SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número80Atualizando rumos: abrindo espaços no currículo (com proposta para criação de um “Fórum Permanente de Novas Iniciativas Curriculares”)Origens literárias do modelo psicanalítico da mente índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

INTERFACE

 

Fonte da imagem: imagem da fonte. As metamorfoses de Narciso1

 

The source of image: an image of the source

 

Fuente de la imagen: imagen de la fuente

 

 

Juliana de Nooy2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objeto de ficção e de teoria tratado tanto por escritores como por psicanalistas, o mito de Narciso tem sofrido uma série de transformações. Ao descrever a projeção da imagem de si e a tentativa de confundir-se ou identificar-se com ela, os numerosos relatos vão do trágico (Ovídio) ao triunfante (Lacan). O que liga todos é − curiosamente − o conceito de fonte. O espelho está em cada história estreitamente ligado a uma origem. A maneira de interpretar essa relação determina o viés, trágico ou triunfante. Partindo de uma perspectiva derridiana, a autora mostra que não por acaso existe essa relação entre a imagem especular e o conceito de fonte.

Palavras-chave: Derrida, Freud, Lacan, Narcisismo, Estadio do espelho.


ABSTRACT

The Narcissus myth, as an object both of fiction and of theory, and dealt with by both writers and analysts, has undergone a series of transformations. In describing the projection of one's self imago and the attempt to mingle with it or to identify with it, the numerous tales range from the tragic (Ovid) to the triumphant (Lacan). What binds them all to one another is – strangely enough – the notion of a source. The mirror in each case is closely linked to an origin. And it is the way one interprets this relationship which separates tragedy from triumph. Starting out from Derridian perspective, we show that the relationship between the mirror image and the idea of a source is far from being merely a chance one.

Keywords: Derrida, Freud, Lacan, Narcissism, Mirror stage.


RESUMEN

Objeto de ficción y de teoria tratado tanto por escritores como por psicoanalistas, el mito de Narciso ha sufrido una serie de transformaciones. Al describir la proyección de uma imagen de si y la tentativa de confundirse o identificarse com ella, los relatos van de lo trágico (Ovídio) a lo triunfal (Lacan). Curiosamente, todos esos relatos tienen em común el concepto de fuente. En todos las historias, el espejo está ligado a un origen. La manera de interpretar esa relación determina el sesgo, trágico o triunfal. En una perspectiva derridiana, la autora muestra que no por casualidad existe esa relación entre la imagen especular y el concepto de fuente.

Palabras clave: Derrida, Freud, Lacan, Narcisismo, Estadio del espejo.


 

 

Entrevemos a imagem do Narciso em numerosas fontes: das águas límpidas do texto de Ovídio às representações profusamente encontradas na escrita psicanalítica. O espelho no qual Narciso se olha lhe devolve sua imagem, mas esse espelho tornou-se ele mesmo uma imagem, capturada em uma série de espelhos: a imagem do jovem que se enamorou de seu próprio reflexo é refletida de texto em texto, para tornar-se aqui objeto de reflexão. É por sua relação com o espelho que os textos de que ora nos ocuparemos se reúnem e assemelham, ao falarem de similitude3

Admite-se em geral que é a Ovídio que devemos nosso conhecimento do mito de Narciso: o autor d' As Metamorfoses parece ter sido o primeiro poeta a abordar a lenda4. Mas foi graças ao trabalho de Freud que o narcisismo encontrou um lugar fundamental na teoria psicanalítica. Se é certo que Freud retomou o mito de Ovídio no seu artigo de 1914,5 Lacan, vinte anos mais tarde, não lhe faz referência quando trata da relação entre o sujeito e sua imagem, ao introduzir sua concepção do estágio do espelho.6 Entretanto, poderíamos justapor seu texto aos outros dois para interpretá-lo como uma reescritura da história da confrontação do sujeito com sua imagem especular.

Essa justaposição dos três textos permite igualmente ver a recorrência de certa noção de fonte. Podemos realmente reunir esses textos (ciência e ficção, psicanálise e mito) em torno da ideia de hipótese, pois uma das funções essenciais não somente dos mitos antigos, mas igualmente das teorias modernas, é a de apresentar as conjecturas concernentes à proveniência das coisas. E, justamente, cada um dos três textos se esforça por explicar um fenômeno qualquer, reconstituindo sua suposta origem. No caso da lenda de Narciso, trata-se de explicar a origem de uma flor; para Freud, de postular um estado – o narcisismo primário – que será a fonte invisível de muitos fenômenos observáveis no comportamento dos seres humanos; e, para Lacan, de propor um momento no desenvolvimento psíquico – o estágio do espelho − como ponto de origem do próprio sujeito.

Não somente a questão de origem se coloca no interior dos três textos, mas ela se impõe também nas suas relações intertextuais: de um lado o texto de Ovídio é reconhecido como fonte do mito para a posteridade; de outro, os textos de Freud e de Lacan tornaram-se fontes eles mesmos.

As duas questões (a da semelhança/espelho e a da origem), que seguiremos tanto desde dentro como entre os textos escolhidos, se revelarão como estando estreitamente ligadas, chegando mesmo a se encontrar na dupla noção de identidade. Nós nos concentraremos no texto de Ovídio a fim de mostrar que a fonte nunca é simples, mas se constitui desde sempre7 a partir de uma duplicação como a do espelho. Em seguida abordaremos brevemente os textos de Freud e de Lacan assinalando esta mesma duplicação, e enfatizando a força de inspiração, na psicanálise, da ideia de uma imagem de fonte.

Comecemos pelo começo, ou ao menos por aquilo que se supõe sê-lo…

O texto de Ovídio tem o estatuto de uma origem: no terceiro livro d' As Metamorfoses, o personagem e o lago que aí são descritos constituem igualmente fontes da imagem de Narciso. Mas se é verdade que toda fonte pode servir-lhe de espelho, pode ser que essa história – em verso − nos forneça a imagem de uma fonte que é tão quimérica quanto a ilusão enganadora na água. Tentaremos remontar a essa fonte, embora ela pareça recuar diante da nossa aproximação, em primeiro lugar e de forma breve tocando no problema da transmissão do texto, para em seguida examinar a maneira pela qual a fonte, a origem, é nele representada.8

Nós nos serviremos da tradução de George Lafaye,9 na qual o texto francês se acha confrontado com uma edição crítica latina, estabelecida a partir de (numerosos) manuscritos que "conservaram" As Metamorfoses, e acompanhada de suas variantes. No curso de sua introdução Lafaye retoma a transmissão incerta do poema: o manuscrito de Ovídio propriamente dito presume-se ter sido queimado pelo próprio Ovídio – antes de ter sido completamente terminado e corrigido – na sequência de um processo que condenou o poeta ao exílio. As cópias desse texto inacabado (in-finito) atestam as alterações ali acumuladas no correr dos séculos. Em suma, essa edição consiste na tradução de uma síntese de cópias – mais ou menos fiéis – de um texto perdido antes de estar terminado, texto este que relata, além disso, uma lenda de origem desconhecida: "Não se conhece poeta algum que tenha abordado antes de Ovídio a lenda de Narciso; mas ela deve ter tido sua fonte nos Alexandrinos (nota p. 80)".

Vários casos de reprodução devem portanto ter ocorrido antes de se chegar a essa edição, uma versão entre outras. O texto está já imbricado em uma série de cópias ligeiramente variadas de reflexos imperfeitos.

Cópias, reflexos sem fonte evidente. Fonte ausente que se torna cada vez mais problemática: "A história do texto torna inverossímil a hipótese de que nossos manuscritos, sejam eles quais forem, derivem todos de um arquétipo único … Concordamos em geral hoje … em classificar em duas famílias [as cópias das Metamorfoses] (p. XVII)".

Essa cisão das fontes que se produz entre os manuscritos se reproduz no(s) texto(s). "Logo que estudamos o texto de perto, encontramos nele por vezes um grupo de versos consecutivos em que a mesma ideia é expressa sob duas formas diferentes que parecem se excluir uma à outra (p. XVIII)".

O problema da "dupla redação" tem, certamente, diversas soluções: seja a de "que Ovídio [tenha] ele próprio revisto sua obra durante o exílio" (p. XVIII); seja a de que ele tenha praticado "l'iteratio", que consiste em variar duas ou três vezes em seguida a expressão de um mesmo pensamento "(p. XIX); seja ainda que se trate de interpolações feitas posteriormente por copistas. E a opinião se divide. Pesquisando a fonte, a cada vez, não fazemos senão remontar a uma nova bifurcação. A procedência do texto que contém a história de Narciso é ela mesma uma história de duplos.10

O personagem de Narciso, que serviu de modelo a tantos autores, a tantos pintores, nos é apresentado como um personagem bastante singular: único, extraordinário, solitário. No entanto, uma leitura que siga o texto mais de perto revelará que esse indivíduo não é de fato in-dividido. Ao contrário, desde o início ele já é clivado. E, além disso, longe de ser único, Narciso tem seus próprios modelos que, aliás, não são eles tampouco originários. Ou seja, bem antes de se ver na água, Narciso é duplo e sua história é duplicada.

Por ocasião da história, Narciso chegara a essa idade ambígua em que alguém pode "passar tanto por criança como por jovem" (l. 351-352). É o momento mágico, indefinível, da transformação: nem criança nem adulto, ele é os dois a um só tempo. Essa ambivalência não é a única em Narciso: ele exerce igual atração sobre rapazes e moças (l. 353). A atração não é senão um engodo: sua beleza e sua aparência sedutora dão lugar a esperanças vãs, pois Narciso repele todos os seus admiradores apaixonados; seu coração nunca é tocado pelo amor que ele provoca: "sua beleza ainda jovem escondia tão duro orgulho que nem rapazes nem moças foram capazes de tocá-lo" (l. 354-355). Como um espelho, Narciso é brilhante. Como um espelho, há a ilusão de suavidade, mas, ao tentarmos alcançá-la, deparamo-nos com uma dureza que nos faz desviar. Como um fogo, ele acende o desejo ("o fogo que o inflama", l. 372), mas o recebe com frieza. Frio, frio como o gelo, esse Narciso…

Entre aqueles que nesse fogo se queimam – mas de modo algum sendo a primeira a fazê-lo – está Eco, a ninfa que repete, que repercute os sons: "apenas tendo visto Narciso … ardente de desejo, segue furtivamente seus passos" (l. 370-371). Mas ela está condenada a seguir para sempre: mesmo quando se atira ao seu pescoço, ela não pode tocá-lo. Finalmente, desprezada, prostrada, suas lágrimas não podendo apagar a chama do seu amor, ela se aniquila. O amor sem consumação a consome: seu corpo mirra, a seiva se evapora (l. 397-398). Eco, seguindo a criança-homem, torna-se fantasma, voz sem substância, simples ressonância.

Eco desaparece, mas seus vestígios persistem: "Como essa ninfa, outras, nascidas nas águas ou nas montanhas e, antes disso, numerosos rapazes se viram desdenhados por Narciso (l. 402-403)".

"Como essa ninfa, outras": a infeliz Eco, desesperada sem ser des-iludida, serve de modelo a outros desditosos, capturados na mesma armadilha. O infortúnio deles é semelhante ao seu. A imitadora tornou-se modelo, e os ecos se multiplicam.

A sorte de Eco – e de todos aqueles que sofreram essa gelada acolhida − terá repercussões sobre Narciso: "Por causa disso, uma vítima de seu desprezo, levando as mãos para o céu, exclamara: "Possa ele amar, ele também, e jamais possuir o objeto do seu amor!". A deusa de Ramnunte atendeu a esta justa prece (l. 404-406)".

O castigo de Narciso será portanto exigido segundo a lei de talião: o tratamento que ele infligiu aos outros lhe será devolvido. Haverá então uma repetição da história de Eco, mas em sentido inverso: tratar-se-á de um suplício semelhante, mas agora caberá a Narciso sofrer. A história de Eco é refletida e revertida para produzir a de Narciso. O que significa que Eco serve enfim de modelo mesmo em relação a Narciso: a história da ninfa que repete, se repete, e seus vestígios se fazem ouvir por toda parte no texto. Realmente, se Eco é já desde sempre um reflexo, Narciso não é senão o reflexo de um reflexo. E o efeito disso, como o de dois espelhos colocados face a face, é vertiginoso, sem começo nem fim. O mito de Narciso, supostamente primordial, é já uma repetição. Ele não é uma simples origem; não tem origem simples.

A origem já inacessível afastou-se ainda mais pelo fato de que a infelicidade de Narciso é prevista: Narciso é maldito por uma de suas vítimas, mas essas palavras ditas aos deuses, reverberando aos céus, lembram outras palavras, as do vaticínio por ocasião de seu nascimento, pois Tirésias previra então as circunstâncias da morte de Narciso. Anunciado pelo oráculo do qual a invocação dos deuses se faz eco, o destino de Narciso é duplamente predito.

É em uma floresta, perto de um lago, que Narciso se encontra face a face com seu destino, com sua imagem, mas esse encontro – poderíamos antecipar – não se produz sem que tenha havido precedentes. O jovem ilustre, vistoso e deslumbrante assemelha-se já à superfície que lhe devolverá seu semelhante:

Havia uma fonte límpida cujas águas brilhavam como prata; nunca os pastores nem as cabras que eles levavam a pastar na montanha, nem outro gado qualquer a tinha tocado, nenhum pássaro, nenhum animal selvagem, ou galho caído de árvore lhe havia turvado a pureza. (l. 407-410)

O brilho da água iguala o brilho da tez de Narciso e a luminosidade dos astros que são seus olhos (l. 420). Nem uma nem o outro jamais tinham sido tocados: são ambos virgens. Mesmo antes de se debruçar sobre a água, Narciso nela se reflete. Mas não há do que nos espantarmos: sua mãe Liríope foi ninfa, e seu pai Cefiso, o curso da água que a enlaçara. Nascido de tais pais, o fato de que Narciso encontre na água seu semelhante não é descabido, e sendo já espelho ele próprio, é de se prever que se assemelhe a essa superfície refletora.

Narciso ignora esse reflexo que é a água e se enamora de sua imagem na água. Siderado por um amor súbito, Narciso "permanece imóvel, o rosto impassível, parecido com o de uma estátua talhada no mármore de Paros" (l. 418- 419). De fato, mesmo o corpo de Narciso dá a ilusão de ser uma imitação, uma representação em pedra. Em contrapartida, a imagem refletida dá a impressão inversa: ela parece um corpo vivo. A cópia (mas qual imagem é cópia?) é de tal maneira fiel que se torna enganosa.

Apaixonado pela forma na água, e vítima portanto de um amor desesperado, Narciso se lamenta:

Terá algum amante, ó florestas, sofrido sorte mais cruel? … Vós, cuja vida conta tantos séculos, lembrai-vos de ter alguma vez visto, em tanto tempo, um amante definhar assim como eu? Um ser me seduz e eu o vejo; mas este ser que eu vejo e que me seduz, não posso alcançá-lo … (l. 442-227)

Sem necessidade de deixar escapar uma palavra, Eco se faz ouvir.

A sorte cruel de Narciso não é nada menos que o engodo do espelho, a armadilha do duplo. Aquilo que ele vê se coloca a tal proximidade que é inabordável: "Para cúmulo da dor, não há entre nós nem vasto mar, nem longos caminhos, nem montanhas, nem muralhas com acessos fechados; é um pouco de água que nos separa (l. 448-450)".

Esse obstáculo, infinitamente frágil, não poderá ser ultrapassado. Narciso e seu amado se aproximam até não poderem ser distinguíveis um do outro. Seu outro não é outro, mas faz parte do mesmo. O objeto de seu amor não é verdadeiramente objeto, mas parte inseparável do sujeito: "o que eu desejo está em mim; minha riqueza causou minhas privações" (l. 244). O que Narciso deseja, ele tem e não tem; ele é e não é. Em suma, Narciso e sua imagem estão já ligados demais para serem unidos. Eles parecem linhas paralelas, que não se separam senão por um fio de cabelo, mas que não se reencontram jamais, não podem nunca coincidir.

Longe de se unir, cada um se divide. No corpo e na água se manifesta a dupla natureza de Narciso: calor e frieza que não se confundem; gelo que não se deixa derreter pelo fogo; fogo que o gelo não pode apagar. Esse paradoxo, que já salientamos em Narciso, se repete nas cores de seu reflexo na água: "seu pescoço de marfim, sua boca graciosa, sua tez que, a um brilho avermelhado, une uma brancura de neve" (l. 422-423). O vermelho e o branco, o calor e o frio se apresentam lado a lado. No seu extremo desespero, o aspecto dividido de sua coloração torna-se mais evidente: "Com suas mãos brancas como mármore, ele bateu em seu peito nu que, sob os golpes, se coloriu de tonalidades róseas: assim também os frutos, brancos de um lado, são, do outro, matizados de vermelho (l. 481-484)".

As cores se encontram justapostas sem, no entanto, se misturarem.

Entretanto, chega um momento em que a mistura parece se efetuar, em que a chama e o frio, e o fogo e a água se confundem: "como a cera dourada se funde diante de uma leve chama ou o orvalho da manhã sob um tíbio raio de sol, assim ele se enfraquece e definha" (l. 487-489). O momento em que deixa de ser duplo, ele deixa de ser. Mas a morte não sinaliza o fim para Narciso: ele sobrevive, metamorfoseado em flor. E como frequentemente n' As Metamorfoses de Ovídio, a metamorfose não chega a uma transformação total: a forma muda, sem que a natureza seja verdadeiramente modificada. Narciso, mesmo em flor, conserva a dualidade que sempre o caracterizou: "no lugar do corpo encontra-se uma flor cor de açafrão, cujo centro é rodeado de pétalas brancas" (l. 509-510). As cores do fogo e do frio se fazem notar da mesma forma. Na verdade, a morte de Narciso, que deu a ilusão de uma síntese, de uma união, não fez senão multiplicar as divisões. Pois paralelamente à existência da flor terrestre que substitui seu corpo, há uma passagem infernal de Narciso quando "ele se olhava ainda na água do Estige" (l. 505). Tais são os vestígios de Narciso: uma flor dividida em duas cores, uma sombra, e a imagem da sombra. Mas poderíamos imaginar que, se Narciso viesse a se debruçar sobre os textos de Freud e seus sucessores, ele voltaria novamente a ver-se.

Se o Narciso de Ovídio é um personagem singular – ao menos no sentido de extraordinário –, é este mesmo o paradoxo dos personagens míticos: o de serem ao mesmo tempo particulares e universais. No momento em que Freud escreve, o nome de Narciso tinha sido empregado para designar uma perversão, mas se começava a contestar essa aplicação restrita do termo, para "reivindicar o seu lugar no desenvolvimento sexual normal do ser humano" (1969). O movimento de generalização atingirá seu ponto máximo no texto de Lacan, em que o estágio do espelho tornou-se a condição sine qua non de existência do sujeito. Essa multiplicação dos reflexos de Narciso nos leva a acreditar que existe uma fonte, mas o texto que supostamente seria uma fonte não o é de forma alguma. No lugar da origem, encontraram-se apenas espelhos. A história de Narciso é já uma repetição da de Eco que, ela, se define como repetição. O momento em que ele se apercebe de seu reflexo na água não é o momento da sua divisão, mas ainda uma representação da duplicação que existe desde sempre em Narciso, e persiste mesmo após sua morte.

No entanto nos servimos do texto de Ovídio enquanto origem; citamos a história de Narciso como se fosse a primeira; falamos de seu desdobramento na água como uma cisão originária. Perguntamo-nos se é simplesmente falso, inexato, errôneo, ou se existe uma razão pela qual a fonte e o espelho são de tal forma difíceis de distinguir. Pois no texto de Freud nos encontramos em face do mesmo paradoxo…

Em Para introduzir o narcisismo (1969), Freud busca a fonte das diversas manifestações do narcisismo secundário, essas últimas compreendendo o Narciso que se basta a si mesmo (e que é aliás autossuficiente) e aquele que se enfraquece buscando em vão se unir à sua imagem bem-amada (cf. o ego ideal). Em todos os exemplos do narcisismo secundário, o interesse de Freud se dirige menos à sua descrição do que à investigação de suas causas. Ele as relaciona ao que considera como sua forma primitiva, um estado de bem-aventurança que não deixamos de tentar recuperar.

Mas, a exemplo do Narciso de Ovídio, esse narcisismo "originário" em que não se é separado nem do objeto de amor nem do ego ideal, não constitui uma origem simples. Freud avança a hipótese de um estado primordial em que a libido do ego e a libido do objeto são paradoxalmente distintas e indistintas, opostas mas ao mesmo tempo indissociáveis. Na origem dos numerosos substitutos e vestígios do narcisismo, não há nada que possa servir de fonte simples. Se o narcisismo secundário é caracterizado por uma distinção mais aparente entre a libido de ego e a libido de objeto, não há unidade que preceda essa clivagem. Na fonte, sempre a duplicação. O narcisismo primário, não mais que o narcisismo secundário, não é um estado de unidade ou de simplicidade. Tal origem estaria já desde sempre perdida.

Mas se definíssemos a origem de outra forma, se abandonássemos o ideal de uma unidade precedendo a queda, então, no lugar de buscar em vão o paraíso perdido, no lugar de vivê-lo como perda, talvez pudéssemos celebrar o começo sem fazer o luto de tal ideal.

Lacan qualifica o estágio do espelho de "acontecimento" (p. 93), de "transformação" (p. 94), de "desenvolvimento" (p. 97), o que nos permite interpretá- lo em função de uma estrutura de discurso. Mas, diferentemente do de Ovídio, esse relato não é em absoluto uma tragédia; não há sequer a nostalgia que caracteriza o narcisismo secundário em Freud. A história da criança que se identifica com sua imagem é a história de um júbilo: ela sai vitoriosa desse estágio.

A situação que precede essa transformação não lembra tampouco a felicidade primeira que Freud descreve, nem o contentamento de Narciso no início de sua história. O "homenzinho" que Lacan nos descreve é "ultrapassado em inteligência instrumental pelo chimpanzé" (p. 93); ele é impotente, dependente, incapaz de ficar de pé, e está imerso no desconforto e na incoordenação motora de uma "discórdia primordial" (p. 96). Mas a criança luta a fim de vencer esses inconvenientes: "ela supera num afã jubilatório os entraves do percurso [entraves do "trotte-bébé"] (p. 94), e chega à "assunção jubilatória de sua imagem especular" (p. 94). O que há na presente história de confrontação com a imagem de si que provoca tal feliz desenlace? Constataremos que o espelho e a origem estão explicitamente ligados no texto de Lacan e de forma recorrente.

O estágio do espelho desencadeia um movimento inicial importante na vida psíquica: assumindo sua imagem especular, "o eu se precipita em uma forma primordial" (p. 94), forma que será "o tronco", a origem das identificações secundárias" (p. 94), "o limiar do mundo visível" (p. 95), e que é "mais constituinte do que constituída" (p. 95) (grifos nossos). Além do mais, o estágio do espelho "instaura", "inaugura" (p. 98) e "estabelece" (p. 96). Em suma, ele se define como um ponto de partida.

No texto de Lacan, e contrariamente ao que vimos nos de Ovídio e Freud, o espelho – o face a face com a imagem de si – é aceito, até mesmo adotado, como origem. Ele não é tratado nem como triste cisão de uma unidade preexistente nem como seu substituto imperfeito. "Mais constituinte que constituída", a imagem especular propõe menos a questão de sua própria proveniência do que a de suas consequências. O espelho lacaniano não nos envia para o passado, ele nos abre sobre o futuro.

O que a criança descobre diante do espelho, o que a partir desse momento lhe servirá de origem, é sua imagem idêntica. Essa imagem lhe permitirá perceber seu corpo de maneira global e aí situar um "primeiro esboço do eu". A criança assume assim não somente uma imagem idêntica, mas uma identidade. Entretanto, essa identidade é "alienante": o que dá à criança um sentimento de sua integridade é ao mesmo tempo o que a cinde: o que a unifica é paradoxalmente seu duplo.11 E seu duplo a seguirá para sempre, sem jamais alcançá-la. O eu que vai se situar graças ao estágio do espelho não corresponderá nunca exatamente ao sujeito. Como o obstáculo que separa Narciso de sua imagem, a distância entre o eu (o sujeito, je, no original) e o ego (moi, no original) pode ser ínfima; ela permanece, entretanto, intransponível.

Para Lacan não há unidade sem essa divisão. À diferença de Ovídio e de Freud, que se atêm à busca de uma união indivisível do sujeito com seu semelhante, Lacan considera a clivagem não como a queda do Paraíso, a perda da unidade, mas como a assunção da unidade que a dualidade constitui.

Isso não quer dizer que não haja "busca da fonte" em Lacan. Ao contrário, se Lacan não manifesta a nostalgia pela fonte, é sobretudo porque ele pretende tê-la encontrado, portanto nada de tristeza, e sim euforia, sensação de eureka!12. O estágio do espelho não é um momento entre outros. Mas, com essa origem, a cisão, a repetição em que o espelho implica são plenamente assumidas. No começo a divisão, a geração de reflexos, e a impossibilidade de uma unidade que não se constrói a partir de uma brecha.

 

 

Endereço para correspondência
Juliana de Nooy
School of Languages & Comparative Cultural Studies
University of Queensland, Q 4072, Austrália
Tel: +617 3365-2278
E-mail: j.denooy@uq.edu.au

 

 

Tradução: Beatriz Helena Peres Stucchi
Revisão da tradução e preparação do texto: Maria Lúcia Alzuguir Gutierrez
1 Texto publicado no Psychanalyse à l'université, 16 (61), 57-67, 1991.
2 Doutora em "Estudos literários: história e semiologia do texto e da imagem" pela Université Paris 7.
3 Não posso deixar de agradecer a Françoise Gaillard por seus comentários a uma versão anterior deste ensaio.
4 Cf. Louise Vinge, The Narcissus Theme in Western European Literature, up to the Early 19th Century, Lund, Gleerups, 1967.
5 S. Freud, Pour introduire le narcissisme, in La vie sexuelle, trad. Denise Berger, Jean Laplanche et coll., Paris, PUF, 1969.
6 J. Lacan, Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, in Ecrits, Paris, Seuil, 1966, pp. 93-100.
7 A autora utiliza no original a expressão "toujours-déjà", claramente alusiva ao pensamento de Jacques Derrida, com cujas ideias se afina sua leitura de Ovídio, conforme deixa explicitado na nota 1. (N. R.).
8 Notar-se-á uma relação entre nossa leitura de Ovídio e certa perspectiva derridiana. Pensamos sobretudo em "A dupla sessão" (in La dissémination, Paris, Seuil, 1972, pp. 199-317), em que as cópias de cópias abundam sem origem simples, e em De la grammatologie (Paris, Minuit, 1967), em que a cumplicidade histórica das noções de "origem", de "unidade" e de "simplicidade" é demonstrada e desmontada. Assinalamos igualmente um projeto que une o desejo de Narciso de se confundir com sua imagem com a ideia da "presença para si", noção que preocupou Derrida (in Jeffrey Mehlman, Strutural Study of Autobiography: Proust, Leiris, Sartre, Lévy-Strauss, London, Ithaca, 1974).
9 Ovide, Les Métamorphoses, texte établi et traduit par George Lafaye, sixième tirage, Paris, Société d'édition. Les Belles-Lettres, 1980. As referências posteriores serão indicadas unicamente pela linha do livro III, ou pela página da introdução.
10 Essa estrutura de repetição e de divisão é acentuada pela paginação do texto, que assume a forma de um espelho. O texto latino é impresso na frente, fazendo face à sua tradução francesa, no verso da página anterior; frente e verso mirando-se de lados opostos da encadernação. O paralelismo dos dois textos é sublinhado em primeiro lugar pelo fato de que a numeração dos versos em latim, que figura à direita da frente, reaparece à esquerda do verso, para indicar as linhas da prosa francesa que lhe correspondem. A essa duplicação acrescenta-se a da paginação: as duas páginas partilham sempre o mesmo número. Já os aspectos materiais do livro refletem a história que nele vai se desenrolar.
11 Cf. Robert: "Identité" 1. Caractère de deux objets de pensée identiques ... 2. Caractère de ce qui est un.
12 Cf. Derrida, La carte postale, Paris, Flammarion, 1980, pp. 439-524.

Creative Commons License