabalho escrito por Bion, a não ser os livros autobiográficos,13 é que para que se possa realmente apreciá-los, você precisa ser um "analista praticante" − como o próprio Bion alertara em trabalhos anteriores e voltaria a alertar no frontispício e nas páginas introdutórias de Uma memória do futuro. O leitor precisará fazer uso de sua própria análise, e da experiência que teve nela, para ser capaz de enfrentar o texto nos níveis mais profundos de sua própria mente. Em minha discussão desses livros, hoje, vou me referir frequentemente à minha experiência como tradutora, e não apenas à minha experiência como leitora, pois descobri que traduzir incrementa e clarifica, basicamente, os pontos de vista do leitor. O tradutor terá de fazer todo o trabalho de pensar, durante toda a leitura, palavra por palavra, frase por frase, e não pode sair fora disso – um tradutor não pode pular por cima de nada.

Uma memória do futuro tem a intenção de ser um texto interativo. Supõe um leitor que reaja emocionalmente à leitura; emoção, em primeiro lugar; em segundo, raciocínio. Este aspecto particular da escrita psicanalítica constitui-se em preocupação constante ao longo do trabalho de Bion. O autor retorna seguidas vezes ao problema de como fornecer vivacidade ao escrito, por meio das emoções que o escritor está tentando apresentar, para o exame do leitor. A solução para tal problema está na técnica adotada para Uma memória do futuro. Sua intenção era ser o mais evocativa possível, de tal modo que o leitor pudesse se defrontar com suas próprias emoções, sendo empurrado, por assim dizer, para sua própria profundidade emocional. Esta é uma das razões pelas quais ler Uma memória do futuro se constitui em trabalho árduo; o leitor vai se encontrar constantemente tendo de lidar com suas próprias tempestades emocionais, uma após a outra. Trabalhei na tradução com um amigo, Gianni Nebbiosi; passamos, possivelmente, mais da metade do tempo "costurando": ficou-nos claro que o processo de permitir, e mais ainda, compartilhar evocações de memórias e pensamentos de cada um de nós foi parte essencial da tradução, e não era de modo algum perda de tempo. Descoberta esta que reforçou meu pressentimento de que Uma memória do futuro deve ser lida em grupo, para que se obtenha a diversão que ela proporciona em maior grau – há alguns capítulos, como o 23 do livro I, o Final da Copa,14 que realmente necessita de uma leitura coral – e porque o grupo pode dar algum conforto e retaguarda ao indivíduo que pode ficar muito perturbado por alguns de seus próprios elementos-alfa que, apesar das resistências, lutam por emergir.

Os problemas postos pela teoria dos elementos-alfa são centrais na experiência de ler Uma memória do futuro. Em poucas páginas escritas apressadamente durante 1960, depois publicadas em Cogitações,15 Bion descreve uma base para a nossa capacidade de pensamento. Trata-se de uma atividade mental, que Bion denota como "trabalho onírico-alfa", vinculada ao conceito de trabalho onírico, de Freud, ao mesmo tempo que também dele se diferencia. Aquilo que Bion diz, de modo muito rápido, ser o trabalho onírico-alfa, é uma parte do processo de assimilação e crescimento mental. O indivíduo, ao obter uma experiência emocional, precisa vesti-la através de uma imagem visual (ou, de modo mais geral, uma experiência sensorial), com o intuito de torná-la disponível para ser uma espécie de tijolo, que será usado nos pensamentos. A imagem visual – ele fornece o exemplo da Cromer Church, em Norfolk – encarna uma emoção de tal modo que ela possa ser "pensada". Ao mesmo tempo, a imagem não é saturada, ou seja, em termos mais freudianos, ela pode ter desenvolvimentos posteriores, tanto por um Nachträglichkeit futuro ou através de acréscimos de emoções. Os elementos-alfa resultantes, produtos do trabalho onírico-alfa, podem ser armazenados; uma de suas funções é justamente o armazenamento de experiências emocionais de modo comunicável. A escrita evocativa de Uma memória do futuro realmente clama pelos elementos-alfa do leitor, por vezes com certa "vingança", e é por isso que a leitura dos livros pode se tornar um processo penoso.

Outra característica do trabalho de tradução é a descoberta da necessidade de preservar, o máximo possível, o grau de ambiguidade, ou multivalência, de termos unitários ou torções de frases, algo realmente oposto àquilo que as pessoas pensam ser o trabalho do tradutor – ou seja, traduzir do modo o menos ambíguo possível. Essa característica se origina da cuidadosa construção, por parte de Bion, dessa multivalência, de tal modo que o texto possa sustentar leituras diversas e evocar níveis diversos de vida mental. Nesse sentido podese dizer que o texto apresenta uma série enorme de elementos-alfa, completos em seus múltiplos acréscimos de significado e emoção – na intenção de Bion, suficientemente insaturados, para permitir ao leitor seus próprios novos acréscimos de significado. Muitos desses elementos-alfa são palavras de ordem para pessoas nascidas e criadas na Inglaterra, dentro da cultura inglesa, ressoando, de algum modo, em alguma longitude. Estou me referindo a pedacinhos de frases bíblicas, dicas de Shakespeare emitidas por outros poetas − "cotovia", por exemplo, traz à memória tanto Romeu e Julieta como "Pippa passou", de Browning − junto a uma série inteira de quase citações, cuja intenção é levantar algo na mente do leitor, mesmo que o chamado não passe de um sussurro – por vezes, agônico. Esse aspecto cultural liga-se às ideias de Bion a respeito da valência social de cada indivíduo, que é sempre um membro de seu grupo social – que, por sua vez, pode influenciar fortemente o indivíduo.16 Conectase ainda à teoria da Linguagem de Consecução, como delineada em Atenção e interpretação. E também aos dois breves parágrafos a respeito de "paciência" e "segurança", no mesmo livro.17 Bion está pedindo "paciência" ao leitor, que tolere a posição esquizoparanoide induzida pela apresentação não linear, não narrativa, durante tempo suficiente até que um fato selecionado, elem nto-alfa, emerja, fornecendo ao leitor uma ilha temporária de "segurança" particular: "Ah, é a isto que ele está chegando!". Isto, na verdade, talvez seja o pensamento de Bion, o que se refere ao que de melhor pode ocorrer em uma sessão analítica; a leitura de Uma memória do futuro, em certo nível, é um exercício de mudanças e oscilações PS⇔D; um tipo de demonstração prática delas. Por isso, ninguém precisará se surpreender diante do fato de que existem dificuldades em permanecer lendo o texto.

Na Introdução etc., Bion menciona mudanças de significado e de ritmo – ambos ligados à emergência do fato selecionado e da oscilação PS↔D. Também alerta o leitor de que obscuridades produzidas por memórias, desejos e "entendimentos" precisam ser rodeadas ou penetradas para que seja possível observá-las; apenas depois de tais observações será possível alcançar a "lógica" ou a "gramática" da alucinose, hipocondria e de outras doenças mentais, assim como as realizações a elas correspondentes. Isso tudo é algo que o leitor tem de fazer por si mesmo, já que Bion não está "descrevendo" ou "explicando" seu modo de fazer psicanálise, nem mesmo demonstrando esse modo em seminários clínicos; está chamando à ação o funcionamento básico de um mecanismo mental fundamental, ou seja, a criação de elementos-alfa. Implica-se aí que o livro pode revelar – ou demonstrar – algumas das ideias de Bion a respeito da estrutura mental, que não são muito freudianas.

A metáfora principal de Bion para descrever o funcionamento da estrutura mental é a teatral. Sua impressão foi reforçada pelo modo em que as raízes literárias de Uma memória do futuro conduzem ao teatro medieval moral, nos quais agem personagens como "Avidez", "Abstinência", assim por diante. Realmente, a tradição cultural inglesa se baseia enormemente no teatro como veículo fundamental de comunicação social. Caso pensemos em Uma memória do futuro como uma peça de teatro, poderíamos considerar que a mente funciona como um teatro; desse modo, ideias e emoções que foram reprimidas podem ser pensadas como se estivessem brotando – ou sendo empurradas – atrás das cortinas. Ou retornando, assim que terminasse seu papel, podendo ser esquecidas.

Os títulos individuais dos três volumes são evocativos: em O sonho, esperamos encontrar traços de trabalho onírico-alfa e a emergência de nossos próprios elementos-alfa, estimulados pela apresentação dos elementos-alfa de Bion; em O passado apresentado, essa estrutura "teatral" torna-se mais claramente visível, conforme os vários personagens assumem funções superegoicas, e outras. Em A aurora do esquecimento, o "todo mundo no palco" teatral é substituído pela extensão da horda de personagens ao longo de uma escala de tempo, incluindo fases passadas (mas ainda vivas) da personalidade ou protopersonalidade, provendo profundidade e também amplitude à apresentação. Isso se liga, de modo natural, aos conceitos de Bion a respeito da mente como grupo interno – recíproca à ideia de terapia de grupo, na qual o grupo se constitui em entidade única.

A última parte desse livro parece resvalar na ideia de uma dimensão histórica da mente, que pode ser ligada à ideia de uma busca pela "verdade histórica". É necessária cuidadosa distinção de tal ideia, daquela imposta por uma forma "narrativa" do material psicanalítico. Penso que Bion era muito cauteloso quanto a isso, não o privilegiando em relação a outras formas, já que "tempo" é apenas um tipo possível de fato selecionado; introduz-se aí um conceito de causa como elemento ordenador entre fragmentos espraiados, e não há nenhuma razão particular em se pensar que "tempo" é mais importante ou melhor que qualquer outro fato selecionado. Há muitos outros modos de ordenar os mesmos elementos: em cada ordenação, produz-se um vértice diferente, e essa é uma das observações clínicas trazidas pela tentativa de Bion com Uma memória do futuro.

Gostaria de finalizar estas notas abreviadas enfatizando uma característica geral de Uma memória do futuro de alta relevância clínica: força o leitor a estar consciente do fato de que vai ter de usar sua própria mente (e sua própria vida) para conseguir levar a cabo sua leitura, para saturar parcialmente os estímulos evocadores − um fato que precisa ser mantido na consciência de cada analista durante a sessão. Qualquer ideia referida tanto pelo analista como pelo analisando, do tipo "objetivo", que fica fora da sessão, precisa ser abandonada; introduz-se um tipo diverso de validação, que leva em conta que o analista está usando sua própria mente para entender a mente do paciente. O conceito de que o observador perturba o fato observado, e contribui para com este fato observado, está agora firmemente entrincheirado, com a condição de que o analista precisa conhecer qual é a porção de sua própria atividade mental envolvida no fato, e qual é a porção atribuída à atividade mental do paciente. Não pode haver nenhum tipo de confusão ou mistura. A validação surge através de "senso comum", de acordo com o significado atribuído por Bion a tal expressão verbal; ou seja, o acúmulo de informações provenientes de muitos sentidos – e dentro do nível grupal – entre os indivíduos que compõem a comunidade científica. A partir desse ponto de vista, a relevância clínica de Uma memória do futuro é tal, que a torna um trabalho dotado de elevado senso comum.

 

 

Versão brasileira por Paulo Cesar Sandler
1Apresentado em painel oficial no International Psycho-Analytical Congress 1995, San Francisco, em conjunto com estudos de James S. Grotstein e Elizabeth Tabak de Bianchedi, com o título"The clinical relevance of A memoir of the future".
2 Membro efetivo da Sociedade Italiana de Psicanálise.
3 Freud, S. (1910). The future prospects of psycho-analytic therapy. In S. Freud, Standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., Vol. 11, pp. 144-145). London: Hogarth Press.
4 Bion, W. R. (1961). Experiences in groups. London: Tavistock Publications.
5 Bion, W. R. (1991). A memoir of the future. London; Karnac Books, 1991. Uma memória do futuro, versões brasileiras por P. C. Sandler: vol. 1, O sonho, Martins Fontes, 1988; vol. 2, O passado apresentado, Imago, 1996; vol. 3, A aurora do esquecimento, Imago, 1996. (Trabalhos originais publicados em 1975-1979)
6 Bion, W. R. (1986). Notes on memory and desire. Psycho-analysis, Fórum. II, 3. Notas sobre a memória e desejo, versão brasileira por P. C. Sandler e H. Fundament. Jornal de Psicanálise, 39, 33. (Trabalho original publicado em 1967).
7 Bion, W. R. (2011). Learning from experience. London: Heinemann Medical Books. Aprendendo da experiência, versão brasileira por Ester Hadassa Sandler e P. C. Sandler, Imago. (Trabalho original publicado em 1962)
8 Bion, W. R. (2003). Elements of psycho-analysis. London: Heinemann Medical Books. Elementos de psicanálise, versão brasileira por Ester Hadassa Sandler e P. C. Sandler, Imago. (Trabalho original publicado em 1963)
9 Bion, W. R. (2004). Transformations. London: Heinemann Medical Books. Transformações, versão brasileira por P. C. Sandler, Imago.
10 Bion, W. R. (2011). Attention and interpretation. London: Tavistock Publications. Atenção e interpretação, versão brasileira por Ester Hadassa Sandler e P. C. Sandler, Imago. (Trabalho original publicado em 1970)
11 Bion, W. R. (1978). Four discussions with W. R. Bion. Perthsire: Clunie Press.
12 Bion, W. R. (1990). Clinical Seminars and Four Papers. Abingdon: Fleetwood Press (ver também 1973 e 1974. Bion's Brazilian Lectures, London: Karnac Books, 1990, e Bion in New York and Sao Paulo, Perthsire: Clunie Press, 1980). Conversando com Bion, abrangendo Four discussions with W. R. Bion e Bion in New York and Sao Paulo, versão brasileira por P. C. Sandler, Imago. (Trabalho original publicado em 1987)
13 Bion, W. R. (1982). The long week end. Vol. I: Part of a life. Francesca Bion (Ed.). Abingdon: Fleetwood Press; (1985). The long week end. Vol. II: All my sins remembered. Francesca Bion (Ed.). Abingdon: Fleetwood Press
14 No estádio de Wembley, subúrbio de Londres. (N. T.)
15 Bion, W. R. (2000). Cogitations. Francesca Bion, (Ed.). London: Karnac Books. Cogitações, versão brasileira por Ester Hadassa Sandler e P. C. Sandler, Imago. (Trabalho original publicado em 1959-1979).
16 Ver a referência da nota 15, particularmente a discussão de narcisismo e socialismo, p. 30.
17 Ver a referência da nota 10, pp. 124-125.

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