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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

ARTIGOS NÃO TEMÁTICOS

 

Facilitando trânsitos no espaço analítico: o brincar como estado de mente

 

Facilitating flows within the analytic space: playing as a state of mind

 

Facilitando el tránsito en el espacio analítico: el jugar como estado de mente

 

 

Mariângela Mendes de Almeida1

Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês, Setor de Saúde Mental, Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo UNIFESP
Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, Curso de Intervenção Precoce na Relação Pais-Bebê

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

São apresentadas cenas de trabalho em duas áreas nas quais Winnicott nos tem iluminado a trilha: a Intervenção nas Relações Iniciais e o acesso a pacientes em que predominam estados primitivos da mente, mediados por uma discussão sobre o "brincar" − estado de mente do analista − como instrumento favorecedor de acesso ao infantil e de desenvolvimento psíquico. Enfatizase aqui o brincar em seu sentido abrangente de liberdade de investigação, flexibilidade de pensamento, modulação de estados mentais que permitem o espaço para percepção do outro e do novo, possibilidade de transitar entre faz de conta e realidade, mundo interno e mundo externo, dentro e fora. Nas vinhetas, amplificadas em discussão posterior quanto a possíveis convergências clínico-conceituais, podemos acompanhar como, sob o testemunho de nosso olhar compartilhado para dentro, dedinhos-sentimentos em Guilherme podem mexer e dar sinais de vida e diversidade, as máquinas de Flávio podem pensar, se apaixonar, e experimentar ligações, o infantil presente em duas bebês e seus pais pode gritar seus nós e existir, e nós, analistas, podemos nos deixar surpreender e facilitar o "brincar" em nossas mentes e nas de nossos pacientes.

Palavras-chave: Brincar, Mente do analista, Estados primitivos de mente, Convergências clínicas, Espaço analítico.


ABSTRACT

Scenes of clinical work within fields to which Winnicott's contribution has been relevant are presented: Early Intervention, through his therapeutic consultations and the work with patients in which primitive states are predominant. "Playing" is presented as a state of mind, as an instrument that can favour access to infantile areas of personality, facilitating psychic development. Playing is considered in its comprehensive meaning of freedom of investigation, flexibility of thought, modulation of mental states which allow space for the perception of otherness and newness, possibility of transit between fantasy and reality, external and internal worlds, inside and outside. In the vignettes, amplified in a discussion about clinical-conceptual issues, we could see how "fingers of feeling" could give signs of life in Guilherme, Flávio´s machines could think and experience loving links, the infantile within two babies and their parents could shout its knots and come into being and we, analysts, could let us get surprised and facilitate "playing", in ours and in our patients´ minds.

Keywords: Playing, Analyst's mind, Primitive states of mind, Clinical convergences, Analytic space.


RESUMEN

Se presentan escenas de trabajo en dos áreas en las cuales Winnicott nos hay iluminado el camino: la Intervención en las Relaciones Iniciales y el acceso a pacientes en que predominan estados primitivos de la mente, mediados por una discusión sobre el "jugar" − estado de la mente del analista − como instrumento favorecedor de acceso al infantil y de desarrollo psíquico. Se enfatiza aquí el jugar en su sentido amplio de libertad de investigación, flexibilidad de pensamiento, modulación de estados mentales que permiten el espacio para percepción del otro y del nuevo, posibilidad de transitar entre la fantasía y la realidad, mundo interno y mundo externo, dentro y fuera. En las viñetas, amplificadas en discusión posterior cuanto a posibles convergencias clínico-conceptuales, podemos acompañar como, bajo el testigo de nuestra mirada compartida para dentro, los deditossentimientos en Guilherme pueden moverse y dar señales de vida y diversidad, las máquinas de Flávio pueden pensar, apasionarse, y experimentar conexiones, el infantil en padres y bebés puede gritar sus nudos y existir, y nosotros, analistas, podemos dejarnos sorprender y facilitar el "jugar" en nuestras mentes y en las de nuestros pacientes.

Palabras clave: Jugar, Mente del analista, Estados primitivos de la mente, Convergencias clínicas, Espacio analítico.


 

 

Introdução: inspirações a partir do brincar em Winnicott

Utilizarei como disparadores para as breves reflexões deste artigo cenas de trabalho em duas áreas nas quais D. W. Winnicott tem nos iluminado a trilha: o atendimento em Intervenção Precoce e o acesso a pacientes em que predominam estados primitivos da mente, mediados por uma discussão sobre o "brincar" − estado de mente do analista − como instrumento favorecedor de desenvolvimento psíquico.

As descrições clínicas selecionadas têm a função de se apresentarem como cenas emblemáticas e inspiração para as questões aqui pontilhadas, mais do que como fundamentação para uma compreensão dos casos, empreendida de forma mais abrangente em artigos anteriores (Calia 2009; Mendes de Almeida, 2008 a,b; Mendes de Almeida, 2009 a,b; Silva, 2009).

A partir das colocações de D. W. Winnicott em sua obra O brincar e a realidade (1971), enfatizo aqui o brincar em seu sentido abrangente de liberdade de investigação, flexibilidade de pensamento, modulação de estados mentais que permitem o espaço para percepção do outro e do novo, possibilidade de transitar entre faz de conta e realidade, mundo interno e mundo externo, dentro e fora. Tal "brincar" − estado de mente −, vivenciado inicialmente pelo analista, caracteriza-se como expansão de limites e súbito prazer de descobrir uma inesperada liberdade de investigação.

Ao se referir ao brincar também evidente na análise de adultos, Winnicott (1971) inclui, por exemplo, a escolha de palavras, as inflexões de voz, e o senso de humor. Falarei aqui de uma intensificação desta estrutura lúdica no pensar do analista, transmitida, através da atividade analítica, aos analisandos, que se traduz como flexibilidade e plasticidade de olhares, e que certamente está presente nos conceitos de transicionalidade, espaço potencial, paradoxo, e, vividamente, na postura manifesta pelo clínico Winnicott.

 

Nós e os nós

Tomarei como ponto de partida um atendimento em Intervenção conjunta pais-bebês, ou Intervenção nas Relações Iniciais, área em que a contribuição de D. W. Winnicott, através de suas consultas terapêuticas, seu olhar para o infantil em desenvolvimento e para a relação pais-bebês/criança, nos é particularmente valiosa.

Indicarei inicialmente uma intervenção que se constituiu de cinco sessões realizadas com duas irmãs, de 5 meses e de 1 ano e 4 meses, e seus pais, aflitos com a dificuldade de dormir da bebê menor e com a dificuldade deles em lidar com as diferenças entre as duas filhas.2

Já no primeiro encontro, os pais comparam a irritabilidade e a dificuldade de se acalmar da bebê menor com a facilidade de se autoconfortar que a mais velha demonstra. A mais velha traz à sessão um coelhinho de pano de longas orelhas, com o qual perambula por todos os cantos, e que lhe garante companhia por muitos momentos, inclusive aqueles de muita demanda e choro insistente da irmã menor convocando intensamente os pais. Quando manifestamos desejo de conhecer melhor esse personagem, a mãe nos conta que a garota adora esse coelhinho, que se acalma muito com ele, que gosta de dar nós e mais nós nas orelhas do bichinho, e vem pedir para os pais tirarem os nós. A narrativa expressa um tom e um conteúdo lúdico na relação pais-criança, mas posteriormente aparece um estrangulamento do trânsito expresso nesse brincar: a mãe se refere culpada, sentindo-se responsável pelos "nós" que promove na relação com a criança, sentindo que quando a criança lhe pede que faça ou desfaça nós, está lhe responsabilizando por complicações que lhe possa estar criando. Tal sentimento parece também estar presente com a bebê menor, em forma de "não tenho recursos para lidar com ela, não tenho o que ela precisa, não consigo dar conta". Ao longo dos atendimentos, se torna possível experienciar no presente vivo da sessão conjunta pais-bebês situações em que "nós" nas tramas representacionais parentais sobre si próprios e sobre suas filhas vão sendo iluminados e re-tecidos sem tantos "enroscos", através do engajamento das crianças e pais em um brincar e em uma expressão representacional propiciados pelo setting de acolhimento aos aspectos infantis e escuta ao emocional em relação. Ver a mocinha-filha-maior correndo e brincando pela casa, após a primeira sessão, exclamando exultante "Eu sou pequenininha! Eu sou pequenininha!" nos pareceu demonstrar a capacidade de que aspectos enrijecidos desta família, mandatos intrapsíquicos atuantes e emudecedores de aspectos solicitadores e reclamantes (Alvarez 1992; Silva 2007), pudessem "brincar", se flexibilizar e funcionar como espaço de transição para experiências represadas. Ocorre portanto, aqui, um "brincar" como estado de mente, permeável à possibilidade de desenvolver novos olhares, a que se dispõem os analistas, e assim o favorecem aos analisandos,. Em um momento posterior em que se mencionam e se exercitam os "nós" no coelhinho, pontuamos como eles podem não ser vistos necessariamente com culpa, mas vivenciados em uma relação em que as filhas crianças-bebês podem precisar dos pais para lhes ajudar a desfazer, dar conta dos nós da vida, e também para "brincar" a experiência de levar aos pais os nós para serem feitos e desfeitos, em um vai e vem compartilhado, sem tanta carga de cobranças e assombramento.

 

Promovendo ligações no espaço potencial da análise: nós como tecelões no esgarçado da trama

No contato com estados primitivos da mente, convivemos com a presença de lacunas na capacidade de representação simbólica, com rudimentos dessa capacidade e com reações sensoriais concretas, sem a mediação da transformação simbólica, e da expressão lúdica.

No trabalho com crianças em que esses estados primitivos aparecem de maneira significativa, o brincar (ou a dificuldade de exercer esta possibilidade de forma plena) representa um espaço privilegiado em que se manifestam e para o qual convergem as necessidades, precariedades e potencialidades do desenvolvimento emocional, relacional, cognitivo, sensório-motor e de várias formas de comunicação e linguagem.

Nesses casos, a função analítica de facilitar, ou muitas vezes fazer emergir um lampejo da possibilidade de brincar, ou da possibilidade de vivenciar uma situação de várias maneiras e perspectivas, é desafiada e necessária ao extremo. Sabemos do consenso acerca da presença clínica e peso, nesses quadros, das estereotipias no agir e no pensar, da insistência na uniformidade, das resistências às mudanças na rotina, das ecolalias e repetições, transcendentes à diversidade de abordagens e compreensões a elas oferecidas.

Para discutir tal função de construção e fortalecimento da capacidade simbólica no esgarçado dessa trama (Mendes de Almeida, 2008a; Mendes de Almeida, 2008b, Mendes de Almeida, 2009b), citarei algumas vinhetas clínicas, buscando identificar no material clínico a presença de momentos de potencial rudimento simbólico, refletindo-se sobre fatores que podem facilitar a emergência dessas ocorrências.

Guilherme está em tratamento desde os 3 anos.3 Seus pais são bastante exigentes quanto ao desenvolvimento de Guilherme, que sempre foi muito grande fisicamente, mas não correspondeu às expectativas parentais em termos de desenvolvimento de linguagem verbal e desprendimento social. Desde o início, o que mais chamou a atenção foi o aspecto simbiótico e mutuamente controlador presente na relação de Guilherme com seus pais, principalmente com a mãe. Os pais se queixavam de vivenciarem situações de constrangimento social em que Guilherme ficava muito grudado a eles, ou não se comportava da maneira esperada para sua idade, parecendo mudo e extremamente avesso a contato social.

Aos 6 anos, já com importantes desenvolvimentos em termos de autonomia e articulação verbal, Guilherme chega a uma sessão com a mãe, carregando vários guarda-chuvas. (Havia ocorrido uma chuva rápida, mas naquele momento não estava chovendo.) Enquanto acomodam os guarda-chuvas, a mãe comenta: Tem que descer com todos os guarda-chuvas! (Comentário com certo tom de ironia e resignação em relação às necessidades/solicitações − que ela chama de "manias" − de Gui.)

Gui sobe tranquilo para a sala de atendimento, instaurando um convite ao seu "brincar" propositivo, já ao longo de nosso breve caminho, dando a mão e "escalando" as beiradas da escada que tem um murinho. Na virada da escada há um beiral fininho com o mesmo material do murinho, que Gui tenta escalar, e só depois de algumas tentativas percebe que é somente um pequeno relevo e que não há a mesma plataforma que havia embaixo. (Fico curiosa com a sua percepção/ perspectiva. Penso em uma possível dificuldade de perceber dimensões e também em uma falta de flexibilidade de pensamento – se antes ali foi assim (o murinho), aqui também tem de ser…)

Gui me pede para subir alguns degraus na frente, como se a cada passada ele se colocasse um novo desafio de escalada em que eu o puxo e ajudo. A cada chegada comemoramos.

Na chegada final, em cima, comento (A): Chegamos agora no altão!

No pequeno corredor em direção à sala, Gui continua no murinho, agora reaparecido, que ampara o corrimão/divisória/continuação da escada, dando a volta em todo o contorno da escada, aparentemente prosseguindo nos desafios, agora com certo tom de dificuldade de interromper uma uniformidade. (Necessidade de confirmação de seu senso de agência? Perseveração? Obsessividade?) Quando chega ao final, próximo à parede há uma cadeira que ele vai empurrando com o corpo, cavando espaço para poder terminar seu intento.

A: Ah!… Tem que ir até o fim?

Toda essa atividade tem um significado retrospectivo importante no atendimento de Guilherme, pois até bem recentemente ele demonstrara bastante dificuldade de tolerar separar-se dos pais, como, por exemplo, explorar brinquedos em situações sociais com outras crianças – os pais precisavam subir juntos, ou ele não ia, ficava emburrado e retraído. A atividade de subir (mesmo que em uma simples poltrona), arriscar, se haver com os percursos, achar um equilíbrio entre o fazer sozinho e pedir ajuda sempre representou um tema importante em nosso trabalho.

Dou-lhe a mão para entrarmos na sala e ele vem.

(No meio da sala) G: Mariângela, quero te falar uma coisa: você gosta do Batman?

A: Você tem me falado bastante do Batman, né?

G: Você gosta do Batman? O Batman morcego, Bruce Wayne…

A: Esses super-heróis, né, meio homem, meio bicho, que pode ser tanta coisa e fazer tanta coisa diferente, né?

G: (fala de morcego, garras, Mulher-Gato, faz movimento de garras perto do meu rosto.) Ela é brava, ela é malvada!

A: Quanta coisa diferente você está percebendo que a gente sente, né? Sente braveza, raiva, às vezes se sente amigo, às vezes malvado…

Guilherme pega um bonequinho no caixa-cubo de fantoches (boneco-livro das carinhas, diferentes expressões).

A: O que ele tá sentindo agora?

Guilherme imita a boca de assustado, se divertindo.

A: O que aconteceu que ele tá assustado?

Guilherme joga o boneco longe com um riso maroto, olhando bem para mim. Depois, vai pegar o boneco e repara bem na carinha que ficou por cima. Vem com o boneco e se senta em meu colo, parecendo bem à vontade. Brinca de ir virando as carinhas e falar se ele está triste, bravo, alegre/feliz. Uma hora, sem querer, faz um movimento de chute com o pé (está com um tênis bem pesadinho!) e bate em minha unha. Dói bastante na hora! Juntando o sentimento do momento com o tema da brincadeira, digo:

A: Ai, agora senti dor! (devo também ter feito uma cara de dor mesmo!)

Gui parece se assustar, vai para a porta para ir com a mamãe e olha para dentro da sala e para mim com um ar perplexo. Acho interessante que ele possa ter ficado na sala, porque em outros momentos anteriores isso não era possível quando surgia alguma situação nova, de frustração, ou de dificuldade. Por exemplo, se ele não conseguia fazer um desenho como desejava, ou achava que a mãe ou o pai saberiam fazer melhor, ou não suportava esperar até o final da sessão para levar algo que eles iriam guardar, ou quando, mais no início, ouvia tocar o celular da mãe, saía "ventando" da sala sem tempo nenhum para conversa, ou mínima sustentação de seus estados mentais.

A: Está passando Gui. Doeu, mas percebi que foi sem querer. Senti dor na hora, mas agora já está passando. Parece que te assusta tanta coisa que a gente pode sentir, e com tanta força, não é?

G repara em seu tênis com os dedos mexendo por dentro.

G: Você está vendo?

A: Estou vendo os seus dedos mexendo por dentro.

G: Você não pode ver os dedos porque ficam lá dentro!

Como poderíamos entender essa exploração de Guilherme? Interesse, compartilhado pela análise, de poder olhar-sustentar um espaço interno para que possam se mover os pensamentos frutos da experiência emocional? Demanda para olharmos outros movimentos que ficam lá dentro e que ainda não pudemos ver, por exemplo, dos dedos que se movimentaram e machucaram? De qualquer forma, um espaço e maior contato com movimentos internos que parecem ser interessantes e despertar curiosidade parece estar sendo dedilhado.

G: Você gosta do Batman? Tenho roupa de Batman. (Fala algo também da Mulher-Gato) Também tem a Gata Negra… Gato toma banho de lamber… (Ri, se diverte) Você gosta da Mulher-Gato?

A: Você se diverte em imaginar as coisas que a Mulher-Gato faz!… Hoje também falamos de raiva, braveza, de arranhar. (A minha compreensão no momento circunda a ideia de sentimentos de contrariedade e raiva que ele está podendo se autorizar a experimentar na relação com sua mãe e comigo, aspectos importantes na constelação separação/individuação de Guilherme, com consequentes sentimentos de culpa e persecutoriedade evocadas pelo emergir de sua assertividade. Digo algo a respeito de lembranças do que a gente pode sentir e fazer.)

G: Não, não é uma lembrança. Quero uma fantasia de Mulher-Gato para minha mãe!

Acho interessante que ele fale de fantasia e sinto que ele quer "brincar", "pensabilizar" − "tornar pensáveis" essas ideias e sentimentos na relação com sua mãe também.

Em algum momento dessa conversa Gui me chama de mãe (é comum acontecer, mas tem sido cada vez mais rápido o seu dar-se conta da troca e a sua capacidade de "comentar" reflexivamente seu ato, seja achando engraçado, ou se corrigindo de forma bem-humorada. Antes, só percebia quando eu comentava, ou, por vezes, se mostrava irritado com seu "engano").

Durante uma brincadeira de esconde-esconde, quando demoro um pouco para achar, (utilizo a brincadeira também para ir "falando alto" o que penso fazer parte da atmosfera emocional do momento, amplificando e reverberando as percepções), Gui, impaciente, diz:

G: Vai, Mariângela!… Que saco essa Mariângela!

Rio espontaneamente, achando interessante e engraçado.

A: Como é que é, Gui? (Quase não creio no ineditismo da manifestação)

G: Que saco essa Mariângela! (Juntando um pouco de marotice na irritação, como se estivesse expressando certo prazer pela possibilidade da crítica).

Surpreendo-me com a descontração e autonomia de Guilherme que às vezes se mostra tão "travado" (palavra usada pela mãe). Ao mesmo tempo, sinto em sua impaciência e desejo de eficiência e rapidez um elemento superegoico rígido e exigente ao qual, muito frequentemente, ele se sente sem sucesso, tendo de corresponder. Mantendo essas duas perspectivas em mente, aparentemente paradoxais, percebo que para Guilherme poder exercê-las conjuntamente parece ter uma função importante em termos de desenvolvimento e comunicação das necessidades com as quais se vê envolvido, representando também a instauração de maior possibilidade de trânsito e flexibilidade em seus estados mentais.

Para finalizar, acrescentarei uma vinheta clínica do atendimento de um garoto de 15 anos em trabalho analítico desde os 3 anos e meio,4 quando recebeu o diagnóstico de autismo, apresentando muitos medos, atraso de linguagem, extrema ansiedade e agitação motora, dificuldades de sono e alimentação.

Flávio entra na sala sorrindo e falando algo sobre a menina que estava mexendo no pingolim do menino. Repete a frase algumas vezes em tom estereotipado. (Está agitado, saltitante, o que não é incomum.) Comento que ele parece querer me contar sobre sua curiosidade sobre pingolins, sobre as meninas e meninos, sobre essas diferenças no corpo da gente quando a gente vai crescendo. Continua saltitando, com seus movimentos de membros enrijecidos e às vezes, toca/arruma? rapidamente o "pingolim". Digo "O pingolim vai crescendo, ficando de jeitos diferentes conforme você vai crescendo…". Comento sobre ele ir tentando se haver com essas situações novas que sente em seu corpo, e que talvez isso o deixe exaltado, agitado.

Flávio repete algumas frases "conhecidas" em tom ecolálico: "A Vera viu o pano na José Martins? (escola que a mãe trabalha)"… "Você tá igual o pão da Tia Paty? Pergunto: "Como é o pão da tia Paty?" Flávio: "Você tá pensando no pão da tia Paty?" Digo: "Tô pensando na sua curiosidade sobre os meninos, as meninas e o pingolim…" Flávio repete as frases sobre o pano na José Martins e o pão da Tia Paty. Comento: "Quando você me conta sobre essas coisas, não sei bem o que você quer me dizer com elas, mas percebo que tem um monte de coisas que você sente, coisas novas, diferentes, e que daí talvez seja mais tranquilo voltar pra coisas conhecidas que você fala várias vezes, que são bem familiares pra você".

Flávio traz agora falas do filme "Carros", bem altas, enfáticas, em movimentos largos ao longo da sala e boca em sorriso. "Como pode uma máquina se apaixonar?", pergunta Flávio algumas vezes. Comento sobre sentimentos em máquinas, máquinas que vão começando a ter sentimentos, como ele que começa a ter sensações e sentimentos, se sentir menos máquina e mais gente. Fica de costas para a janela. Um pouco estereotipadamente, talvez em ecolalia, também repetindo alguma frase de filme, mas em tom de indagação, sugerindo uma sincronicidade com nossa linguagem simbólica que me emociona, Flávio interroga: "Qual é a ligação?". Sinto uma confluência de sentimentos e me percebo com reflexões diversas: mobilizo-me emocionalmente com sua manifestação, ao mesmo tempo sinto que, de repente, posso estar superestimando sua sintonia. Entretanto, o impacto intersubjetivo é forte, impossível de se dispensar, e mesmo sem tomar sua questionável "intenção" como necessariamente decifrável, me sinto produzindo uma síntese possível e compatível com o grau de emocionalidade da cena (tecendo o esgarçado da trama) quando me aproximo dele, face a face, olho no olho, tomo suas mãos e digo, sentindo que meus olhos quase lacrimejam e minha voz denota a intensidade da emoção: "Qual é a ligação? A ligação é a emoção que senti quando você falou isso! É você me dizendo alguma coisa que me faz ter um sentimento e dizer isso pra você! Isso é a ligação!". Flávio presta muita atenção, e diz: "Como um abraço, por exemplo!". Eu digo então: "É Flávio, como um abraço, a gente estar pensando e sentindo alguma coisa e conseguindo transmitir pro outro o que está sentindo e pensando".

Flávio fala algo pondo o dedo indicador na cabeça algumas vezes, sugerindo o gesto usual de pensamento. Será que realiza a presença de um espaço mental, que, entretanto ainda precisa, para poder ensaiar existir, de uma referência sensorial, um lugar físico, caixa-cabeça-concreta, motor de máquina-automóvel, frase ecolálica (repetir não pela compulsão de mortificar, mas para um dia poder elaborar?).

Enquanto pouco a pouco se afasta desse momento de sintonia, Flávio sugere por algumas contorções faciais, denotando uma impressão de sobrecarga, que as doses de contato precisam ir, gradativamente, construindo um espaço interno para que os "dedinhos" brincalhões da investigação psíquica aguentem ficar vivos por mais tempo a cada vez.

 

Confluências técnicas e conclusão

Em ambas as áreas descritas neste artigo, tanto no trabalho com pais e bebês como no trabalho com estados fronteiriços ou autísticos, estamos em contato com aspectos do infantil e do primitivo no desenvolvimento psíquico. Reveste-se de importância considerar aqui brevemente a questão dos dispositivos clínicos de acesso a esses estados, tarefa para a qual Winnicott parece ter instrumentalizado algumas reflexões e interlocuções importantes.

Peter Fonagy e Mary Target (2002) "brincam" com as noções de Winnicott acerca do brincar e a realidade, trazendo a ideia do "brincar com a realidade", para pensar o trabalho com pacientes borderline. Aproveito o convite "à la" jogo de rabiscos para evocar aqui outros autores contemporâneos com referenciais teóricos diversos, mas apontamentos clínicos aparentemente convergentes.

Fonagy e Target chamam a atenção para o fato de que a experiência de sentimentos e ideias conscientes e inconscientes como equivalentes à realidade concreta inibe a capacidade do indivíduo fronteiriço de suspender a imediaticidade de sua experiência e criar o espaço psicológico para "brincar com a realidade". Como demonstrado no presente artigo pelos extratos clínicos de Guilherme, Flávio e nas fantasias do casal de pais de nossas bebês, ideias podem se apresentar como muito ameaçadoras para se pensar e sentimentos como intensos demais para se vivenciar. Fonagy e Target formulam nessas situações a noção de falhas na mentalização e intolerância a perspectivas alternativas. Postulam que nesses casos, o foco da técnica não é mais, portanto, tornar consciente o inconsciente, e sim, em consonância com o legado winnicottiano, a sobrevivência da imagem do estado mental do paciente na mente do analista. Sendo assim, a interpretação envolve abertura para perspectivas alternativas, aumento do espaço de continência − como no "abraço de Peleo" de Stefano Bolognini (2008), e na tradução clínica do referencial bioniano por Antonino Ferro (1995). Envolve também a compreensão do analista sobre seus estados internos e experiência vivenciada com o paciente (como na ênfase à contratransferência no trabalho dos neo-kleinianos). Fonagy e Target comentam que algum enactment por parte do analista pode ser inevitável, já que o analista tenta manter suficiente compreensão interna para continuamente refletir sua experiência para o paciente. De maneira que parece sintônica com o que procurei relatar com os pacientes aqui descritos, tais autores sustentam como foco apropriado do trabalho a exploração de gatilhos para sentimentos, de pequenas mudanças em estados mentais, de diferenças de percepções do mesmo evento, possibilitando reconhecimento das intrincadas relações entre ação e sentimento, além da resposta do analista aos gestos não verbais dos pacientes.

Juliet Hopkins (2002), psicoterapeuta infantil da Clínica Tavistock, em interessante artigo referindo-se à sua supervisão de atendimento com Winnicott de um garoto de 3 anos em que aspectos mentais primitivos puderam ser acolhidos e desenvolvidos, enfatiza a importância dada à função analítica de "nomear" para e com a criança seus sentimentos, intenções e experiências, caracterizando- a não como uma "falha em interpretar", mas como uma valiosa forma de intervenção (que ela chama também de interpretação), dirigida ao grau de imaturidade e necessidade de desenvolvimento presente nesses casos.

O que denominei neste artigo como "brincar como estado de mente do analista" parece encontrar correspondência no que Fonagy e Target definem como uma instância mental elaborativa representada pelo analista, que capacita o paciente a se encontrar na mente do terapeuta e a integrar essa imagem como parte de seu senso de si mesmo (tal qual o bebê na tradição winnicottiana se encontra no olhar da mãe). Os pacientes, conforme aqui demonstrado nos extratos clínicos, gradativamente começam a aceitar que sentimentos podem ser sentidos e ideias podem ser pensáveis com mais segurança e incipiente dimensionalidade, conforme também consistentemente demonstrado pelas noções em torno da ideia de companhia viva em Anne Alvarez (1992). A experiência de mundo interno pode começar a ser separada e vivenciada como qualitativamente diferente da realidade externa.

Conforme apontam Fonagy e Target, há uma analogia quanto ao lugar do analista em relação ao paciente e o brincar/fenômenos transicionais: o analista oferece perspectivas alternativas aos estados mentais do paciente, mas, ao mesmo tempo, o ajuda a construir um senso de sua própria experiência (em um paralelo com as instâncias de faz de conta e realidade). Assim, o pensar e o sentir do analista seguem de perto o pensar e o sentir do paciente, mas nunca são os mesmos que os dele, favorecendo dessa maneira que espaços potenciais de transição e criação possam emergir.

Pudemos acompanhar aqui, como em Gui, sob o testemunho de nosso olhar compartilhado para dentro, os dedinhos-sentimentos podem mexer, dar sinais de vida e diversidade; em Flávio, as máquinas podem pensar, se apaixonar e experimentar ligações; nos pais de nossas bebês, o infantil pode gritar seus nós e existir, e nós, analistas… nós podemos nos deixar surpreender e facilitar o "brincar" em nossas mentes e nas de nossos pacientes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz 628 | Vila Nova Conceição
04512-051 São Paulo, SP
E-mail: mamendesa@hotmail.com

Recebido em: 23/5/2011
Aceito em: 1/6/2011

 

 

1 Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, coordenadora do Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês, Setor de Saúde Mental, Departamento de Pediatria da UNIFESP, membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, docente do Curso de Intervenção Precoce na Relação Pais-Bebê, psicóloga clínica com mestrado pela Tavistock Clinic e University of East London.
2 Intervenção filmada, realizada no Centro de Atendimento Psicanalítico da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em coterapia com Maria Cecília Pereira da Silva.
3 Inicialmente em Intervenção conjunta pais-criança, em coterapia com Magaly Marconato Callia, e posteriormente em análise individual com a autora do presente artigo.
4 Inicialmente em trabalho conjunto pais-criança seguido de análise individual com Maria da Graça Palmigiani, e a partir dos 8 anos, em análise individual com a autora do presente artigo.

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